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Revista Brasileira de Educação Especial

versão impressa ISSN 1413-6538versão On-line ISSN 1980-5470

Rev. bras. educ. espec. vol.27  Marília  2021  Epub 15-Jun-2021

https://doi.org/10.1590/1980-54702021v27e0208 

Relato de Pesquisa

Escala Intercultural de Concepções de Deficiência: Construção e Estudos Psicométricos2

Intercultural Scale of Conceptions of Disability: Constructions and Psychometric Studies

3Livre docente em Psicologia da Educação, Professora do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Bauru/São Paulo/Brasil. E-mail: lucia.leite@unesp.br.

4Doutor em Psicologia, Professor do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Bauru/São Paulo/Brasil. E-mail: hugo.cardoso@unesp.br.

5Doutoranda em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem. Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Bauru/São Paulo/Brasil. E-mail: oliveira.taizede@gmail.com.


RESUMO:

Um mesmo instrumento pode ser adequado para distintas realidades, mas, para ele que avalie de fato concepções atreladas a um contexto cultural particular, é preciso compreender o fenômeno sob as lentes desse cenário. O objetivo deste artigo foi apresentar os resultados preliminares de validação e de confiabilidade da Escala Intercultural de Concepções de Deficiência (EICD) para a realidade brasileira. A EICD é um instrumento elaborado por uma equipe de distintos países (Brasil, Espanha e Portugal) e voltado para a avaliação de concepções de deficiência. Contou-se com a validação qualitativa (com base no conteúdo), por meio dos juízes nacionais e internacionais, e por verificação de componentes principais realizada por análise fatorial exploratória dos dados coletados com um grupo amostral brasileiro. A versão final contou com tradução e retradução para quatro diferentes línguas: espanhol (Cuba), catalão (Barcelona), castelhano (Sevilha) e português (Portugal). No que tange ao estudo fatorial para a realidade brasileira, a EICD ficou composta por 43 itens, distribuídos em três dimensões (Concepção Biológica, Concepção Social e Concepção Metafísica (Religiosa)). Estudos futuros serão necessários para o aprimoramento psicométrico do instrumento, tanto no contexto nacional quanto no internacional.

PALAVRAS-CHAVE: Deficiência; Concepções; Consistência Interna; Procedimentos psicométricos; Escala

ABSTRACT:

The same instrument may be suitable for different realities, but in order to actually assess conceptions linked to a particular cultural context, it is necessary to understand the phenomenon under the lens of this scenario. The objective of this paper was to present preliminary results of validation and reliability of the Escala Intercultural de Concepções de Deficiência - EICD (Intercultural Scale of Conceptions of Disability) for the Brazilian reality. EICD is an instrument developed by a team from different countries (Brazil, Spain and Portugal) and aimed at assessing concepts of disability. Qualitative validation (based on content) was carried out, by means of national and international judges, and by verification of main components carried out by exploratory factor analysis of the data collected with a Brazilian sample group. The final version included translation and backtranslation into four different languages: Spanish (Cuba), Catalan (Barcelona), Castilian (Seville) and Portuguese (Portugal). Regarding the factorial study for the Brazilian reality, the EICD was composed of 43 items, distributed in three dimensions (Biological Conception, Social Conception and Metaphysical (Religious) Conception). Future studies will be necessary for the psychometric improvement of the instrument, both in the national and international context.

KEYWORDS: Disability; Conception; Internal consistency; Psychometric procedures; Scale

1 Introdução

Ao estudar o fenômeno da deficiência, inevitavelmente por sua complexidade, lida-se com fatos sociais, políticos, comportamentais, psicológicos, culturais, que se materializam em práticas sociais na interação com as pessoas com deficiência. Tais práticas têm variado enormemente durante a história humana. Nas mais diferentes culturas, existiram diversas formas de tratamento destinadas a essas pessoas, seja por meio da eliminação física, da exclusão, da segregação social, da integração e, mais recentemente, pela sua participação social mais efetiva, comumente nomeada de "inclusão". O debate acerca da deficiência insere-se no tema dos direitos humanos, que assevera que todo ser humano pode desfrutar dos meios necessários para a realização e para o alcance de suas possibilidades sem ser submetido a qualquer tipo de discriminação.

Estudar as diversas concepções e estruturas a respeito da deficiência, que são fundamentadas em crenças, ideias pré-concebidas, preconceitos, valores éticos, políticos, filosóficos e culturais veiculados no meio social, torna-se, portanto, relevante para se pensar em ações mais efetivas que garantam a participação de segmentos sociais diversos, incluindo aqui o constituído por pessoas com deficiência (PcD). Essas estruturas são passíveis de mudanças e a sua análise é de fundamental importância, visto que tende a possibilitar aos diversos profissionais que atuam e investigam tais temáticas a promoção de refexões que defendam a revisão e o aperfeiçoamento de ações em defesa da diferença humana.

