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Revista Brasileira de Educação Especial

versão impressa ISSN 1413-6538versão On-line ISSN 1980-5470

Rev. bras. educ. espec. vol.27  Marília  2021  Epub 15-Jun-2021

https://doi.org/10.1590/1980-54702021v27e0223 

Relato de Pesquisa

Avaliação das Contribuições da Consciência Fonológica no Desenvolvimento da Escrita de um Aluno com Deficiência Intelectual no 1º Ano do Ensino Fundamental I2

Assessment of the Contributions of the Phonological Consciousness in the Development of the Writing of a Student with Intellectual Disability in the First Grade of Elementary Education I

Ariana Santana da SILVA3 
http://orcid.org/0000-0001-9736-1723

Tícia Cassiany Ferro CAVALCANTE4 
http://orcid.org/0000-0001-8963-9609

3Pedagoga, Psicopedagoga e Mestra em Educação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professora dos anos inicias das Redes Municipais. Pombos e Paulista/Pernambuco/Brasil. E-mail: santana.ariana@hotmail.com.

4Professora Associada III, do Departamento de Psicologia e Orientação Educacionais (DPOE). Centro de Educação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professora do Programa de Pós-Graducação em Educação, Centro de Educação, UFPE. Líder do Grupo de Pesquisa e Estudos em Acessibilidade e Inclusão (GEPAI). Coordenadora do Centro de Estudos em Inclusão (CEI), do DPOE, Centro de Educação, UFPE. Recife/Pernambuco/Brasil. E-mail: ticiaferro@hotmail.com.


RESUMO:

Este artigo teve como objetivo investigar os avanços de um aluno com deficiência intelectual do 1° ano do Ensino Fundamental I, no decorrer de avaliações realizadas antes, durante e após um processo de intervenção com atividades que envolveram habilidades de consciência fonológica para o desenvolvimento da escrita. Buscou-se fazer uso dos preceitos da perspectiva sociohistórica, como também de autores contemporâneos que vêm se debruçando sobre estudos acerca da consciência fonológica e do desenvolvimento da leitura e escrita escolares. Participou deste estudo uma criança com deficiência intelectual de uma escola da Rede Municipal de Recife, Pernambuco. Foram realizadas oito avaliações diagnósticas durante o processo de intervenção, sendo possível perceber avanços na escrita da criança, a qual começou a internalizar os aspectos abstratos dessa atividade. Notou-se, ainda, uma reciprocidade entre a aquisição da escrita e o desenvolvimento da consciência fonológica.

PALAVRAS-CHAVE: Deficiência intelectual; Consciência fonológica; Desenvolvimento da escrita

ABSTRACT:

This article aimed to investigate the progress of a student with intellectual disability in the 1st grade of Elementary School during assessments carried out before, during and after an intervention process with activities that involved phonological awareness skills for the development of writing. It was sought to make use of the precepts of the socio-historical perspective, as well as contemporary authors who have carried out studies on phonological awareness and the development of school reading and writing. A child with intellectual disability from a school in the Municipality of Recife, Pernambuco, Brazil, participated in this study. Eight diagnostic evaluations were carried out during the intervention process, when it was possible to notice advances in the child's writing, which began to internalize the abstract aspects of this activity. It was also possible to perceive a reciprocity between the acquisition of writing and the development of phonological awareness.

KEYWORDS: Intellectual disability; Phonological awareness; Writing development

1 Introdução

A história da humanidade é marcada pela diversidade. Todavia, sempre existiram movimentos hegemônicos operando para encobrir/negar qualquer um ou qualquer ação que ousasse transgredir as estruturas dominantes. Essas estruturas, por sua vez, definem e direcionam as relações com os diversos grupos sociais que se diferem dos tais grupos dominantes. Assim foi com os negros extraídos de seus países, de sua cultura, e escravizados por outros povos dominantes financeira ou militarmente; com os povos nativos da América, os quais foram massacrados e expulsos de seus hábitats pelos colonizadores; e com as pessoas com deficiência, que, por muito tempo, eram consideradas exóticas ou monstruosas por apresentarem diferenças na anatomia de algumas partes de seu corpo, como o formato da cabeça, dos olhos, do tronco, das mãos — casos comuns em criança com Síndrome de Down, microencefalia, hidrocefalia, entre outros.

Aranha (2001) afirma que, antes da Idade Média, as mulheres deveriam ser fortes para gerar filhos capazes de servir a sua Pátria; os meninos tornavam-se guerreiros; e as meninas, boas procriadoras. Entretanto, com as crianças nascidas com deficiência era diferente. De acordo com Aranha (2001), "deformadas e indesejadas [essas crianças] eram abandonadas em esgotos localizados no lado externo do Templo da Piedade" (p. 60). Cárnio e Shimazaki (2011) apontam que essas práticas revelavam o tipo de organização social que se tinha à época - uma sociedade gerenciada por poucos senhores detentores das formas de produção e do status quo, tanto dos seres superiores quanto dos sub-humanos; eram, assim, pessoas exploradas pelos senhores das terras. Cárnio e Shimazaki (2011) afirmam que apenas na Idade Média, por advento da Igreja Católica, as práticas de infanticídio começaram a ser condenadas. Contudo, as crianças com deficiência ainda eram consideradas anormais, destacando-se, na sua condução, o modelo médico de deficiência, o qual definia as crianças pelas alterações biológicas e não pelas suas potencialidades e possibilidades de aprendizado e desenvolvimento.

