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Revista Brasileira de Educação Especial

versão impressa ISSN 1413-6538versão On-line ISSN 1980-5470

Rev. bras. educ. espec. vol.26 no.3 Marília jul./set 2020  Epub 12-Ago-2020

https://doi.org/10.1590/1980-54702020v26e0199 

Relato de Pesquisa

A Educação Especial Inclusiva em Contexto de Diversidade Cultural e Linguística: Práticas Pedagógicas e Desafios de Professoras em Escolas de Fronteira

Raiane Paim PINTO2 
http://orcid.org/0000-0003-0332-9744

Maria Luzia da Silva SANTANA3 
http://orcid.org/0000-0001-5151-3680

2Graduação em Pedagogia pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e membro do grupo de estudo e pesquisa em Psicologia, Processos Educativos e Inclusão (PPEI/CNPq/UFMS). Campo Grande/Mato Grosso do Sul/Brasil. E-mail: raipaim2017@gmail.com.

3Doutora e Mestra em Psicologia pela Universidade Católica de Brasília. Professora na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS. Compõe o quadro de docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da FAED/UFMS. Líder do grupo de estudo e pesquisa em Psicologia, Processos Educativos e Inclusão (PPEI/CNPq/UFMS). Campo Grande/Mato Grosso do Sul/Brasil. E-mail: santanapsi@gmail.com.


RESUMO

Este artigo caracteriza as percepções de professoras em escolas localizadas próximo à faixa de fronteira entre Ponta Porã, no Brasil, e Pedro Juan Caballero, no Paraguai, sobre sua formação e suas práticas pedagógicas com estudantes público-alvo da Educação Especial, na perspectiva da inclusão escolar, em um cenário de diversidade cultural e linguística. Uma pesquisa qualitativa foi realizada com cinco professoras de duas escolas públicas municipais, que responderam a uma entrevista semiestruturada. Os resultados sinalizam avanços, como a construção de materiais pedagógicos pelas professoras, considerando a diversidade cultural e linguística dos estudantes paraguaios, que têm como língua materna o guarani e/ou espanhol. Contudo, as professoras apontaram também dificuldades em razão das barreiras linguísticas, que podem levar os estudantes a uma deficiência secundária. Pesquisas futuras poderão ampliar esses achados, com a investigação da realidade e do cotidiano dos estudantes no ambiente de sala de aula, assim como da relação entre a família dos estudantes paraguaios e a escola.

PALAVRAS-CHAVE: Diversidade cultural e linguística; Educação Especial inclusiva; Escolas de fronteira

ABSTRACT

This paper describes the perceptions of teachers in schools located near the border range between Ponta Porã, in Brazil, and Pedro Juan Caballero, in Paraguay, about their training and its pedagogical practices with the target students of Special Education, from the perspective of school inclusion, in a scenario of cultural and linguistic diversity. A qualitative research was carried out with five teachers from two municipal public schools, who responded to a semi-structured interview. The results point to advances, such as the production of teaching materials by the teachers, considering the cultural and linguistic diversity of Paraguayan students, whose mother tongues are Guarani and/or Spanish. However, the teachers also mentioned challenges due to language barriers, which can lead students to a secondary disability. Future research may expand these findings by investigating the reality and daily lives of students in the classroom environment, as well as the relationship between the family of Paraguayan students and the school.

KEYWORDS: Cultural and linguistic diversity; Inclusive Special Education; Schools on the border

1 Introdução

Fronteira seca corresponde à inexistência de uma barreira terrestre entre dois ou mais países; assim, é uma linha imaginária que os separa. A cidade brasileira de Ponta Porã faz fronteira seca com a cidade paraguaia Pedro Juan Caballero. Elas são delimitadas apenas por uma linha imaginária, o que facilita as trocas comerciais, culturais e afetivas. Morar em cidades localizadas na fronteira implica um intenso elo entre as diversas manifestações de uma vida em sociedade - mesmo que cada cidade possua identidade própria, há vínculos entre as pessoas que promovem o compartilhamento não só de espaços, mas de experiências e necessidades (Scherma, 2016). Há aproximações e compartilhamentos de elementos culturais, econômicos e sociais entre os moradores da fronteira, porém há tensões, conflitos e distanciamentos que também estão presentes em escolas.

As trocas possibilitam inclusive novas configurações familiares, com pessoas fruto de relações entre brasileiros e paraguaios: os “brasiguaios”, que geralmente dominam tanto o guarani como o espanhol (Santana, 2018). Vale notar que, na análise de Albuquerque (2009), o termo “brasiguaio” está associado a uma identidade negativa e segregada, pois também faz referência a sem-terra e sem nacionalidade.

A proximidade geográfica e o fácil acesso possibilitam a circulação de paraguaios e brasileiros nessas cidades fronteiriças. Consequentemente, contribuem para o índice elevado de estudantes paraguaios em escolas brasileiras (Dalinghaus, 2009), principalmente as próximas à linha de fronteira, que têm mais da metade dos estudantes considerados brasiguaios e paraguaios (Pereira, 2009).

A pesquisa de Pereira (2010) acerca da educação na fronteira entre Ponta Porã e Pedro Juan Caballero mostrou que é comum estudantes residentes no Paraguai se deslocarem para estudar em escolas brasileiras. Geralmente, eles dominam duas línguas, guarani e espanhol, mas são alfabetizados com base monolíngue, em português. A pesquisa destacou o trilinguismo e o bilinguismo como uma realidade desses contextos de educação que deve ser considerada por conta das relações entre as pessoas que moram nessas cidades.