A "Concepção", termo aqui recorrente, será utilizado no sentido de compreender ou interpretar algum fenômeno, e que pode orientar as ações dos sujeitos diante de determinado objeto ou situação. Logo, a concepção de deficiência é definida como conceito baseado em um construto teórico-prático que norteia ações a partir dele, sendo possível ser guiado por convicções religiosas, que podem levar a comportamentos de caridade e/ou benesse às PcD, por exemplo, assim como pode ser direcionado por discursos médicos e conduzir comportamentos voltados para atuar junto à pessoa com deficiência, ao desconsiderar o contexto social e cultural em que se insere.

Dessa forma, três modelos formativos favorecem concepções que aqui serão abordadas: Concepção Biológica, Concepção Social e Concepção Metafísica (Religiosa). O modelo médico reforça a Concepção Biológica, que entende a deficiência a partir de um orgânico disfuncional se comparado com um "normal" (Baleotti & Omote, 2014; Barros, 2002; De Marco, 2006; Palacios, 2008; Terra & Campos, 2019). A compreensão religiosa que aborda o fenômeno como castigo ou benção, como algo vindo do sobrenatural, favorece subsídios para a Concepção Metafísica (Matallo Júnior, 1994; Palacios, 2008; Rawls, 1992; Zabatiero, 2019). Por fim, o modelo sociocultural, que reconhece, na audiência e no contexto histórico, as marcas da deficiência como restritivas para o acesso aos bens culturais, pois compreende a deficiência como uma condição de diferença humana, o que embasa a Concepção Social (Diniz, 2003; Leite & Oliveira, 2019; Leite et al., 2018; Nepomuceno, 2019; Palacios, 2008).

Ao estudarem-se as "concepções", é importante dizer que um mesmo sujeito pode apresentar concepções distintas diante de um mesmo fenômeno, em outras palavras, apresentar mais de um olhar, sem que um anule o outro. Em uma defnição dicionarizada (Ferreira, 2004), entende-se por concepção "o ato de conceber ou criar mentalmente, de formar ideias, especialmente abstrações" (p. 514) ou, ainda, "modo de ver, ponto de vista; opinião, conceito" (p. 515). Entretanto, devido à sua natureza social, a análise das concepções circulantes deve considerar o momento histórico e político que a circunscreve, o qual se encontra em constante movimento. Leite et al. (2018) discorrem que o cenário sociocultural está diretamente correlacionado com as concepções que orientam as práticas dirigidas à pessoa com deficiência. Assim, o modo em que a sociedade se dirige a essas pessoas está atrelado fortemente a como elas são entendidas e classificadas dentro de um sistema socioeconômico em que se inserem - se são reconhecidas como produtivas, como iguais nos direitos civis ou, ainda, como cidadãs de segunda ordem, dignas de tratamentos benevolentes pautados na caridade.

Recorda-se que o conceito de "deficiência" é algo bastante complexo e plural, uma vez que pode ser compreendido por diferentes nuances e vieses, como apresentado anteriormente, a saber: orgânico, religioso, normativo, dentre outros. Como bem sinalizam Barroco e Leite (2021), é fundante que a compreensão da deficiência extrapole a uma classificação patológica e possa ser compreendida como uma condição social e situacional. "Isso não implica em negarmos que a deficiência possa estar imbricada com doença(s) e/ou comorbidade(s), mas reconhecemos que ao vislumbrarmos como norte o desenvolvimento dos sujeitos sob tal condição" (p. 251).

As autoras, apoiadas nos preceitos da Psicologia Histórico-Cultural, apontam ainda a importância de

se a ciência não pode desconsiderar os aspectos biológicos, hereditários ou não, que estão presentes na condição da deficiência, também não se pode furtar a pô-los em perspectiva com os condicionantes socioculturais, ou seja, é essencial interpretar tal condição como um fenômeno multideterminado, e com implicações que extrapolam a esfera corporal/mental individual. (p. 252)

De modo sintético, Gaudenzi e Ortega (2016), em um interessante artigo sobre revisão conceitual, apontam que a análise de dois conceitos adjacentes - autonomia e normalidade - deve estar sempre presente no exame da compreensão do fenômeno da deficiência, pois pode romper ou não com a ideia de relacioná-la a uma patologia, ou melhor, considerá-la como uma condição corporal atípica, como ser muito alto, acima da média, o que faz parte das diferenças humanas, ou que indique uma patologia, distanciando-a da normalidade. A autonomia deriva de como o contexto socioeconômico entende e delimita a eficiência e a deficiência, dentro de uma perspectiva funcional. A tensidade do conceito de deficiência canaliza diretamente nos modos de concebê-la e de relacionar-se com ela e, consequentemente, com os sujeitos classificados no grupo social nomeado de "pessoas com deficiência".

