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Revista Brasileira de Educação Especial

versão impressa ISSN 1413-6538versão On-line ISSN 1980-5470

Rev. bras. educ. espec. vol.28  Marília  2022  Epub 25-Fev-2022

https://doi.org/10.1590/1980-54702022v28e0161 

Ensaio

Análise do Índice de Funcionalidade Brasileiro Modificado (IFBr-M) e suas Implicações Sociais

Analysis of The Modified Brazilian Functioning Index (IFBr-M) and its Socials Implications

Lauren Cristine Aguiar NUNES2 
http://orcid.org/0000-0001-7596-1680

Lúcia Pereira LEITE3 
http://orcid.org/0000-0003-2401-926X

Gabriel Filipe Duarte AMARAL4 
http://orcid.org/0000-0003-2400-376X

2Psicóloga. Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP Campus Bauru). Ex-bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Cientifica (Pibic) pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Bauru/São Paulo/Brasil

3Livre Docente em Psicologia da Educação. Departamento de Psicologia. Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem da UNESP Campus Bauru. Bolsista de Bolsas de Produtividade em Pesquisa (PQ - CNPq Proc. 310524/2020-2). Bauru/São Paulo/Brasil

4Graduando em Psicologia. Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp Campus Bauru). Bolsista Pibic/CNPq. Bauru/São Paulo/Brasil


RESUMO:

Este artigo buscou investigar a percepção de profissionais de áreas relacionadas à avaliação da deficiência sobre o instrumento Índice de Funcionalidade Brasileiro Modificado (IFBr-M) e sobre as implicações de se adotar ou não esse novo modelo de avaliação, os recursos necessários para a sua implementação, a vigência e a situação atual do processo de consolidação no Sistema Único de Saúde (SUS) como um instrumento unificado, em conformidade com a concepção biopsicossocial de deficiência que caracteriza a legislação brasileira, a exemplo da Lei Brasileira de Inclusão - Lei N° 13.146, de 6 de julho de 2015. Foram realizadas aproximações com agentes públicos e representantes de diferentes instituições e entidades civis, por meio de entrevistas com duas profissionais envolvidas com o Movimento das Pessoas com Deficiência e com a formulação do IFBr-M. Trata-se de um debate ainda bastante incipiente e que precisa ser encarado com maior seriedade pelas instituições e pelos agentes públicos em sua formação e em sua atuação, visto a relevância do tema para a sociedade. O IFBr-M apresenta-se como uma importante ferramenta de avaliação biopsicossocial da deficiência, com inúmeras implicações práticas que marcam o cotidiano dessa população, e se mostra como um vetor para o debate público desse complexo fenômeno.

PALAVRAS-CHAVE: Política pública; IFBr-M; Índice de Funcionalidade Brasileiro

ABSTRACT:

This article sought to investigate the perception of professionals in areas related to the assessment of disability regarding the Modified Brazilian Functioning Index (IFBr-M) instrument, as well as the implications of adopting or not this new assessment model, the resources needed for its implementation and validity and the current situation of the consolidation process in the Unified Health System as a unified instrument, in accordance with the biopsychosocial concept of disability that characterizes Brazilian legislation, such as the Brazilian Inclusion Law - Law no. 13.146, of July 6, 2015). Approaches were made with public agents and representatives of different institutions and civil entities, through interviews with two professionals involved with the Movement of People with Disabilities and with the formulation of the IFBr-M. It is a debate that is still quite incipient and needs to be faced more seriously by institutions and public agents, in their formation and also in their performance, given the relevance of the topic for society. The IFBr-M presents itself as an important tool for assessing disability in a biopsychosocial model, with numerous practical implications that mark the daily lives of this population, as well as a vector for public debate on this complex phenomenon.

KEYWORDS: Public policy; IFBr-M; Modified Brazilian Functioning Index

1 Iniciando a conversa

A história das pessoas com deficiência (PCD) é marcada tanto por práticas de exclusão, configurada por estigmas e pela não aceitação das diferenças, quanto pela reivindicação por direitos civis e sociais, pela crescente participação política realizada por movimentos de militância atrelados a importantes mudanças derivadas dos estudos científicos. O conjunto dessas ações busca um fim comum, um modo mais justo de sobrevivência em uma sociedade ainda pouco flexível, com padrões de normalidade bem conservados.

Seguindo essa lógica, evidencia-se que o fenômeno da deficiência é complexo e pode ser compreendido por meio de diferentes perspectivas, uma vez que os significados a ele atrelados não são estáticos nem universais, mas fruto de uma construção social que reflete os padrões comuns vigentes e adotados em um determinado contexto temporal e social, balizado por circunstâncias políticas e econômicas, orientando, sobremaneira, a forma como as pessoas lidam com os sujeitos elencados nessa condição.

Nesse direcionamento, tem-se sinteticamente algumas matrizes que embasam a conceituação que envolve a deficiência. O modelo biomédico, ainda bastante ocorrente no cenário atual, concentra o seu foco na disfuncionalidade de determinado organismo, ou seja, nas limitações e nas incapacidades apresentadas pelas PCD. Em virtude desse modo de pensar, medidas pautadas no reabilitar e no curar as ditas falhas corpóreas são comuns, na intenção de aproximar os sujeitos de um rígido padrão de normalidade. Esse modelo presume uma relação de causalidade entre a lesão corporal ou a doença e a experiência da deficiência (Bampi et al., 2010; Leite, 2017).