Estudantes residentes em Pedro Juan Caballero enfrentam dificuldades para se adaptar em escolas brasileiras, uma vez que não são valorizados e empoderados como bilíngues ou trilíngues. A escola desconsidera a diversidade presente nessa região de fronteira (Santana, 2018). A escola fronteiriça carrega inúmeras tarefas sociais, entre as quais a problemática da identidade cultural dos estudantes. Essa escola deve criar condições para a valorização e o respeito à identidade e à cultura do outro, possibilitando um ambiente integrador e pluralístico (Pereira, 2009).

Além disso, estudantes paraguaios em escolas brasileiras de fronteira também demandam educação especial, que abrange “as pessoas com deficiência, com transtornos globais do desenvolvimento e com altas habilidades ou superdotação”, como estabelece o Decreto nº 7.611, de 17 de novembro de 2011. A Educação Especial, na perspectiva da inclusão escolar, orienta suas ações para o atendimento às particularidades dos estudantes, propondo a eliminação das barreiras ao processo de escolarização (Decreto nº 7.611, 2011).

As barreiras à aprendizagem são empecilhos que se impõem aos estudantes, criando-lhes dificuldades na sua aprendizagem, gerados por diferentes fatores (Carvalho, 2007). As pesquisas de Silva e Gonçalves (2016) e Afonso (2017) acerca da Educação Especial inclusiva em escolas localizadas na fronteira entre Ponta Porã e Pedro Juan Caballero apontam a necessidade de remoção dessas barreiras. A qualidade da resposta educativa da escola é uma grande aliada nessa remoção, devendo considerar, no processo de ensino-aprendizagem, as singularidades e as potencialidades dos estudantes.

Por esse ângulo, a pesquisa de Silva e Gonçalves (2016) analisou a prática de educação física adaptada em contexto inclusivo em escolas de Ponta Porã a fim de investigar como os professores planejavam suas aulas com estudantes com deficiência física. Os resultados sugeriram o despreparo e a falta de formação dos docentes para atuar com estudantes nessa condição. Ainda na área da Educação Especial inclusiva, a pesquisa de Afonso (2017), com metodologia qualitativa, teve o objetivo de entender como ocorria o atendimento especializado em uma escola municipal de Ponta Porã. Os achados identificaram que são necessários avanços para a Educação Especial inclusiva nessa localidade, pois há problemas estruturais, além daqueles relacionados à formação de professores.

Discutir questões linguísticas e culturais da pessoa na condição de deficiência é fundamental para o processo de ensino e aprendizagem em contextos marcados pelo multilinguismo. A linguagem é construída socialmente e tem papel fundamental na constituição do homem ao possibilitar a interação social, o pensamento generalizante e a formação do pensamento humano (Vigotski, 2007). O desenvolvimento das funções psicológicas superiores é impulsionado pela interação, pelas relações sociais e pela linguagem. Nesse processo, a própria cultura reelabora o comportamento natural da criança (Vigotski, 2011).

A apropriação e o desenvolvimento da linguagem possibilitam que o homem se relacione, expresse, compreenda e compartilhe experiências. A linguagem também assume significados e sentidos que são influenciados pelos elementos históricos, sociais e culturais. Assim, a linguagem é elemento imprescindível nas práticas pedagógicas em escolas de Ponta Porã que têm estudantes paraguaios, sendo também componente identitário e caracterizador da diversidade cultural nesse contexto. Nas escolas situadas próximas à faixa de fronteira, a modalidade de Educação Especial na perspectiva inclusiva requer olhares e ações que considerem também a diversidade cultural e linguística. A investigação das percepções de professores nesses contextos contribui com a discussão sobre a inclusão escolar a partir da perspectiva dos profissionais que atuam em escolas da região de fronteira.

Ao analisar escolas brasileiras na região de fronteira entre Ponta Porã e Pedro Juan Caballero, cabe distinguir o estudante brasileiro público-alvo da Educação Especial do estudante paraguaio público-alvo da Educação Especial, que tem como língua materna o guarani e/ou o espanhol. É inegável que o estudante brasileiro em escola de Ponta Porã difere do estudante paraguaio, visto que este último necessita de adaptações curriculares para sua inclusão escolar, visando à remoção da barreira cultural e linguística produzida socialmente.

Essa peculiaridade justifica a importância de estudar as percepções de professoras quanto à sua formação para atuar com estudantes público-alvo da Educação Especial. Assim, este estudo põe em tela a atuação de professoras de escolas fronteiriças de Ponta Porã com estudantes brasileiros e estrangeiros na Educação Especial inclusiva. A partir disso, o objetivo deste artigo é caracterizar as percepções dessas professoras sobre sua formação e práticas pedagógicas com estudantes público-alvo da Educação Especial, em um cenário de diversidade cultural e linguística.

2 Método

Esta pesquisa, aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul sob o Protocolo nº 3.177.546, é caracterizada como um estudo qualitativo que, segundo Koller, Couto e Hohendorff (2014), consiste em analisar todo o material encontrado durante a pesquisa, não testando possíveis variáveis, mas observando e descrevendo como elas se relacionam.