Kramer (1994), ao debruçar-se sobre os estudos acerca da história da infância no Brasil, aponta a criação das "Rodas dos Expostos", no século XVIII, ligadas a instituições religiosas e caridosas. Nelas eram deixadas as crianças indesejadas pelos pais, por diversas motivações, desde por serem filhos de mães solteiras, até, e mais comumente, por serem crianças com alguma deficiência. Segundo a autora, o acolhimento dessas crianças pelas irmãs de caridade poderia significar a única alternativa de sobrevivência delas, pois, frequentemente, eram abandonadas nas ruas, em lugares próximos a lixos ou esgotos, e estavam fadadas à morte precoce.

De acordo com Mendes (1995), o período da Revolução Francesa (1789-1799) produziu importantes avanços na defesa da necessidade de educar e de integrar as pessoas com deficiência na sociedade. Nessa perspectiva, o conceito de "educabilidade do potencial da pessoa com deficiência" passou a ser aplicado inclusive nas pessoas com deficiência intelectual. As principais referências teórico-metodológicas para a realização de trabalhos educativos com crianças com deficiência intelectual foram: a do médico francês Jean Marc Gaspard Itard (1774-1838), conhecido por desenvolver as primeiras tentativas de educar uma criança com deficiência intelectual; a do também médico francês Edward Seguin (1812-1880), que, inspirado no trabalho de Itard, criou o método fisiológico de treinamento, o qual consistia em estimular o cérebro por meio de atividades físicas e sensoriais; e a da médica italiana Maria Montessori (1870-1956), que, também influenciada por Itard, desenvolveu um programa de treinamento para crianças com deficiência intelectual com base em manuseio de objetos concretos.

As metodologias desenvolvidas por esses teóricos foram de imensa importância para a história da Educação Especial por apresentarem-se como estratégias de inovação para as práticas educativas de integração social da pessoa com deficiência intelectual durante os séculos XVIII, XIX e o final do século XX. Contudo, todas as metodologias utilizadas por esses estudiosos focavam em atividades centradas na operação do pensamento concreto, bem como no condicionamento da pessoa com deficiência intelectual à sociedade. Por isso, essas metodologias contrariam os preceitos da teoria histórico-cultural sobre a importância de desenvolver na pessoa com deficiência intelectual o pensamento abstrato por meio de atividades mais conceituais, movimento imprescindível para o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, as quais são tão importantes no processo de alfabetização.

As crianças com deficiência intelectual não precisam desenvolver atividades descontextualizadas que trabalhem apenas com a memorização e a decodificação das letras e seus respectivos sons. Trabalhar dessa forma acaba por corroborar a ampliação da dificuldade da criança com deficiência intelectual na compreensão do Sistema de Escrita Alfabética (SEA) como um conjunto de habilidades indissociáveis. Apontamos, aqui, o ineditismo da pesquisa em questão, que procurou investigar os avanços de um aluno com deficiência intelectual do 1° ano do Ensino Fundamental I, no decorrer de avaliações realizadas antes, durante e após um processo de intervenção com atividades que envolveram habilidades de consciência fonológica (CF) para o desenvolvimento da escrita. A partir da perspectiva teórica e do recorte metodológico, não se encontrou investigação dessa natureza, a partir de pesquisas em livros; dissertações e teses, nos portais de busca da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES); em artigos publicados na Biblioteca Eletrônica Científica Online (SciELO); em Revistas Periódicas (Qualis A1 e A2)5. Assim sendo, apresentaremos como o planejamento didático realizado para as intervenções levou em consideração não apenas as singularidades apontadas pelo aluno, como também procurou relacionar-se com os conteúdos que estavam sendo trabalhados pela professora regente da sala convencional.

1.1 A criança com deficiência intelectual e o processo de desenvolvimento da escrita na perspectiva histórico-cultural

O percurso construído pela criança no processo de aprendizagem da língua escrita não pode ser compreendido, sob nenhuma hipótese, como um trajeto simples, linear e independente dos fatores sociais e biológicos que atravessam as suas fases de aprendizagem e desenvolvimento. A aprendizagem da língua escrita, portanto, abarca movimentos de evolução e involução; são processos complexos que prescindem das respostas às perguntas feitas por Morais (2012): "O que a escrita representa/nota?" e "como a escrita cria representações/notações?" (p. 53).

Vigotski (2007), ao analisar o processo de desenvolvimento da escrita na criança pequena, aponta que os gestos têm significado de uma escrita no ar. Dito em outras palavras, os gestos são uma maneira de simbolizar atos, ações, sentimentos e objetos dentro do imaginário da criança. O referido autor comenta: "O gesto é o signo visual inicial que contém a futura escrita da criança, assim como uma semente contém um carvalho" (p. 141). Ainda, segundo o autor, as atividades de dramatizações desenvolvidas no período pré-escolar são treinamentos para a atividade de escrita, pois os gestos constituem-se em escrita feita no ar, e os signos escritos são simples gestos que foram fixados.

Para Vigotski (2007), os desenhos e rabiscos feitos pelas crianças pré-escolares são estágios preliminares ao desenvolvimento da escrita, visto que, ao executarem essas atividades, as crianças estão tentando representar a linguagem oral. Logo, para a perspectiva histórico--cultural, a maneira global como as crianças realizam seus desenhos e rabiscos pode ser um indicativo da forma como estão entendendo a representação da língua escrita, uma vez que são processos indissociáveis; em outras palavras, quando a criança desenha objetos complexos, ela o faz a partir das suas qualidades gerais, e não pelas partes que o compõem.