Nesse sentido, entende-se que é importante lançar mão de instrumentos de pesquisa para investigar como grupos sociais distintos se comportam diante da temática "deficiência" e adjacentes. Em uma varredura bibliográfica da produção de instrumentos que avaliassem concepções de deficiência no cenário nacional e internacional, buscou-se, na plataforma Google Scholar, produções qualificadas, em novembro de 2019, a partir dos seguintes descritores: concepção(ões); deficiência; escala; instrumento; avaliação, com o uso das seguintes combinações: deficiência AND instrumento; deficiência AND escala; deficiência AND avaliação; e todas essas combinações com AND concepção(ões), buscados tanto no título quanto no resumo das produções disponibilizadas. Para abranger um campo maior de estudos, a busca contemplou os mesmos descritores nos idiomas inglês e espanhol, sem restringir o período de publicação.

A partir do levantamento realizado, foram identificados 17 instrumentos que procuravam, em alguma medida, compreender os conceitos e/ou as interpretações sobre o fenômeno "deficiência". Em termos temporais, o instrumento mais antigo, datado de 1933, foi uma escala sobre "estigma" nomeada de Social Distance Scale (SDS) e a mais recente foi a Escala de Concepções de Deficiência (ECD), de 2018. As produções selecionadas estão destacadas no Quadro 1.

Quadro 1 Instrumentos relacionados à avaliação de concepções, interpretações e atitudes frente à deficiência encontrados em produções científicas 

Nome do instrumento Referência
AAS - Autism Awareness Scale Gillespie-Lynch et al. (2015)
ATDP - Attitude Toward disabled persons scale Yuker & Block (1986)
ATIES - Attitudes Towards Inclusive Education Scale Wilczenski (1992)
DSR - Disability Social Relationship Grand et al. (1982)
DSRGD - Disability Social Relations Generalized Disability Hergenrather & Rhodes (2007)
EACD - Escala de Avaliação da Concepção de Deficiência Baleotti & Omote (2014)
EAPD - Escala de Actitudes hacia las Personas con Discapacidad Alonso et al. (2016)
ECD - Escala de Concepções de Deficiência Leite & Lacerda (2018)
ELART - Escala de Atitudes Sociais Frente ao Trabalho da Pessoa Com Deficiência Tanaka (2007)
ELASI - Escala Likert de Avaliação de Atitudes Sociais Frente à Inclusão Omote (2005)
EPSD-1 - Escala de Percepción Social hacia las personas con síndrome de Down Saorín et al. (2012)
EVT - Escala de Valoración de Términos Asociados con la Discapacidad Díaz et al. (1997)
EVTAD - Escala de Valoración de Términos Asociados con la Discapacidad Díaz & Rodríguez (1999)
ICD-ST - Inventário de Concepções de Deficiência em Situações de Trabalho Carvalho-Freitas (2012)
IDP - Interaction with disabled persons scale Gething (1991)
SADP - Scale of attitudes toward disabled persons Antonak (1980)
SDS - Social Distance Scale: a measure of stigma Borgardus (1933)

Em uma análise geral, é possível dizer que os instrumentos encontrados buscam avaliar as condutas sociais e/ou a percepção sobre o fenômeno "deficiência", embora alguns sejam voltados para o exame de tipos de deficiências mais específicas, como é o caso da AAS (Gillespie-Lynch et al., 2015) que trata do Transtorno do Espectro Autista (TEA). Outros voltam-se para investigar a deficiência em contextos mais localizados, como a ELART (Tanaka, 2007) e o ICD-ST (Carvalho-Freitas, 2012), os quais se dirigem para o exame das concepções de "deficiências circulantes" que envolvem o mundo do trabalho. Algo bastante comum nos instrumentos encontrados é que os resultados decorrentes de suas aplicações podem ser discutidos à luz das barreiras encontradas pela PcD, ao tentar inserir-se nas esferas sociais, uma vez que tais instrumentos auxiliam, em alguma medida, na identificação das dificuldades encontradas pela PcD no trato social, o qual muitas vezes é recheado de preconceitos e atitudes equivocadas.

No entanto, na realidade brasileira, são poucos os instrumentos nacionais que procuram investigar concepções distintas de deficiência, pois voltam-se, em sua maioria, para a identificação de ações e/ou atitudes relacionadas à PcD. Localizou-se a ELASI (Omote, 2005), que diz respeito à investigação das atitudes sociais; a EACD (Baleotti & Omote, 2014) que avalia as concepções de deficiência a partir de três concepções (interacionista, social e médica); a ELART (Tanaka, 2007), que investiga as atitudes em relação ao trabalho da PCD; o ICDST (Carvalho-Freitas, 2012), que avalia, em situação de trabalho, a matriz de interpretação da deficiência, a partir de quatro perspectivas (espiritual, técnica, de inclusão e de normalidade); e a ECD (Leite & Lacerda, 2018), a qual examina as concepções de deficiência diante de quatro parâmetros (social, biológico, metafísico e histórico-cultural). Apesar de não serem anunciados juízes ou colaboradores internacionais na sua elaboração, tais produtos consideraram modelos interpretativos de análise do fenômeno da deficiência discutidos na literatura internacional. É importante dizer que alguns instrumentos, como ECD, ELASI e ISD-ST, fizeram parte de textos publicados na forma de artigos científicos, os quais foram disponibilizados igualmente em língua inglesa.