Na tentativa de ampliar o foco de análise na compreensão da deficiência, entendendo-a para além do corpo e considerando a trama das interações estabelecidas com o seu meio social circundante, tem-se o modelo social de deficiência, que vem ganhando força por alicerçar as práticas militantes e científicas que coadunam com a responsabilidade da sociedade em adaptar-se e promover mudanças nas diversas esferas sociais para atender a grupos com diferenças, dentre eles o constituído pelas PCD (Leite & Lacerda, 2018; Santos, 2016).

O terceiro modelo, que sintetiza o biomédico e o social, chamado relacional ou biopsicossocial, leva em conta os aspectos físicos das estruturas corpóreas, a interação desse organismo com o contexto social e ainda considera os aspectos psicológicos associados (Nubila, 2010). Esse modelo foi reiterado na Lei Brasileira de Inclusão (LBI) - Lei n° 13.146, de 6 de julho de 2015, nomeada igualmente por Estatuto da Pessoa com Deficiência - e passou a considerar a pessoa com deficiência como um ser integral, examinando as funções do corpo em interação com fatores socioambientais. Os dispositivos legais prescrevem medidas para que a PCD possa superar diversas barreiras que impedem seu amplo acesso aos direitos e aos serviços relacionados às esferas comunicacional, tecnológica, pragmática, de livre circulação, dentre outras. Todavia, as ações humanas são permeadas por preconceitos e/ou estigmas que acabam por gerar atitudes discriminatórias materializadas em barreiras atitudinais - visíveis ou veladas, que podem obstruir a participação das PCD em diferentes contextos da sociedade (saúde, trabalho, educação e lazer, por exemplo). Assim, a LBI (2015) define:

Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.

A normatização ilumina uma definição contextual para conceituar a condição de deficiência no país, com detalhe para averiguar a garantia da participação da pessoa que se encontra nessa condição. Logo, são necessárias orientações normativas baseadas em dados sólidos e fundamentados para que os direitos das PCD prescritos em políticas públicas sejam assegurados. Nesse sentido, os instrumentos de avaliação da condição de deficiência fazem-se importantes, uma vez que podem indicar os apoios necessários para que tais sujeitos possam ter maiores chances de desenvolvimento humano e exercer seus direitos civis (Nogueira & Riberto, 2020).

Entretanto, é bastante comum deparar-se com o modelo de avaliação das PCD, que pouco coadunam com as prescrições da LBI, visto que se esgotam em diagnósticos clínicos, com laudos emitidos exclusivamente por médicos. Observa-se, ainda, a falta de padronização avaliativa a ser seguida nos órgãos envolvidos (no Ministério da Saúde, por meio do Sistema Único de Saúde - SUS, e no Ministério do Trabalho e Seguridade Social, por meio do Instituto Nacional de Seguridade Social - INSS, por exemplo) que implicam ações bastante divergentes às orientações da referida normativa (Santos & Araújo, 2017). Consequências negativas de práticas avaliativas inadequadas podem ser notadas com o afastamento e/ou o isolamento da PCD das suas funções laborativas, taxando-as como improdutivas e incapazes para o exercício profissional, desconsiderando os ajustes ou as adaptações dos meios físicos, materiais e humanos, para que possam continuar a sua participação social de modo funcional e autônomo, quando possível. A discussão sobre processos avaliativos que envolvem a deficiência não é simples, ao contrário, é complexa e profunda, uma vez que implica a garantia a diversos aspectos da vida da pessoa em sociedade, como o acesso a políticas afirmativas de caráter trabalhista, previdenciário, tributário, educacional, assistencial e assim por diante.

Na tentativa de criar um modelo de avaliação mais plural e que contemplasse aspectos distintos do humano, tem-se o Índice de Funcionalidade Brasileiro Modificado (IFBr-M), instrumento considerado adequado para a avaliação da deficiência pelo Governo Brasileiro, de acordo com a Resolução nº 01, de 05 de março de 2020, do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Conade). O IFBr-M é pautado no modelo psicossocial de deficiência, que busca considerar as funções corpóreas, o nível de independência para a realização de atividades, o grau de participação e as barreiras presentes em cada âmbito social.

A implementação e a utilização do IFBr-M vêm ao encontro das diretrizes e das necessidades explicitadas pela LBI, no sentido da promoção dos direitos da PCD, mediante a concessão de benefícios, como a aposentadoria (Barros, 2016) ou mesmo a implementação de políticas públicas de ação afirmativa (Lima & Pereira, 2019). No entanto, ainda está longe de ser adotado como instrumento de referência no SUS ou pelos profissionais do INSS.

Assim, na intenção de aprofundar considerações sobre uma temática bastante tensa, a saber: a operacionalização da avaliação da condição de pessoa com deficiência no país, à luz do IFBr-M, o texto em tela traz para o debate como tais questões têm sido pensadas e refletidas por pesquisadores e representantes de diferentes instituições e entidades civis. Para tanto, algumas ações foram consideradas importantes. Em um primeiro momento, no intento de averiguar o estado da arte a respeito, realizou-se uma busca bibliográfica na plataforma Google Acadêmico (Google Scholar). Para isso, foram utilizados os descritores IFBr AND índice de funcionalidade brasileiro, destacando o período de 2010 a 2021.