A segunda etapa do desenvolvimento da escrita da criança é quando ela consegue unir os gestos e a língua escrita: é a fase dos jogos das crianças. Os jogos ganham significados representativos, e a passagem dos rabiscos para o desenho e do desenho para a escrita gráfica denota que a criança está significando os símbolos de segunda ordem, como é o caso da escrita gráfica. Para Vigotski (2007), a brincadeira simbólica, muitas vezes ignorada pela escola, contribui grandemente para que as crianças possam ir percebendo que, além de desenhar os signos para se expressarem, sendo o desenho um símbolo de primeira ordem, elas também podem representar/desenhar a fala, simbolismo de segunda ordem. Sobre isso, o autor comenta: "Do ponto de vista pedagógico, essa transição deve ser propiciada pelo deslocamento da atividade da criança do desenhar coisas para desenhar a fala" (p. 140).

No que diz respeito ao desenvolvimento da escrita em crianças com deficiência intelectual, podemos afirmar que elas apresentam uma forma qualitativamente diferente das crianças sem deficiência, tendo em vista que a construção dos conceitos cotidianos e/ou científicos será dada de forma diferenciada por meio da criação de estratégias e de artefatos culturais que os auxiliem na compreensão dos signos sociais, compensando5 os déficits ocasionados pela deficiência, tais como: o uso de linguagem mais curta e direta, materiais concretos, cartões com imagens - Comunicação Alternativa, entre outros.

Todavia, essas ações não podem aparecer de forma isolada apenas na escola, mas devem estar presentes em todos os contextos sociais por onde circula a criança com deficiência intelectual. Esse movimento possibilitará que a criança, aos poucos, compense os déficits biológicos - dificuldade de oralização das palavras, dificuldade de compreensão e expressão verbal, dificuldade de compreensão de conceitos científicos, maior tempo na internalização de um diálogo, maior tempo na compreensão de um comando, entre outros - e passe a compreender e a significar os símbolos de primeira ordem. Desse modo, aos poucos, ela vai conseguindo dominar as relações arbitrárias entre o simbolismo de primeira ordem e o simbolismo de segunda ordem.

O processo de desenvolvimento da escrita para o aluno com deficiência intelectual torna-se difícil quando a prática pedagógica é esvaziada de sentido, limitando-se a desenvolver habilidades motoras e de memória sobre o SEA.

1.2 Consciência fonológica: o que é? como auxilia os alunos na elaboração de hipóteses sobre a escrita?

aquilo que chamamos "consciência fonológica" é, na realidade, um grande conjunto ou uma "grande constelação" de habilidade de refletir sobre os segmentos sonoros das palavras. A consciência fonológica não é uma coisa que se tem ou não, mas um conjunto de habilidades que variam consideravelmente. (Morais, 2012, p. 84)

Como anuncia essa epígrafe, a CF é, na verdade, um conjunto de habilidades metalinguísticas acionadas pelos sujeitos, desde muito cedo, quando colocados a pensar sobre os aspectos de sua língua. Dito de outro modo, é a habilidade de manipular e discriminar os sons que formam as palavras, resultado das combinações e das recombinações entre os segmentos sonoros das palavras, das suas sílabas e/ou dos seus fonemas (Costa, 2003).

Gombert (2003) afirma que, diferentemente da linguagem escrita, que prescinde de um ensino sistematizado com base em reflexões sobre o SEA brasileiro, os processos de manipulação da linguagem oral se dão de forma natural desde muito cedo, ainda na etapa de socialização primária, quando estamos compreendendo os signos sociais presentes em nosso contexto. O autor afirma, além disso, que a CF compõe um conjunto de habilidades metalinguísticas que se referem às capacidades de reflexão, seleção, manipulação e autocontrole dos usos da língua. Essas habilidades, no entanto, não ocorrem de forma natural, pois "a habilidade metalinguística é decorrente das aprendizagens explícitas próprias do contexto escolar" (p. 24).

Afirmação semelhante realizam Maluf et al. (2006), ao refletirem sobre os diferentes percursos cognitivos realizados pelas crianças no processo de elaboração de suas hipóteses sobre a escrita do som que falam. Assim, os autores ratificam a defesa de que a aprendizagem da escrita não se restringe aos aspectos visuais e/ou perceptíveis da língua escrita, nem à exposição do aprendiz a estratégias de memorização das grafias, por meio do contato prolongado com elas. Esses aspectos não produzem resultados positivos para a evolução do aprendiz sobre a compreensão das formas de representação gráfica dos sons da fala. Como afirmam Maluf et al. (2006),

a tarefa de aprender a escrever não está restrita à instalação de habilidades específicas ou tratamento de percepções linguísticas visuais, mas compreende a instalação de habilidades metalinguísticas, que abrangem os aspectos fonológicos, lexicais, morfológicos, sintáticos, semânticos e ortográficos da linguagem escrita. (p. 69)

Para Alves (2009), é por meio da CF que a criança passa a refletir sobre as diversas formas de segmentação da língua, pois elas vão percebendo alguns pontos: as frases são segmentadas em palavras; as palavras são segmentadas em sílabas; e as sílabas são segmentadas em fonemas. Essa percepção, porém, não acontece de uma hora para outra ou de forma espontânea. O autor reafirma a importância da escola no papel de possibilitar que os educandos reflitam sobre a língua.

