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Revista Brasileira de Educação Especial

versión impresa ISSN 1413-6538versión On-line ISSN 1980-5470

Rev. bras. educ. espec. vol.28  Marília  2022  Epub 25-Feb-2022

https://doi.org/10.1590/1980-54702022v28e0099 

Ensaio

Contribuições Antropológicas aos Estudos da Deficiência

Anthropological Contributions to Disability Studies

Gustavo Martins PICCOLO2 
http://orcid.org/0000-0002-6078-9176

2Professor da Universidade de Araraquara (Uniara). Doutor em Educação Especial. Gavião Peixoto/São Paulo/Brasil


RESUMO:

Este texto trata-se de um ensaio teórico que busca apresentar contribuições que a Antropologia pode fornecer à área de Estudos da Deficiência ao demarcar o caráter contingente da deficiência como categoria situada histórica e culturalmente. Principia-se destacando a escassez de estudos nacionais que tomaram a deficiência como objeto de investigação sob uma perspectiva antropológica, constando em buscas em bancos de dados acadêmicos nacionais (Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações - BDTD - e Google Scholar) somente sete trabalhos que comutaram os descritivos “Antropologia/Antropológico” e “deficiência” no campo “título”. Em seguida, destacam-se escritos antropológicos clássicos que possuem o condão de impactar as análises nos Estudos da Deficiência com a exposição de supostos contidos nesses ensaios, muitos dos quais desconhecidos na área da Educação Especial, inclusive em círculos de predominante interferência do modelo social. Finaliza-se ao asseverar a necessidade em reconfigurar a visualização da categoria deficiência ao longo do tempo, espaço e história, e, por conseguinte, catalisa o aparecimento de novos horizontes compreensivos com potencial de desencadear práticas inovadoras em termos de pesquisa acadêmica e intervenção educacional, tarefa das mais urgentes e para a qual a Antropologia pode fornecer grande contribuição ao enriquecer o entendimento pelo qual algumas diferenças são percebidas como deficiências e outras por dessemelhanças componentes do humano.

PALAVRAS-CHAVE: Deficiência; Antropologia; Educação Especial

ABSTRACT:

This text is a theoretical essay that seeks to present contributions that Anthropology can provide to the field of Disability Studies when demarcating the contingent character of disability as a historically and culturally situated category. It begins by highlighting the scarcity of national studies that have taken disability as an object of investigation from an anthropological perspective, consisting in searches in national academic databases (Brazilian Digital Library of Theses and Dissertations - BDTD - and Google Scholar) only seven works that switched the descriptors “Anthropology/Anthropological” and “disability” in the field “title”. Then, classical anthropological writings are highlighted that have the power to impact the analyzes in Disability Studies with the exposure of assumptions contained in these essays, many of which are unknown in the area of Special Education, including in circles of predominant interference of the social model. It ends by asserting the need to reconfigure the visualization of the disability category over time, space and history, and, therefore, catalyzes the emergence of new horizons with the potential to trigger innovative practices in terms of academic research and educational intervention are projected, a very urgent task and for which Anthropology can provide a great contribution by enriching the understanding by which some differences are perceived as disabilities and others as component dissimilarities of the human.

KEYWORDS: Disability; Anthropology; Special Education

1 Introdução

Desde a eclosão dos movimentos sociais de pessoas com deficiência em 1970 e o surgimento da perspectiva acadêmica nominada Disability Studies (Estudos da Deficiência), é notório o incremento da presença de estudos vinculados às Ciências Sociais que perceberam na deficiência uma importante categoria analítica para a compreensão da própria humanidade. A transmutação de uma análise eivada anteriormente pelas lentes do saber médico em direção a uma interpretação social envolveu a compreensão da deficiência como uma categoria mais assemelhada a compostos identitários como etnia, raça, gênero e sexualidade do que às etiologias propriamente ligadas a doenças ou a enfermidades.

A popularização dos chamados Estudos da Deficiência consolidou-se como fenômeno global e exerceu impacto massivo na construção de um novo entendimento sobre a categoria deficiência. Entretanto, a citada difusão permaneceu quase inaudita em círculos e produções da Antropologia, o que causa estranheza devido à importância conferida à noção de alteridade como das mais tradicionais e importantes categorias de seu campo de análise.

A própria Débora Diniz, precursora nos estudos sociais sobre deficiência no Brasil e antropóloga, não dialoga em suas produções com escritos propriamente antropológicos sobre a temática, o que é digno de nota, assim como os autores clássicos (Paul Hunt, Mike Oliver, Vic Finkelstein, Colin Barnes e Len Barton) vinculados aos Estudos da Deficiência. Tal condição leva-nos a questionarmos se dada ausência de diálogos com o campo antropológico seria derivada do desconhecimento dessas produções ou de sua inexistência, cuja materialidade não se justificaria sob nenhuma condição, independentemente da hipótese constatada, dada às contribuições inegáveis que poderiam ser proporcionadas academicamente ao incluir-se, nas problemáticas etnográficas, questões tais quais: Como as diferenças corporais, sensoriais e cognitivas são compreendidas e tratadas em diferentes sociedades? Como os processos de transformação cultural moldam as percepções sobre a deficiência? É a deficiência uma experiência universal da humanidade? O debruçar-se sobre tais questões seguramente enriqueceria os saberes produzidos nesse campo de conhecimento.

Dito isso, o objetivo deste trabalho reside em apresentar contribuições situadas no campo da Antropologia, as quais tenham a deficiência como categoria principal de análise. Para tanto, realizamos buscas avançadas em bancos de dados acadêmicos nacionais (Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações - BDTD - e Google Scholar) mediante a comutação dos descritivos “Antropologia/Antropológico” e “deficiência” no campo “título”. Constatado o escasso número de contribuições nacionais sobre a temática, o presente texto, em um segundo momento, traz à discussão escritos antropológicos clássicos que possuem o condão de impactar as análises nos Estudos da Deficiência, expondo algumas de suas principais ideias. Trata-se, portanto, de um ensaio teórico, que intui fornecer subsídios analíticos com vistas a enriquecer e alargar o entendimento da categoria deficiência, exercendo influência em múltiplas áreas de estudo, com destaque para a Educação Especial.

