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Revista Brasileira de Educação Especial

Print version ISSN 1413-6538On-line version ISSN 1980-5470

Rev. bras. educ. espec. vol.27  Marília  2021  Epub Sep 22, 2021

https://doi.org/10.1590/1980-54702021v27e0079 

Relato de Pesquisa

Autoria de Jogos Digitais por Crianças com e sem Deficiências na Sala de Aula Regular2

Authorship of Digital Games by Children with and Without Disabilities in the General Education Classroom

Adriana Gomes ALVES3 
http://orcid.org/0000-0001-8960-6006

Regina Célia Linhares HOSTINS4 
http://orcid.org/0000-0001-8676-2804

Nicole Migliorini MAGAGNIN5 
http://orcid.org/0000-0001-7244-4442

3Doutora em Educação. Universidade do Vale do Itajaí (Univali). Itajaí/SC/Brasil.

4Doutora em Ciências da Educação. Universidade do Vale do Itajaí (Univali). Itajaí/SC/Brasil.

5Acadêmica de Engenharia da Computação. Universidade do Vale do Itajaí (Univali). Itajaí/SC/Brasil.


RESUMO

Este artigo tem como propósito avaliar o processo de construção colaborativa de jogo digital por crianças com e sem deficiências em contexto de educação regular. Trata-se de uma pesquisa aplicada e qualitativa, cujos referenciais teórico-metodológicos se embasam na abordagem histórico-cultural de Vigotski sobre atividade criativa de alunos com deficiência intelectual, no Design-Based Research (DBR), que alia a pesquisa em educação aos problemas vivenciados na prática por meio da colaboração entre participantes e pesquisadores, e no framework de criação de jogos digitais por crianças. Participaram da pesquisa 25 crianças, dentre elas três com deficiência intelectual, do 4º ano do Ensino Fundamental de uma escola municipal no Brasil. A pesquisa interdisciplinar alia Educação, Design e Engenharia da Computação em um processo de criação que emprega técnicas pedagógicas e de design de jogos, compartilhamento de ideias e colaboração entre crianças do Ensino Fundamental e acadêmicos do Ensino Superior. Como resultado, obteve-se um jogo digital de autoria e de idealização coletiva dos estudantes, na definição de personagens, cenários, mecânicas de jogos e narrativas. Tais resultados conferem o protagonismo das crianças no processo de criação, a aprendizagem de crianças com deficiência, a integração academia-escola e a viabilidade da aplicação do framework em contextos de educação regular e inclusivos.

PALAVRAS-CHAVE Deficiência intelectual; Educação especial; Tecnologia educativa

ABSTRACT

This article has the purpose of evaluating the process of collaborative construction of a digital game by children with and without disabilities in the context of regular education. It is an applied and qualitative research, whose theoretical-methodological references are based on Vygotsky’s historical-cultural approach to the creative activity of students with intellectual disabilities, in Design-Based Research (DBR), which combines research in education with the problems experienced in practice through collaboration between participants and researchers and in the framework of creating digital games for children. Twenty-five children participated in the research, including three with intellectual disabilities, from the 4th grade of Elementary School in a municipal school in Brazil. Interdisciplinary research combines Education, Design and Computer Science in a creative process that uses pedagogical techniques and game design and the sharing of ideas and collaboration between Elementary School children, with and without disabilities, and Higher Education academics. As a result, the creation of a digital game of authorship and collective idealization of the students was obtained, in the definition of characters, scenarios, mechanics and narratives. Such results confer the protagonism of children in the creation process, the learning of children with disabilities, the integration between academy and school and the feasibility of applying the framework in contexts of regular and inclusive education.

KEYWORDS Intellectual disability; Special education; Educational technology

1Introdução

Para as crianças nascidas na chamada “Era da tecnologia”, jogos são uma atividade de lazer e de aprendizagem importante para sua inserção social e escolar cotidiana. Como objetos de aprendizagem, os jogos possibilitam formas lúdicas e divertidas de aprender, associadas a ricas experiências de criatividade, colaboração e autonomia, notadamente quando empregadas abordagens inovadoras de criação, com o protagonismo de estudantes.

Para Moser (2013), quando designers e desenvolvedores de jogos estão dispostos a trabalhar com crianças como protagonistas, eles obtêm melhor compreensão de suas perspectivas, de seus desejos e de suas necessidades e possibilitam a elas a compreensão do processo de criação de jogos digitais. Nessa perspectiva, a abordagem de criação colaborativa de jogos propicia processos de aprendizagem complexos, extremamente relevantes para crianças em idade escolar, e particularmente decisivos para a aprendizagem de crianças com deficiência, no contexto da escola regular.

Com o intuito de identificar pesquisas que abordem a criação de jogos, realizou-se um levantamento no Google Acadêmico com a string de busca “educação especial” AND “criação de jogos digitais” OR “design de jogos digitais”, nos últimos cinco anos, cujos resultados apontaram 52 estudos. Com base nesse resultado, adotou-se como critério de exclusão estudos que tratassem de jogos destinados a tipos específicos de deficiência; estudos direcionados a metodologias específicas de atendimentos especializados; estudos não desenvolvidos no contexto da sala de aula regular; e estudos que não envolviam a criação de jogos pelos alunos.

Um olhar mais detalhado para essas pesquisas revelou que a maioria aborda o design de jogos para estudantes com deficiências específicas (visual, auditiva, intelectual, autismo) e o desenvolvimento de tecnologias assistivas, mas não o processo de criação como abordagem pedagógica. Nesse âmbito, destaca-se a pesquisa de Alves e Hostins (2019a) que discute o desenvolvimento da imaginação e da criatividade em oficinas de criação de jogos. O estudo envolveu um grupo mais reduzido de estudantes – quatro crianças, dentre as quais duas com deficiência intelectual – e evidenciou o protagonismo desse grupo na criação e na discussão coletiva e colaborativa do jogo.

