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Revista Brasileira de Educação Especial

versión impresa ISSN 1413-6538versión On-line ISSN 1980-5470

Rev. bras. educ. espec. vol.28  Marília  2022  Epub 09-Nov-2022

https://doi.org/10.1590/1980-54702022v28e0085 

Ensaio

Síndrome de Down e Deficiência Intelectual: História e Lógica de uma Associação

Down Syndrome and Intellectual Disability: History and Logic of an Association

2Psicopedagoga. Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Santo Ângelo/Rio Grande do Sul/Brasil. E-mail: carinastreda@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7881-3464

3Docente. Doutora em Educação. Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre/Rio Grande do Sul/Brasil. E-mail: k.recuero@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3284-8749


RESUMO:

Este artigo tem como problema central a associação direta entre Síndrome de Down e deficiência intelectual. Trata-se de um estudo teórico em forma de ensaio que tem como objetivo refutar a certeza e a generalização de um aprender restrito para pessoas com a Síndrome de Down, a partir da compreensão das condições de produção dos enunciados científicos e culturais que sustentam essa associação desde o século XIX. Argumenta-se que essa certeza pode ser interpretada por um problemático raciocínio silogístico que encerra uma ideia determinista, essencialista, que centra no aspecto biológico ou genético as possibilidades de ser e de estar no mundo.

PALAVRAS-CHAVE: Síndrome de Down; Deficiência intelectual; Determinismo; Aprendizagem

ABSTRACT:

The main problem discussed in this article is the direct association between Down Syndrome and intellectual disability. This is a theoretical study presented as an essay, with the aim to refute the belief and generalization around restricted learning for people with Down Syndrome, from the understanding of the conditions of production of the scientific and cultural statements that sustain this association since the 19th century. It is argued that this certainty can be interpreted by a problematic syllogistic reasoning that contains a deterministic and essentialist idea, which centers on the biological or genetic aspect the possibilities of being in the world.

KEYWORDS: Down Syndrome; Intellectual Disability; Determinism; Learning

1 Introdução

Este artigo tem como problema central a associação direta entre Síndrome de Down e deficiência intelectual como resultado do determinismo biológico, genético. Considerada a principal causa genética de deficiência intelectual por pesquisadores do campo da genética (Dekker et al., 2014; Golabek et al., 2011; Roubertoux & Kerdelhué, 2006; Sanchez-Mut et al., 2012), a Síndrome de Down é objeto de diversas investigações. Questões centrais como “quais genes da HSA21 causam retardo mental” (Roubertoux & Kerdelhué, 2006) persistem desde os estudos seminais de Lejeune. No entanto, enquanto permanecem algumas incertezas na área da genética, a certeza da deficiência intelectual como sendo determinada biologicamente é culturalmente aceita.

Argumentamos que essa certeza pode ser interpretada por um raciocínio silogístico que encerra uma ideia determinista, essencialista, que centra no aspecto biológico ou genético as possibilidades de ser e de estar no mundo. Nesse raciocínio, nem sempre culturalmente analisado, não há espaço para probabilidades, somente para certezas. Tal concepção está assentada no que pode ser caracterizado como o modelo individual/médico de deficiência (Oliver, 1983), o qual concebe como consequência direta do organismo os problemas que pessoas com deficiências experimentam, circunscritos a “uma característica particular do indivíduo que se afasta do que pode ser chamado de funcionamento normal da espécie” (Carlson, 2009, p. 5).

Na primeira seção deste artigo, buscamos compreender as condições de produção dos enunciados científicos e culturais que associam a Síndrome de Down à deficiência intelectual. Apresentamos as principais descrições4 sobre a síndrome desde os estudos de John Langdon Down (2013), demonstrando o entendimento da síndrome como classe de uma categoria que recebe, no transcorrer da história, nomenclaturas diversas: da idiotia à deficiência intelectual. Sinteticamente, a idiotia/debilidade mental é uma característica congênita/genética da Síndrome de Down, quer dizer, se tem Síndrome de Down, tem deficiência intelectual.

De modo a aprofundar o entendimento dessa associação, apresentamos, na segunda seção, uma breve historiografia do conceito de deficiência intelectual, destacando a imprecisão que o termo carrega, sua associação estrita ao conceito de inteligência e uma questionável conversão lógica entre deficiência intelectual e um aprender restrito, em outras palavras, se tem deficiência intelectual, então terá um aprender restrito.