2 Antropologia e deficiência no brasil: um território pouco explorado

Com o objetivo de apropriar-nos das produções antropológicas no Brasil que tinham na categoria deficiência seu objeto de estudo, realizamos uma busca exploratória em dissertações e teses, assim como em artigos científicos publicizados.

Na BDTD, encontramos 87 produções que comutam as múltiplas combinações conjuntas de aparecimento entre as palavras “deficiência e Antropologia” em todos os campos possíveis (título, assunto e resumo). Nesse universo, são 50 dissertações e 37 teses, número que é reduzido para somente dois trabalhos (Justino, 2017; Mello, 2014) quando tais descritivos se remetem ao campo “título”. Nesse momento, cabe destacarmos, adicionalmente, que, dentre os 87 trabalhos mencionados, o de Kim (2013) e de Lopes (2014), ainda que não compreendidos pelo recorte aqui utilizado, apresentam contribuições de relevo ao tema proposto.

Como mecanismo exploratório adicional, resolvemos buscar textos que versavam sobre antropologia e deficiência na plataforma Google Scholar, ferramenta que permite pesquisar literatura acadêmica de forma abrangente. Como a ferramenta realiza investigações extensas, circunscrevemos nossa busca ao campo título e aos descritivos “Antropologia e deficiência”, “antropológico e deficiência”, “antropológica e deficiência”, sendo encontrados os textos de Barros (2021), Gardou (2006), Lara (2013), Martins e Barsaglini (2011) e Rios et al. (2019). Merece atenção, dentre esses textos, o de Gardou (2006), que efetivamente busca materializar uma apresentação dos contributos da Antropologia aos Estudos da Deficiência.

Cabe, ainda, ressaltarmos o trabalho de Rios et al. (2019), o qual realiza a apresentação do volume 44, número 1, da Revista Anuário Antropológico, e que tem como tema do Dossiê justamente Antropologia e Deficiência. Contudo, embora o número contenha artigos interessantes como os de Lopes (2019), que apresenta uma relevante discussão acerca da deficiência como categoria analítica, não há nenhum texto explanatório sobre as contribuições históricas derivadas da área, tampouco a utilização de autores clássicos que inauguraram a citada perspectiva analítica, tais como Robert B. Edgerton, Joan Ablon, Geyla Frank e Nora Groce, com exceções feitas a textos de Robert F. Murphy, que aparecem na coletânea. Dada à exígua produção percebida no cenário brasileiro, tomamos por tarefa, a partir deste momento, a apresentação dos textos e das contribuições antropológicas sobre deficiência que exerceram maior impacto na área e inauguraram uma importante matriz nos estudos sociais.

3 A deficiência como tema antropológico

Ninguém está isento de experiências incapacitantes durante o curso da vida, aliás, tal condição é parte constituinte do humano. Zola (1982) destaca que a experiência da deficiência é única e universal, pois todos irão conhecê-la nos estágios iniciais ou finais da vida. Ao contrário de categorias sociais como gênero ou raça, a deficiência é uma forma de alteridade que qualquer um pode ingressar em algum momento da vida, seja pelo processo de desenvolvimento, de envelhecimento ou por eventos abruptos, ainda que grupos desfavorecidos tenham maior chance de experimentarem dada realidade de maneira antecipada devido a condicionantes que, por si só, são potencialmente ativos na produção de deficiência, tais como ausência de saneamento básico e tratamento médico adequado; eventos como guerras, trabalho escravo e em condições precárias; desnutrição; dentre outros. Tais elementos produzidos pela humanidade respondem por significativa parcela de pessoas com deficiência no mundo, em especial nos países subdesenvolvidos que concentram boa parte da população mundial.

A universalidade expressa pela deficiência desafia as suposições de identidades estáveis e do estigma como propriedade somente de alguns indivíduos, distantes, portanto, da realidade ordinária. Como pontua Zola (1982), a verdade é que qualquer pessoa não estigmatizada pode facilmente vir a ser, e isso ocorrerá em algum momento da vida de maneira temporária ou permanente. Os estigmas somente irão cessar quando não mais precisarmos legitimar fenômenos como exclusão e segregação social, tal qual condições naturais e estáveis da humanidade, o que denota a necessidade da construção de novas configurações materiais e espirituais de existência, as quais possibilitem a todos serem tratados como parceiros plenos na coletividade. Seguramente, tais configurações já ocorreram e ainda se encontram presentes em determinadas sociedades, cujo aclaramento é fundamental para repensarmos a ideia de deficiência como componente essencial à compreensão da natureza humana e sua diversidade, tema que, por conseguinte, merece receber atenção no campo antropológico.

Tendo como objeto de estudo os fenômenos humanos em todas as suas dimensões, a Antropologia, pela abertura ao outro, remete um convite à nossa própria descoberta. Descerra, assim, o caráter hipócrita e dirigido das vestes de um eu arbitrário, normativo e temeroso, que trata a diferença como desvio e deseja sua eliminação ou seu afastamento, ao apontar, segundo Gardou (2006), que, “para além das formas de estar e de agir no mundo, aparentemente estranhas e estrangeiras, o outro é um homem como eu” (p. 54).

Tal premissa é particularmente verdadeira no caso do encontro com a diferença expressa pela deficiência. Em um tempo histórico que impõe ditames normativos quadriculados sobre as possibilidades de existência do ser, a experiência da deficiência rompe com tal constante ao denotar a precariedade e a alteridade como fato universal humano, posição que encontra guarida em Murphy (1987), para quem as pessoas com deficiência materializam a alegoria de toda a existência em sociedade, “o que faz deles admiráveis sujeitos de pesquisa antropológica” (p. 18).