A revisão bibliográfica produziu o recolhimento de seis artigos, além de publicações em anais. Barros (2016), Pereira e Barbosa (2016) e Santos e Araújo (2017) discutem a utilização do IFBr-M para a concessão da aposentadoria, respeitando os dispositivos da Lei Complementar nº 142, de 8 de maio de 2013, que regulamenta a aposentadoria da pessoa com deficiência. Os estudos relatam sobre as dificuldades que perpassam a atuação dos profissionais que realizam as avaliações diante do novo instrumento, além de discutirem as tensões que ainda existem em torno da deficiência e como se dá a implementação do índice nesse contexto. Franzoi et al. (2013) apresentam as etapas de elaboração do IFBr-M a partir da adaptação e da modificação da Classificação Internacional de Funcionalidade (CIF), bem como apontam a aplicação do índice em diferentes contextos demográficos e setoriais no cenário brasileiro. Já Cabral (2021) traz um panorama sobre as disputas teóricas envoltas no índice, mais focado em sua aplicação, em especial nos desdobramentos dessas tensões para o campo da educação.

Simultaneamente, pensou-se em entrevistar pesquisadores e/ou profissionais que participaram da elaboração ou que estivessem diretamente envolvidos com a operacionalização do IFBr-M5. Assim, elaborou-se um roteiro de entrevista pautado nos pontos: (a) tempo de atuação na área; (b) importância de avaliar pessoas com deficiência; (c) avaliação da deficiência na atualidade; (d) barreiras para pessoas com deficiência terem acesso a políticas públicas; (e) nível de conhecimento e opiniões a respeito do IFBr-M; (f) orientações e direcionamentos dados pelo Ministério da Saúde em relação ao IFBr-M; (g) aceitação desse novo modelo avaliativo pelos profissionais; (h) recursos necessários para a implementação do IFBr-M; (i) impactos da adoção unificada do IFBr-M. Após contatos iniciais, contou-se com o privilégio do aceite de duas profissionais com alto trânsito no tema, a saber:

Izabel Maria Madeira de Loureiro Maior: Ex-secretária nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Atualmente, ela é membro do Conselho Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Rio de Janeiro e ex-integrante do Conselho Estadual para a Política de Integração da Pessoa com Deficiência do Rio de Janeiro. Faz parte do Movimento das Pessoas com Deficiência há mais de 40 anos (desde 1977). Atuou por mais de 30 anos na área governamental, boa parte dela comandando equipes de reabilitação no Hospital Universitário da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a mesma instituição em que se formou como médica; e, ainda, na década de 1970, atuou na Secretaria Nacional de Assistência Social, e no Ministério da Saúde e no Conade.

Aracélia Costa: Secretária Executiva na Secretaria da Pessoa com Deficiência do Estado de São Paulo. Atua na área de deficiência há 18 anos, sendo 16 deles à frente do Instituto Jô Clemente, antiga Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) de São Paulo. Participou da transição do modelo de Escola Especial para a implementação do atendimento de apoio aos alunos na rede regular. É assistente social de formação, mas dirigiu sua atuação para a área de gestão e de gestão de políticas públicas. Durante o período que atuou na instituição, teve contato com a Universidade de Brasília (UnB) durante a validação piloto do IFBr-M. Mantém relação próxima com o Instituto de Medicina Social e de Criminologia de São Paulo (Imesc), discutindo a capacidade jurídica da PCD.

As entrevistas foram feitas de modo online, devido às condições sanitárias da pandemia da Covid-19, via Zoom e as entrevistadas autorizaram a divulgação dos seus relatos em meios de divulgação científica.

2 Destaques dos relatos das entrevistas

O primeiro ponto a destacar-se, em ambas as falas das entrevistadas, é o longo período que dedicaram de sua vida trabalhando junto às grandes questões que circundam os movimentos em prol dos direitos das PCD, acompanhando e atuando diretamente em diferentes frentes que demarcam a história de lutas reivindicatórias desse segmento populacional no Brasil. Izabel apontou: “Desde 1977, eu faço parte do movimento das pessoas com deficiência. Então são mais de quarenta anos já”. E Aracélia comentou:

Eu atuo na área da deficiência há exatamente dezoito anos. [...]. Aqui no governo eu estou há quase dois anos. Mas eu passei dezesseis anos na liderança de uma organização da Sociedade Civil, que trabalha com o tema da deficiência. Eu fiquei dezesseis anos como executiva da Apae de São Paulo.

Elas são taxativas ao afirmarem que ainda existem muitos preconceitos e, por trás disso, muita desinformação acerca do fenômeno da deficiência em nosso país. Isso se confirma, segundo elas, em inúmeras atitudes cotidianas que atravessam a vida das PCD, influenciando diretamente em sua experiência e em sua existência na sociedade. Afirmaram, em diferentes momentos das entrevistas, como se materializam e se concretizam na prática as diferentes barreiras apontadas pela LBI, com relação aos direitos fundamentais.

Pensando a partir de tais barreiras, observa-se um quadro em que tais pessoas se encontram alijadas de seus direitos básicos. Como falou Izabel,

barreiras são do próprio entendimento de saber os direitos que tem. Em segundo lugar, é a morosidade de todos os órgãos públicos [...]. E nesse momento de pandemia é muito complicado tudo. Essas avaliações estão represadas. Das principais políticas públicas, estão represadas. Então isso é muito complicado porque grande parte da população de PCD é pobre e precisa de uma série de benefícios.