Alves (2009), ao debruçar-se sobre os estudos de Coimbra (1997) e CardosoMartins (1994), classifica e ordena hierarquicamente os níveis da CF. São eles: consciência no nível das palavras - caracteriza-se pela habilidade de segmentação das frases em palavras, também conhecido como consciência sintática; consciência no nível da sílaba - compreende a capacidade de segmentar a palavra em pedaços menores, as sílabas, e, também, a realização de adição e subtração de sílabas na composição de novas palavras; consciência no nível intrassilábico - é a consciência de que a palavra pode ser segmentada em unidades maiores que os fonemas e menores do que as sílabas, como são os casos das rimas e das aliterações; consciência no nível dos fonemas - é considerada a capacidade mais complexa a ser desenvolvida pelas crianças, visto que os fonemas são representações sonoras bastante abstratas.

Soares (2016) aponta que os pesquisadores que têm se debruçado sobre o tema da CF e sobre as suas implicações no processo de alfabetização de crianças em idade escolar são unânimes em afirmar que as habilidades requeridas para a atividade metalinguística fonológica de consciência apresentam diferentes e hierárquicos graus de complexidade linguística, tais como: a palavra, as rimas, as aliterações e as sílabas; assim como os elementos intrassilábicos, os fonemas. Contudo, a autora chama atenção para as vezes em que essas habilidades são reduzidas apenas à consciência fonêmica, o que ocasiona em sérias implicações no processo de ensino e de aprendizagem da língua escrita.

Segundo Soares (2016), esses estudos apresentam-se em dois paradigmas opostos: fônico e fonológico. Ambos, no entanto, apresentam algo em comum: a importância de, desde as séries iniciais, propor atividades pedagógicas que possibilitem aos alunos a refletirem sobre os aspectos sonoros da palavra e, também, a desenvolverem habilidades de manipulação consciente das partes das sílabas que compõem a palavra. Entretanto, afastam-se no que diz respeito às estratégias utilizadas para tal finalidade, pois, enquanto os defensores dos métodos fônicos propõem atividades descontextualizadas, repetitivas e fragmentadas, como "O boi baba", para trabalhar o fonema /B/, os pesquisadores que defendem o percurso fonológico, pelo qual passa a criança no processo de aprendizagem sobre a língua escrita, apostam nas brincadeiras populares de cantigas de roda, trava-línguas, parlendas e jogos fonológicos, como estratégias que levem a criança a pensar na organização (sílabas, rimas, aliterações, fonemas) da sonoridade da fala.

Soares (2016) afirma que o emprego dessas últimas estratégias é fundamental para que as crianças consigam reduzir as dificuldades inerentes à compreensão das representações sonoras da fala, materializadas na escrita de palavras, e consigam direcionar a sua atenção para o extrato fonológico, e não semântico, das palavras. Esse fato as levam a superar o realismo nominal e a constatar, desse modo, que "trem" é uma palavra pequena e que "moranguinho" é uma palavra grande, apesar de não terem nada em comum no mundo real (Morais & Leite, 2005).

Ao discutir a relação entre o alfabetizando e a língua escrita, Morais (2012) aponta para o desenvolvimento de um conjunto de complexas operações cognitivas no estudante ao submetê-lo à realização de diferentes tarefas sobre as partes das palavras, tais como: "pronunciá-las, separando-as em voz alta; juntar ou separar partes que se relacionam" (p. 84), mas também quando somos incentivados a "reconhecer determinados segmentos sonoros em posições diversas da palavra" (início, meio, fim) (p. 84).

Em suma, ratificamos a importância de a escola investir em práticas que envolvam o desenvolvimento de habilidades de reflexões fonológicas no processo de alfabetização de todas as crianças. Como exemplo, podemos citar as habilidades de identificação de palavras quanto ao seu tamanho pelo número de sílabas pronunciadas; as habilidades de identificação de palavras com a mesma sílaba; a capacidade de identificar palavras com fonemas iniciais iguais; e a habilidade de pensar sobre palavras que rimem etc. (Morais, 2012).

2 Percurso metodológico

Esta pesquisa, como já apontams, buscou investigar os avanços de um aluno com deficiência intelectual do 1° ano do Ensino Fundamental I, no decorrer de avaliações realizadas antes, durante e após um processo de intervenção com atividades que envolveram habilidades de CF para o desenvolvimento da escrita. A pesquisa foi realizada na Rede Pública Municipal de Recife, Pernambuco.

Como primeiro procedimento para a seleção do campo de pesquisa, realizamos um levantamento junto à Secretaria de Educação Especial das escolas que tinham alunos com deficiência intelectual matriculados do 1° ao 3° ano do Ensino Fundamental I. Feito o levantamento das escolas, fizemos a opção pela 2ª Região Político-Administrativa.6

A escola selecionada, Escola Municipal Juntos Somos Todos Um7, atende ao público da camada popular, moradores do entorno da instituição. Em relação à infraestrutura e à forma de organização pedagógica e administrativa, a escola é de grande porte e atende a um total de 870 alunos. Destes, 66 atestam algum tipo de deficiência.

Quanto à escolha do participante da pesquisa, à medida que expusemos os objetivos de estudo e o perfil do público participante, a gestora e a professora da sala de Atendimento Educacional Especializado (AEE) sinalizaram três possíveis participantes para a realização das intervenções pedagógicas. Foram eles8: Adriano (9 anos), matriculado no 2° ano A; Marina (11 anos), matriculada no 1° ano C; e Victor (7 anos), matriculado no 1° ano B. Entre esses alunos, Victor foi o único que preencheu todos os pré-requisitos necessários para participar da pesquisa, a saber: i) frequência escolar boa; ii) participação do AEE; iii) autorização prévia da docente de sala regular; e iv) autorização dos responsáveis legais.