Kasnitz e Shuttleworth (2001) apresentam a deficiência como fenômeno histórico e relacional, na medida em que a consideração das limitações percebidas podem ou não ser tidas como incapacitantes, em virtude da cultura e de critérios situacionais, incluindo estigma e poder. Nada há de natural na experiência da deficiência, muito pelo contrário, é um fenômeno social total, quer consideremos sua produção propriamente dita, quer levemos em conta os esquemas de pensamento que permitem sua identificação e seu reconhecimento, cuja análise invariavelmente desdobrará em temas como preconceito, liberdade, autonomia, socialização, inclusão, questões de identidade, crenças e representações corporais, tópicos comumente trabalhados pelo campo antropológico, o que denota a necessidade de aprofundamento sobre essa experiência. Ao apresentarmos esses elementos, insurge o questionamento sobre a forma e a intensidade que a Antropologia tem trabalhado o tema da deficiência. Trata-se de um tema marginal ou devidamente explorado?

Para Ginsburg e Rapp (2013), a Antropologia é deveras conhecida por sua competência ampla e expansiva em se aproximar de situações que compreendem a diversidade humana; no entanto, no que diz respeito ao círculo que envolve a análise sobre a deficiência e a realidade dessa corporificação, pouco se tem produzido na área. Linton (2005) explica tal silêncio como derivado da intersecção de quatro fatores, a saber: a quase inexistência de antropólogos com deficiência na academia; a posição marginal que eles ocupam quando se fazem presentes; o entendimento, por parte de alguns antropólogos, de pessoas com deficiência como população supostamente menos interessante em termos analíticos, uma vez que são consideradas como incapazes de se envolverem totalmente na vida social como criadoras e consumidoras de cultura; e, por fim, a apropriação da ideia de deficiência como condição biológica/médica.

Shuttleworth (2004) assevera que, a partir da década de 1980, a temática da deficiência começou a se tornar mais frequente nos estudos antropológicos, em especial após a definição, em 1981, pela Organização das Nações Unidas (ONU), como Ano Internacional das Pessoas com Deficiência, acrescido pelo já corrente entendimento da deficiência como experiência humana de vital importância. Caberia, então, à Antropologia, dentre diversas tarefas, compreender as especificidades históricas de culturas distintas nas gramáticas de inclusão social, considerar os limites instáveis dos seres humanos e desafiar a ideia de que a deficiência é uma consequência inevitável de certos esquemas fisiológicos, cujas respostas auxiliariam na renovação de sua experiência etnográfica.

Todavia, mesmo destacada a importância da deficiência ao saber antropológico e as contribuições que tal campo poderia materializar, a sensação era de que ainda coexistia um silêncio e esquecimento acerca da temática. Na busca de respostas sobre essa aparente ausência, este texto se desenvolveu no intuito de demarcar as contribuições antropológicas como espaços existentes e que devem ser apropriados no sentido de enriquecer os Estudos da Deficiência.

4 Estudos antropológicos sobre a deficiência

A obra A antropologia e o anormal, escrita em 1934, por Ruth Benedict, versa sobre concepções transculturais de epilepsia e é apontada como texto inaugural da análise da deficiência no campo antropológico. Tem como ideia fundante o suposto de que aquilo que poderia parecer normal ou indesejável em um ordenamento cultural, no caso, a epilepsia, pode se mostrar valorizado em outro contexto. Benedict (1934) destaca exemplos de tribos que entendiam a epilepsia como manifestações valorizadas ao prenunciar um caminho para a autoridade xamânica, situação que a leva a engendrar o seguinte questionamento: “até que ponto podemos considerar a incapacidade de funcionar socialmente como um diagnóstico de anormalidade, ou até que ponto é necessário considerá-la uma função da cultura?” (p. 60). Tal interrogação deve ser entendida como provocação inaugural em relação ao desenvolvimento posterior de estudos antropológicos que tomaram a deficiência como categoria angular.

Ao dialogarem com as veias abertas por Benedict, Hanks e Hanks (1948) analisaram a forma pela qual uma característica física semelhante, a cicatriz, exercia diferentes efeitos no que tange à aceitação e à exclusão de seus membros e cujos dados expressaram alta variabilidade. Apesar da importância das contribuições de Benedict (1934) e Hanks e Hanks (1948), seus textos não estruturaram o campo dos estudos antropológicos da deficiência, pois tinham como foco outras relações, tarefa que somente tomou efetiva forma com a produção do ensaio The Cloack of Competence de Robert B. Edgerton em 1967.

O trabalho de Edgerton (1967) surgiu em uma época fervilhante, marcada pela criação do Modelo de Vida Independente Americano e pela explosão de movimentos pelos direitos das pessoas com deficiência em todo o globo, em especial no Ocidente. Edgerton (1967) fez da deficiência seu foco de trabalho ao analisar o impacto histórico do processo de desinstitucionalização de pessoas com retardo mental (termo utilizado à época) e sua inserção comunitária quando do fechamento generalizado de asilos na sociedade americana, destacando as estratégias utilizadas por tais indivíduos para se passarem como “normais” por meio do desenvolvimento daquilo que ele batizou como manto de competência, quer dizer, um conjunto de técnicas que mascaram suas deficiências com vários graus de sucesso. O pioneirismo também estava em permitir que tais pessoas falassem sobre si próprias, relatando angústias, medos e esperanças, assim como o papel que a discriminação e o preconceito desempenhavam na configuração de suas vidas. A abordagem mostrou-se inédita à época, em especial no que diz respeito à condução das alternativas expressas pelas próprias pessoas com deficiência intelectual, historicamente excluídas como autoras de sua história.