2.1 Participantes e local da pesquisa

A pesquisa abrangeu cinco professoras de duas escolas localizadas próximas à faixa de fronteira entre Brasil (Ponta Porã) e Paraguai (Pedro Juan Caballero). Das cinco participantes, duas atuavam na sala de recursos multifuncionais e três na sala de aula regular. Os critérios de inclusão foram: trabalhar em escolas próximas à linha fronteiriça, já que elas são as que mais atendem estudantes paraguaios pela facilidade de acesso; desenvolver suas atividades profissionais com estudantes público-alvo da Educação Especial; e autorizar o uso da entrevista na coleta de dados. Os critérios de exclusão foram não entregar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e não trabalhar com estudantes que são público-alvo da Educação Especial.

Todas as participantes eram pedagogas, sendo uma delas licenciada em letras com habilitação em espanhol. Para manutenção do anonimato, foram usadas as abreviações P1, P2, P3, P4 e P5, em referência às professoras; e E1 e E2, em referência às escolas. Todas as participantes liam, escreviam e falavam na língua portuguesa (Tabela 1).

Tabela 1 Caracterização das participantes. 

ITEM P1/E1 P2/E1 P3/E1 P4/E2 P5/E2
Lê em português X X X X X
Lê em espanhol X X X - -
Lê em guarani - - - - -
Escreve em português X X X X X
Escreve em espanhol X X X - -
Escreve em guarani - - - - -
Fala português X X X X X
Fala espanhol X X X - -
Fala guarani - X - - -
Tempo de atuação 16 anos 25 anos 20 anos 14 anos 2 anos
Local de atuação Sala de recursos multifuncionais Sala regular Sala regular Sala de recursos multifuncionais Sala regular

Fonte: Elaboração própria com base nos dados da pesquisa.

Nos dados da pesquisa, observou-se que quatro professoras têm mais de uma década de experiência no magistério e uma tem dois anos. Nenhuma delas lê ou escreve em guarani, e somente uma fala esse idioma. P1 tem especialização em Atendimento Educacional Especializado e Psicopedagogia, P2 e P4 têm especialização nas séries iniciais do Ensino Fundamental e Educação Infantil, P5 é especialista em psicomotricidade e Educação Especial, e P3 não tem título de especialização.

2.2 Coleta e análise de dados

O instrumento utilizado para coleta de dados foi uma entrevista semiestruturada contendo oito questões que exploravam os conhecimentos das professoras sobre Educação Especial na perspectiva de inclusão escolar, diversidade cultural e linguística, levando em consideração o contexto das escolas pesquisadas, a formação profissional das participantes e o estudante paraguaio público-alvo da Educação Especial.

Realizou-se contato com as duas diretoras das escolas participantes para apresentação da pesquisa, ocasião em que houve adesão com a entrega do termo de autorização assinado por elas. Posteriormente, foram realizadas visitas nessas instituições para apresentação da pesquisa às professoras e convite para participar, com a entrega do TCLE. No contato seguinte, os TCLEs foram recolhidos e as entrevistas foram agendadas para o período destinado às horas de atividades das professoras.

Da Escola 1, participaram duas professoras; e, da Escola 2, participaram três professoras. As entrevistas foram realizadas de maneira individual, na sala dos professores e na sala de recursos multifuncionais. Os dados foram organizados mediante a transcrição das entrevistas, com sua posterior releitura e análise qualitativa das informações. A partir dessa análise, foram organizadas categorias para apresentação e discussão dos resultados.

3 Resultados e discussão

A análise dos dados possibilitou construir três categorias: percepções das professoras sobre a Educação Especial inclusiva; perspectivas das professoras acerca do fronteiriço, brasiguaio e/ou paraguaio; e práticas pedagógicas, desafios e Educação Especial inclusiva na diversidade cultural e linguística.

3.1 Percepções das professoras sobre a Educação Especial inclusiva

A perspectiva da inclusão escolar é primordial para pensar na oferta de uma educação de qualidade para todos, independentemente de origem étnica, deficiência, transtornos do desenvolvimento ou condição social e econômica. A proposição de Carvalho (2014) reitera que a escola pode ser um espaço inclusivo, não apenas pelo fato de estudantes ocuparem o espaço físico, mas é preciso considerar as diferenças individuais e não assumir um caráter homogeneizador.

Esses aspectos reiteram a importância de o professor compreender elementos conceituais, legais e pedagógicos da Educação Especial inclusiva. Assim, terá melhores condições de participar do processo de inclusão escolar de todos os estudantes. Os dados da pesquisa possibilitaram apreender a compreensão das professoras sobre a Educação Especial inclusiva.

Que favorece a todos os grupos de alunos independente da diversidade, raça, cor - paraguaios, pensando na minha realidade. A inclusão não se trata apenas da educação especial, ela perpassa a exemplo a nossa cidade de fronteira, que tem especificidades. Lembrar dessas diferenças e trabalhar elas em sala, não só voltada para o estudante deficiente. (P1/E1).

As ideias dessa professora vão ao encontro do que diz Carvalho (2016), ao considerar que a proposta de educação inclusiva deve oferecer meios para romper as barreiras à aprendizagem; e também Mantoan (2015), ao expor que as ações educativas devem ter como base a valorização e o respeito à diferença, sendo a inclusão produto de uma educação plural, democrática e transgressora.

A proposição de P1/E2, voltada à inclusão do estudante paraguaio em escolas brasileiras de fronteira, é um ato de transgressão ao considerar que Melo, Stivanello, Silva e Silva (2016) relataram que as professoras responsáveis pelas práticas educativas com estudantes paraguaios não valorizavam o multiculturalismo, privando-os de demonstrar ou assumir suas características culturais, como o uso dos idiomas guarani e espanhol para se comunicarem. Nessa direção, Dalinghaus (2009) observou que as professoras demonstram preconceitos com os estudantes brasiguaios e paraguaios, considerando-os desinteressados.