Nas publicações originais em língua inglesa, foram identificadas as seguintes escalas: a DSRGD (Hergenrather & Rhodes, 2007), que investiga atitudes em relacionamentos sociais com pessoas com deficiências em três contextos distintos (namoro, casamento e trabalho); a DSR (Grand et al., 1982), que examina atitudes sociais de distanciamento ou de aproximação, em função da percepção do que é deficiência; a IDP (Gething, 1991), que analisa as atitudes sociais em situação de interação entre pessoas sem e com deficiência. Por sua vez, no mundo árabe, mais especificamente na Jordânia, encontram-se: a SADP (Antonak, 1980), voltada ao estudo das atitudes sociais em relação à PcD; a ATIES (Wilczenski, 1992), que também avalia percepções e atitudes dirigidas à PcD, porém relacionadas ao contexto educacional; a ATDP (Yuker & Block, 1986), que pesquisa percepções e atitudes em relação às pessoas com deficiência, o que o configura como um material amplamente disseminado, uma vez que foi traduzido em vários idiomas; a SDS (Borgardus, 1933), que se volta à compreensão de estigmas e ao distanciamento social, apoiados em possíveis processos de exclusão vivenciados pelas pessoas com deficiência intelectual; e a AAS (Gillespie-Lynch et al., 2015), que enfoca nas concepções sociais sobre o autismo. Já nas publicações em castelhano, identificaram-se: a EVT (Díaz et al., 1997), a qual busca avaliar os termos associados à deficiência e os relaciona com possíveis atitudes; a EVTAD (Díaz & Rodríguez, 1999), que possui uma versão revisada e ampliada da EVT (Díaz et al., 1997), a qual procura identificar termos associados à deficiência, relacionando-os a atitudes positivas e/ou negativas frente às pessoas com deficiências; e a EPSD-1 (Saorín et al., 2012), que visa a identificar percepções sociais sobre as pessoas com síndrome de Down.

A elaboração de instrumentos nacionais para compreender um fenômeno tão ocorrente no Brasil, cujos dados censitários de 2010 apontavam 6,7% de pessoas com deficiência na população em geral (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2010), é importante para reconhecer como o fenômeno é tratado e significado no cenário atual, assim como para identificar e traçar possíveis análises e intervenções em distintas esferas sociais para que as pessoas com deficiência possam ser vistas e respeitadas - em outras palavras, para que as suas diferenças sejam consideradas no provimento de ajustes e/ou nas reformulações normativas a fim de que seus direitos sejam resguardados.

Desse modo, este artigo preocupa-se em contribuir com o avanço científico desse tema, em busca de, no seu desenvolvimento, detalhar os passos procedimentais percorridos para a construção de um instrumento de pesquisa, nominado de Escala Intercultural de Concepções de Deficiência (EICD) (Leite & Oliveira, 2019), que objetiva averiguar as concepções de deficiência em diferentes realidades culturais, à luz de três parâmetros distintos de análise.

Nesse sentido, esta pesquisa teve como objetivo apresentar os resultados preliminares de validação e confiabilidade da EICD para a realidade brasileira. De forma específica, serão descritos os estudos que buscaram evidenciar a validade com base no conteúdo, por intermédio da análise de juízes, avaliar a dimensionalidade, pela análise dos componentes principais (evidência de validade com base na estrutura interna) e analisar a consistência interna (fidedignidade) da EICD.

2 Método

A primeira etapa consistiu na elaboração dos itens que compuseram a primeira versão da EICD. Participaram desse processo 14 pesquisadores, nacionais e internacionais, pertencentes às seguintes instituições: duas universidades públicas brasileiras - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) e Universidade Federal de São Carlos (UFSCar); duas universidades da Espanha - Universidade de Barcelona (UB) e Universidade de Sevilha (US); uma de Portugal - Universidade do Algarve (UA); e uma de Cuba - Universidade de Holguín (UH).

Vale ressaltar que a construção dos itens da EICD foi coletiva e ainda contou com o apoio dos integrantes do Grupo de Estudos e Pesquisa em Deficiência e Inclusão (GEPDI), do Laboratório de Linguagem e Surdez (LALIS), e do Grupo de Pesquisa Surdez e Abordagem Bilíngue. Os membros dos grupos de estudos participaram como juízes no processo de análise dos itens, sendo, em sua maioria, estudantes de Pós-Graduação que atuavam com pesquisas em Educação Especial e/ou Educação Inclusiva.

Para a confecção da EICD, tomou-se como base a construção de itens relacionados a três concepções já documentadas na literatura nacional e internacional, e citadas anteriormente, a saber: Social, Biológica e Metafísica (Religiosa). Foi igualmente utilizado como parâmetro os 20 itens descritos na ECD (Leite & Lacerda, 2018). Em sua primeira versão, a EICD contou com 126 itens. Na sequência, foi efetuada a análise semântica dos itens, que foram expostos à parte da equipe de pesquisadores e dos integrantes do GEPDI. Cada um dos enunciados foi lido e agrupado em matrizes de concepções as quais eles se correspondiam. Após esse julgamento, chegou-se a um número de 90 enunciados, enquanto os demais foram excluídos por interpretação dúbia ou de igual conteúdo.