Posteriormente, Edgerton (1970) expandiu suas análises sobre as atitudes culturais em relação ao retardo mental, mediante o trabalho de campo com diferentes tribos da África Oriental, ao destacar que, em algumas sociedades do Leste da África, mesmos os indivíduos mais severamente comprometidos em funções intelectuais eram tratados de maneira integrada às diversas práticas sociais; em alguns casos, inclusive, eram atribuídas a eles posições elevadas devido a supostos poderes sobrenaturais. Contudo, seus dados também evidenciam que, em outras comunidades da mesma região, não havia espaço para tais pessoas, sendo, até mesmo, permitida a prática de assassinatos. Os achados apontam que as atitudes culturais em relação às pessoas com retardo mental em sociedades não ocidentais variaram amplamente, desde veneração religiosa à hostilidade pronunciada. Inobstante, foi também constatada a existência de práticas de acolhimento em contextos segregacionistas e de atitudes discriminatórias em cenários supostamente inclusivos. Diante disso, Edgerton (1970) conclui que

a escassez de dados existentes é tão extrema que a maioria das conclusões sobre a natureza do retardo mental nessas sociedades pode permanecer bastante especulativa. Ainda assim, eles são suficientes para questionar qualquer noção de que o que é dito ou feito sobre o retardo mental em sociedades não ocidentais é altamente uniforme de sociedade para sociedade. Muito pelo contrário. O que é dito e feito é altamente variável, tanto que dada a inadequação do presente disponível nos dados, é difícil generalizar sobre este mundo. (p. 555)

As descobertas de Robert B. Edgerton fortalecem suposições posteriormente edificadas pelos autores do modelo social de que a deficiência é contingente, produzida socialmente e somente pode ser inquirida no seio de dado contexto cultural. Entretanto, o autor afirma que é insustentável o argumento de um suposto tempo idílico vivenciado pelas pessoas com deficiência intelectual em sociedades tradicionais, ao demarcar que a integração era presente, mas longe de ser regra, o que se contrapõe às hipóteses de Finkelstein (1980), um dos fundadores dos Disability Studies, o qual considerava o advento do capitalismo e do processo de industrialização moderna como marcos da manifestação inaugural de atitudes segregacionistas em relação às pessoas com deficiência, dada sua separação do ambiente de trabalho.

Aliás, Edgerton (1970) não encontrou nos dados coletados qualquer correlação entre o tratamento destinado às pessoas com deficiência e as circunstâncias econômicas, destacando que o que importava naquele contexto, no que diz respeito à integração ou à exclusão na vida comunitária, estava relacionado a uma coleção de fatores sociais, como casamento, religião, competência social e expectativas culturais. Os escritos de Edgerton provocaram uma série de outras importantes produções antropológicas no campo da deficiência; entretanto, infelizmente, desconhecido pelos Estudos da Deficiência.

Uma dessas admiráveis contribuições foi escrita por Joan Ablon em 1984 e nominada Little People in America: The Social Dimensions of Dwarfism, um estudo etnográfico inédito e inovador sobre as dimensões sociais do nanismo a partir das expectativas e das tensões apresentadas pelas próprias pessoas que vivenciam dada condição em seus corpos. Anteriormente a seu estudo seminal, a própria Ablon (1981) já havia criticado a busca incessante pelo corpo belo e as implicações de tais gramáticas morais na sociedade americana para aqueles que fogem desse ideal normativo.

Little People in America: The Social Dimensions of Dwarfism estabelece diálogos críticos com as narrativas que demarcavam o nanismo como fenômeno de ordem médica, ao se concentrar nas exclusões sociais que entram em jogo como resultado de diferenças corporais que não se enquadram em normas hierárquicas e arbitrárias, entendimento arquitetado a partir das percepções apropriadas pelos sujeitos de sua pesquisa, acerca da presença de injustiças que dificultavam sua inserção na comunidade. O interesse de Ablon (1999), partindo do referencial alicerçado pelos escritos de Goffman, centra-se em investigar como as pessoas estigmatizadas lidam com seus insultos diários e quais são os padrões individuais e sociais que surgiram no sentido de comportar sobrevivência psicológica e social de curto e longo prazo.

A trama desenvolvida pela autora destaca como a valorização cultural de determinados atributos exerce papel crucial na confecção de estigmas e na diminuição da autoestima quando um grupo de pessoas não possui dito predicado. Ablon (1984) enfatiza que a cultura americana é extensamente formada pela imagem do corpo jovem, sadio e atlético, sendo a estatura componente dessa idealidade, no caso do nanismo, experimentada como restrição social.

Para Shuttleworth (2004), a abordagem etnográfica de Ablon focou nas redes de serviços e, ao privilegiar as experiências vividas e as vozes dos participantes, influenciou diversas gerações de antropólogos interessados em trabalhar com grupos estigmatizados devido ao seu pioneirismo, ao prenunciar a mudança de entendimento do foco da diferença corporal individual como fonte de deficiência, para a compreensão crítica das reações sociais da comunidade como os elementos efetivamente incapacitantes.

A ideia da deficiência como construção social emerge nos estudos de Ablon (1984, 1999) de maneira sólida e seu desdobrar tensiona a exposição das arbitrariedades compostas nos signos de descrédito impostos sobre a categoria como contingentes. Para Ablon (1984), a apropriação de um entendimento diverso do saber cotidiano e ordinário possibilitaria melhor conforto psíquico aos sujeitos, permitindo, inclusive, romper com qualquer sentimento de passividade experimentado por aqueles marcados pelo signo da diferença e da desonra.

O mérito das análises e do pioneirismo de Ablon (1984), ao desenvolver um tema inédito e praticamente inexplorado até os diais atuais, é inegável, assim como sua contribuição ao entendimento da deficiência como fenômeno historicamente produzido. Ainda assim, inexplicavelmente, seus textos são desconhecidos ou ignorados pelos Estudos da Deficiência, além de não serem utilizados em áreas como a Educação Especial.

Outra contribuição importante no terreno dos estudos antropológicos da deficiência é a de Frank (1984, 2000) sobre a experiência de vida de uma mulher norte-americana com deficiência física congênita. O trabalho de Frank (1984, 2000) é inovador, pois debruça-se sobre sua vida ordinária, o que era incomum nos estudos etnográficos à época, e arquiteta-se pela apreensão de dados por mais de uma década de entrevistas constantes com seu sujeito de pesquisa, em uma perspectiva de longa duração. Nesse diapasão, Frank (2000), em vez de captar dados para analisar a formação social do desvio e a anormalidade ou a produção da diferença, enfatiza a experiência pessoal de normalidade de Diana de Vries. O próprio título de sua obra mais importante, Venus on wheels: two decades of dialogue on disability, biography, and being female in America [Vênus sobre rodas: duas décadas de diálogo sobre deficiência, biografia e ser feminino na América], já antecipa suas proposituras ao estabelecer uma clara alusão de Diana à estátua grega que representa Afrodite, a deusa do amor e da beleza, chamada pelos romanos de Vênus de Milo, que não possui braços e nem pé esquerdo.