Tanto Aracélia como Izabel salientaram, em seus discursos, que, apesar de haver progressos bastante significativos nas conquistas dos direitos da PCD, como o reconhecimento em caráter de lei do modelo biopsicossocial da deficiência, ainda há inúmeros desafios a serem superados para atingir-se um nível mais adequado de interação das PCD com seus direitos.

O próprio fato de muitos indivíduos não terem ciência de seus direitos é uma evidência disso, conforme apontado por Izabel, pois “há muitas famílias em situação de vulnerabilidade econômica que enfrentam desafios materiais para a realização das tarefas cotidianas junto aos familiares com alguma deficiência”, por exemplo. Tem-se, ainda, PCD independente, que luta às próprias custas contra tais dificuldades, justamente por não ter conhecimento de seus direitos e das assistências que poderia contar por parte do poder público.

A ocupação das PCD no espaço público comum é dificultada por esse tipo de problema. Para além das demais barreiras, tem-se a arquitetônica, expressa, por exemplo, na precária estrutura das calçadas, limitando a circulação das pessoas, sobretudo àquelas que dependem de um recurso para auxiliar a sua locomoção, como muletas ou cadeiras de roda. Izabel, ao associar as implicações das leis à mudança de concepção da deficiência, apontou:

Acho que os impactos são justamente você partir para a inclusão, porque nós, no momento em que nós não consideramos as questões que estão ao redor das PCD, e não analisamos se ela consegue fazer uma determinada atividade, ou uma participação social, que está prevista ali, dependendo do impacto... por exemplo, não há transporte público acessível, isso é um impacto. E esse impacto tem que ser captado também para que nós possamos utilizar a favor da alteração das políticas públicas. Porque se você começa a avaliar uma série de PCD, percebe que essas pessoas não saem de casa porque não há acessibilidade nas calçadas, no transporte. E eu estou falando aí não só de pessoas que usam cadeiras de rodas, ou muleta, ou bengala, ou prótese; pode ser uma pessoa cega. Não, podem ser várias as situações. E a outra não consegue trabalhar porque não há recursos. Os sites não são acessíveis. Os próprios sites governamentais, onde uma pessoa deveria trabalhar. Por exemplo, passou num concurso público para a área jurídica, um advogado, e não tem acesso aos processos, que são hoje todos digitalizados, porque foram digitalizados de tal maneira que não há acessibilidade.

E segue apontando como há implicações do tipo que abrangem inúmeros outros contextos e situações que envolvem a vivência da PCD. Assim, as falas das entrevistadas convergem no sentido de apontar como ainda existem debates remanescentes no âmbito de políticas públicas para que se amplie o acesso das PCD a seus direitos enquanto cidadãs brasileiras.

Com relação à avaliação da deficiência, houve concordâncias. Ambas apontaram a carência de informações e de preparo por parte dos avaliadores, que ainda mantêm suas práticas sob a égide do modelo biomédico de deficiência, fazendo da avaliação um meio para classificar-se exclusivamente o indivíduo, pensando sua condição como uma limitação, em vez de encarar as limitações da sociedade e do meio para a sua efetiva participação.

Izabel aponta, ainda, como isso está intimamente relacionado a uma série de estigmas ligados, por exemplo, à concessão de benefícios, como o Benefício de Prestação Continuada6, que aumenta a distância entre o indivíduo e a garantia dos seus direitos, lembrando que a incidência da deficiência é maior entre a população de renda mais baixa. Há uma burocracia que se mostra contraproducente ao sistema, além de ser reducionista do ponto de vista da deficiência em si, que marca a atuação de órgãos como o INSS. Segundo Izabel:

Por exemplo, você pega um atestado médico para poder chegar a uma prefeitura e ter direito a uma vaga de estacionamento, próprio para PCD, e a outra vaga específica para pessoas idosas. E a compra de automóveis também ainda é uma coisa indefinida. Ficou tão ruim que acabou tendo que ser reduzido, porque já não se sabia mais quantas pessoas acabariam precisando.

Nesse sentido, Izabel defende que é importante que sejam feitas avaliações sobre a deficiência e sobre as condições de vida da PCD, com critérios de fato, para que a assistência e a aplicação das políticas de ação afirmativa sejam estabelecidas de maneira mais efetiva. De acordo com Izabel:

Pela questão de termos tido a necessidade, né, de criar algumas regras, leis e normas, que são de ação afirmativa para compensar a discriminação e todo o capacitismo7 contra as PCD que ainda existem... e até mesmo, de certa maneira, porque alguns benefícios legais foram também criados, desde o período da Constituição Brasileira de 1988 para cá, acaba tendo a necessidade de você definir quem são as PCD.

E diz mais: “Depois de termos discutido tudo aquilo”, fazendo menção à Convenção das Pessoas com Deficiência, “não existe uma definição de quem é a PCD”. Izabel também afirmou que

as avaliações continuam sendo feitas tanto em função do Decreto 3.298 [Decreto No 3.298, de 20 de dezembro de 1999, que regulamenta a Lei no 7.853, de 24 de outubro de 1989], portanto através da CID, completamente fora do conceito social da deficiência. São feitas, dependendo do que for; para o BPC [Benefício de Prestação Continuada] tem um formulário próprio. Se for para aposentadoria especial tem outro formulário, que é o IFBr. E muitas vezes é um atestado médico que define, como sempre no passado aconteceu.