Do ponto de vista das experiências na escola regular, foram encontrados estudos direcionados à aprendizagem por meio de criação de jogos digitais. Marinho et al. (2011), por exemplo, abordam o desenvolvimento de jogos por adolescentes do Ensino Médio, na perspectiva de aprendizagem de conteúdo de Ciências e de Matemática. Os autores destacam a revisão de conceitos e a possibilidade de resolução de problemas complexos, favorecidos pela colaboração e mediados pelo conhecimento do professor. Oliveira (2018) analisa as ações e as rotas no ciberespaço criadas por estudantes do 4º ano do Ensino Fundamental na criação colaborativa de jogos digitais. Os resultados do estudo demonstraram o protagonismo dos estudantes, o desenvolvimento de habilidades complexas, a aprendizagem colaborativa e a exploração de novos espaços de aprendizagem. O estudo de Vieira (2020) adota a abordagem de criação de jogos para o desenvolvimento do pensamento computacional em estudantes do Ensino Fundamental, entre dez e 12 anos. Ao utilizar a ferramenta Scratch, o autor observou a motivação dos alunos na criação de jogos, o trabalho em equipe, o desenvolvimento de conceitos tecnológicos e o amadurecimento dos alunos na resolução de problemas de forma crítica.

O levantamento realizado neste trabalho revelou a escassez de pesquisas na área, em especial de estudos empíricos em salas de aula regulares. Nesse cenário, a pesquisa ora apresentada evidencia o desenvolvimento de jogos digitais por crianças, na perspectiva da escola inclusiva, tendo como principais diferenciais:

  • a criação do jogo em contexto de sala de aula regular mediante atividade colaborativa entre alunos com e sem deficiência; o protagonismo das crianças na idealização coletiva, na definição de personagens, na construção de cenários, na especificação das mecânicas do jogo e na elaboração das narrativas; o trabalho coletivo, colaborativo e interdisciplinar de criação envolvendo alunos do Ensino Fundamental e acadêmicos de Pedagogia, Engenharia da Computação e Design de Jogos. a vivência e a aprendizagem de experiências compartilhadas em ambientes da universidade e da escola regular.

Tendo por referência esses diferenciais e fundamentado nos pressupostos ontológicos e epistemológicos da abordagem histórico-cultural de Vigotski (1993, 1997, 2007, 2014) acerca da imaginação e da criatividade, assim como da coletividade, da colaboração e da experiência, consideradas fulcrais para a compreensão da aprendizagem e do envolvimento de alunos nas práticas culturais de escolarização, este estudo tem o propósito de avaliar o processo de construção colaborativa de um jogo digital por crianças com e sem deficiências em contexto de educação regular. A partir desse suporte teórico, a pesquisa utiliza como base metodológica o framework construído por Alves (2017) para a criação de jogos digitais por crianças.

Nas próximas seções, apresentam-se a abordagem metodológica da pesquisa e os referenciais teóricos, os resultados, as discussões e, por fim, as considerações finais.

2Abordagem Teórico-Metodológica

Nesta seção, serão apresentados os referenciais teóricos da abordagem histórico-cultural de Vigotski, a metodologia do Design-Based Research (DBR), o framework “Eu fiz meu game”, o local e os participantes desta pesquisa, a coleta e a análise dos dados.

2.1Os Referenciais da Abordagem Histórico-Cultural

A abordagem de Vigotski tem sido fundamental em propostas de ensino e de investigação que têm como pressuposto o papel ativo do sujeito no processo de aprendizagem e de criação. Nesta pesquisa, ela assume relevância, especialmente se forem destacadas as investigações do autor no campo da Defectologia, ou melhor, no campo da Educação Especial, na qual se estudava crianças com diferentes tipos de deficiência, combinando conhecimentos da Psicologia, da Pedagogia, da Psiquiatria Infantil e da Medicina (Van Der Veer & Valsiner, 1996) e no campo da imaginação e da criatividade na infância (Vigotski, 2014).

A abordagem histórico-cultural do desenvolvimento defendida por Vigotski diferencia a linha natural, prejudicada pela deficiência biológica (primária), da linha cultural de domínio de instrumentos socialmente produzidos, o que oferece uma visão distinta das deficiências e das possibilidades de aprendizagem das pessoas com deficiências. É a linha cultural, o ambiente social no qual vive o sujeito que deve ser considerado determinante no desenvolvimento das funções psíquicas superiores, as quais se constroem na coletividade e em colaboração, sendo, por essa razão, essenciais para o desenvolvimento dos sujeitos. Com base nessa compreensão é que se construiu a base epistemológica desta pesquisa, baseando-se na estruturação de experiências escolares coletivas e colaborativas de vivência, discussão e criação do jogo.

A coletividade e a colaboração são fatores de desenvolvimento de todos os instrumentos culturais, pois, para Vigotski (1993), os instrumentos culturais externos e os instrumentos culturais internos, socialmente originados, “são parte ativa do processo intelectual, constantemente a serviço da comunicação, do entendimento e da solução de problemas” (p. 46).

É na escola que os indivíduos se apropriam de instrumentos culturais historicamente produzidos; somente o acesso a eles, porém, não é suficiente se nesse espaço não são propiciadas práticas culturais de colaboração e de interação. Assim, a proposta metodológica desta investigação, desenvolvida no contexto da sala de aula de uma turma do Ensino Fundamental e constituída por grupos de trabalho colaborativos de resolução de tarefas, pautou-se nesses pressupostos, pois, para Vigotski (1997), “um dos fatores centrais do desenvolvimento cultural infantil [...] é a colaboração” (p. 293). Todavia, mais do que estar em uma coletividade, os alunos precisavam participar ativamente desse grupo e resolver juntos as tarefas envolvidas nas etapas do jogo. A máxima orientadora dessa forma de trabalho é pautada na concepção defendida por Vigotski (1997) de que, se propiciadas aos sujeitos “formas inferiores de colaboração com outras crianças” (p. 293), se determina, por conseguinte, “o desenvolvimento incompleto do aspecto social da conduta e das funções psicológicas superiores que se estruturam no curso desse desenvolvimento” (p. 293).

Desse modo, tem-se em Vigotski os referenciais conceituais que nortearam a configuração da proposta de trabalho e de investigação com as crianças, mediadas por estudantes de Graduação de diferentes áreas. Todos foram envolvidos nos processos coletivos de produção do conhecimento e de imaginação e criatividade, conceitos também pautados nos estudos de Vigotski e que foram mais aprofundados na abordagem metodológica, notadamente no framework desenvolvido por Alves (2017), o qual foi empregado nesta pesquisa.

2.2Design-Based Research

A pesquisa foi realizada utilizando a metodologia Design-Based Research (DBR). Essa abordagem ressignifica a ideia de que a pesquisa não pode ser influenciada por fatores externos, além de considerar a ampla colaboração entre pesquisadores e participantes, podendo resultar em mudanças educacionais práticas (Baumgartner et al., 2003; Wang & Haffanin, 2005).