Frank (2000) critica os padrões estéticos unilaterais e arbitrários componentes da cultura globalizada, assim como as múltiplas injustiças sociais que relegam a pessoa com deficiência às margens sociais. Essas experiências devem se materializar em ações de empoderamento que gerem revoltas, objetivando a transformação desse estado intersubjetivo mediante a luta contra a estigmatização e a interpretação das diferenças expressas pela deficiência como desvio, pois dada narrativa atravanca a plena participação das pessoas com deficiência na sociedade.

Adicional aporte ao campo antropológico dos estudos sobre a deficiência foi realizado por Groce (1985) a partir de seu trabalho sobre surdez em Martha’s Vineyard, obra amplamente utilizada pelos Diability Studies e apropriada como alicerce de reivindicações identitárias realizada pelos surdos. Martha’s Vineyard é uma pequena ilha situada em Massachusetts que apresenta significativa concentração de eventos de surdez hereditária desde o século XIX. Foi exatamente essa situação que despertou a atenção da autora e a fez concluir, em seu ensaio, que, nesse local, a surdez não poderia ser considerada uma deficiência, na medida em que praticamente todos na ilha falavam a língua de sinais por ser essa uma característica regularizada da cultura pública local. Além disso, os surdos possuíam percentis mais elevados em termos de formação educacional e de ocupação nos postos de trabalho em comparação aos outros habitantes; igualmente, cultivavam, pescavam, se casavam-se e participavam das reuniões da cidade de forma corriqueira e cotidiana. Em tal contexto, como afirma Groce (1985), a surdez possibilitou que uma nova rede de relações se estabelecesse na ilha, transformando por completo os limites dispostos entre normalidade e anormalidade. Em Martha’s Vineyard, a surdez não se mostrava como deficiência, mas, sim, uma cultura, descoberta que produziu impactos de grande monta sobre os movimentos sociais de pessoas com deficiência.

Isso não significa que tais dados devem ser tomados como absolutos, até porque um dos atributos da Antropologia, como disciplina comparada, reside justamente na intersecção dos dados em relação a outras sociedades, cuja consecução tem por objetivo tanto a captação de invariantes históricas, como de transformações e distinções presentes em contextos culturais singulares. Tomando a categoria deficiência como objeto analítico, o trabalho de Marshall (1996) nas Ilhas Carolinas, situadas na Micronésia, encontra elementos muito distintos aos de Groce (1985), pois, naquele contexto, pessoas com impedimentos físicos, intelectuais, dentre outros, não necessariamente eram consideradas como deficientes, exceto se tais impedimentos estivessem associados à incapacidade de falar ou de ouvir, pois tais constitutivos eram interpretados como impeditivos da participação da vida social na comunidade. Diversos outros exemplos podem ser depreendidos dessa situação e corroboram a afirmação do quão amplo e variado se dão os processos de produção social da deficiência ao longo da história e como ela é moldada pela interferência de contextos nacionais, linguísticos, culturais, educacionais, econômicos e políticos.

Importa, então, quando nos referimos aos Estudos da Deficiência, angariar subsídios para respondermos à pergunta: Quando, em que condições/formas e por quais razões a diferença expressa pelo corpo não normativo conta como deficiência? Tais respostas seguramente mostrarão grande flexibilidade de significados e de sentidos ao longo do tempo, mas poderão guardar alguma invariante que se estende por sobre épocas e culturas.

Para Groce (1999), uma dessas invariantes, após realização de exame transcultural de diversos povos, reside na falácia da ideia de deficiência como conceito único ou guarda-chuva nas sociedades tradicionais, uma vez que elas respondem de forma distinta em função da interpretação local expressa sobre dada diferença. Tais respostas podem remeter a processos de exclusão, de integração mediante utilização de ferramentas que beneficiem tais sujeitos ou simplesmente de indiferença, cujo exemplo mais conhecido é apresentado por Talle (2020) em seus estudos sobre os Maasai, tribo queniana que não estabelece qualquer distinção de tratamento para crianças com imparidades, quaisquer que sejam elas, sendo tratadas da mesma forma que as outras crianças e sem qualquer suporte específico. No entanto, Talle (2020) destaca que a falta de tratamento especial, muitas vezes, tem resultado em morte prematura e em outras complicações, visto a necessidade de cuidado e de apoio que alguns impedimentos demandam, achado que traz inquietações ao campo da Educação Especial e dos Estudos da Deficiência ao levantar sérias interrogações do caráter benéfico de uma inclusão radical realizada sem a complementação de suportes necessários.

Evidentemente, pessoas com impedimentos existiram em todas as sociedades e épocas; entretanto, o que é considerado como deficiência se mostra altamente inconsistente em contextos culturais específicos. A deficiência é uma categoria relacional produzida em determinadas condições sociais e materiais de existência, que se arquiteta por meio de dispositivos que objetivam excluir da plena participação social aqueles que comportam diferenças tidas como déficits em confronto às expectativas normativas criadas no seio de culturas específicas.

Singularmente, nesse sentido, mostra-se a definição de Shuttleworth (2004) para quem é fundamental realizarmos uma distinção entre comprometimento como “conceito cultural acerca da percepção de uma anomalia corporal, cognitiva ou comportamental em termos de função ou algum outro status etnopsicológico ou etnofisiológico, e deficiência como uma resposta social negativa a uma percebida limitação” (p. 141). Tal definição materializa um claro paralelo à distinção já tornada clássica pelos Disability Studies sobre lesão/impedimento e deficiência, tendo por objetivo enfatizar que nem todo comprometimento será interpretado sob a perspectiva do signo da deficiência; entretanto, possibilita avanços ao não permanecer presa à falsa antítese entre biológico e social como esferas antagônicas, marca fundante da distinção apresentada pelos Disability Studies. Mais elaborada, a diferenciação feita por Shuttleworth (2004) evita a simplificação de uma relação deveras complexa e conserva aquilo que de mais impactante foi gerado pela distinção, a citar, seu potencial político.