Neste estudo, observou-se a compreensão das professoras sobre a Educação Especial na perspectiva da inclusão escolar articulada ao atendimento das especificidades dos estudantes: a “educação inclusiva é incluir todos os alunos no mesmo contexto na sala regular. Por mais que tenham diversidades, deve buscar atividades para através do lúdico promover a socialização e inclusão de todos” (P2/E1). Outra professora afirmou “que essas crianças nessa situação de deficiência precisam de atendimento dentro das necessidades deles e por isso educação inclusiva” (P2/E2). Assim, a educação é a melhor forma de romper com a exclusão de estudantes, estejam eles em condição de deficiência ou não (Souza, 2018). Para isso, é necessário que professores e todo o corpo escolar entendam o conceito de inclusão plenamente, como um processo contínuo para a aprendizagem de qualquer pessoa (Carvalho, 2016).

A Educação Especial em escolas inclusivas requer uma pedagogia centrada no estudante, com a modificação de atitudes discriminatórias, a criação de comunidades acolhedoras e o desenvolvimento de uma sociedade inclusiva (Declaração de Salamanca, 1994). Para isso, é imperativo que as práticas educativas na região de fronteira estejam pautadas na ideia de “que as diferenças humanas são normais e que, em consonância com a aprendizagem de ser adaptada às necessidades da criança, ao invés de se adaptar a criança às assunções pré-concebidas a respeito do ritmo e da natureza do processo de aprendizagem” (Declaração de Salamanca, 1994).

A participante P1/E2 relatou que a educação inclusiva é “uma educação que vai incluir os ditos especiais, com os ditos normais sem deficiência”, cabendo sinalizar que “ao estabelecer a sua clientela como aquela que apresenta ‘desvios’ em características biológicas, estatísticas psicológicas ou sociais, a educação especial reproduz, no seu âmbito de ação o processo de participação-exclusão” (Wanderley, 1999). À vista disso, na óptica dos professores, os estudantes considerados normais são aqueles que atendem às expectativas e aprendem no tempo estimado por eles, enquanto os “especiais” são aqueles que precisam de apoio pedagógico, considerando sua deficiência como elemento determinante de seu fracasso escolar (Mantoan, 2015). Entretanto, “as normas imprimem o modo de se comportar e viver, mas ao mesmo tempo sempre existe a possibilidade de uma interrupção, de uma nova direção” (Freitas, 2012, p. 495).

A inclusão é deixar de excluir, entendendo que todos fazem parte de uma comunidade e têm direitos e deveres. Nesse sentido, não se destina unicamente ao estudante público-alvo da Educação Especial. Além disso, os estudantes que precisam de atendimento educacional especializado não devem ser privados de estudar no mesmo ambiente que os demais, sendo esse atendimento um instrumento para a inclusão, em oposição à exclusão.

3.2 Perspectivas das professoras acerca do fronteiriço, brasiguaio e/ou paraguaio

Como já explicado, no contexto de fronteira Ponta Porã-Pedro Juan Caballero, é comum estudantes residentes no Paraguai se deslocarem para estudar em escolas brasileiras. Geralmente, eles têm como língua materna o guarani e/ou o espanhol, contudo são alfabetizados em português. Assim, o trilinguismo e o bilinguismo se fazem presentes nessas instituições por conta da interação entre as duas cidades (Pereira, 2010). Apesar desse cenário de diversidade linguística, em escolas localizadas em Ponta Porã, é valorizado o português, sendo as demais línguas ignoradas (Dalinghaus, 2009).

A língua é um dos elementos culturais de destaque do estudante paraguaio; no entanto, sua escrita híbrida é estigmatizada no contexto escolar brasileiro. Além disso, no ambiente das fronteiras nacionais e diante dos processos de migração internacional, a identidade do brasiguaio assume sentidos diversos, mas principalmente negativos tanto no lado brasileiro quanto no lado paraguaio (Colognese, 2012).

O estudo de Colognese (2012) considerou que os brasiguaios possuem uma identidade em construção na fronteira, que se caracterizaria como local de encontros e desencontros de diferentes. Segundo o autor, os processos de imigração de brasileiros para o Paraguai e a emergência da identidade brasiguaia teriam caráter “relacional, podendo assumir sentidos de conflito ou de integração. Por isso os sujeitos podem aceitar ou não estas identidades atribuídas, assumindo ou não auto identidades diferentes” (Colognese, 2012, p. 155).

Para Mondardo (2009), o ser fronteiriço implica o compartilhamento de culturas; desse modo, o brasileiro se apropria da cultura do paraguaio e vice-versa. A visão e a explicação das professoras acerca do brasiguaio e/ou fronteiriço possibilitam compreender o reconhecimento, a pertença e as particularidades dos estudantes paraguaios em escolas brasileiras. É possível a negação e a invisibilidade da diversidade linguística desse público-alvo da Educação Especial no Brasil pelas professoras, como se analisa no relato de P1/E2 - “nunca precisei pensar nisso, pode até ser que tenha alunos fronteiriços, mas todos dominam o português” - e também no de P2/E2: “eles são da fronteira, mas falam português fluente, os pais que são paraguaios mesmo”.