Contudo, essa avaliação precisa ser feita de maneira adequada, isto é, levando em consideração o modelo biopsicossocial, de modo a evitar e a combater preconceitos, como afirmou Aracélia:

Desde que seja uma avaliação no novo paradigma, do novo modelo, né, para a gente entender um pouco das funcionalidades e dos apoios que essas pessoas precisam para desenvolverem o máximo de sua potencialidade. Não para dar laudo ou diagnóstico, não para rotular, mas, sim, para entender como funcionam e que apoio precisam, né, para desenvolver o máximo de suas funcionalidades.

Além disso, a aplicação de um índice bem parametrizado por profissionais devidamente qualificados pode significar um aumento significativo na qualidade de vida das PCD. Izabel cita como exemplo o uso e a designação de tecnologias assistivas, ou de tecnologias de apoio, que se trata de instrumentos e de técnicas utilizadas para assistir às PCD em sua reabilitação ou para tarefas cotidianas. Uma vez que são identificadas as necessidades dos usuários, as tecnologias utilizadas mostram-se mais efetivas. Izabel apontou:

O que nós estávamos falando da importância dessa avaliação é tanto pelo lado do que é necessário, para que ela tenha um bom desempenho, quais são as barreiras que têm que ser removidas, quais são as tecnologias assistivas que têm que ser providas, qual é a adaptação [em referência às adaptações razoáveis].

Outro desdobramento disso, denunciado por Izabel, é a acessibilidade precária nos sites governamentais, como a ausência da ferramenta de lupa ou de audiodescrição da página. Por trás de sites governamentais, há criadores de sites, portanto, humanos. Esses profissionais devem estar alinhados às concepções mais atuais de deficiência e às reais necessidades dos usuários, uma vez que o acesso à informação é o que garante a requisição dos direitos por parte das PCD. Novamente, as entrevistadas convergem ao apontar a importância de divulgarem-se os resultados dos esforços de construção do índice, bem como de haver um trabalho de comunicação voltado a esse público acerca de seus direitos. Aracélia sinalizou:

Fico pensando, assim, nas prefeituras, para quem opera as políticas nas secretarias municipais, que é quem está mais perto dessa população; quem é que vai fazer a porta de entrada dessa população. Então, eu acredito que exista barreiras e que a principal barreira, eu colocaria todas no campo da informação. Seja para a própria PCD, seja também para quem opera, quem faz as políticas públicas. Acho que nós temos, ainda, insuficiência de informações para esses segmentos. Nesse sentido, eu acredito muito no papel importante da comunicação, da informação das PCD. Elas não conseguem acessar.

E segue comentando sobre os trabalhos de divulgação que têm sido feitos, em especial na pandemia com as lives e com as transmissões.

Como destaca Izabel, o novo índice, o IFBr-M, traz um aprofundamento prático dos desdobramentos que operam as mudanças de paradigmas acerca do fenômeno da deficiência. Baseado no modelo biopsicossocial da deficiência, instrumentaliza diversas áreas para uma devida avaliação e até mesmo uma conceituação desse fenômeno, contribuindo diretamente para o debate público. Aracélia salientou:

Eu acho que a visão que a maioria das pessoas têm sobre a deficiência, né, estou falando no Brasil, ainda, não é uma visão emancipatória, não é uma visão de autonomia sobre essas pessoas. Infelizmente... Então, apesar de a gente ter legislação superavançada, do ponto de vista da LBI, o Brasil ter ratificado a convenção da ONU, na prática pouco se avançou. [...]. Acho que todo mundo ainda olha a deficiência sempre como um copo, sabe, sempre a água faltando. Sempre um copo bem vazio, sabe. Então, eu imagino que não vai ser diferente com a aplicação do Índice Brasileiro de Funcionalidade, né, o Modificado. Porque você vai enfrentar as mesmas barreiras, digamos assim. Um olhar do profissional que, na sua maioria, ainda está num olhar de incapacidade, de diagnóstico. Então eu não sou muito... eu acredito, mas acho que a gente vai ter muitas barreiras.

Acho que a gente vai ter uma jornada bastante árdua, como foi a da educação inclusiva. Essa é minha percepção. Porque os profissionais que estão na ponta... claro, você tem que garantir a formação desses profissionais, de como usar o novo instrumental, é verdade. Mas o novo instrumental muda totalmente o paradigma do olhar.

Ainda, no engendramento de políticas públicas e no trabalho de reparação das desigualdades e das injustiças mediante as ações afirmativas que temos no Brasil, por meio de um debate aprofundado e de um modo amplo na sociedade, em conjunto com mudanças nas estruturas de nossas instituições - por trás das quais operam funcionários públicos, o devido treinamento continuado mostra-se essencial no que diz respeito à formação desses profissionais e no enquadramento legislativo adequado dessas pautas.