Outro antropólogo que apresentou contribuições aos Estudos da Deficiência é Robert Murphy, produtor de ensaios etnográficos de ampla repercussão, tais como seus estudos sobre os Munducuru da Amazônia e os Tuaregues, povo berbere do Saara. A temática da deficiência abrolha em seus textos após 1974, quando do aparecimento de um tumor espinhal que o deixou tetraplégico. Tem seu momento mais emblemático na publicação, em 1987, da obra The body silent: the different world of the disabled, etnografia autobiográfica na qual Murphy vincula a experiência de sua deficiência ao conceito de liminaridade, analiticamente tomado como mais potente se comparado às ideias de desvio ou de estigma desenvolvidas por Howard S. Becker e Erving Goffman. Para Murphy (1987), desvio e estigma representavam uma marca ultra generalizadora que mais obnubila do que aclara as complexas relações sociais pela qual a diferença é constituída nos tempos contemporâneos. Ademais, o autor também se posiciona contrariamente à definição da deficiência como opressão ou exclusão, assinalamento característico dos fundadores do modelo social, pois entende que tal suposto dissolve a especificidade da experiência da deficiência.

O conceito de liminaridade em Murphy (1987) configura-se por meio de uma mescla das apropriações dos ritos de passagem desenvolvidos por Arnold Van Gennep e da situação limiar trabalhada por Victor Turner, permitindo-o situar sua experiência da deficiência como a manifestação de um estádio intermediário na complexa rede de relações sociais. Segundo o autor: “Nem doente, nem saudável, nem morto, mas não totalmente vivo, nem excluído da sociedade, tampouco incluído nela” (Murphy, 1987, p. 153) - esse é o dilema e a situação que seriam enfrentados pela pessoa com deficiência.

Essa situação intermediária pode se manifestar indefinidamente em determinadas situações e enclausurar seus sujeitos em categorias marginalizadas, que são fontes de rejeição e desvalorização, denotando uma espécie de pântano social do qual as pessoas não conseguem se libertar. Nesse sentido, Murphy et al. (1988) destacam que “a deficiência não é uma coisa, mas uma conjuntura dentro de um processo; uma prisão na história de vida que é dramatizada em um rito de passagem congelado em seu estágio liminar” (p. 241). Ao contrário dos limiares em outros ritos de passagem, no caso das pessoas com deficiência, a reincorporação social não seria garantida, o que limita as perspectivas de relações estabelecidas entre o sujeito e o outro.

No entender de Murphy (1987), nas culturas ocidentais, a deficiência compõe-se como a mais visível das diferenças que a sociedade quer ocultar. Como exemplo, o autor destaca a situação em que “crianças são ensinadas a não apontar ou olhar fixamente para as pessoas com deficiência que encontram nas escolas ou em outros espaços, como se ninguém percebesse a única pessoa que justamente estão mais aguda e desconfortavelmente cientes” (p. 239). Sob esse lineamento, o autor assevera que a deficiência deve ser vista como uma identidade que se sobrepõe a quaisquer outras como gênero, raça etc., uma característica dominante para a qual todos os papéis sociais devem ser ajustados; enfim, um fato social total que desencadeia implicações sobre a sociedade nas esferas econômicas, jurídicas, políticas e religiosas.

Os escritos de Murphy desencadeiam-se a partir dos condicionantes impostos pelo sentido que o autor dá à sua própria experiência. Não é de estranharmos, portanto, que, para ele, a deficiência representa a perda de algo, pois espelharia, de maneira mais fiel, a experiência daqueles que corriam e de repente se tornaram presos a uma cadeira de rodas ou dos videntes que subitamente se viram subtraídos de capacidade visual. Entretanto, tais relações não podem ser transpostas para uma ampla gama de situações, aplicando-se fundamentalmente às experiências de impedimento de início tardio. Aliás, nesse espaço, a própria ideia de liminaridade revela-se inadequada como categoria explicativa da deficiência, pois muitas pessoas com deficiência não experimentam a chamada separação dos corpos normais, característica marcante da primeira fase liminar. Logo, o conceito proposto deixa importantes lacunas na compreensão da experiência social da deficiência, que é deveras complexa.

Corroboramos com Kasnitz e Shuttleworth (1999) de que o conceito de “matéria fora do lugar” desenvolvido por Mary Douglas, como representativo de diferenças percebidas como anômalas na cultura ordinária, se mostra com maior capilaridade explicativa comparada ao de liminaridade, pois abarca experiências iniciais e posteriores de vivência da deficiência, além de se mostrar influenciado por práticas culturais, o que lhe confere um caráter dinâmico no reconhecimento das diferenças percebidas como desvantagem pela comunidade.

Mesmo considerando as lacunas deixadas em aberto por Murphy (1987), é inegável a existência de avanços e de progressos no campo acadêmico dos Estudos da Deficiência que as discussões autobiográficas geradas pelo autor possibilitaram. Esse fato denota o enriquecimento da escrita da condição de deficiência pelas próprias pessoas que vivenciam essa experiência, já que podem oferecer poderosas percepções sobre as relações que habitam, raciocínio cuja lógica foi apropriada pelos Disability Studies sob a alcunha de pesquisa emancipatória. Com isso, não estamos defendendo que somente pessoas com deficiência possam dissertar sobre o fenômeno, o que seria equivocado e contraproducente, mas apenas demarcando a necessidade de que elas não podem estar fora desse processo de construção de escrita, que também o é da própria história e da sociedade em que pertencem e desejam transformar. Como destacou Ed Roberts (Charlton, 1998), importante ativista americano e um dos fundadores do Movimento de Vida Independente, “se aprendemos alguma coisa do movimento pelos direitos civis nos EUA é que quando alguém fala por você, você perde” (p. 1).

Além desses autores apresentados, os quais podemos nominar como clássicos da Antropologia sobre a deficiência, pois resistem ao tempo e apresentam contribuições que perpassam décadas, é imperioso destacarmos alguns outros ensaios antropológicos que se mostram de significativo valor analítico ao campo dos Estudos da Deficiência.