O estudante paraguaio tem como língua materna o guarani e/ou o espanhol. A atuação e as práticas educativas com eles, público-alvo da Educação Especial, requerem um olhar para essa particularidade, a fim de que se constitua uma visão positiva acerca de si mesmo, dos aspectos culturais de seu povo e do seu contexto de convivência. As expectativas negativas que recaem sobre as pessoas de culturas desvalorizadas e estigmatizadas podem levar à apropriação da cultura dominante. Esses casos são eminentes em sala de aula de escolas brasileiras de fronteira seca.

Visto que “as concepções concorrentes de igualdade e diferença, as pessoas e os grupos sociais têm o direito a ser iguais quando a diferença os inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza” (Santos, 1997, p. 122), em escolas multiculturais de fronteira é importante romper com pensamentos e práticas que levam à exclusão, negação e invisibilidade do outro que é diferente. Contudo, há estudantes paraguaios público-alvo da Educação Especial que não expõem sua origem étnica e o fato de serem bilíngues ou trilíngues:

Atualmente acredito que mais da metade dos alunos que atendo na sala de recursos são paraguaios, e o meu primeiro desafio foi com uma aluna paraguaia e surda. E o meu maior desafio até hoje é a comunicação, e a negação dos pais de declararem seus filhos como paraguaios. Eles têm medo e acreditam que perderão a vaga na escola. (P1/E1).

Assim, fica eminente a desvalorização e a submissão do estudante paraguaio à cultura brasileira nas escolas fronteiriças em Ponta Porã, bem como de seus pais, ao não os considerarem paraguaios. Alguns elementos do que é ser fronteiriço e brasiguaio foram apresentados no relato das participantes desta pesquisa, em que a identidade do paraguaio aparece influenciada pelas aproximações e também pelos conflitos e impressões preconceituosas reforçadas em áreas de fronteira.

Todos os alunos que atendo hoje são fronteiriços brasiguaios. Pra mim há diferenças, mas eles fazem parte do mesmo contexto cultural que eu: sou brasiguaia, minha mãe é paraguaia e o pai brasileiro. Aqui na escola todos são brasiguaios. Alguns negam, têm medo, são inferiorizados. (P2/E1).

Na óptica dessa professora, uma das características do brasiguaio é ter laços afetivos e familiares, aspecto também apontado por Santana (2018). Além disso, emerge a negação por parte dos brasiguaios de elementos de sua cultura por causa do medo e da inferiorização, que, de acordo com Colognese (2012), existem dos dois lados da fronteira. Persistem as marcas históricas da Guerra do Paraguai, ocorrida entre 1864 e 1870, em que os paraguaios demonstram uma imagem negativada dos brasileiros, “reforçada pela vitória na guerra e pelas impressões passadas no contato com as áreas da fronteira, [e] os brasileiros alimentam uma imagem dos paraguaios como preguiçosos, inferiores e desorganizados” (Colognese, 2012, p. 152).

Além disso, a negação da identidade paraguaia apareceu relacionada ao acesso de serviços disponíveis no Brasil, como afirma P3/E1: “aqui na escola quase todos são brasiguaios, mas tem muitos que são exclusivamente paraguaios e tem muita diferença na cultura, mas acredito que o mais grave é eles não assumirem a identidade. Os pais têm medo de perder a vaga, e no Brasil eles têm mais direitos”.

Quanto a isso, Santos (2008, p. 439) afirma que “é mais interessante manter essa identidade oculta que dificulta a ocupação de um lugar a que têm direito num país que alardeia educação para todos, mas que ainda prevalece a política da exclusão”. É mais cômodo ignorar a cultura que dificulta a homogeneização do que aceitar a diferença e romper com padrões estabelecidos que priorizem o sujeito e seus aspectos históricos e culturais (Deleuze, 1992).

3.3 Práticas pedagógicas, desafios e educação especial inclusiva na diversidade cultural e linguística

É evidente que as escolas brasileiras têm inúmeros desafios para a inclusão do estudante. Na acepção de Carvalho (2016), os problemas enfrentados pelos professores, estudantes e demais envolvidos vão além de aspectos físicos, arquitetônicos e mobiliários, pois abrangem a proposta pedagógica desvinculada da realidade dos estudantes e a formação dos profissionais. Os desafios percebidos na prática pedagógica voltada à inclusão de estudantes paraguaios público-alvo da Educação Especial em contexto de diversidade cultural e linguística envolvem tanto recursos materiais e humanos como adaptação curricular, que deverá minimamente respeitar suas línguas maternas:

No começo me desanimava, hoje vejo que reconheço melhor meus alunos pelas dificuldades, que as barreiras fazem com que eu queira superá-las, e então ir atrás de novos meios, construindo materiais. Não tem muito investimento nem em sentido de dinheiro, investimento de tempo e material, deveria se ter mais importância com a vida do outro. Então imagina o deficiente paraguaio - sofre preconceito em dobro, o trabalho também é maior, não tem suporte, ninguém nos fala: vamos fazer um curso sobre diversidade e vamos aprender o guarani ou o espanhol. (P1/E1).

Não posso dizer que não existem desafios. Por mais que tenham os cuidadores, quem pensa nas atividades, organiza aulas, sou eu. Nunca estive preparada. E falta apoio, todo mundo critica, mas para ajudar são poucos. Não tem material, agora estão sendo construídos uns, antigamente não tínhamos nada. Mas quem constrói somos nós com materiais recicláveis. (P2/E1).

É tão construtivo quando a universidade manda vocês para a escola, vocês trazem alma jovem e nos contagia, porque muitas vezes estamos desestimulados e vocês trazem esperanças e indispensáveis parcerias. (P2/E2).