Mais especificamente sobre o IFBr-M, Izabel diz que participou de sua criação e foi uma especialista convidada na fase dos testes pilotos para o trabalho de validação do índice, junto à Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência e especialmente do Conade. Acompanhou os estudos e as atividades das equipes que trabalharam nesse processo, buscando validar cientificamente os itens, os parâmetros e as escalas utilizados. Desse modo, observou, desde a gênese, os estudos e a implementação do índice referido. Sobre isso, Izabel relatou:

Quem fez a encomenda do trabalho fui eu, ainda como gestora, como secretária nacional. Eu tive a oportunidade de acompanhar os estudos, com as várias equipes que trabalharam com o Índice de Funcionalidade Brasileira. Foi feito aqui no Rio de Janeiro mesmo. Não era o que eu imaginava, na época. Não era isso. Ia até ser a Universidade do Estado de São Paulo, mas por uma série de problemas de troca de departamento, acabou a UFRJ apoiando, junto com o IETES, para que se desenvolvesse. Eu achei que foi uma proposta muito bem-feita. Não tem o meu dedo, de dizer “não, a ideia foi minha”. Não, foi do grupo. Eu fui uma das pessoas profissionais que participou das várias rodadas de especialistas para chegarmos a reduzir... porque o Índice de Funcionalidade Brasileiro não inventa perguntas, ele traz da CIF, Classificação Internacional de Funcionalidade, da Organização Mundial da Saúde, traz algumas questões, valorando, diferentemente, os vários domínios. E teve, digamos assim, uma diferenciação muito grande em relação a outros índices, porque não ficou preso à pontuação que a própria CIF estabelece, que é muito confusa.

Basicamente, o trabalho contou com pesquisadores de diferentes universidades e consistiu em trazer, para o contexto brasileiro, a partir das demandas encontradas no país, um inventário que pudesse dar conta de ler e de interpretar as necessidades das PCD, em conformidade com o que prevê a lei brasileira, a exemplo dos dispositivos da LBI alinhados ao modelo biopsicossocial de deficiência.

Sua maior crítica, para o momento atual, é a demora para a implementação do índice nas avaliações, como nos casos apontados do INSS, entre outros órgãos. Há um dispositivo legal que determinou que a avaliação fosse parametrizada em um prazo de 24 meses após sua promulgação, mas que não foi implementado até o momento.

A legislação brasileira que trata disso hoje é a Lei Brasileira da Inclusão, que diz lá no seu artigo acho que segundo que deveria haver um instrumento de avaliação, feito pelo governo, de até vinte e quatro meses da vigência da lei, isso significa janeiro de dois mil e dezoito... e nós estamos conversando aqui em abril de dois mil e vinte e um. Portanto, mais de três anos depois e ainda não temos a legislação. (Izabel)

A entrevistada insere nesse ponto uma observação breve sobre alguns atrasos e retrocessos que podem ser observados no atual Governo Federal, que implicam, entre muitas outras coisas, a demora para a implementação do índice.

Para uma implementação ideal do índice, é necessário, como apontam as entrevistadas, um treinamento qualificado para a devida qualificação dos profissionais aplicadores. Denunciam, ainda, a omissão por parte do Ministério da Saúde com relação ao tema. Aracélia comentou:

Os profissionais que estão na ponta... claro, você tem que garantir a formação desses profissionais, de como usar o novo instrumental, é verdade. Mas o novo instrumental muda totalmente o paradigma do olhar. E é uma pessoa que vai aplicar. Então, assim, eu acho que junto com o índice, com a regulamentação do índice, com o treinamento das equipes, isso tem que vir com uma comunicação muito forte, junto, de como o olhar mudou sobre as PCD. Que você vai olhar elas, agora, com um instrumental unificado, mas de um outro lugar. E acho que precisa vir carregado com uma boa estratégia de comunicação. Porque são humanos, são pessoas. E as pessoas, lá no íntimo, assim, a maioria... o brasileiro é muito conservador. Essa é a minha percepção. Claro que acho que em alguns municípios seja mais fácil; que em alguns locais seja mais fácil. Mas pensando em nível nacional, acho que a gente vai ter ainda muita dificuldade, como foi e como está sendo a mudança, o apoio na educação para essas pessoas. Espero estar errada, sabe. Mas acho que a gente vai ter muita dificuldade.

A respeito desse aspecto, Izabel complementou:

Bem, para cúmulo, o Ministério da Saúde não dá orientação nenhuma. Nem opina nisso. O Ministério da Saúde está absolutamente omisso. Este grupo que está atualmente. O anterior participou da pesquisa de campo que foi feita junto com a UnB, que foi feito junto com a Coordenação de Reabilitação, Coordenação de Saúde da Pessoa com Deficiência. Que eu tive muitos anos trabalhando com eles. Mas atualmente, não. O Ministério da Saúde não opina nada.

De modo geral, no que tange à gestão pública, evidencia-se que há morosidade e até mesmo resistência para avaliações para concessões e para prestação de benefícios. Há, inclusive, certo aparelhamento das Câmaras no Senado e mesmo nas Assembleias Legislativas, por meio de um enviesamento ideológico acerca da implementação do índice. Enfim, um trabalho muito amplo a se realizar para se fazer valer, por parte, por exemplo, do Conade.