Ingstad e Whyte (1995, 2007) publicaram duas importantes coletâneas que examinam a construção cultural da deficiência em ambientes não ocidentais, com especial atenção à África, e reiteram que, fora do contexto dominado pelo modo de produção capitalista, a ideia da deficiência como categoria generalista raramente se fazia presente e carecia de sentido. Entretanto, alertam que tal ideia começava a ganhar espaço do centro para as margens pela interferência globalizante de projetos de pesquisa/de programas de reabilitação conduzidos por nações desenvolvidas e que interferiam na construção de políticas públicas realizadas nos aglomerados urbanos dirigidas às comunidades africanas como um todo, fenômeno desestabilizador ao entendimento tradicional e que necessita ser explorado em longo prazo.

Outro estudo que merece destaque é o de Staples (2005), que analisa a hanseníase no Sul da Índia. A contribuição de suas análises reside justamente em demonstrar o caráter ambíguo assumido na construção da identidade por dada condição de imparidade - a hanseníase -, em um cenário específico - o Sul da Índia -, e que, em determinados momentos, se mostrava tão incapacitante quanto habilitadora, tensão raramente encontrada nos escrutínios convencionais sobre a deficiência. Inobstante, o estudo materializa um profícuo diálogo ao tomar como ponto de apoio uma perspectiva alicerçada no modelo social da deficiência que dialoga com os constructos do saber médico sem torná-los secundários.

Altamente prevalente na Índia, a hanseníase afeta diretamente 346.000 indianos, mais da metade dos casos mundiais, constituindo-se como problema de saúde pública. No entanto, mostra-se curável com terapias medicamentosas que evitam alterações corporais associadas à doença quando realizada em momento oportuno. Infelizmente, em locais pobres, densamente povoados e de difícil acesso, tais apoios nem sempre se concretizam, não sendo incomum, tal qual no Sul da Índia, a habitual presença de pessoas com hanseníase que apresentam diversas alterações corporais comutadas a limitações funcionais. Sem trabalho e renda fixa, perambulam pelos centros urbanos em busca de subsistência por meio da prática da mendicância, como outros tantos famélicos e miseráveis. Ao analisar o contexto específico do Sul indiano, Staples (2005) destaca que tais pessoas conseguiam uma captação de renda superior àquelas que não possuíam ditas alterações corporais e cujo fato foi explicado como derivado da concepção indiana do leproso como pobre merecedor, ideia que conferia a eles o direito de pedir, o qual não estava disponível para outras pessoas na Índia. Em um contexto marcado pela miséria e pela exclusão generalizada, tal condição era vista pelo autor como relativa vantagem em termos econômicos.

Dada prerrogativa estabelece-se sobre um cenário absolutamente cruel e devastador que demarca os impactos da pobreza, da ausência de tratamento médico adequado, da marginalidade e da desigualdade extrema na vida das pessoas, e aponta para a deficiência como um amplo processo de produção social que envolve, inclusive, intervenções diretas no campo da saúde. Aponta, também, para a necessidade concomitante de transformações globais nas esferas de produção e nos processos de redistribuição de riquezas, pois não é razoável perceber, em limitações corporais evitáveis, vantagens na feitura do sustento da própria vida. A bem da verdade, Garland-Thomsom (1996) já havia descrito semelhante achado em seus estudos sobre os freak-shows, ao apontar a ira de algumas pessoas com deficiência, no que diz respeito à suspensão desses eventos grotescos, pois tinham neles a única forma de percepção de proveitos econômicos e a maneira pela qual podiam explorar suas limitações como vantagens. Todavia, é impensável nos tempos hodiernos que tal prática continue a materializar-se, ainda que sob outras vestes, pois produz efeitos perversos na construção de identidade pessoal e nas relações de reconhecimento desenvolvidas coletivamente.

Por fim, os estudos de Staples (2005), mesmo que tal questão não seja objeto de análise do autor, permitem-nos afirmar que a distinção fermentada entre modelo individual e social da deficiência como paradigmas explicativos conflitantes, ainda que válida em um momento inicial, se mostra contraproducente ontologicamente. Daí a necessidade de plasmar-se uma Teoria Social da Deficiência, cujo desdobrar produzirá implicações no campo da Educação Especial.

Faz-se importante ainda mencionarmos a obra de Biehl (2005), nominada Vita: life in a zone of social abandonment, que se concentra na experiência de vida de Catarina, mulher com deficiência intelectual que vive em uma comunidade improvisada no Sul do Brasil. Biehl (2005) retratou Catarina não em termos de doença mental, mas, sim, como uma pessoa abandonada que, contra todos os empecilhos e as probabilidades, reivindicava uma experiência ao seu próprio modo. Catarina sabia o que fazia dela um vazio na esfera social e organizava esse saber para si, o que estimulava nela uma maneira de pensar contra a despersonalização imposta arbitrariamente por um sistema que busca retirar a autoria dos sujeitos como produtores de sua própria história.

A imersão na história de Catarina provoca em Biehl (2005) o desenvolvimento de uma crítica arguta ao fenômeno da medicalização e àquilo que ele irá nominar como fendas da saúde brasileira, situação materializada na consumação por parte de um saber e sistema médico de dada pessoa, de forma a promover a anulação de sua individualidade e o apagar do próprio processo de desenvolvimento de sua condição de saúde. Sem história e sem memória, o interno resume-se à condição de paciente. A crítica ao processo de institucionalização é deveras conhecida no campo de estudos sobre a deficiência e os achados de Biehl (2005) corroboram a necessidade de uma perspectiva vigilante, em especial quanto aos estratos mais pobres da população, na medida em que algumas ações, as quais já pareciam superadas, teimosamente se fazem coevas no tempo presente, produzindo efeitos devastadores sobre o processo identitário das pessoas com deficiência, que é contínuo e interminável.