O estudante paraguaio público-alvo da Educação Especial sofre preconceitos relacionados à sua identidade, às questões culturais e linguísticas, à deficiência ou ao transtorno de desenvolvimento, entre outras condições. Diante da ausência de suporte e da indisponibilidade de recursos teórico-metodológicos para trabalhar com a diversidade linguística, atuar na Educação Especial inclusiva no Brasil para atender essas especificidades de estudantes paraguaios pode gerar sentimento de impotência no professor.

Segundo Mantoan (2015), os desafios precisam ser superados, para isso é necessário o apoio dos órgãos públicos, com a efetivação de políticas que garantam os direitos humanos. E, no contexto em que trabalham as participantes desta pesquisa, observa-se a ausência de políticas e de projetos desenvolvidos pela gestão da educação pública nas esferas municipal, estadual e federal que garantam o diálogo entre a educação intercultural e a modalidade de Educação Especial na perspectiva da inclusão escolar.

Também foi relatado que há “muitos desafios estruturais e materiais além de falta de presença dos pais na escola” (P1/E2) e que “falta apoio pela parte dos pais, fica tudo para a escola. Além de desafios estruturais e falta de investimento desde a minha formação inicial” (P2/E2). É necessário que desde a formação inicial o futuro docente seja sensibilizado para a realização de práticas não reforçadoras de preconceitos, mas, sim, de posturas críticas e emancipatórias (Santana, 2018).

Cabe ainda destacar que esses relatos das professoras expõem questões referentes à relação família-escola. A pesquisa de Oliveira e Marinho-Araújo (2010) sinaliza para uma relação caracterizada por situações-problema, pela ação da instituição escolar em orientar os familiares acerca de como educar seus filhos e pela diminuição da participação dos pais nas tarefas da escola à proporção que o filho progride nos anos escolares. Contudo, as autoras salientam que “os aspectos que constituem e intervêm na relação entre estes dois contextos, sejam como barreiras à colaboração ou contribuindo para a sua promoção, ainda não estão suficientemente estabelecidos” (Oliveira & Marinho-Araújo, 2010, p. 100).

O estudo de Schlosser e Frasson (2012), sobre a imigração de alunos da primeira etapa da Educação Básica do Paraguai para o Brasil em escolas públicas municipais de Santa Terezinha de Itaipu, no Paraná, apontou como elemento indicativo da relação família-escola a orientação para os pais acerca do apoio pedagógico, da sala de recursos e da documentação necessária para matrícula em escolas brasileiras.

A relação família-escola constituiu-se, e ainda se sustenta, como consequência de “situações vinculadas a algum tipo de problema e, desta forma, pouco contribui para que as duas instituições possam construir uma parceria baseada em fatores positivos e gratificantes relacionados ao aprendizado, desenvolvimento e sucesso dos alunos” (Oliveira & Marinho-Araújo, 2010, p. 107). Na Educação Especial na perspectiva da inclusão escolar, a família e a escola devem intensificar sua relação para favorecer o crescimento e o desenvolvimento dos estudantes.

A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (2008) preconiza a orientação dos sistemas de ensino para promover respostas às necessidades educacionais dos estudantes, garantindo a participação familiar e comunitária. A Educação Especial abarca todos os níveis, etapas e modalidades de ensino e de aprendizagem nas turmas comuns. Um dos dispositivos de inclusão é o Atendimento Educacional Especializado, que precisa “envolver a participação da família para garantir pleno acesso e participação dos estudantes” (Decreto nº 7.611, 2011).

A relação entre a escola e a família de um estudante paraguaio, público-alvo da Educação Especial, é um desafio que sinaliza a necessidade de uma aproximação mais estreita entre essas instituições, já que as professoras relataram a falta de apoio e a ausência dos pais na escola. Contudo, há necessidade de investigações com foco nessa temática para: a) averiguar a relação da família de estudantes paraguaios, que provavelmente dominam as línguas guarani e/ou espanhol, com a escola; e b) colaborar com os elementos pertinentes ao processo educativo por meio de uma relação instigada pela responsabilização compartilhada.

Ademais, cabe lembrar que a relação entre essas instituições “tem-se caracterizado por ser um fenômeno pouco harmonioso e satisfatório, uma vez que as expectativas de cada instituição ou de cada ator envolvido não são atendidas” (Oliveira & Marinho-Araújo, 2010, p. 107). Aos pesquisadores, estudiosos e profissionais da educação em escolas de fronteira, é oportuno o alerta e a provocação da “relação família-escola no sentido de que ela possa ser associada a eventos positivos e agradáveis e que, efetivamente, contribua com os processos de socialização, aprendizagem e desenvolvimento” (Oliveira & Marinho-Araújo, 2010, p. 107).

As escolas fronteiriças de Ponta Porã constituem um contexto multicultural e plurilíngue (português, espanhol e guarani), com o predomínio da língua portuguesa. Nos relatos das entrevistadas, foi evidenciada a influência do uso dos idiomas espanhol e/ou guarani por parte das professoras em suas práticas pedagógicas com estudantes paraguaios público-alvo da Educação Especial.

Aprendi a atuar na prática, minha formação se fez com eles, nem a graduação nem a especialização contribuíram tanto quanto o contato, eu entendo espanhol, falo pouco, mas o guarani não falo nada e entendo poucas palavras. Vou te dar o exemplo da menina surda, eu adotava o método de utilizar a língua materna, pois ela tinha conhecimento da língua familiar, então eu mostrava a imagem, a escrita em espanhol e sinalizava. Atualmente, como você pode ver nos meus cartazes, adoto o uso da escrita em duas línguas.(P1/E1).