Izabel também comentou sobre o conhecimento técnico que os agentes públicos deveriam ter sobre o índice:

Minha carreira foi de mais de trinta anos na área governamental. Boa parte dela comandando equipes de reabilitação, dentro da universidade, hospital universitário, da UFRJ, que é a minha origem, né. Seja dentro da própria Secretaria Nacional de Assistência Social, no governo do presidente FHC. Depois no Ministério da Saúde. E, finalmente, nos últimos anos de minha carreira, em Brasília, nos últimos oito anos, como coordenadora nacional e como secretária. E nós tínhamos... é claro que sempre há uma diretriz política. Isso é sempre, em qualquer momento. Mas há diretrizes políticas em que você está lá justamente para contrabalançar o efeito político com o conhecimento técnico. E há momentos que não, que essa obediência cega a um determinado pensamento ideológico é a que predomina. E aí é um atraso para tudo que nós estamos vendo.

No contexto pandêmico, o principal trabalho apontado pelas entrevistadas é o de divulgação. Desde o início da pandemia da Covid-19, foram feitas inúmeras lives, tendo como escopo principal a conscientização sobre os direitos e as necessidades das PCD, cuja vulnerabilidade se intensificou pelo agravamento das tensões sociais no cenário brasileiro. Izabel relatou:

Por exemplo, lives nós fizemos tantas. Eu tomei até um susto, eu fui contar quantas eu fiz no ano passado, e por isso eu estou cansada disso agora, foram cento e duas. Uma loucura isso. E todas as vezes nós tentamos ver se tinha intérprete, e às vezes não tinha. Se tinha legenda ao mesmo tempo, e não tinha. Muitas das que eu participei, talvez mais do que outras pessoas, é pelo fato de estar na área da Saúde, ainda que aposentada, tentando explicar o que era a pandemia e o que era o Coronavírus, quais eram as notícias verdadeiras. Mas o que nós precisávamos justamente era passar a informação com legenda, com áudio descrição, com Libras. Porque era isso que estávamos sentindo falta. De que as informações corretas chegassem aos diversos conjuntos da população de PCD, que tem uma heterogeneidade muito grande, e que chegasse também às PCD intelectual de uma forma simples, para que elas entendessem por que que tinham que fazer um esforço de usar máscara, por que tinham que lavar as mãos mais de uma vez, por que passaram a usar álcool em gel, porque álcool não era uma coisa da sua rotina, e por que ficar em casa.

Assim, com o intuito de informar sobre as medidas de segurança com relação à pandemia para esse público, foram feitos esforços para dar-se maiores condições de acesso à informação.

3 O debate não encerra

As discussões sobre a avaliação da condição da deficiência ainda são relativamente novas no cenário nacional. Ainda existem muitos aspectos a serem delineados nas pesquisas e nos artigos, de modo geral, e a essas discussões segue-se a aplicação prática de seus produtos na sociedade de modo geral.

Como aponta Cabral (2021), a incipiência de tal debate é caracterizada por um distanciamento entre o público-alvo das políticas de ações afirmativas, as PCD, ao passo que dialeticamente se configura tal distância. O principal aporte a que se refere o autor é sobre a Educação e as barreiras a se enfrentar para a inclusão nesse âmbito. Para que se estabeleçam as prioridades das ações necessárias nesse sentido, quer dizer, que tipos de esforços devem ser empreendidos, em especial por parte do poder público, é preciso que se estabeleça um conhecimento mais aprofundado da realidade brasileira, no tocante às condições e às necessidades da população em situação de deficiência. Para tanto, é preciso que esses meios sejam condizentes com a concepção biopsicossocial de deficiência.

O IFBr-M surgiu a partir de tais demandas, voltado justamente para a realidade brasileira. Foi elaborado a partir de outros instrumentos internacionais, importados e anteriormente utilizados de maneira transversal ao contexto brasileiro, tais quais: o Guidelines for the Evaluation of Permanent Impairments (Cocchiarella et al., 2001), o Functional Capacity Evaluations (FCE) (Matheson, 2003), o WHODAS 2.0 (Organização Mundial da Saúde [OMS], 2015), o ICF Checklist8 e o ICF Core Sets (Riberto, 2011). A elaboração do IFBr-M responde aos propósitos engendrados na LBI de se conhecer o fenômeno da deficiência bem como a sua manifestação no Brasil.

No cenário atual de negacionismo, de retrocessos no âmbito da Ciência e, em especial, dos direitos das minorias, assim como da multifacetada vulnerabilidade social que a pandemia trouxe, fica evidente o quanto se faz necessário o debate sério e compromissado acerca dos direitos fundamentais de uma parcela expressiva da população brasileira que se encontra por vezes apartada das esferas sociais (trabalho, educação, saúde e lazer, por exemplo) que lhe possibilitem melhores condições de desenvolvimento humano.

Como apontado pelas entrevistadas, tem-se com o índice uma ferramenta muito valiosa para ampliar essa discussão e, ao mesmo tempo, para materializá-la em termos práticos e concretos, uma vez que uma avaliação adequada da deficiência, considerando-se toda a complexidade do fenômeno, impacta seriamente a vida das pessoas classificadas como tal.

Santos e Araújo (2017) mostram a importância desse debate no campo do Direito. A concessão de benefícios envolve um extenso litígio, que demanda bastante das instituições, de modo que se faz necessário e urgente, inclusive, que esse processo seja feito a partir de instrumentos que expressam critérios devidamente parametrizados à luz da ciência.

Considerando-se a abrangência que a implementação de um índice representa na vida da população, para além das implicações diretas sobre a vida das PCD e de seus familiares (Bizzoto, 2019; Lima & Pereira, 2019), esse é, com certeza, um debate que exige uma discussão igualmente ampla e que abarque diferentes áreas do saber sob as quais se abriga a conceituação da deficiência (Franzoi et al., 2013).