5 Considerações finais

As investigações antropológicas, na medida em que tomam a alteridade como categoria angular, seguramente configuram-se como suportes fundamentais ao desenvolvimento dos Estudos da Deficiência. Mesmo que ainda em fase preliminar no que diz respeito à quantidade de textos publicados, o campo antropológico como procuramos demonstrar neste trabalho produziu contribuições singulares à ampliação do entendimento da condição social que chamamos de deficiência. De pronto, tais investigações refutam ortodoxias conceituais e desnaturalizam uma suposta relação sinonímica entre deficiência e desvantagem social, desigualdade ou dependência. A conceituação de deficiência mostrou-se profundamente situada, relacional e histórica em todas as suas dimensões, entendimento de consequências significativas na luta política por direitos, assim como no que tange à crítica de posições que medicalizam a experiência da deficiência.

Como aponta Shuttleworth (2004), pessoas com imparidades somente experimentam a deficiência quando tais características são identificadas como problemas, doenças, distúrbios ou outras distinções de valor culturalmente tidos como negativos. Assim, as limitações funcionais podem ou não ser percebidas como incapacidade, a depender de critérios culturais e situacionais. Somente podemos falar em deficiência quando há a existência de discriminação com base em limitações transformadas em incapacidades pela sociedade da qual esses indivíduos fazem parte, em uma experiência contingente que nada comporta de natural.

Ao expormos esse entendimento, a Antropologia ensina-nos que a própria definição de deficiência como categoria autoexplicativa e de abrangência universal carrega problemas, pois trata-se de um vocábulo preso ao Ocidente, ambíguo e inexistindo em uma série de outras culturas. Para Ingstad e Whyte (1995), “em muitas culturas, não se pode ser ‘deficiente’ pela simples razão de que ‘deficiência’ como uma categoria reconhecida não existe. Existem pessoas cegas, pessoas coxas, aleijadas” (p. 7). Inexiste definição absoluta na consideração de dado comprometimento como deficiência, uma vez que a variedade transcultural desse entendimento é, provavelmente, enorme e carente de estudos. Partindo desse suposto, segundo Shuttleworth (2004), conhecer as estatísticas transculturais da ocorrência de fenômenos de imparidade é interessante e útil, mas não devem ser confundidas com uma estatística sobre deficiência. Com isso, para que fique bem claro, não estamos invalidando e entendendo como irrelevante, para quaisquer situações, a aplicação do termo deficiência como uma categoria guarda-chuva. Em primeiro lugar, porque o conceito começa a expandir-se mediante o processo de globalização em culturas antes inatingíveis, como apontaram Ingstad e Whyte (1995); e, em segundo lugar, devido ao conhecido fato de que as estatísticas censitárias se mostram fundamentais na consolidação de políticas públicas e no avanço dos direitos das pessoas com deficiência.

Conhecer as transformações históricas e as múltiplas representações de devires mais acessíveis a partir da apropriação de práticas inclusivas manifestas por distintos povos, compõem-se, seguramente, como uma das tarefas da Antropologia, uma práxis que pode auxiliar tanto na construção do compromisso coletivo em buscar-se um futuro mais justo para as pessoas com deficiências, quanto à composição de uma Teoria Social da Deficiência.

Contrariamente ao proposto por Murphy (1987), a partir de seu conceito de liminaridade, as pessoas com deficiência não são suspensas culturalmente quando ocorre sua adjetivação, pelo contrário, pois lutam contra as imposições estabelecidas, cada qual com as ferramentas disponíveis. Mesmo quando aparentemente aceitam as imposições verticalizadas, não é escusado rememorar-se, como aponta Balzac (1992), que existe uma maneira de obedecer, a qual contém, por parte do escravo e daqueles descritos sob insígnias de desprestígio, um desprezo fulminante à ordem que revela engenhosidade nas maneiras de resistir às restrições sociais e das quais não podemos ignorar que objetivam a construção de resistências a quaisquer denominadores ou práticas que transformem sujeitos em menos do que poderiam ser.

A alegoria encaixa-se na descrição das pessoas com deficiência nos tempos hodiernos, na medida em que os dispostos que as estigmatizam intuem justamente a torná-las menos do que poderiam ser, limitando a sua participação social e, com isso, seu desenvolvimento, que, no caso humano, está atrelado à materialização de atividades em coletivo. Contudo, não há aceitação passiva dessa ideia opressora. Existe revolta, luta, contestação. Fornecer bases sólidas para que as pessoas e a coletividade como um todo pensem a vida não somente em termos de limites, mas também em futuros praticáveis e possiblidades realizáveis, é uma das tarefas mais urgentes dos Estudos da Deficiência. Certamente, os saberes antropológicos fornecem grande contribuição à vida ao enriquecer o entendimento pelo qual distintas sociedades se relacionam de maneira tácita ou aparente com as múltiplas diferenças e imparidades.

Seguramente, os estudos em Antropologia possuem o condão de exercer impacto positivo para diversas áreas que visualizam na deficiência um eixo da diferença humana carente em análises, tais como a Educação Especial. Isso porque, ao tomarmos a deficiência sob a perspectiva da alteridade, desdobram-se possiblidades mais ricas de análise à Educação Especial, as quais encorpam elementos que nos permitem visualizar a ideia de construção social da deficiência para além de uma linguagem abstrata. O efeito esperado é a descolonização de definições arquitetadas sob a lógica de um discurso, que, ao tentar escapar de posicionamentos considerados superados, brada aos quatro cantos o suposto da deficiência como construção social sem se debruçar sobre a historicidade contida na afirmação.

Ao apropriarmo-nos dessa relação, é possível a superação de ideias que visualizaram, equivocadamente, a relação entre deficiência e sociedade como tendendo gradativamente de zonas de exclusão à inclusão, pois elas não se sustentam na história, tampouco retratam a complexidade das gramáticas de reconhecimento ao tomar como dado um fenômeno contingente. Tal elemento reconfigura a visualização da categoria deficiência ao longo do tempo, do espaço e da história, e, por conseguinte, demarca novos horizontes compreensivos com potencial de desencadear práticas inovadoras em termos de pesquisa acadêmica e de intervenção educacional.

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Recebido: 11 de Julho de 2021; Revisado: 28 de Novembro de 2021; Aceito: 04 de Dezembro de 2021

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