A ação da professora demonstra a percepção do estudante paraguaio público-alvo da Educação Especial além das condições orgânicas, considerando suas peculiaridades culturais e linguísticas. Isso sinaliza a adoção do modelo social da deficiência, em contraposição ao modelo individual, que a considera um atributo intrínseco da pessoa. Nessa leitura, salienta-se a necessidade de enxergar o indivíduo em seus aspectos sociais e culturais, não apenas no sentido biológico imutável, mas como sujeito histórico (Vigotski, 2011). Na escola fronteiriça, é possível verificar a busca de metodologias que levem em consideração os aspectos culturais e sociais do estudante paraguaio em escolas brasileiras localizadas próximo à faixa de fronteira.

Por eu falar espanhol, não tenho dificuldades de interagir e de conversar com eles, posso ir fazendo traduções. Os alunos fronteiriços têm o desejo de aprender o outro idioma, mas um dos fatos é a dificuldade no registro. Agora, uma criança brasileira é muito difícil se interessar pela língua guarani. Sempre os pais os incentivam a aprender a [língua] inglesa, mesmo sabendo do meio em que estão inseridos, então eu busco valorizar a linguagem materna dos fronteiriços. Agora, aqueles em condição de deficiência que são paraguaios, sigo o mesmo princípio de valorização cultural. Faço comparações e traduções com as três línguas, mostrando imagens, objetos e nomes próprios da sala de aula. (P2/E2).

Observa-se o investimento em práticas pedagógicas que consideram o estudante paraguaio público-alvo da Educação Especial, aproximando-se da necessidade pontuada por Carvalho (2016) de promover ações educativas pautadas na educação intercultural para reforçar o plurilinguismo e o multiculturalismo. Nota-se também que “a ‘deficiência’ ou ‘limites’, caso existam, não podem mais ser usados como ‘álibi’, como justificativa da estagnação, da educação empobrecida, da discriminação ou exclusão” (Costa, 2006, p. 239).

O processo de inclusão de crianças paraguaias um tempo atrás foi difícil. Hoje em dia temos uma facilidade, não que estejam 100% tudo certo, mas estamos no caminho. O deficiente paraguaio é uma dificuldade um pouco maior, a diferença é que muitas professoras falam o guarani. A minha formação permite que eu possa me comunicar em espanhol e utilizo ela em sala de aula, o guarani não compreendo nada e aí está minha dificuldade, por isso não me considero uma professora inclusiva, mas desejo um dia alcançar. Como eu não falava guarani, contava com a ajuda das colegas que falavam guarani. Trocamos ideias, e vamos em busca de recursos, trabalhando músicas regionais. E inclusive os alunos especiais são os que chegam falando só em guarani, nem em espanhol. (P3/E1).

Além dos aspectos arquitetônicos, a acessibilidade abrange o currículo, os materiais pedagógicos, as atitudes, entre outros. As barreiras à inclusão foram e são produzidas e criadas social e culturalmente pelo homem, podendo ser removíveis ou modificáveis para incluir pessoas. Há indícios disso no relato da participante P3/E1, que reitera a necessidade de abordagens pedagógicas diferenciadas para estudantes estrangeiros em escolas brasileiras. Estas deverão considerar “o português como língua não materna e/ou considerar o repertório linguístico plural dos alunos de modo a propiciar não só o acesso à escola, mas principalmente a valorização de suas línguas como meio de promover o êxito nas diversas etapas da escolarização e permanência” (Berger, 2015, p. 148).

As práticas pedagógicas são cruciais para o desenvolvimento do estudante paraguaio, público-alvo da Educação Especial no Brasil, devendo trabalhar os aspectos sociais, cognitivos e culturais, sobretudo considerando a sua diversidade linguística. A partir da leitura da psicologia sócio-histórica cultural, é possível sugerir como necessária a criação de interações e mediações pedagógicas que potencializem os saberes dos estudantes. Entende-se que os obstáculos são produzidos de maneira histórica, cultural e social. A partir dessa óptica, considera-se como uma das principais barreiras à inclusão escolar de estudantes paraguaios em escolas brasileiras a invisibilidade de suas peculiaridades, que limita a prática pedagógica.

Essas ideias são corroboradas pelos pressupostos de Vigotski (2011) acerca da defectologia, do desenvolvimento e da educação da criança anormal. Portanto, são importantes práticas educativas que consideram os aspectos culturais e sociais da aprendizagem e do desenvolvimento do estudante, pois, “ao entrar na cultura, a criança não apenas toma algo dela, adquire algo, incute em si algo de fora, mas também a própria cultura reelabora todo o comportamento natural da criança e refaz de modo novo todo o curso do desenvolvimento” (Vigotski, 2011, p. 866). A deficiência é vista, além da falta e do defeito, como um “estímulo ao desenvolvimento de caminhos alternativos de adaptação, indiretos, os quais substituem ou superpõem funções que buscam compensar a deficiência e conduzir todo o sistema de equilíbrio rompido a uma nova ordem” (Vigotski, 2011, p. 869). Nesse sentido, o desenvolvimento cultural é colocado como principal elemento compensador da deficiência.