Segundo relatos da mãe, Victor foi diagnosticado com deficiência intelectual aos 6 anos de idade, após um momento de convulsão. Contudo, anteriormente, já vinha sendo acompanhado por uma psicóloga de uma Unidade de Saúde próxima da sua residência. O serviço havia sido indicado pela professora que acompanhava Victor desde os 3 anos de idade na Educação Infantil, em uma escola de ensino particular de pequeno porte, na qual ele estudou dos 3 aos 6 anos. A indicação ocorreu pelo fato de Victor demonstrar características indicativas de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), sobretudo com o comportamento hiperativo. Ele apresentava agitação acima do "normal", fato que atrapalhava a rotina da sala, dificultava a concentração em rodas de história e, quando contrariado, comportava-se de forma agressiva. Ainda de acordo com o relato da mãe, a psicóloga confirmou as suspeitas da professora, mas não o encaminhou a outras especialidades.

Manuela, mãe de Victor, afirma que o filho, após a sua primeira convulsão, apresentou alguns comportamentos "estranhos", o que foi prontamente relatado por ela para a psicóloga. A partir disso, Victor também começou a ser acompanhando por um psiquiatra. No entanto, devido às dificuldades com marcação/realização de consultas e de exames, o laudo de Victor atestando a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID) 10 - F70 - Retardo mental leve, só veio um ano após a primeira consulta com o psiquiatra, período em que a criança estava concluindo a Educação Infantil na escola particular e a sua transferência para a Rede de Ensino Pública estava sendo realizada.

Dessa forma, o início do histórico escolar de Victor na Rede Pública de Ensino culminou com a realização da pesquisa em questão, fato que permitiu uma avaliação mais precisa acerca dos conhecimentos prévios de Victor sobre o SEA e as habilidades da CF, como também dos aspectos sociais, emocionais e afetivos nos momentos de interação dele com seus pares, suas professoras e seu apoio escolar.

Victor é pardo, magro e aparenta ser alto para sua faixa etária, pois é mais alto do que todos os demais colegas de sala. Está sempre alegre e atento às possíveis brincadeiras que possam surgir na sala entre as pausas das atividades. Apresenta autonomia na realização das atividades escolares, sempre em busca de responder às perguntas da professora. Em alguns momentos, as respostas apresentadas são certas; em outros, erradas; mas ele sempre ri dos momentos de erro, possivelmente para fugir do olhar de reprovação da professora. Com isso, contagia os colegas que riem juntos e assim vai se tornando um líder para os demais meninos. Ele propõe e coordena grande parte das brincadeiras que só "meninos podem brincar".

É um garoto curioso, pergunta as razões de tudo e, se não se convencer da resposta, insiste na pergunta. Foi assim com o convite para participar da pesquisa, quando, ao ser interrogado pela pesquisadora sobre sua participação, ele disparou: "Mas pra que isso?"; "Vai ser o quê?"; "Vai ser onde, aqui na escola?"; "Vai ter outras crianças?"; "Por que eu tenho que vir de tarde?"; "Por que tu vai filmar, é pra colocar na internet?".

Como procedimento, foram planejadas, com base nas pesquisas de Alves (2009), Morais (2012), Morais e Leite (2005), e Soares (2016), oito atividades diagnósticas com o objetivo de avaliar as habilidades da CF e os níveis de aprendizagem do SEA. Assim sendo, as atividades de 1 a 5 estavam voltadas à avaliação da CF quanto às habilidades de reconhecimento de sons iniciais, mediais e finais; de segmentação de palavras em sílabas e contagem silábica; de adição silábica; de manipulação de sílabas em uma palavra; e de discriminação auditiva de fonemas. As atividades de 6 a 8 buscaram avaliar a capacidade do aluno de distinguir letras, números e outros símbolos; de identificar e nomear as letras do alfabeto em seus diferentes formatos; e, por fim, de compreender que a escrita é da direita para esquerda e de cima para baixo. Nas atividades referentes à escrita, também pedíamos para o aluno ler o que acabara de escrever.

A coleta de dados ocorreu entre os meses de março e outubro de 2017. O seu desenho consistiu na realização de observações sistemáticas e aplicação de entrevistas com a professora da sala de aula convencional e com a mãe do estudante. Essas ações ocorreram no primeiro semestre letivo, período em que fomos nos aproximando dos participantes e os sensibilizando para a etapa posterior9. No segundo semestre, iniciamos a realização das atividades diagnósticas em três momentos distintos, no início, no meio e no final da pesquisa, com um intervalo entre dois blocos de sete sessões de intervenções pedagógicas para cada realização das atividades diagnósticas. Os resultados das atividades diagnósticas permitiram não apenas identificar o conhecimento real do aluno sobre os aspectos avaliados, como também indicar possíveis ajustes nos instrumentos e nas estratégias didáticas adotados nas intervenções.

Desse modo, foram realizadas 14 intervenções pedagógicas, divididas em dois blocos de sete intervenções, com tempo médio de duração de uma hora. Todas as atividades envolveram reflexões apenas sobre as unidades fonológicas das palavras contempladas em níveis distintos. As avaliações diagnósticas obedeceram ao mesmo formato das intervenções pedagógicas, no intuito de permitir mais fluidez do estudante em sua realização. Tanto no planejamento e na mediação das atividades quanto na aplicação das atividades diagnósticas, procuramos: i) fazer uso de linguagem simples e objetiva; ii) substituir palavras por ilustrações; iii) selecionar palavras comuns ao vocabulário do aluno; e iv) manter a tonicidade, as estruturas silábicas e o mesmo número de sílabas nas palavras-modelo e nas palavras a serem selecionadas, nos itens de identificação silábica e fonêmica (Morais, 2015).