O DBR é uma metodologia importante para entender quando, onde e por que as inovações educacionais funcionam na prática. Ademais, busca atender às necessidades de compreensão sobre as abordagens teóricas quanto ao estudo de fenômenos de aprendizagem em campo, contextualizando o mundo real e não apenas um ambiente de laboratório. Entre suas principais características estão os ciclos contínuos de design, execução, análise e redesenho.

Essa metodologia favorece o trabalho interdisciplinar na atuação protagonista dos envolvidos. Nesse caso, a pesquisa requereu a atuação de acadêmicos de Pedagogia, de Engenharia da Computação e de Design de Jogos. Todos os três realizaram trabalhos coletivos que envolviam a organização de oficinas, a realização das atividades com as crianças e os registros dos dados e do processo de investigação.

Tal metodologia de pesquisa foi escolhida devido ao foco educacional do projeto, o qual visa à avaliação de um método aplicável na prática, contando com uma colaboração sistemática entre pesquisadores e participantes, a partir de diversas mediações ocorridas nas atividades. A abordagem valoriza não somente a geração de um produto final – o jogo –, mas principalmente o aprendizado e a expansão da criatividade de cada indivíduo que participa da pesquisa. A metodologia apresenta-se adequada para compreender as dificuldades e as adaptações necessárias à aplicação do framework “Eu fiz meu game”, utilizado neste estudo de forma a propiciar a inclusão de todos os participantes.

2.3O Framework “Eu Fiz Meu Game”

O framework “Eu fiz meu game”, proposto por Alves (2017), fundamenta-se em uma metodologia de trabalho que implica a colaboração entre crianças e pesquisadores para a criação de jogos digitais na perspectiva da inclusão de alunos com deficiências. Ele se sustenta nos pressupostos de Vigotski referentes ao desenvolvimento da criatividade, à aprendizagem de alunos com deficiência, à elaboração de conceitos e à mediação (Vigotski, 1997, 2007, 2010, 2014). De acordo com Alves et al. (2019), o processo mediado por instrumentos, signos e pessoas com diferentes níveis de experiências e pautado na colaboração possibilita que as crianças passem de usuárias a criadoras do jogo, porque estarão envolvidas em atividades intelectuais e afetivas de negociação, elaboração de hipóteses, desenvolvimento de ideias, análise de resultados e interação.

A partir dos conceitos de Vigotski, Alves (2017) evidencia a imprescindibilidade da mediação simbólica, sob diferentes aspectos, no processo de desenvolvimento de jogos como possibilidade de assegurar às crianças a ampliação de mecanismos psicológicos mais complexos. Nesse sentido, a autora buscou nas teorias sobre criatividade e imaginação na infância, descritas por Vigotski (2014), a abordagem educativa e pedagógica de construção do framework, porque, para ele, “a imaginação é condição absolutamente necessária de quase toda atividade intelectual do homem” (p. 15). O novo é criado a partir de um processo complexo que não surge espontaneamente sem quaisquer condições, mas ergue-se das experiências anteriores, dos interesses, das necessidades e do meio ambiente no qual se encontra o indivíduo (Vigotski, 2014). Compreender o mecanismo da imaginação criativa permite elaborar caminhos que levem ao desenvolvimento da criatividade e, consequentemente, ao desenvolvimento intelectual da criança.

Vigotski (2014) descreve esse mecanismo em três principais processos: percepção, elaboração e cristalização: a) a percepção é o fundamento das experiências adquiridas pelos sentidos e que permitem o acúmulo de materiais necessários aos processos imaginativos; b) a elaboração divide-se em dois processos, sendo o primeiro o de dissociação em que o sujeito fragmenta os materiais, divide em partes menores, compara, seleciona e modifica. Esse processo é fundamental para o desenvolvimento do pensamento abstrato e para a elaboração de conceitos. No segundo processo, nominado de associação, há a junção dos elementos dissociados e modificados, os quais podem adotar formas e bases diferentes dos materiais originais percebidos no início do processo; c) a cristalização é a conversão da imaginação em imagens exteriores, completando e efetivando a atividade criativa. Essas imagens exteriores são o resultado do processo criativo: um produto, um conceito, um texto, um desenho.

Compreende-se, conforme Vigotski (2014), que “a lei básica da criatividade infantil consiste em que o seu valor não reside no resultado, no produto da criação, mas no próprio processo” (p. 90). Dessa forma, ao adotar o desenvolvimento de jogos digitais por e com as crianças, Alves (2017) recomenda estruturar o processo de tal forma que ele se associe ao processo criativo descrito por Vigotski e favoreça o desenvolvimento da criatividade das crianças, independente dos produtos – jogos – que venham a ser desenvolvidos.

Essencialmente, os frameworks fornecem diretrizes e são robustos porque provêm flexibilidade para a adaptação a diferentes condições e contextos, permitindo a sua customização. Para Alves (2017), a aplicação do framework divide-se em quatro etapas, as quais são apresentadas na Figura 1 e descritas na sequência.

Fonte: Figura extraída de Alves (2017, p. 61).

Figura 1 Etapas do framework “Eu fiz meu game” 

Envolvimento: essa etapa promove o primeiro contato entre os participantes da pesquisa e é responsável pela criação de uma boa relação de confiança. Nessa etapa, é importante que os pesquisadores notem algumas características de cada criança em relação à sua aprendizagem e ao seu relacionamento. É uma etapa feita para o conhecimento e o envolvimento com o projeto.

Experiência: promove a ampliação do conhecimento das crianças sobre jogos digitais e analógicos. Consiste na elaboração de conceitos e, por vezes, até mesmo em um “nivelamento” sobre a área de jogos, uma vez que os alunos podem possuir diferentes conhecimentos e experiências sobre jogos digitais. São realizadas atividades lúdicas de lazer e de reflexão sobre jogos.

Transposição: o objetivo dessa etapa é promover a compreensão do processo de criação de um jogo digital. Por meio de ferramentas específicas para a autoria de jogos, as crianças poderão criar seus próprios jogos individual e coletivamente, percebendo a transposição do papel para o meio digital.

Criação de jogos digitais: essa etapa é constituída por diversos processos de criação de jogos digitais e inclui a definição do conceito de jogo, design, desenvolvimento e avaliação.