Não se deve esquecer, como bem pontuam as entrevistadas, que a discussão que envolve a deficiência se mostra como uma disputa de concepções, igualmente aludida por pesquisadores (Barros, 2018), cuja expressão se mostra, além das conceituações teóricas, com efeitos práticos (Barbosa, 2017).

No âmbito das discussões acerca da deficiência e de sua concepção biopsicossocial, a implementação do índice vem ao encontro de um debate mais rico e mais plural, instrumentalizando não apenas os avaliadores da deficiência, como também todos aqueles imbricados na tarefa de ampliar essa discussão e promover maior igualdade para as PCD, a partir das condições que enfrentam no seu cotidiano educacional, laboral, de lazer, dentre outros. Nas palavras de Santos (2016): “Não resta dúvidas de que os principais desafios em avaliar a deficiência na perspectiva da funcionalidade, para a descrição dela como restrição de participação social, depende sobremaneira da compreensão do papel das barreiras e dos fatores ambientais nessa equação” (p. 3014). Na sequência, o autor, após revisar documentos normativos, como a CIF e a LBI, discutindo mudanças no cenário da avaliação da deficiência, apontando que muito há de se fazer ainda para compreendê-la à luz de marcadores que restringem a participação social, complementa:

A avaliação tanto dos Fatores Ambientais quanto das barreiras é o que possibilita a descrição da deficiência como um tema na esfera da promoção da justiça social e da igualdade e não mais como tema necessário unicamente de avanços na área da Medicina. (p. 3014)

Com a avaliação da condição de deficiência e sua conceituação mais ampla, o IFBr-M ganha peso e destaque no cenário atual para romper com modelos restritos. Por isso, a atenção volta-se para a implementação do índice, que se mostra como um vetor para o debate público acerca do fenômeno da deficiência e das garantias dos seus direitos prescritos nas políticas públicas, tendo que ser observados os efeitos do seu emprego em termos de maior participação social. No entanto, apesar de inúmeros esforços, o IFBr-M ainda não obteve reconhecimento governamental, pois, em recente Relatório Final, elaborado pelo Grupo de Trabalho Interinstitucional sobre o Modelo Único de Avaliação Biopsicossocial da Deficiência (Bernardes et al., 2021)9, datado de 5 de outubro de 2021, tem-se no item 5.1. Conclusões:

foi consenso no grupo a necessidade de ajustes no instrumento, ou seja, o IFBr-M validado pela UnB não foi considerado apto a ser implantado na forma como foi apresentado após a validação técnica realizada por aquela universidade. A capacidade de discriminar e selecionar o público-alvo do instrumento validado mostrou-se insatisfatória. (p. 21)

Mais adiante, no tópico das Recomendações, Bernardes et al. (2021) orientam “que algumas medidas sejam implementadas para favorecer a implantação de um modelo único de avaliação da deficiência” (p. 21). O debate não se encerra. Continua-se na luta para a efetivação de um modelo de avaliação biopsicossocial da deficiência que considere as condições pessoais somadas aos fatores circunstanciais. Tal desafio impõe-se!

5Foram ainda enviadas solicitações de entrevista com o Grupo de Trabalho Interministerial, composto pelo Ministério da Economia, da Cidadania, da Saúde, das Mulheres, Família e Direitos Humanos, pela Advocacia Geral da União e pelo Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Conade). Após algumas tentativas, o retorno dado, foi que não haveria profissional no momento disponível para relatar sobre o IFBr-M.

6De acordo com informações disponibilizadas no site do Ministério da Cidadania: “O Benefício de Prestação Continuada (BPC), previsto na Lei Orgânica da Assistência Social - Loas, é a garantia de um salário mínimo por mês ao idoso com idade igual ou superior a 65 anos ou à pessoa com deficiência de qualquer idade. No caso da pessoa com deficiência, esta condição tem de ser capaz de lhe causar impedimentos de natureza física, mental, intelectual ou sensorial de longo prazo (com efeitos por pelo menos 2 anos), que a impossibilite de participar de forma plena e efetiva na sociedade, em igualdade de condições com as demais pessoas. [...]. Para ter direito ao BPC, é necessário que a renda por pessoa do grupo familiar seja igual ou menor que 1/4 do salário-mínimo [...]. Além da renda de acordo com o requisito estabelecido, as pessoas com deficiência também passam por avaliação médica e social no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS)”. https://www.gov.br/cidadania/pt-br/acoes-e-programas/assistencia-social/beneficios-assistenciais-1/beneficio-assistencial-ao-idoso-e-a-pessoa-com-deficiencia-bpc

7No site da Academia Brasileira de Letras (ABL), capacitismo é conceituado como: “Discriminação e preconceito contra pessoas com deficiência. Prática que consiste em conferir a pessoas com deficiência tratamento desigual (desfavorável ou exageradamente favorável), baseando-se na crença equivocada de que elas são menos aptas às tarefas da vida comum”. https://www.academia.org.br/nossa-lingua/nova-palavra/capacitismo

9Instituído pelo Decreto Presidencial nº 10.415, de 6 de julho de 2020. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10415.htm

Referências

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Recebido: 17 de Dezembro de 2021; Revisado: 19 de Dezembro de 2021; Aceito: 21 de Dezembro de 2021

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