Para registro das atividades diagnósticas, recorte feito neste artigo, fizemos uso de filmadora, pois esse instrumento possibilitou analisarmos repetidas vezes a mesma cena, afastando-nos do olhar subjetivo sobre os dados e nos possibilitando um maior grau de confiabilidade dos resultados apresentados. Enfim, essas cenas foram transcritas literalmente, oferecendo-nos dados qualitativos capazes de entender os avanços apresentados na escrita de Victor a partir da mediação de atividades da CF.

3 Resultados e análises: aspectos gráficos e orais da escrita de Victor

Como afirma Vigotski (2007), só é possível compreendermos o processo de desenvolvimento das aprendizagens das crianças quando o seu conhecimento real, constituído pelo processo de desenvolvimento, já é consolidado pelo sujeito. Desse modo, com o intuito de avaliar o nível de conhecimento real de Victor, participante desta pesquisa, em relação à escrita alfabética, especificamente quanto ao reconhecimento das regras do SEA e da habilidade da CF, planejamos e mediamos algumas atividades pedagógicas.

Quanto às aprendizagens consolidadas do estudante sobre o SEA, pudemos identificar que ele foi capaz de distinguir com destreza letras, números e outros símbolos, porém ainda não conseguia identificar as letras do alfabeto, tampouco diferenciar aquelas com formatos parecidos. No entanto, já fazia uso de letras na escrita de palavras, principalmente daquelas presentes em seu nome, mas não apresentava relação entre a escrita dos nomes das figuras e seus respectivos valores sonoros. Por conseguinte, ele estava no estágio de domínio exterior da escrita (Luria, 1992), como é possível identificar na Figura 1.

Figura 1 Ditado ilustradoNota. 1ª atividade diagnóstica (16 de agosto de 2017). 

Quanto aos aspectos relacionados às habilidades da CF, também foi possível identificar que, nesse primeiro momento, dos cinco grupos de atividades aplicadas para a avaliação da CF, Victor apresentou dificuldades em quase todas, com exceção da atividade de reconhecimento de sílabas iniciais e finais, com um percentual de aproximadamente 80% de acertos. As atividades da CF com maior índice de dificuldade foram aquelas que se referiam à identificação de fonemas iniciais e aquelas referentes à adição e à manipulação de sílabas em uma palavra, dado que ambas não tiveram nenhum acerto. Posteriormente, ele acertou uma média de 20% das atividades que envolviam segmentação e contagem silábica, um índice bem abaixo do esperado e que diverge dos resultados de outros estudos na área, por tratar-se de uma habilidade menos complexa em crianças com histórico escolar desde a Educação Infantil (Alves, 2009; Morais & Leite, 2005).

Morais (2015), ao investigar a relação entre a apropriação do SEA e o desenvolvimento de habilidades da CF, aponta para uma provável convergência entre o surgimento de tais habilidades e o avanço do aprendiz em "compreender que nossa escrita nota a pauta sonora das palavras que pronunciamos" (p. 71). Como vemos, os baixos desempenhos apresentados por Victor nas atividades da CF são refletidas, na mesma proporção, nas atividades que envolviam a escrita de palavras.

Por conseguinte, iniciamos a etapa que estamos nomeando de "intervenção pedagógica". Ela teve um importante papel no desenvolvimento de novas funções psicológicas em Victor, o que possibilitou transformações nos processos de aprendizagem e desenvolvimento já consolidados, criando novas conquistas, novas aprendizagens. As intervenções pedagógicas pautaram-se nos resultados apresentados anteriormente. Ademais, procuramos relacioná-las com os conteúdos de linguagem que estavam sendo abordados em sala de aula. Todas as atividades planejadas e mediadas eram concernentes às cinco habilidades da CF avaliadas no momento anterior, já que não foram trabalhados aspectos que envolviam diretamente o SEA.

Para a mediação das atividades, buscamos fazer uso de algumas estratégias com objetivo de compensar a dificuldade de Victor de concentração e compreensão de enunciados orais. Foram elas: i) explicações mais diretas e curtas; ii) certificação de que o enunciado havia sido compreendido; iii) exemplos práticos, quando preciso; e iv) imagens para facilitar a compreensão das explicações e também auxiliar a memória de Victor quanto às sequências de palavras usadas durante as intervenções, fato que, sem dúvida, permitiu que ele desenvolvesse as capacidades abstratas de pensar sobre a língua oral, a sua composição e as suas similaridades com a língua escrita.

Após a mediação do primeiro bloco de atividades, voltamos a realizar as atividades diagnósticas indicativas das aprendizagens de Victor sobre os princípios do SEA e das habilidades da CF. Nesse sentido, constatamos êxito na atividade que envolvia agrupamento das letras, dos números e de outros símbolos, mas persistência de algumas dificuldades, no que se refere à identificação e distinção das letras que compõem o alfabeto, revelando-nos a ausência de um processo de ensino sistematizado sobre as estruturas sociais da língua escrita.

Todavia, o resultado da terceira atividade avaliativa chamou bastante atenção porque caminhou na contramão das duas anteriores. Nesta, Victor foi capaz de mostrar avanços expressivos na escrita de palavras e começou a dominar o sistema simbólico da escrita, apresentando outras formas mais elaboradas de pensamento por meio dela. A escrita, por sua vez, passou a exercer uma função de memória, representando um significado. Dessa maneira, ao analisarmos a escrita das palavras no ditado, pudemos identificar a transição de uma escrita pré-instrumental, que correspondia a atos imitativos, sem representar um sistema auxiliar na memória, para uma escrita instrumental, que adquire função de recordar e transmitir conceitos e ideais (Luria, 2016a), como evidenciado na Figura 2.