Assim sendo, o framework “Eu fiz meu game” tem como principal objetivo a criação de jogos digitais, por meio da interação de crianças com e sem deficiência, em um ambiente de aprendizagem, facultando a participação, a inclusão e a colaboração efetiva de todos os alunos envolvidos no processo de investigação. Os participantes são cocriadores de seu jogo digital e contribuem com ideias, críticas, sugestões e opiniões durante todo o processo de criação, por meio de desenhos, histórias, representações por artefatos produzidos ou apresentações, participação nos testes de protótipos, entre outras atividades colaborativas. Os educadores e os pesquisadores assumem a orientação das atividades, medeiam os conflitos, tiram as dúvidas e promovem a materialização do produto final: um jogo digital.

2.4Local e Participantes da Pesquisa

A pesquisa foi realizada em uma escola da Rede Municipal de Ensino de Itajaí em Santa Catarina, Brasil, e contou com a participação de 25 alunos do 4º ano do Ensino Fundamental, com idades entre nove e 11 anos. Dentre os alunos, havia uma menina com trissomia 21 com atraso neuropsicomotor, doença conhecida comumente como Síndrome de Down; um menino com Transtorno do Espectro Autista (TEA) nível 3 (severo); e um menino diagnosticado com Transtorno hipercinético não especificado que se identifica como (CID F90.9) e Distúrbio desafiador e de oposição (CID F91.3). Outros dois alunos demonstravam certo atraso no desenvolvimento cognitivo e comportamental, mas não havia diagnóstico para eles. O aluno com TEA nível 3 foi transferido de escola ao longo do projeto devido a mudança de cidade pela família.

A escolha de uma turma de Ensino Fundamental foi motivada por responder uma das questões apontadas por Alves (2017) com relação à aplicação do framework “Eu fiz meu game” em condições diferentes da aplicação original, para verificar a aplicabilidade, a adaptação e a eficácia, tendo como objetivo comprovar seu valor educacional. A turma foi propositadamente selecionada por ter alunos com e sem deficiências, um dos critérios de aplicação do framework, que propõe a inclusão e a participação de todos nas atividades do projeto.

A equipe interdisciplinar envolveu dois pesquisadores, duas professoras e três acadêmicos das áreas de Pedagogia, Design de Jogos e Engenharia da Computação. Eles participaram ativamente nas intervenções com as crianças, prepararam as oficinas, realizaram reuniões para a análise contínua do andamento do projeto e faziam adaptações ao framework quando necessário.

Para a realização da pesquisa, houve a autorização do Comitê de Ética, sob o Protocolo 70043617.0.0000.0120, a autorização da Secretaria de Educação de Itajaí, Santa Catarina, Brasil, além da autorização dos responsáveis pelo Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), possibilitando, inclusive, o uso de imagens.

A aplicação do framework aconteceu em oficinas semanais durante o horário regular de aula das crianças, entre uma e duas horas de aula, nos meses de abril a dezembro de 2019. Durante as oficinas, foram organizadas atividades em grupo e individuais, envolvendo criatividade, cooperação e técnicas de design e desenvolvimento de jogos.

2.5Coleta e Análise Dos Dados

A coleta de dados deu-se por meio de registro das atividades em diários de bordo, fotos, vídeos, artefatos produzidos pelas crianças e o jogo digital produzido em parceria com os acadêmicos. O principal foco da pesquisa que utiliza dados qualitativos está em ter acesso às experiências, às interações e aos documentos em seu contexto natural, formando conceitos apenas ao fim da investigação e adequando métodos e teorias àquilo que se estuda. O contexto é fundamental para esse tipo de pesquisa, assim como sua possibilidade de adequação ao meio (Gibbs, 2009). Para a análise da pesquisa em questão, foram utilizados, principalmente, os métodos de codificação e de categorização de dados, sendo o primeiro responsável por definir do que se tratam os dados, e o segundo, por separá-los em categorias que possam auxiliar na análise, a qual foi feita sobre os registros das oficinas e a transcrição dos vídeos. As categorias utilizadas foram as mesmas propostas por Alves (2017):

  • Mediação: momento no qual se identificam as medições entre pesquisadoras e alunos, alunos/alunos ou objetos/alunos.

  • Colaboração: momento em que se verifica a colaboração entre as crianças.

  • Criatividade: momentos de atividades ou de ideias criativas.

  • Produção: artefatos produzidos pelas crianças ou pelas pesquisadoras em conjunto com as crianças.

3Resultados e Discussões

Para dar início à aplicação do framework, realizou-se uma sondagem acerca dos conhecimentos das crianças sobre a criação de jogos digitais. Com uma turma (25 alunos), essa etapa tornou-se ainda mais importante, uma vez que cada criança estava inserida em diferentes contextos e teve experiências diferentes com jogos analógicos ou digitais. Para além disso, a sondagem possibilitou um primeiro contato entre pesquisadores, educadores e alunos, de modo que se conhecessem e estabelecessem uma boa relação no trabalho coletivo durante todas as etapas do framework.

Nessa etapa, foi possível entender um pouco de cada aluno, suas dificuldades e suas facilidades de aprendizagem, além dos seus conhecimentos prévios sobre a questão “Como se faz um jogo digital?”. A pergunta foi respondida em forma de desenhos individuais, nos quais a maioria das crianças revelou um entendimento menos complexo, pautado em suas experiências imediatas de que o jogo se faz por meio de download no celular ou no computador. Por fim, as crianças mostraram-se entusiasmadas e ansiosas para descobrir como realmente é feito um jogo digital durante as oficinas seguintes.

3.1Etapa Envolvimento

A partir das sondagens prévias, deu-se início à etapa denominada Envolvimento, a qual visava à iniciação dos processos criativos e colaborativos de trabalho, que possibilitam a integração entre os alunos, incentivando também o auxílio mútuo durante as atividades.

Para a primeira atividade colaborativa, as crianças foram separadas em dois grupos (escolhidos por sorteio) e receberam kits (Figura 2) com objetos aleatórios, como E.V.A., grampos, pedaços de tecido, entre outros materiais recicláveis, para que cada uma criasse algo utilizando aqueles objetos. Criaram Pacmans, televisão, drones e objetos abstratos. As crianças trocaram seus materiais, reforçando a ideia de trabalho em grupo. Uma criação que chamou atenção foi a de Bruno6 que saiu dos padrões e criou não só um objeto, mas um jogo de minigolfe (Figura 3). Essa criação evidencia que Bruno está atento aos objetivos propostos para o grupo, que é o desenvolvimento de um jogo digital e seus conhecimentos prévios acerca de um jogo transposto para os objetos disponíveis. Esse é o processo de criatividade que Vigotski (2014) elucida sobre a capacidade de elaboração e de construção a partir de elementos, de fazer novas combinações com elementos conhecidos, o que constitui o fundamento do processo criativo.