Na terceira seção, buscamos destacar que, apesar dos alegados avanços nas teorias sobre aprendizagem de pessoas com a Síndrome de Down, o inatismo da deficiência intelectual ainda fgura como certeza, o que incide na expectativa de um aprender restrito para essas pessoas. Na quarta seção, procuramos esclarecer como as proposições decantadas do percurso histórico e conceitual da Síndrome de Down podem ser expressas por meio de um raciocínio lógico culturalmente não questionado, que faz da Síndrome de Down uma espécie de sinônimo da deficiência intelectual.

Com isso, o objetivo deste artigo é refutar a certeza e a generalização de um aprender restrito para pessoas com a Síndrome de Down, a partir da compreensão das condições de produção dos enunciados científicos e culturais que sustentam essa associação desde o século XIX.

2 De idiotas mongoloides à trissomia 21

As primeiras descrições sobre o que hoje conhecemos como Síndrome de Down podem ser encontradas no texto Observations on an Ethnic classification of Idiots, de John Langdon Dow, de 1866. Escrito a partir de seu convívio com os pacientes do The Asylum for Idiots5 por mais de uma década, esse texto é, como proposto em seu título, uma tentativa de agrupamento de indivíduos considerados idiotas em categorias étnicas, de onde resultou a constatação de John Langdon Down de que um número muito grande de idiotas congênitos era mongóis típicos (Down, 2013). Esse foi considerado o primeiro movimento que associou o que hoje conhecemos como Síndrome de Down ao determinismo da idiotia. Médico, não diferente de outros profissionais de sua época, Down foi infuenciado pela Teoria das Degenerescências, de Morel. Tendo como pressuposto serem hereditárias as causas da idiotia, Down (2013) concluiu que aqueles indivíduos eram, em sua maioria, os casos de degeneração decorrente da tuberculose nos pais (p. 215), o que explicaria um suposto regresso a padrões raciais inferiores.

Novas abordagens da idiotia mongoloide viriam, mais tarde, a contribuir para a construção de diferentes olhares no que se refere a sua etiologia. Clemens Benda (1898-1975), em seu livro Mongolism and Cretinism, associou a etiologia do mongolismo a uma alteração endócrina, situação similar, ainda que não idêntica, com a do cretinismo, na qual a insuficiência tireóidea dá origem a uma detenção do desenvolvimento físico e mental (Benda, 1954, p. 9). Os esforços de Benda foram intensos para tirar do mongolismo o caráter de degeneração, refutando a perspectiva de Down. Todavia, seus estudos não se direcionaram a problematizar ou a duvidar da associação direta entre a idiotia e o mongolismo, o que é explícito quando Benda (1954) questiona as causas das características observadas nos indivíduos: admitindo que o mongolismo seja um desvio físico que desfgura o desgraçado que apresenta tal estado, por que o mongolismo tem uma importância tão séria que a criança fica condenada à idiotia ou à imbecilidade? (p. 17).

Em 1949, Lionel Penrose (1898-1972) publicou The biology of mental defect, resultado do estudo de 1.300 casos de indivíduos por ele observados no Royal Eastern Counties Institution.Penrose (1949) acreditava que havia a necessidade de um estudo mais abrangente a respeito das causas da deficiência mental. Em razão disso, estudou muitos casos de pacientes com mongolismo, aproximando-se de cada um deles com o objetivo de investigar todos os fatores que pudessem originá-lo. Percebeu haver estreita relação entre fatores genéticos e ambientais no desenvolvimento da deficiência, indicando que as perspectivas anteriores haviam colocado ênfase exagerada nos fatores hereditários. Ao notar que a maioria dos casos de mongolismo era associada à idade materna acima dos 35 anos, descreveu-o como uma malformação fetal e, embora ele não tenha oferecido explicações etiológicas definitivas sobre a condição daqueles indivíduos, seu trabalho firma a transição de uma era marcada pela especulação racial para aquela de um futuro genético (Wright, 2011).

Os desenvolvimentos no campo da genética que permitiram novas explicações etiológicas foram realizados pelos geneticistas franceses Raymond Turpin (1895-1988) e seu aluno Jérôme Lejeune (1926-1994). Os principais estudos desses dois autores podem ser encontrados em Human afictions and chromosomal aberrations6, escrito em 1969. A obra refere um artigo de autoria de Lejeune que apresenta o primeiro estudo com um paciente, realizado em 1958, no qual revelou a existência de um cromossomo extra em seu patrimônio hereditário, totalizando 47 em vez de 46. De acordo com Turpin e Lejeune (1969), o distúrbio é, portanto, devido a um excesso de material genético em relação a aspectos normais, sendo a mais frequente malformação congênita.