Com a finalidade de analisar a dimensionalidade da EICD, a qual contava com 90 itens distribuídos igualmente nas três concepções - Biológica, Social e Metafísica (Religiosa), e a precisão das categorias por meio da consistência interna, optou-se por aplicar uma amostra de interesse, composta por estudantes de diferentes áreas do conhecimento, matriculados em uma universidade do interior do estado de São Paulo. A aplicação seguiu todos os parâmetros éticos previstos, seguindo as normas da Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde (CNS). Tais procedimentos estão descritos em uma pesquisa maior que conta com o Parecer favorável do Comitê de Ética (CAAE: 84374018.2.1001.5398).

Dessa forma, 623 universitários fizeram parte da aplicação inicial da EICD, sendo a maior parte do sexo feminino (53%), com faixa etária que variou entre 18 e 58 anos. Para a composição da amostra, buscou-se uma variabilidade em termos de cursos universitários, com vistas a deixar o grupo amostral heterogêneo. Para tanto, os dados foram coletados em 15 diferentes cursos de graduação, a saber: Administração, Biomedicina, Ciências Contábeis, Direito, Enfermagem, Engenharia Civil, Engenharia de Controle e Automação, Engenharia Elétrica, Engenharia Mecânica, Engenharia de Produção, Fisioterapia, Marketing, Pedagogia, Psicologia e Recursos Humanos. Do total de participantes, 16 declararam possuir algum tipo de deficiência (2,5%). O formulário de aplicação continha questões iniciais de perfil sociodemográfico referentes à idade, ao curso frequentado, à seriação, ao gênero e se possuía alguma deficiência. Não era necessária a identificação do respondente. Na sequência, eram fornecidas informações referentes ao comportamento do respondente, pois foi solicitado que indicasse o seu posicionamento diante de cada uma das afirmações, em escala tipo Likert. O respondente deveria assinalar apenas uma das seguintes possibilidades: (1) Discordo inteiramente; (2) Discordo parcialmente; (3) Nem concordo nem discordo; (4) Concordo parcialmente; (5) Concordo inteiramente. O instrumento foi aplicado presencialmente durante o intervalo das aulas, nas dependências da universidade.

3 Resultados

Das respostas obtidas com a aplicação da EICD, os dados foram submetidos a análises estatísticas e visou a atestar as qualidades psicométricas. A estrutura interna da EICD foi realizada pela Análise Fatorial Exploratória (AFE), a qual utilizou a análise dos componentes principais, com rotação promax, uma vez que se esperava a obtenção de dimensões pouco correlacionadas (Damásio, 2012). Os conjuntos de itens gerados foram analisados de modo associados entre si, pela Correlação de Pearson. Quanto aos coeficientes de confiabilidade por consistência interna, foram investigados pelo alfa de Cronbach a partir dos componentes obtidos na análise fatorial exploratória (Cohen et al., 2014; Zanon & Hauck Filho, 2015).

No entanto, antes de proceder à AFE, foram verificados o indicador Kaiser-Meyer-Olkin (KMO) e a prova de esfericidade de Bartlett. Descobriu-se que o KMO foi igual a 0,87, enquanto a prova de esfericidade de Bartlett foi estatisticamente significativa, X2(400) = 2145; p<0,001. Com base no exposto, ambos os critérios sustentaram a fatorabilidade da escala. Após a verificação, parâmetros para exclusão ou permanência de itens foram estabelecidos. Nesse sentido, itens que apresentaram carga fatorial superior a 0,30 e que não estivessem contidos em mais de uma dimensão foram mantidos (Tabachnick & Fidell, 2001). Com base nisso, uma primeira análise resultou na retirada de 20 itens. Quanto aos itens que restaram, 70, foram investigados de forma a identificar o número de fatores que comporiam a escala.

Para definir o número de dimensões da EICD foram utilizados dois critérios, quais sejam, o de Guttman-Kaiser e o teste scree-plot de Cattell. Ao considerar o critério de Guttman-Kaiser, ou da raiz latente, foram identificados 12 componentes principais com autovalores acima de 1,0. Pelo segundo critério, o scree-plot, verificou-se que o modelo mostrou a solução com três componentes como a mais adequada para esses dados, posto que no gráfico eles se encontram acima da linha reta formada. Ao analisar que o método de Guttman-Kaiser tende a superestimar o número de fatores (Damásio, 2012), foram considerados apenas três, os quais apresentaram autovalores superiores a 2,7. Após a verificação restringindo a análise a três componentes principais, a EICD ficou composta por 43 itens, distribuídos em três dimensões, conforme podem ser visualizados na Tabela 1.