Nesta pesquisa, há professoras que sabem ler, escrever e falar em espanhol e/ou guarani; contudo, há também o oposto: profissionais que nunca atuaram com estudantes paraguaios, público-alvo da Educação Especial no Brasil, a exemplo da participante P1/E2, que conta que “nunca atuei com paraguaio, pode ser que algum seja, mas falam português todos. Seria um desafio ainda maior - nem com os que não são deficientes consigo me comunicar, com um deficiente paraguaio entraria em pânico!”. Esse relato se aproxima da ideia de Dalinghaus (2009) de que a identidade cultural do estudante brasiguaio e paraguaio vem sendo ignorada no ambiente escolar.

Ao não fazer uso de sua língua materna, os estudantes paraguaios em contexto escolar brasileiro negam os elementos de sua identidade cultural - geralmente, “são identificados como introvertidos, recatados, quietinhos” (Schlosser & Frasson, 2012, p. 20). Esse aspecto precisa ser considerado por professoras que atuam na área da Educação Especial inclusiva na região de fronteira. As condições orgânicas e psicossociais dos estudantes não podem ser ignoradas na remoção de barreiras à aprendizagem, somando-se a elas outras influências e participações, como o professor, a instituição escolar, as políticas públicas, as implicações dos aspectos ideológicos no sistema educacional (Carvalho, 2007).

Na região de fronteira, além das barreiras já conhecidas, devem ser consideradas as barreiras linguísticas, visto que as línguas maternas dos estudantes paraguaios e brasiguaios, guarani e espanhol, são desvalorizadas. Estigmatizados pela inferioridade cultural e linguística, esses estudantes podem ter suas deficiências produzidas socialmente, como deficiências secundárias, e assim ser responsabilizados pelo próprio fracasso, o que torna o processo de inclusão escolar ainda mais complexo.

Ainda existem desafios na educação em região de fronteira, destacando-se a necessidade de repensar a formação inicial e continuada dos profissionais na área da Educação Especial inclusiva e a melhoria na relação entre família de estudantes paraguaios e escola. Também os achados apontam dificuldades das professoras em decorrência das barreiras linguísticas, as quais podem reforçar a deficiência dos estudantes, impingindo-lhes uma deficiência secundária.

Na presente pesquisa, observaram-se avanços na inclusão de estudantes paraguaios público-alvo da Educação Especial em cenário de diversidade cultural e linguística da fronteira entre Ponta Porã, no Brasil, e Pedro Juan Caballero, no Paraguai. Entre os avanços, pode-se situar o interesse demonstrado pelas professoras em ampliar seus conhecimentos para atuar com estudantes público-alvo da Educação Especial, reconhecendo a diversidade cultural e linguística implicada nesse cenário. Outro avanço é a construção de materiais pedagógicos considerando as peculiaridades dos estudantes paraguaios que têm como língua materna o guarani e/ou espanhol.

4 Considerações finais

O objetivo deste artigo foi caracterizar as percepções de professoras em escolas localizadas próximo à faixa de fronteira entre Ponta Porã/Brasil e Pedro Juan Caballero/Paraguai, sobre sua formação e práticas pedagógicas com estudantes público-alvo da Educação Especial, na diversidade cultural e linguística. Com essa intenção, foi desenvolvida uma pesquisa qualitativa com cinco professoras de duas escolas públicas municipais.

Os achados deste estudo contribuem com o avanço teórico acerca da educação intercultural, sobretudo na área da Educação Especial na região de fronteira, tendo em vista que o tema investigado ainda não foi explorado noutras pesquisas. A análise dos dados apontou que o público-alvo da Educação Especial inclusiva em escolas de Ponta Porã abrange estudantes brasileiros e paraguaios, que, apesar de terem características próximas, como deficiência visual, auditiva etc., diferem devido às suas peculiaridades culturais e linguísticas, sobretudo no que tange às suas línguas maternas, a exemplo do guarani e do espanhol, dos paraguaios. Esse aspecto evidencia a necessidade de repensar a formação docente, considerando o multiculturalismo e o multilinguismo presentes nas escolas.

Escolas brasileiras que atendem estudantes paraguaios público-alvo da Educação Especial necessitam de adaptações em seus currículos para remover as barreiras culturais e linguísticas construídas socialmente e reproduzidas nesses contextos. As práticas pedagógicas não devem ser pautadas em princípios exclusivamente biológicos do defeito e da falta; a educação deve funcionar como instrumento de emancipação e autonomia, independentemente da condição física, étnica e social do estudante, que, na região de fronteira, precisa ser considerado em seus aspectos históricos e culturais, bem como respeitado e valorizado em sala de aula.

Vários elementos sobre a formação e as práticas pedagógicas com estudantes paraguaios público-alvo da Educação Especial na região de fronteira brasileira, no cenário de diversidade cultural e linguística, não foram abordados nesta pesquisa. Assim, apontamos a necessidade de estudos futuros que poderão abranger mais escolas e outros participantes, como a gestão, a coordenação, os familiares e o próprio estudante. Também será interessante investigar a relação entre a família de estudante paraguaio e a escola brasileira, com procedimentos metodológicos interventivos ou colaborativos. Destarte será possível, além de acompanhar o processo de inclusão escolar e as práticas das professoras, propor práticas pedagógicas voltadas aos estudantes que constituem o público-alvo da Educação Especial, considerando sua diversidade cultural e linguística.

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Recebido: 22 de Dezembro de 2019; Revisado: 07 de Fevereiro de 2020; Aceito: 22 de Fevereiro de 2020

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