Nessa perspectiva, os próprios termos mongolismo e Síndrome de Down representariam, sobretudo, um erro etiológico, considerando que a verificação da origem cromossômica refutava a explicação de Down. No entanto, o impositivo da debilidade mental, agora em razão do determinismo genético, é reafirmado. Turpin e Lejeune (1969), por exemplo, utilizam terminologias como oligophrenic, mental debility e mental deficiency para se referir a esse tema e para listar características dos casos apresentados em seus estudos. Ao questionarem como seria possível prever, no momento do nascimento, o tipo de oligofrênico que um bebê poderia vir a se tornar, Turpin e Lejeune (1969) respondem em tom de certeza: se a trissomia 21 está envolvida, a longa experiência dessa doença fornece uma resposta (p. 3).

Em resumo, por serem as aberrações cromossômicas ocorrências em estágios precoces da formação do feto, são entendidas como determinantes para a perturbação do seu desenvolvimento físico e mental. Segundo Turpin e Lejeune (1969), a debilidade mental de indivíduos com trissomia 21, embora frequentemente estudada, até agora não revelou peculiaridades sintomáticas, além da limitação das faculdades de abstração, que proíbe um quociente de inteligência (QI) superior a 70 (p. 59). Dito de outra maneira, altera-se a causa, mas não a consequência. Se há Síndrome de Down, há debilidade mental; se há trissomia do 21, há, na nomenclatura atual, deficiência intelectual, sendo esta considerada a sua principal característica.

3 Da idiotia à deficiência intelectual

Na busca por conhecermos como se deu a associação entre Síndrome de Down e deficiência intelectual, encontramos, inicialmente, uma associação direta com a idiotia, e uma persistência dessa associação, apesar das mudanças nas formas de nomear e de entender suas causas ao longo da história sob os termos idiotismo, imbecilidade, debilidade mental, deficiência mental, entre outros. Em linhas gerais, podemos dizer que, ainda na Idade Média, a métrica utilizada para avaliar as capacidades intelectuais das pessoas era a possibilidade de elas assumirem suas responsabilidades sociais bem como manterem a discrição de seus comportamentos. Cuidar de si mesmo e administrar seu dinheiro, governando a si e as suas terras, por exemplo, eram os indicativos de inteligência. Nesse contexto, idiota era uma denominação para uma pessoa tola, que, embora sã, age imprudentemente (Turner, 2018).

É a partir do Iluminismo do século XVIII que os discursos intelectuais passam a moldar as ideias sobre a idiotia. Para John Locke (1632-1704), os homens deveriam ter capacidade mental para entender os contratos sociais, o que exigia desenvolver pensamentos abstratos, processar informações, retendo e podendo recuperar rapidamente memórias. Conforme Locke (2017), a abstração era a operação que distinguia os seres humanos dos seres a ele inferiores. Quanto aos idiotas7, parecia evidente a Locke que eles raciocinavam, porém em um nível inferior ao da maioria das pessoas e apenas sobre as coisas presentes e muito familiares aos seus sentidos. Eles “percebem, mas estupidamente, ou retêm as ideias que vêm a suas mentes, porém mal” (Locke, 2017, p. 2.11.12); falta-lhes “rapidez, atividade e movimento nas faculdades intelectuais” (Locke, 2017, p. 2.11.13).

O interesse dos médicos na categoria dos idiotas intensificou-se a partir do século XVIII. Philippe Pinel (1745-1826) utilizou o termo idiotismo para designar o quadro mais comprometedor do que ele nomeou de alienação mental. Para o autor, o idiotismo poderia ser identificado em alguma patologia cerebral, sendo considerado a “obliteração mais ou menos absoluta [...] das funções do entendimento” (Pinel, 2007, p. 186). Jean-Étienne Esquirol (1772-1840), por sua vez, propôs reformulações nosológicas: o idiotismo passa a ser idiotia e, juntamente à imbecilidade, é a condição definida “como ausência de desenvolvimento intelectual desde a infância e devida a carências infantis ou condições pré-natais ou perinatais” (Pessotti, 1984, p. 88). Já o neurologista Edward Spitzka (1852-1914) entendia a idiotia como, na melhor das hipóteses, uma área marginal no tratamento da insanidade, reforçando a concepção organicista, ao afirmar que, segundo Simpson (2018), o continuum de idiota a débil mental era inteiramente orgânico, anatômico e fisiológico (p. 199). Essa concepção foi reafirmada por Ernest Chambard (1881-1965), que refere a causa da idiotia como uma parada evolutiva. A parada no desenvolvimento se deveria a uma atrofa cerebral, leitura que, embora sublinhasse a etiologia de natureza funcional, mantinha o caráter organicista do conceito.