Tabela 1 Análise dos componentes principais da EICD 

Item B S R H2
CF
A deficiência é causada por limitações biológicas na pessoa. 0,77 0,278
As pessoas com deficiência apresentam alguma falha ou algum limite orgânico que por si só leva a um mau desenvolvimento humano. 0,67 0,403
A deficiência tem múltiplas causas, mas seu determinante é biológico. 0,63 0,324
A deficiência é uma limitação intrínseca à pessoa, devido a causas biológicas. 0,63 0,371
A deficiência é originada por limitações no desenvolvimento do indivíduo. 0,61 0,328
A deficiência é causada exclusivamente por condições geneticamente determinadas. 0,57 0,278
A deficiência pressupõe um mau funcionamento orgânico, que compromete o desenvolvimento humano. 0,57 0,427
A deficiência é causada exclusivamente por fatores biológicos, congênitos e genéticos que determinam o desenvolvimento humano. 0,56 0,278
A deficiência gerada por alterações biológicas acarreta dificuldades de adaptação do ser humano ao meio em que vive. 0,55 0,385
A deficiência é uma patologia e pode ser explicada por uma falha na pessoa, justificada pela presença de elementos desviantes do ponto de vista biológico ou funcional. 0,55 0,298
As pessoas com deficiência apresentam defeitos orgânicos que causam sequelas biológicas e/ou funcionais. 0,54 0,427
As pessoas com deficiência apresentam défcits orgânicos que acarretam um desenvolvimento anormal. 0,54 0,315
As pessoas com deficiência apresentam uma diferença biológica que compromete o seu desenvolvimento humano. 0,52 0,260
A deficiência é composta por um conjunto biológico que estabelece comprometimentos e limitações. 0,49 0,273
As deficiências ocorrem por diferenças que aparecem durante o desenvolvimento biológico. 0,48 0,281
A deficiência pode ser identificada por uma limitação orgânica. 0,45 0,279
Uma pessoa com deficiência apresenta defeitos em seu organismo. 0,43 0,253
A deficiência é um conceito que decorre da forma como a sociedade encara a problemática. 0,65 0,400
A defnição de alguém como sujeito deficiente tem relação com o outro que o vê e o nomeia. 0,56 0,335
A deficiência é definida de acordo com a interpretação que cada cultura faz dela. 0,56 0,243
A deficiência é resultado da opressão das estruturas sociais. 0,54 0,286
A gravidade da deficiência é definida de acordo com a interpretação que a sociedade faz dela. 0,54 0,238
A deficiência é uma construção social que depende do contexto. 0,51 0,365
O grau de limitações e comprometimentos da pessoa com deficiência é definido pela sociedade. 0,50 0,353
A deficiência tem relação direta com a forma como a pessoa é tratada pela sociedade. 0,49 0,306
A cultura determina a relação entre a deficiência e a sociedade. 0,46 0,351
Em uma determinada cultura, a deficiência é decorrente de atitudes e de expectativas do outro. 0,46 0,338
A deficiência é uma produção social, resultante da relação entre biologia e cultura na constituição do sujeito. 0,46 0,318
A deficiência é causada por uma falta de orientação educacional adequada. 0,44 0,258
A maior ou menor participação social de uma pessoa com deficiência está diretamente ligada aos modos de produção. 0,44 0,248
A deficiência é uma condição relativa que decorre de atitudes e das expectativas do outro. 0,43 0,190
A deficiência pode ser causada por um conjunto de multifatores (sociais, emocionais, econômicos e educativos). 0,42 0,139
As pessoas com deficiência são especialmente protegidas por Deus. 0,60 0,392
A pessoa com deficiência é um escolhido. 0,59 0,364
A família da pessoa com deficiência é preparada por Deus para recebê-la. 0,56 0,316
As pessoas com deficiência são iluminadas e especialmente protegidas por Deus. 0,56 0,343
A pessoa com deficiência é uma pessoa iluminada. 0,54 0,304
Ser deficiente ou ter um elemento da família com deficiência significa passar por uma provação divina. 0,53 0,290
A pessoa com deficiência vem ao mundo para se submeter às provações divinas e para desenvolver a sua espiritualidade. 0,52 0,290
A existência de pessoas com deficiência são um resultado da vontade divina. 0,48 0,234
Deus olha pelas pessoas com deficiências. 0,45 0,208
O homem acometido pela deficiência alcança a santidade e tem o seu lugar no reino dos céus. 0,43 0,192
Ter uma pessoa com deficiência na família é um caminho pelo qual Deus possibilita a evolução espiritual dos familiares. 0,41 0,179
Quantidade de itens 17 15 11
Autovalor 10,74 4,81 2,73
Variância explicada (%) 16,28 7,28 4,14
Total da variância explicada 27,71

A EICD, após o procedimento de AFE, apresentou 27,71% da variância explicada e seus 43 itens ficaram agrupados em três componentes, sendo Concepção Biológica, Concepção Social e Concepção Metafísica (Religiosa). Todos os itens apresentaram cargas fatoriais acima de 0,30.