Figura 2 Kit de materiais disponibilizados aos grupos de alunos no processo de envolvimento 

Figura 3 Minigolfe desenvolvido por Bruno 

Na oficina seguinte, os objetos criados voltaram às rodadas de trabalho. Dessa vez, as crianças deveriam, em grupos, criar histórias envolvendo todos seus objetos. Esse foi o momento em que se começou a observar alguns conflitos entre os alunos: Heitor estava chateado por não estar no mesmo grupo que sua irmã; Esteban e Jhonatan não pararam de discutir durante a maior parte da atividade que realizavam com Sophia, o que gerou a separação do grupo, levando Jhonatan a desenvolver a atividade sozinho para acalmar os atritos. Esse foi um encontro no qual mediações foram muito necessárias. A intervenção de bolsistas e de educadores tornou-se muito importante para que as atividades seguissem e, com isso, os alunos conseguiram finalizar suas histórias. Esses conflitos apontam a dificuldade do trabalho em grupo, o qual é poucas vezes oportunizado aos alunos, especialmente quando o tema é, de certa forma, livre. Eles precisam de independência e de autonomia para desenvolver a atividade, bem como compreender os limites de cada um e respeitar as escolhas e as opiniões. Eis porque no framework proposto por Alves (2017) essa é uma etapa fundamental, pois são os primeiros movimentos do trabalho coletivo e colaborativo.

No encontro posterior, as histórias criadas foram lidas para a turma em meio a muito barulho, pois as crianças estavam bastante agitadas. Como última parte da etapa de envolvimento, foi solicitado que cada grupo ilustrasse sua história, o que gerou novamente atritos e mediações, além das negações de Nestor (aluno diagnosticado com TEA) em participar dessa atividade. Iasmin (aluna diagnosticada com Síndrome de Down) trabalhou com a acadêmica Brenda e fez grandes avanços; apesar de sua timidez, foi mostrar seu desenho para a turma na frente da sala. A atividade revelou a possibilidade de oportunizar ao estudante com deficiência a participação juntamente aos demais colegas e o seu fazer conforme suas habilidades.

Na fase de Envolvimento, foi possível perceber evoluções da parte dos alunos, mesmo com pequenos conflitos. Todas as atividades foram cumpridas com sucesso, e alguns alunos obtiveram evoluções até mesmo em suas interações sociais com as pesquisadoras. Samuel que começou os encontros bastante quieto, ao fim da quarta oficina, já estava falando contente e contando histórias de coisas às quais assistiu na Internet. Iasmin já havia conseguido executar uma atividade completa, e Nestor, que sempre se mantinha agitado, e até mesmo precisava sair da sala, permaneceu no local durante todo o encontro. Dessa maneira, o envolvimento das crianças e sua relação com as pesquisadoras foram fundamentais para o avanço em atividades mais complexas, pois elas se sentiam mais seguras para iniciar o exercício do trabalho cooperativo e refletir sobre suas ações e criações.

3.2Etapa Experiência

A etapa Experiência propõe atividade de lazer com jogos analógicos e digitais. Para a aplicação das oficinas dessa etapa, as crianças foram divididas em dois grupos; um grupo jogou os jogos analógicos, e o outro jogou os digitais. Na primeira oficina, foram selecionados os jogos analógicos Candy Land7, Lince e Pizza Maluca8 e o jogo digital Where is my water9. A turma foi dividida em quatro grupos e um trio. A equipe das pesquisadoras também foi dividida para que as crianças ficassem amparadas durante toda a atividade. Nestor, que ficou com o grupo de jogos digitais, se mostrou interessado pelas imagens dos jogos e até tentou clicar em alguns botões, mas não conseguiu participar efetivamente da atividade; ele também estava se acostumando com a presença das pesquisadoras. Iasmin teve a ajuda de sua psicopedagoga e também conseguiu, com auxílio, participar da atividade. Nessa experiência, buscou-se separar a turma em vários grupos e dividi-los em momentos paralelos; enquanto uns jogavam jogos analógicos, outros jogavam os jogos digitais, revezando-se. Isso requereu das pesquisadoras a divisão das tarefas e o atendimento aos estudantes.

Na atividade de jogos analógicos, foi possível perceber um comportamento entre as crianças ao jogar Pizza Maluca, quando elas tentaram adivinhar as regras do jogo, pois tiveram dificuldades em ler e entender as regras reais. Foi necessário que as pesquisadoras explicassem as regras e auxiliassem o grupo, pois é de grande importância que as crianças joguem corretamente os jogos propostos e aprendam com eles. Para Vigotski (2007), o maior ganho das crianças acontece nessas situações, visto que “a situação de brinquedo exige que a criança aja contra o impulso imediato. A cada passo a criança se vê diante de um conflito entre as regras do jogo e o que ela faria se pudesse, de repente, agir espontaneamente. No jogo, ela age de maneira contrária à que gostaria de agir” (p. 118). Enquanto isso, as crianças que jogavam Candy Land se sentiam muito mais animadas; o jogo tinha uma dinâmica simples, o que as empolgava ainda mais. Iasmim participou com entusiasmo e ganhou duas vezes. Na troca de jogos, pôde-se notar novamente uma relutância das crianças às regras do jogo Pizza Maluca.

Para a segunda parte da Experiência, foram selecionados os jogos Base 3 (Analógico) e Dinobase (digital), jogos semelhantes entre si, mas com suas diferenças devido ao formato. O objetivo desse encontro foi entender melhor as diferenças entre jogos analógicos e digitais. Um comportamento muito importante dessa etapa foi a colaboração; até mesmo o jogo digital que era para ser no formato player x player se tornou um jogo cooperativo (Figura 4). Após a primeira partida, Samuel ficou triste por não ganhar; assim, foi necessário explicar que para esse jogo nem tudo dependeria dele, o fator da sorte era importante e estaria tudo bem perder.

No encontro anterior, havia entrado uma nova aluna na turma, a Betina. Nesse encontro, já foi possível perceber que tudo teria de ser do jeito dela. Ela também acabou se chateando muito por não ganhar, mas Ângela e Miguel a ajudaram a entender o jogo e a evoluir nesse aspecto. Ao todo, foi um encontro muito colaborativo.