A partir da segunda metade do século XIX, começaram a ser pensados os aspectos psicológicos da idiotia, da imbecilidade e da debilidade mental. Alfred Binet (1857-1911), por exemplo, entendia a idiotia como sendo causada por diversas doenças do cérebro que, por sua vez, produzem uma parada no desenvolvimento, uma perversão nas funções intelectuais, segundo Binet (1904), uma fraqueza da inteligência. [...]. A criança é considerada idiota porque é afetada em seu desenvolvimento intelectual (p. 176). Na esteira desse pensamento, Alfred Tredgold (1870-1952) propôs formulações sobre o conceito de deficiência mental. Caracterizando-a como sendo uma condição em que a mente nunca atingiu o desenvolvimento normal, designou-a, também, como amentia8 (a, sem; mens, mente). Sob essa denominação, que teve infuência nos conhecimentos da área pelos 50 anos subsequentes, Tredgold (1916) descreveu o quadro como

um estado de potencialidade restrita para, ou aprisionamento do desenvolvimento cerebral em consequência do qual a pessoa afetada é incapaz, na maturidade, de se adaptar ao seu ambiente ou aos requisitos da comunidade para manter a existência independentemente do apoio externo. (p. 8)

As restrições intelectuais são o que definem o conceito de deficiência intelectual, desde suas primeiras elaborações teóricas até as proposições em vigência, seja na definição da American Association on Intellectual and Developmental Disabilities (AAIDD), seja nas proposições da Classificação Internacional das Doenças (CID) (World Health Organization [WHO], 2019), seja no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM9 (American Psychiatric Association [APA], 2014). Esse é o guia de observação e de diagnóstico clínico utilizado por profissionais da psiquiatria, servindo também de referência para outras áreas, como a Psicologia. Na versão mais recente desse manual, o DSM-V, as características de casos leves de deficiência intelectual, por exemplo, são assim descritas:

Em crianças pré-escolares, pode não haver diferenças conceituais óbvias. Para crianças em idade escolar e adultos existem dificuldades em aprender habilidades acadêmicas que envolvam leitura, escrita, matemática, tempo ou dinheiro, sendo necessário apoio em uma ou mais áreas para o alcance das expectativas associadas à idade. Nos adultos, pensamento abstrato, função executiva (i.e., planejamento, estabelecimento de estratégias, fixação de prioridades e fexibilidade cognitiva) e memória de curto prazo, bem como uso funcional de habilidades acadêmicas (p. ex., leitura, controle do dinheiro) estão prejudicados. (APA, 2014, p. 34)

Para determinar o diagnóstico de deficiência intelectual, os testes de inteligência e a avaliação clínica são recomendados. Há casos, porém, em que uma avaliação por meio de testes, geralmente, não se faz necessária, sendo a Síndrome de Down considerada um caso exemplar, uma vez que “quando a deficiência intelectual está associada a uma síndrome genética, pode haver uma aparência física característica (como na síndrome de Down, p. ex.)” (APA, 2014, p. 38).

Nessa breve retrospectiva histórica, encontramos algumas vozes a sentenciar um aprender restrito às pessoas com Síndrome de Down, por determinismo biológico, por meio de diversas nomenclaturas: alienação mental, idiotismo, idiotia, imbecilidade, debilidade mental, deficiência mental – palavras que não dizem do mesmo fenômeno, o que não significa que não há associação entre os termos. Por sua vez, fica claro que a substituição desses conceitos não se deu em uma continuidade histórica e progressiva, tampouco garantiu uma melhor compreensão das características que circunscrevem a noção do que se convencionou denominar deficiência intelectual. Contudo, o que importa salientarmos aqui é que, a despeito das diversas modificações nas nomenclaturas e nos sentidos atribuídos a elas, o que insiste é a imagem de um indivíduo marcado pela certeza de um aprender restrito, de um não desenvolvimento de certas capacidades intelectuais, de uma inferioridade mental e por vezes moral, como consequência direta de causas orgânicas.