Em relação aos componentes gerados, a primeira concepção, Biológica, foi a que aglutinou o maior número de itens (17), os quais apresentaram cargas fatoriais que variaram entre 0,43 e 0,77, e de autovalor entre 10,74 e 16,28% da variância explicada. Essa dimensão diz respeito a identificar, a partir de uma diferença no biológico e no orgânico, a capacidade ou funcionalidade do sujeito. Alguns exemplos de itens são: "A deficiência pressupõe um mau funcionamento orgânico, que compromete o desenvolvimento humano"; "A deficiência é causada por limitações biológicas na pessoa"; e "As pessoas com deficiência apresentam uma diferença biológica que compromete o seu desenvolvimento humano".

O segundo componente, Concepção Social, apresentou autovalor de 4,81 e 2,73 de variância explicada. Seus 15 itens apresentaram cargas fatoriais que variaram entre 0,42 e 0,65. Quanto à descrição dessa dimensão, ela avalia que o contexto ao qual a pessoa se insere é que prediz se ela se encontra ou não nas condições de deficiência, visto que a avaliação da sua funcionalidade é dada quando o contexto social se adequa aos atributos diferenciados apresentados pelo sujeito. Alguns exemplos de itens: "A deficiência é um conceito que decorre da forma como a sociedade encara a problemática"; "A deficiência é definida de acordo com a interpretação que cada cultura faz dela"; e "A deficiência é uma produção social, resultante da relação entre biologia e cultura na constituição do sujeito".

O último componente gerado pela AFE, Concepção Metafísica (Religiosa), foi composta por 11 itens com 2,73 de autovalor e 4,14% da variância explicada, assim como por itens que apresentaram cargas fatoriais que variaram entre 0,41 e 0,60. Essa concepção busca mensurar o quanto o indivíduo associa a deficiência com significações sobrenaturais e/ou místicas, de cunho religioso, atrelando-a a uma ideia de benção, de castigo ou de carma. São alguns exemplos de itens que compõem essa dimensão: "A família da pessoa com deficiência é preparada por Deus para recebê-la"; "As pessoas com deficiência são especialmente protegidas por Deus"; e "A existência de pessoas com deficiência são um resultado da vontade divina".

As associações entre as concepções da EICD foram consideradas de magnitudes fracas e moderadas (Dancey & Reidy, 2006). As correlações fracas (até 0,39) ocorreram entre a concepção Biológica e Metafísica (Religiosa) (r=0,09; p<0,001) e entre a concepção Social e Metafísica (Religiosa) (r=0,22; p<0,001). Por sua vez, entre as concepções Biológica e Social, a correlação (r=0,53; p<0,001) foi considerada moderada (entre 0,40 e 0,69). Quanto ao procedimento de verificação do coeficiente de precisão para a EICD, por meio da verificação do índice de precisão alfa de Cronbach, os itens da escala foram analisados em seus agrupamentos (dimensões). Nesse sentido, a primeira concepção, Biológica, composta por 17 itens, apresentou índice alfa (α) de 0,87. Já a Concepção Social com 15 itens apresentou α=0,86. E a terceira dimensão da escala, Concepção Metafísica (Religiosa), aglutinou 11 itens e apresentou α=0,82.

4 Discussão

A primeira etapa de elaboração da escala revelou importância quanto à semântica e à estruturação dos enunciados, de maneira que realidades interculturais tivessem validade do instrumento, da escala, a partir de suas particularidades, mas que destacassem pontos em comum de percepções sobre cada uma das concepções em países distintos, uma vez que o modelo Social exposto é interpretado a partir de compreensões em comum em todos os países participantes, assim como o modelo Biológico e Metafísico (Religioso). A participação dos juízes foi fundamental para a estruturação e adequação que iniciou a construção da escala intercultural. Por tratar-se de um instrumento de pesquisa intercultural, sua construção foi conduzida por pesquisadores de realidades linguísticas e comportamentais diferenciadas em relação à PCD, dado que a tradução e a retradução foram procedimentos necessários, nesse primeiro momento, devido a possíveis compreensões distintas sobre um determinado fenômeno. O termo "deficiência", por exemplo, é nominado como discapacidad nos países de língua espanhola, discapacitat em catalão e, em Portugal, é muitas vezes sinônimo de necessidades educativas especiais.

Embora o conceito relacionado à deficiência possa parecer semelhante, a variação cultural produz interpretações distintas. Na tentativa de padronização e de estabilização dos conceitos, foram realizadas reuniões entre a rede de pesquisadores para partilhar conceitos normativos e parâmetros legais de cada país participante. Com isso, os enunciados ficaram mais estáveis, com os termos adequados à realidade investigada, na intenção dos itens serem passíveis de comparação.

No que se refere à discussão dos procedimentos psicométricos executados na EICD, foi possível constatar, pela análise do KMO, que o conjunto de itens apresentou consistência psicométrica para a investigação por meio da análise fatorial exploratória, visto que seu valor foi de 0,87 (Damásio, 2012). Ao possuir como parâmetros as recomendações quanto às cargas fatoriais adequadas, acima de 0,30, bem como os critérios adotados de Guttman-Kaiser e o teste scree-plot de Cattell (Cohen et al., 2014; Damásio, 2012; Tabachnick & Fidell, 2001), a EICD apresentou nova configuração com explicação psicométrica e teórica.