Figura 2 Ditado ilustradoNota. 2ª Atividade diagnóstica (19 de setembro de 2017). 

As marcas da escrita com a pauta sonora, na maior parte das vezes representada apenas por vogais, revelam que ele já compreendia que a palavra é constituída por segmentos sonoros. Ao buscar na memória uma palavra que iniciasse com a sílaba PI para realizar a escrita dessa mesma sílaba na palavra "apito", ele demonstrou claramente o desencadeamento de novas funções psicológicas superiores. A escrita de palavra, antes sem sentido ou sem função social, agora corresponde às funções de auxiliar na memória e na organização do pensamento, apresentando-se como um simbolismo de segunda ordem (Luria, 2016b).

Fato parecido acontece quando pronuncia a palavra "PAI", estabilizada por ele, relacionando a semelhança auditiva da sílaba inicial PA entre as palavras "PAI" e "PAPAGAIO". No entanto, diferentemente do primeiro exemplo, ele grafou apenas a letra A. Em outro momento, ao escrever a palavra "BANANA", Victor a segmentou e escreveu as vogais A para notar todas as sílabas e, ao término, interrogou: "Só tem o A aqui é?". Esse trecho revela o surgimento de novas reflexões cognitivas, afinal, como podem sílabas diferentes serem notadas pela mesma letra? Para Vigotski (2007) e Luria (2016b), esse processo de reflexão sobre os aspectos comuns entre a língua oral e a língua escrita é algo muito comum em iniciantes da escrita, uma vez que o processo de aprendizagem e desenvolvimento não é linearmente organizado; ao contrário, é um processo marcado por descontinuidade que vai sendo internalizado pela criança a partir de processos de mediação de instrumentos e signos.

Quanto às atividades diagnósticas que buscaram avaliar as habilidades da CF, também pudemos identificar expressivos avanços, tanto no que se refere ao aumento do percentual de acertos quanto, e mais importante, à necessidade de Victor explicitar de forma bastante consciente e concentrada as estratégias que fazia uso para responder a cada uma das questões, com destaque para as atividades de reconhecimento de sílabas iniciais e finais, assim como de contagem e segmentação silábica. As atividades de identificação de fonemas iniciais apresentaram percentual próximo de 20% de acertos; já as atividades de adição e de manipulação de sílabas em uma palavra também apresentaram avanço, aproximadamente 30% de acertos.

Os resultados permitiram-nos identificar os efeitos qualitativos das intervenções pedagógicas com a mediação de atividade da CF sobre o desenvolvimento da escrita de Victor. O que outrora era uma atividade meramente mnemônica, ato com finalidade em si mesmo, agora passa a estabelecer uma relação entre os símbolos gráficos de segunda ordem - as letras e o seu significado cultural.

Para a mediação do 2° bloco de atividades, procuramos organizar e distribuir as atividades ao dar prioridade àquelas com as habilidades da CF que vinham apresentando mais dificuldades para Victor, sem deixar, porém, de realizar as demais, mesmo que em menor quantidade. Logo, o planejamento das intervenções procurou estabelecer a seguinte ordem nas ati-vidades: consciência fonêmica; descoberta de palavras dentro de palavras; síntese silábica; iden-tificação de sons iniciais, mediais e finais das palavras.

As análises finais das atividades diagnósticas, tanto sobre os princípios do SEA quanto das habilidades da CF, apresentaram apontamentos importantes concernentes ao papel da mediação simbólica o para desenvolvimento das aprendizagens potenciais do sujeito da pesquisa. No que se refere aos princípios do SEA, destacamos: na atividade de agrupamento de letras, de números e de outros símbolos, Victor realizou novamente a atividade de forma rápida, não demonstrou dificuldade para fazer os arranjos, executou a tarefa sem hesitar ou errar; as dificuldades no reconhecimento e na distinção das letras do alfabeto continuram, mas ele já apresentou alguns poucos avanços, como reconhecer as vogais e a letra V. Esses resultados, em comparação aos anteriores, deixam-nos mais otimistas sobre o avanço de Victor no processo de aprendizagem da leitura e da escrita. Entretanto, ainda sinalizam a ausência de um ensino sistemático sobre os aspectos da língua escrita, fato que implica consideravelmente o processo de alfabetização do aprendiz.

Em se tratando da avaliação de escrita de palavras, essa atividade está diretamente relacionada à aprendizagem de princípios alfabéticos que dizem respeito tanto às questões de reconhecimento das letras, consoantes e vogais quanto ao reconhecimento das relações grafo-fônicas presentes na escrita de palavras. Observemos, então, a próxima avaliação (Figura 3).

Figura 3 Ditado ilustradoNota. 3ª Atividade diagnóstica (25/10/2017). 

Ao lançarmos um olhar geral sobre a execução dessa atividade por Victor, fica explicitado que ele escreve fazendo relação com a pauta sonora, já que, para cada segmento silábico da palavra, é escrita uma letra - vogal, que apresenta a correspondência sonora com o segmento pautado, como podemos observar na figura anterior. Todavia, três momentos nos chamam muita atenção. São eles: o primeiro momento em que Victor vai escrever a palavra "BOLA", ele primeiro grafa Vv, explicitando a pauta sonora; depois parece ter lembrado da grafia ortográfica da palavra e pede para reescrevê-la. Ao fazer novamente, ele consegue escrever corretamente a palavra, revelando ser esta uma palavra estabilizada, decorada, o que explicita bem a relação sonora.