Figura 4 Colaborações durante o jogo Dinobase 

Essas atividades colaborativas são de extrema importância, pois, embasadas nos ideais de Vigotski, entende-se que os processos superiores do pensamento infantil surgem de seu processo de desenvolvimento social. Para Vigotski (1997), a coletividade, a colaboração e a experiência social fazem surgir nas crianças as funções intelectuais superiores, “por meio da tradução a si mesmo das formas de colaboração que a criança assimila durante a interação com o ambiente social que a rodeia” (p. 219).

3.3Etapa Transposição

A terceira etapa de aplicação do framework é a Transposição, na qual as crianças têm contato efetivo com a criação de jogos digitais, incluindo as ferramentas e os processos necessários para a criação de um jogo. A ferramenta escolhida para esse momento foi o Scratch10, um programa desenvolvido pelo Instituto Tecnológico de Massachussetts e pelo grupo KIDS da Universidade da Califórnia, com o intuito de facilitar o ensino da programação para crianças por meio multimídia. O uso dessa ferramenta foi feito em um dos laboratórios de informática da Universidade do Vale do Itajaí (Univali). Os encontros aconteceram como uma saída de campo para as crianças, que ficaram muito empolgadas com a criação do próprio jogo. Outro fator foi a impossibilidade de utilizar o Scratch no laboratório da escola, pois o sistema operacional implantado não suportava o uso dessa ferramenta. Novamente, alguns alunos sentiram mais facilidade, como Esteban, Marcela e Vanderlei, os quais, ao terminarem a atividade, ajudavam os colegas, ressaltando a ideia de colaboração.

A reconstituição do processo é uma etapa transversal no framework e visa à revisão e à compreensão do que se está fazendo e por quê. Foi apresentada às crianças a linha do tempo, um cartaz com os meses em que houve as oficinas e espaços para demonstração de fotos de todos os encontros (Figura 5).

Figura 5 Linha do tempo 

Essa atividade foi bastante interativa; com as fotografias, foi oportunizado às crianças a lembrança e a reconstituição do que haviam feito. Para algumas, era difícil extrair lembranças, mas, aos poucos, recordavam e colavam a foto do encontro no mural.

3.4Etapa Criação De Jogos Digitais

A quarta etapa consistiu na Criação de jogos digitais; é a mais longa e envolve toda a construção do produto final. A essa altura, as pesquisadoras e os alunos já se conheciam e tinham uma relação de respeito e até mesmo de amizade. As crianças sentiam-se confortáveis para expor suas opiniões e fazer críticas, às vezes, construtivas, quanto às atividades. É uma etapa em que conflitos se mostram mais presentes, uma vez que existem decisões importantes a serem tomadas sobre o produto; é nessa hora também que mediações se fazem mais necessárias. A etapa é dividida entre Conceito, Design, Desenvolvimento e Avaliação.

Durante a fase de Conceito, são inseridas as questões “O quê?”, “Por quê?”, “Quem?” e “Onde?” sobre o jogo que será criado. No decorrer dessa atividade – chamada de W-Questions –, foi possível notar a dificuldade de abstração das crianças, o que exigiu buscar na elaboração das crianças as respostas ideais para que os primeiros parâmetros do jogo fossem definidos. Com as prioridades definidas, as atividades seguiram com os chamados Idea cards. Em grupos, as crianças escreveram suas ideias para a história do jogo a ser feito, uma atividade tranquila em que foram criadas histórias bastante criativas, mas que teve de contar com a primeira mediação da pesquisadora nessa etapa, pois Jonathan e Miguel se desentenderam enquanto riscavam um ao outro utilizando canetas. Para essa atividade, o grupo de Marcela mostrou-se muito dedicado e inclusivo com Nestor, que, durante a atividade, apontou para seu estojo e pediu que houvesse um personagem do desenho “Os Simpsons” na história do grupo.

A história escolhida foi votada pelas crianças. Ela se passaria na China e seria sobre um ninja maligno e uma garota guerreira que salvaria a China do ninja. As crianças aceitaram a escolha, e o resultado da votação aconteceu de forma tranquila. Como tarefa de casa, as crianças ficaram de pesquisar sobre a China para que o jogo pudesse ser mais bem conceituado. Apenas Nestor e Betina trouxeram resultados; os colegas Jonathan, Esteban, Marcela e Vanderlei leram a pesquisa dos colegas para auxiliá-los. Nestor ficou contente e sorriu afirmando que sua mãe o tinha ajudado a fazer a busca das informações. Após as crianças conhecerem um pouco mais sobre a China, foi a vez de passarem as ideias para o papel, desenhando pela primeira vez cenários e personagens para o que viria a ser seu jogo. Karine desenhou o templo do amaldiçoado pelas forças do mal onde o ninja ficaria e planejaria possuir todas as pessoas do mundo. Houve também ideias para um outro anti-herói, além do ninja, o dragão.

Para uma melhor experiência na hora de criar o jogo, podendo aumentar a coerência da história e das mecânicas, buscaram-se jogos semelhantes para que as crianças pudessem testar e se inspirar, jogos com ninjas, meninas protagonistas e dragões, condizentes com a história escolhida por elas. Os jogos testados foram Bushido Bear11 (Mobile), Callys Cave 312 (Mobile), Ninja Dash13 (Mobile), Once upon a Tower14 (Mobile), Celeste15 (PC), Dandara16 (PC) e The Messenger17 (PC). Foram levados celulares e utilizou-se os computadores da sala de informática da escola para que as crianças pudessem jogar. Divididos em dois grupos (Mobile e PC) e depois em duplas, elas testaram os jogos e preencheram fichas avaliativas sobre eles, relutantemente, uma vez que ninguém queria parar de jogar. As fichas têm o propósito de refletir sobre os jogos, capturando seus elementos principais como mecânicas, cenários e personagens.

A sexta oficina de Conceito, foi marcada pela divisão de grupos e pela formulação das fases do jogo. Apesar de as crianças insistirem por inúmeras fases (como cem ou até mil fases), foi possível convencê-las de que quatro fases seriam o ideal, uma vez que o desenvolvimento de um jogo leva tempo e gera trabalho intenso. Assim, a turma foi dividida em grupos para a criação de cada fase, o que gerou alguns conflitos, mas as histórias coletivas criadas foram muito criativas. A estratégia de dividir a turma em grupos foi uma adaptação do framework, pois facilita o trabalho em pequenos grupos. Dessa forma, com o objetivo de criar um único jogo, propôs-se que cada grupo seria responsável por uma fase do jogo; logo, ainda que divididos, todos estavam trabalhando em um mesmo objetivo final.