4 A persistência de uma lógica determinista

A associação entre Síndrome de Down e deficiência intelectual persiste desde os estudos de Down até os de Lejeune e aparece em diversas conceituações da deficiência intelectual utilizadas até hoje, nas quais a Síndrome de Down é classificada como um tipo de deficiência intelectual e, também, como uma de suas causas. Em outras palavras, a síndrome é um tipo e, ao mesmo tempo, uma causa da deficiência. Em razão disso, ambas são apresentadas como sinônimos, não deixando abertura para se pensar que alguém com Síndrome de Down possa não ser deficiente intelectual, como inclusive encontramos em documentos legais recentes, como nas Diretrizes de Atenção à pessoa com Síndrome de Down (2013): “A Síndrome de Down (SD) ou trissomia do 21 é uma condição humana geneticamente determinada, é a alteração cromossômica (cromossomopatia) mais comum em humanos e a principal causa de deficiência intelectual na população” (p. 9).

Alerta-se, assim, que, mesmo com o apoio necessário, muitas crianças não conseguirão aprender a ler e a escrever. Em relação ao aprendizado da matemática, o limite parece estar na possibilidade de familiarizar a criança com os números, tornando-a capaz, por exemplo, de realizar compras, o que pode demonstrar uma maior preocupação com a racionalização da vida econômica do que outros aspectos educacionais também necessários para a vida em sociedade.

Com objetivo de “transmitir aos pais a esperança de que, antes de mais nada, a criança com síndrome de Down é um ser humano com todos os aspectos positivos” (Canning & Pueschel, 2003, p. 106), o livro Síndrome de Down: guia para pais e educadores10, organizado pelo médico alemão Siegfried Pueschel, indica a inserção dessa criança na escola, apontando como benefícios a circulação social, a convivência, o brincar e o cuidado com a higiene. Todavia, quando, no mesmo manual, é proposto o ensino do que é nomeado como “habilidades de conteúdo acadêmico”, as restrições aparecem bem definidas. A leitura é considerada a mais importante, tendo em vista a sua utilidade cotidiana. Seu aprendizado, no entanto, é restrito ao reconhecimento das palavras que têm evidente aplicabilidade prática (Fredericks, 2003). Mais limitações aparecem novamente em relação ao aprendizado da matemática. Apoiando-se em estudos quantitativos, afirma-se que “os dados referentes à aquisição de conhecimentos em matemática não são tão promissores” (Fredericks, 2003, p. 196). Em concordância com essa observação, orienta-se:

Estes dados parecem indicar a futilidade de gastar longos períodos de tempo tentando ensinar habilidades de matemática. Recomendo que esforços sejam empreendidos para ensinar habilidades básicas de adição e subtração aos alunos. Se o progresso for particularmente lento, poderá ser recomendável encerrar a instrução formal em matemática no nível da 3ª série. [...]. Quando o aluno chega à 5ª série, provavelmente haverá necessidade de transferir a ênfase do currículo educacional para o funcional11. (Fredericks, 2003, p. 196)

Por sua vez, o psicólogo e professor Reuven Feuerstein, de um ponto de vista aparentemente mais otimista que o do manual de Pueschel (2003), critica uma “resistência que permanece” em relação às aprendizagens das pessoas com a síndrome, ao apresentar resultados promissores de tratamentos realizados com crianças com Síndrome de Down que foram consideradas como tendo um nível de QI na faixa de 30 a 70. Feuerstein et al. (2010) enfatizam a qualidade dinâmica da inteligência, mesmo quando a causa do retardo mental é tomada como biológico-genética e cromossômica (p. 21). Feuerstein et al. (2010) apresentam argumentos em favor de uma possibilidade de modificabilidade cognitiva das pessoas com a síndrome, por meio da aplicação da Experiência de Aprendizagem Mediada (EAM12). No entanto, Feuerstein et al. (2010) salientam que isso exige um grande esforço, porque as crianças com Síndrome de Down não são como as outras crianças, visto que elas precisam de uma mediação especial, intensa e sistemática entre elas e o mundo para aprender e progredir (p. 23). Isso justifica o seu entendimento de que essas crianças não devem entrar no jardim de infância até os 8 anos de idade, o que lhes permitiria amadurecer em um ambiente mais protegido (Feuerstein et al., 2010).