Outro momento é quando, em seguida, ele grafa a palavra "CASA" fazendo uso apenas da vogal "A" por duas vezes. Ele estranha a escrita de apenas duas letras para uma palavra e questiona a pesquisadora, a qual lhe diz que mais à frente ele aprenderá a fazer uso de outras letras na grafia do nome desse e de outros objetos. Morais (2012) aponta que, no primeiro momento de consolidação de uma escrita com pauta sonora, a criança tende a fazer progressões reconhecendo a existência de outras letras na grafia das palavras que não apenas as vogais. Isso explica o porquê de Victor notar mais de uma letra para os segmentos, mesmo que essas letras não apresentem correspondências fonêmicas — da palavra "APITO", ele faz "A [escreve Ava] PI [escreve Ai] TO [escreve O]". Desse modo, ele tenta fazer uso de mais de uma letra para grafar as partes orais que reconhece das sílabas, certamente na tentativa de demonstrar à pesquisadora que já sabe que precisa escrever mais de uma letra para notar as partes das palavras. Para as demais palavras, contudo, ele continua notando uma letra - vogal, para a escrita das partes da palavra. Assim sendo, todo esse movimento cognitivo realizado por Victor revela-nos como o desenvolvimento dos conceitos científicos está distante de ocorrer de forma linear e sequenciada, pois, ao contrário, trata-se de ricos movimentos helicoidais de avanços e de regressos até a sua consolidação.

Nas atividades diagnósticas de avaliação das habilidades da CF, Victor conseguiu demonstrar um resultado bastante superior do que o obtido nas vezes anteriores, chegando a acertar 100% das questões de reconhecimento de sílabas, como também nas atividades de segmentação e contagem silábica. Nas atividades de manipulação de sílabas em uma palavra, ele teve êxito em 60% das questões e chegou a apresentar um índice de 45% de acertos na atividade de identificação e reconhecimento de fonemas.

Como pudemos identificar, a mediação de atividades da CF apresentou contribuições importantes tanto para o desenvolvimento da escrita de Victor quanto para o desenvolvimento de habilidades de consciência fonológica mais complexas. Vale ressaltarmos, todavia, que não foram necessárias grandes adequações curriculares para o avanço de Victor na aquisição de habilidades de escrita. Dispomos apenas de duas horas semanais e de estratégias simples e criativas que envolveram atividades com o uso de pictogramas, jogos didáticos, livros infantojuvenis, cantigas de rodas, e instruções simples e diretas, já explicitadas anteriormente.

4 Considerações finais

O planejamento das atividades a partir dos resultados das diagnoses e em comunhão com alguns conteúdos que estavam sendo trabalhados em sala de aula comum, bem como a realização periódica das intervenções pedagógicas duas vezes por semana, contribuíram para que Victor pudesse acessar os aspectos abstratos da língua escrita, tais como: o que as letras representam; como elas criam representações; como as palavras são compostas - segmentos sonoros maiores (sílabas) e menores (fonemas); e como os segmentos sonoros iguais possuem a mesma representação gráfica. Esses avanços foram fundamentais para que Victor pudesse reelaborar sua relação com os signos da língua escrita.

O contato intenso com reflexões sobre a língua escrita possibilitou mudanças na forma de Victor relacionar-se com ela. Ao longo do estudo, percebemos um aumento nas possibilidades de uso da memória visual e auditiva, assim como maior capacidade de discriminação das partes sonoras da língua. Essas mudanças expressam-se tanto durante as intervenções quanto nos momentos de diagnose das habilidades da CF e dos princípios do SEA. Essa constatação confirma uma das principais hipóteses da teoria socio-histórica de Vigotski e seus associados, visto que a aprendizagem e o desenvolvimento acontecem em um movimento do social para o individual, isto é, das experiências externas para as internas, e são internalizadas progressivamente.

Por fim, pudemos perceber a forte relação entre o desenvolvimento das habilidades da CF e o desenvolvimento da escrita de Victor, pois confirmamos, neste estudo, a reciprocidade entre a aquisição da escrita e o desenvolvimento da consciência fonológica também para sujeitos com deficiência intelectual. Não obstante, advertimos para a ausência de oportunidades de ensino que os alunos com deficiência intelectual vêm recebendo no sistema regular de ensino, fato que contribui fortemente para o aumento de retardos intelectuais e psicossociais nesses sujeitos. Não nos cabe, neste momento, apontar culpados, mas, sim, apenas alertamos para os efeitos danosos da ausência da intencionalidade pedagógica nos processos de aprendizagem de alunos com deficiência.

Notes

2Cabe a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) um agradecimento pelo apoio financeiro em forma de bolsa de pesquisa.

5Trata-se, pois, de uma compensação social da deficiência, que acontece por meio das experiências sociais do indivíduo e redirecionam as funções orgânicas da deficiência. Para mais aprofundamento nesse conceito, recomendamos a leitura de Obras escogidas V: fundamentos de defectología (Vygotski, 2012).

6A cidade de Recife é dividida em seis regiões político-administrativas.

7Nome fictício dado à escola.

8Todos os nomes dos sujeitos são fictícios, com o objetivo de preservar suas identidades.

9Por uma questão de foco e espaço, para este artigo, problematizaremos apenas os aspectos relacionados à etapa das intervenções didáticas.

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Recebido: 26 de Outubro de 2020; Revisado: 31 de Dezembro de 2020; Aceito: 18 de Janeiro de 2021

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