As discussões e as ideias nesses pequenos grupos foram intensas. Fez-se necessário mediar o conflito entre Karine e Marcela, pois Marcela não aceitava a ideia de Karine de colocar a Muralha da China na história. Por fim, todos observaram que seria uma ótima ideia, visto que é uma característica marcante do país. Betina desenhou um conflito com um dragão, um ninja e uma bomba, e tudo terminaria com a água apagando o fogo. Samuel parecia disperso e desenhou o ninja de coração partido, pois a garota por quem ele era apaixonado gostava de outra pessoa. Nestor participou somente até essa etapa, pois foi transferido para outra escola devido à mudança da sua família para outra cidade.

O início da etapa de Design foi marcado pelo “Protótipo Experimental”, que é uma alternativa que permite às crianças validarem as ideias do jogo por meio de uma simulação física, tal como um teatro ou uma brincadeira (Buchenau & Suri, 2000, como citado em Moser, 2015). Para essa aplicação, foi escolhida a forma de teatro; essa foi, provavelmente, uma das atividades que as crianças mais gostaram e se envolveram fora do meio digital. Apenas Heitor se negou a participar da apresentação, apesar dos esforços para convencê-lo. Os conflitos do dia foram facilmente mediados e consistiram, principalmente, em crianças não querendo o papel uma das outras na peça do teatro. Todavia, as negociações, tão necessárias no processo de criação coletiva, aconteceram, as mecânicas ficaram ótimas e o conceito da atividade foi totalmente compreendido, além de que houve muita diversão.

As atividades da etapa de Design consistiram em desenhos, tanto do cenário quanto dos personagens. Observou-se que alguns alunos acabaram se tornando cada vez mais sensíveis ao longo dos encontros, tentando não participar das atividades e chorando, como Heitor e Isis, que foram motivo de muitas mediações durante essa fase. Esses comportamentos revelaram a dificuldade de algumas crianças em negociar e trabalhar de forma colaborativa e coletiva.

Após três etapas de Design, percebeu-se que as crianças, em geral, estavam realizando desenhos pouco condizentes com o conceito que nos apresentaram sobre a China. Elas solicitaram ver imagens e saber mais informações sobre o país, o que demandou uma pequena apresentação sobre ele. Essa alteração foi necessária para o desenvolvimento do produto final e gerou muito aprendizado, tanto para os alunos quanto para as pesquisadoras. Foram analisadas imagens reais que inspiraram as crianças e tiraram suas dúvidas no momento de refazer alguns de seus desenhos. Isso contribuiu para o grupo seguir para a fase de Avaliação e desenvolvimento com uma base muito melhor sobre o que elas gostariam de ver no jogo. Essa experiência revelou o potencial da criação de jogos e o alinhamento com diferentes conceitos que se podem aprender na escola: Geografia, ao falar sobre países e continentes e sua localização espacial no mapa-múndi; Matemática, ao analisar as dimensões da muralha da China; História, ao avaliar a China antiga, as vestimentas e a arquitetura.

Um protótipo do jogo com os principais elementos idealizados pelas crianças foi desenvolvido pelos estudantes de Design e de Engenharia da Computação. O protótipo foi avaliado pelas crianças que, novamente, apresentaram suas ideias e suas críticas, e identificaram melhorias no protótipo. Nessa atividade, foram explicados os processos de elaboração de um desenho no programa Illustrator e alguns procedimentos de programação do jogo na plataforma Unity, ambos escolhidos para o desenvolvimento do produto. As meninas, principalmente Emily, Diana e Ângela ficaram bastante engajadas em discussões sobre Thilly, a personagem principal. Cada menina queria que a personagem fosse do seu jeito e a representasse. Os meninos, porém, detiveram-se mais na mecânica do jogo, tanto dando seus palpites, quanto atentos para testar o jogo jogando, afinal, era uma etapa divertida.

Provavelmente, a oficina mais complicada durante o projeto foi a de escolha do nome do jogo, pois as crianças estavam agitadas e, por conta disso, aconteceram diversas discussões acaloradas. A sala foi dividida em grupos, e cada grupo deveria anotar sua ideia para o nome. O grupo de Isis não aceitava a colega Izabel no grupo, por mais que ela estivesse colaborando ativamente na escolha do nome para o jogo. Betina, Heitor e Bruno não paravam com as brincadeiras e as conversas paralelas, comportamentos que ocasionaram desconfortos e negociações com a turma. Em contraponto, Kaue, Vanderlei, Daniel e Jonathan foram participativos, sugeriram nomes bem fundamentados. Já o grupo de Yasmin foi criativo e divertido, juntando suas ideias com o fato de a menina estar usando um arco na cabeça para sugerir o nome “O arco da vitória”. Apesar de alguns conflitos durante a votação, pois houve dificuldade em entrar em um acordo, o nome do jogo ficou decidido por “Thilly: Em uma missão perigosa”, em homenagem a personagem principal nomeada Thilly logo na primeira versão da história.

As duas últimas oficinas da aplicação do framework aconteceram com um intervalo de 15 dias e tiveram o objetivo de testar o protótipo final do jogo. Na primeira dessas oficinas, as crianças testaram o jogo uma de cada vez, compartilhando suas opiniões e suas críticas; cada teste durou cerca de três minutos. Na segunda oficina, realizou-se um encontro especial em um dos laboratórios da Univali, no qual as crianças puderam testar o protótipo do jogo e preencher uma ficha sobre a sua experiência com ele (Figura 6). Todos viram seus nomes nos créditos do jogo e até mesmo o nome dos colegas que deixaram a escola por transferência durante o projeto. Nesse último teste, as crianças mostraram-se bastante críticas e opinaram novamente sobre o que faltava no jogo. Heitor mostrou-se bastante descontente com o tamanho dos inimigos, que ainda estavam como placeholders, e houve dificuldades da parte das crianças para chegarem ao final das fases e derrotar o ninja. Com isso, adiou-se o lançamento para que o jogo pudesse ficar mais adequado às definições do grupo. O último encontro foi marcado também por um lanche realizado no refeitório da universidade, com um bolo e bolachas, onde todos aproveitaram e se divertiram. Por fim, foram destruídos brindes temáticos do projeto, tirou-se uma foto e houve a despedida das pesquisadoras e das crianças, com a promessa de que logo elas poderiam jogar seu jogo em seu próprio dispositivo móvel.

Figura 6 Alunas testando o protótipo final 

A Figura 7 a seguir apresenta a transposição do desenho da personagem elaborada pelas crianças para o desenho digital no jogo. Além disso, a Figura 8 apresenta uma das imagens da versão final do jogo, que está disponível para download no linkhttps://univalildi.wixsite.com/univalildi.