Desse modo, após realizada a AFE, o instrumento ficou composto por 43 itens, aglutinados em três dimensões, as quais indicaram diferentes formas de conceber a deficiência, a saber: Concepção Biológica, Concepção Social e Concepção Metafísica (Religiosa). Em relação às análises de correlações entre as dimensões, foram encontradas correlações de magnitudes fracas entre as concepções Biológica e Metafísica (Religiosa) (r =0,09; p<0,001), bem como entre Social e Metafísica (Religiosa) (r=0,22; p<0,001). Parece haver certo consenso na literatura de que a concepção Religiosa se distingue quando comparada às concepções Biológica e Social da deficiência (Nepomuceno, 2019; Palacios, 2008). Já entre as concepções Biológica e Social, a correlação (r=0,53; p<0,001) foi considerada moderada, o que também pode ser explicado pelo fato de que a sociedade atual possui forte intersecção com o modelo médico, tanto para explicar a deficiência quanto as situações de vida. Nesse sentido, esperam-se associações entre essas duas concepções, pois, embora a visão de homem esteja bastante atrelada a fatores sociais e históricos, a influência de modelos orgânicos e médicos se fazem bastante presentes no cotidiano (Leite & Cardoso, 2019; Leite et al., 2018; Leite & Oliveira, 2019; Nepomuceno, 2019; Palacios, 2008).

Além da investigação quanto à dimensionalidade do instrumento, também foi objetivo desta pesquisa a análise da confiabilidade ao utilizar o procedimento de verificação alfa de Cronbach para os componentes da EICD. Em todas as três concepções, os indicadores de precisão superaram 0,80, um valor acima do considerado adequado (superior a 0,70) pela literatura especializada (Zanon & Hauck Filho, 2015).

5 Conclusão

A EICD configura-se em um instrumento que visa a identificar concepções sobre deficiência em contextos culturalmente distintos; logo, foi elaborado por uma equipe multicultural. O instrumento é compreendido por 43 enunciados afirmativos, do tipo Likert, distribuídos em três concepções - Biológica, Social e Metafísica (Religiosa). Em cenário nacional e internacional, há uma escassez de produção de instrumentos voltados à compreensão de práticas inclusivas, e, em sua maioria, os instrumentos existentes são voltados à avaliação de condutas e de atitudes, mas sem relacioná-las às concepções - ou conceitos/compreensões - que os sujeitos têm sobre o fenômeno "deficiência". Ressalta-se ainda que, embora a validação da escala tenha ocorrido em contexto brasileiro, ela, em seu molde de 43 itens, está sendo aplicada em contexto internacional.

Ademais, é intenção do grupo de pesquisadores que elaboraram a EICD a realização de novos estudos psicométricos, de modo a fazer uso de análises fatoriais confirmatórias, de evidências de validade baseadas nas relações com variáveis externas e outras formas de verificação da fidedignidade, assim como por meio de teste e de reteste. Ainda, em médio prazo, os estudos psicométricos com dados da EICD serão igualmente realizados ao levar-se em consideração outros contextos em que a escala já passa por aplicações, como em Cuba, Espanha e Portugal, e em diferentes realidades brasileiras. Em longo prazo, com a aplicação e com os estudos psicométricos da EICD, em contextos distintos, poder-se-á contribuir para um melhor entendimento das concepções acerca do fenômeno da deficiência em grupos sociais aos quais o instrumento for exposto.

Por fim, assenta-se a ideia de que a temática "deficiência" - e/ou pessoas que se encontram nesta condição - configura-se como uma categoria de análise ímpar, pois se refere a um segmento populacional diferenciado passível de preconceitos, atitudes negativas e/ou opressoras, como ocorrentes em outros grupos, como étnicos, de gênero, de classe social, de classes geracionais, por exemplo. Espera-se que, em termos de campo científico, a EICD possa ser utilizada como um recurso procedimental por pesquisadores em futuros estudos a fim de aumentar o alcance de investigação da deficiência como um fenômeno social complexo, o qual envolve atores diversos em polarizações, distanciando daqueles que qualificam a deficiência como falta, défcit ou incapacidade. Acredita-se, portanto, que a elaboração e o aperfeiçoamento do instrumento de pesquisa sejam fomentados para auxiliar na compreensão do fenômeno da deficiência, na manutenção e no desenvolvimento de práticas culturais, de políticas públicas de inclusão e acessibilidade, que podem circunscrever caminhos mais sólidos para o reconhecimento da pluralidade humana.

2Este artigo decorre de pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) (Proc. 2017/12721-5 - auxílio regular e 2018/04696-3 - bolsista técnico) e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (Proc. 305575/2017-1 - Bolsista Produtividade).

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Recebido: 08 de Outubro de 2020; Revisado: 14 de Janeiro de 2020; Aceito: 27 de Fevereiro de 2021

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