Figura 7 Thilly, a protagonista do jogo 

Figura 8 Thilly encontra um inimigo (primeira fase, versão final do jogo) 

Devido ao grande número de alunos na turma, uma das estratégias empregadas foi a divisão deles em subgrupos durante as atividades colaborativas. Em grupos menores, ocorreu um número ainda maior de ações de colaboração, mas isso também ocasionou alguns novos conflitos e mediações. Ademais, a apresentação realizada pelas pesquisadoras sobre o tema do jogo trouxe uma base para que as crianças conhecessem mais o tema desejado e refletissem sobre o conhecimento adquirido para o produto final.

No decorrer de toda a pesquisa, houve incentivo para que todas as crianças da turma participassem efetivamente das atividades, uma vez que o jogo seria de todas. Além disso, houve incentivo, em especial, para que as ideias dos alunos com deficiências também fossem ouvidas pelos colegas e incluídas no jogo, resultando em atividades totalmente inclusivas para todos. Um grande exemplo disso é o momento em que o grupo de Nestor, mesmo com dificuldades na comunicação, adicionou, em sua história, o personagem apontado por ele em seu estojo, ou durante os diversos momentos em que Isis e Amanda ajudaram Iasmin a realizar suas atividades junto ao grupo. A inclusão também foi facilitada pelas pesquisadoras, que estavam sempre atentas às diferentes necessidades das crianças, auxiliando-as em suas atividades individuais e em grupo, realizando diversas mediações e colaborações.

4Considerações Finais

Dado o objetivo de avaliar o processo de construção colaborativa de um jogo digital por crianças com e sem deficiência em contexto de educação regular, a pesquisa apresentou a construção de um jogo por uma turma de 25 alunos do Ensino Fundamental, em conjunto com acadêmicos de cursos de Educação, Design e Engenharia da Computação. O caráter interdisciplinar e inclusivo permeou o estudo, que foi conduzido por meio de abordagem fundamentada nos preceitos de Vigotski e na aplicação do framework “Eu fiz meu game”.

Levando em consideração a base da pesquisa, fundamentada pelo processo de desenvolvimento definido por Vigotski, foram observados resultados positivos, em que as crianças conseguiram, independentemente de suas diferenças entre os grupos de amigos e até mesmo por suas dificuldades, realizar um trabalho conjunto e colaborativo. Com a mediação de pesquisadores e educadores, adaptaram-se propostas do framework quando se fez necessário. Um exemplo disso é a adição da aula de apresentação sobre a China, que permitiu dar uma base melhor sobre o país às crianças. Outro exemplo foi a divisão da turma em grupos responsáveis pela criação de fases de um mesmo jogo, mantendo o objetivo do trabalho colaborativo e coletivo.

Foi possível perceber o crescimento das crianças em relação à criatividade e à compreensão no decorrer das explicações, das atividades e dos testes do jogo. Além disso, foi muito marcante o crescimento da sociabilidade, evidenciada pela adaptação e pela negociação das crianças nos grupos propostos. Elas desenvolveram atividades criativas, com níveis de complexidade crescente, muito negociadas e bem elaboradas. Exemplo disso foi o teatro, que se mostrou uma das atividades perceptivelmente mais divertidas e coletivas.

O envolvimento dos alunos que possuem deficiência foi notável, tanto nas etapas iniciais, como nas pesquisas sobre o conceito do jogo, e na criação das histórias, momento em que os colegas eram atenciosos, sempre incluindo suas ideias. Houve também grande incentivo das pesquisadoras para que esses alunos seguissem participando das atividades, testando os protótipos e tendo suas opiniões ouvidas para que o jogo fosse reflexo das ideias da turma como um todo. Pode-se dizer que foi uma experiência efetivamente coletiva, colaborativa e inclusiva, na qual as crianças experimentaram momentos de discussão, pesquisa, negociação e vivência de conflitos, tão presentes no processo de criação coletiva.

Destaca-se na pesquisa a vivência e as aprendizagens compartilhadas entre crianças e acadêmicos. Para as crianças, experenciar novas propostas pedagógicas provenientes das pesquisas científicas desenvolvidas pela universidade, visitar diferentes espaços e trocar conhecimentos com os acadêmicos, foi uma oportunidade singular para seu crescimento acadêmico e pessoal. Para os estudantes do Ensino Superior, foi uma oportunidade de vivenciarem na prática os conceitos discutidos em sala de aula, conhecerem a realidade de uma escola e ampliarem sua compreensão sobre a inclusão de alunos com deficiência.

6Todos os nomes das crianças foram substituídos por nomes fictícios para preservar suas identidades.

7Jogo de tabuleiro da Hasbro. Mais informações em: https://products.hasbro.com/

8Jogos de tabuleiro da Grow. Mais informações em: https://www.lojagrow.com.br/

9Jogo digital da Disney. Mais informações em: https://lol.disney.com/games/where-s-my-water

10Mais informações em: https://scratch.mit.edu/

11Jogo para dispositivos móveis, disponível em: https://play.google.com/store/apps/details?id=com.spryfox.GiantSword

12Jogo para dispositivos móveis, disponível em: https://play.google.com/store/apps/details?id=com.vdogames.callyscaves3

13Jogo para dispositivos móveis, disponível em: https://play.google.com/store/apps/details?id=jp.MEARI.NinjaDash

14Jogo para dispositivos móveis, disponível em: https://play.google.com/store/apps/details?id=com.pomelogames.TowerGame

15Jogo para computador da desenvolvedora Matt Makes Games. Mais informações em: https://store.steampowered.com/app/504230/Celeste/

16Jogo para computador da desenvolvedora Long Hat House. Mais informações em: https://www.longhathouse.com/games/dandara/

17Jogo para computador da desenvolvedora Sabotage Studio. Mais informações em: https://store.steampowered.com/app/764790/The_Messenger/

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Recebido: 15 de Maio de 2021; Revisado: 26 de Julho de 2021; Aceito: 28 de Julho de 2021

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As autoras agradecem ao Governo de Estado de Santa Catarina pela concessão das bolsas de iniciação científica aos acadêmicos por meio do programa de bolsas do Artigo 170 e Artigo 171 da Constituição do Estado. Agradecem também à Secretaria Municipal de Educação de Itajaí e ao Grupo Escolar Carlos de Paula Seara pela autorização e pela parceria na pesquisa, bem como aos alunos participantes.

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