Fundamentando-se nos desenvolvimentos teóricos e metodológicos, dentre outros, de Lev Vygotsky (1896-1934) e do próprio Reuven Feuerstein (1921-2014), Miguel López Melero, idealizador do Projeto Roma, postula que somos seres humanos inacabados e só a cultura e a educação permitem que nos completemos como tais (López Melero, 2006). Com vistas à autonomia social e pessoal das pessoas com a Síndrome de Down, o autor sugere a aplicação de um Modelo Educativo Competencial em oposição a uma perspectiva focada em déficit. Partindo do pressuposto de que têm sido cometidos, conforme López Melero (1999), grandes erros ao rotular as pessoas com Síndrome de Down como deficientes mentais permanentes (p. 36) e de que a pessoa com Síndrome de Down é muito mais do que sua carga genética, é um organismo que funciona como um todo (p. 33), López Melero (1999) também defende a ideia da modificabilidade cognitiva. O autor propõe que se rompa com o determinismo psicobiológico sobre as incompetências na aprendizagem como algo eterno e imperecível nas pessoas com Síndrome de Down e se contemple como algo suscetível de modificação (p. 35).

Notamos aqui algumas sutilezas nas abordagens dos autores anteriormente referenciados que precisam ser sublinhadas. Há, nessas proposições, principalmente nas de Reuven Feuerstein e de Miguel López Melero, um alegado avanço na compreensão das possibilidades de aprendizagem das pessoas com a Síndrome de Down, decorrente de abordagens inovadoras de mediação. No entanto, destacamos a persistência, em primeiro lugar, de uma generalização e uma naturalização da Síndrome de Down. Há uma aposta em uma possibilidade de modificação cognitiva, mas que parece presumir que há sempre algo a ser modificado, e esse entendimento está baseado em uma categoria diagnóstica. Mesmo quando há uma tentativa de afastamento da abordagem médico-psicológica, considera-se que há algo já estabelecido, predeterminado, que o diagnóstico informa sobre todas as pessoas com a Síndrome de Down.

Em segundo lugar, o conhecimento vislumbrado como passível de aprendizagem permanece prioritariamente prático. Associa-se a aprendizagem das pessoas com Síndrome de Down a uma “[…] percepção sincrética, incapaz por ela mesma de distinguir e de analisar, daquela outra percepção analítica, mais estruturante, mas mais difícil de lograr” (López Melero, 1999, p. 63). Há uma expectativa de aprendizagem que as toma como carentes da faculdade de abstração, o que justifica que, segundo López Melero (1999), a aprendizagem no mundo das pessoas com Síndrome de Down deve ser significativa e funcional (p. 63).

Essa persistência, entendemos, está necessariamente associada a uma certeza em relação às habilidades intelectuais das pessoas com Síndrome de Down. Isso porque, mesmo que Canning e Pueschel (2003, p. 105) reconheçam que o desenvolvimento intelectual dos indivíduos com a síndrome pode abranger “uma larga extensão entre o retardo mental severo e a inteligência próxima a normal”, que Feuerstein et al. (2010) defenda a modificabilidade das estruturas cognitivas e que López Melero (1999) diga ser um erro afirmar que eles serão deficientes mentais permanentes, o retardo mental, a deficiência intelectual como característica congênita e como consequência inevitável da Síndrome de Down não parece questionada.

Paradoxalmente, embora Reuven Feuerstein e Miguel López Melero situem suas abordagens em contraposição a uma perspectiva inatista das habilidades cognitivas, o caráter inato da deficiência intelectual na Síndrome de Down parece não ser colocado por eles em dúvida. A existência da deficiência como determinada geneticamente não parece ser questionada. É como se devêssemos, ao fim, ter de aceitar que, embora passíveis de educação e de modificação cognitiva por meio do método correto de mediação, de adequadas pontes cognitivas (López Melero, 1999), há uma diferença intelectual inata entre as pessoas com e sem a síndrome. Conforme López Melero (1999), embora não desiguais, as pessoas com Síndrome de Down são diferentes (p. 176), são seres com necessidades educativas específicas (p. 117). Isso justifica que processos de mediação específicos sejam especialmente importantes quando se trabalha com essas pessoas, para López Melero (1999), precisamente porque necessitam de melhores processos de “andaimagem”13 que o resto de suas companheiras e de seus companheiros (p. 161-162).

Autores com esse tipo de abordagem poderiam, assim, ser enquadrados, como constataram Bogdan e Taylor (1994), entre aqueles que “acreditam que o retardo mental é uma condição que as pessoas têm. Eles não questionam isso” (p. 6); o que buscam desenvolver são técnicas e métodos mais eficazes para ensiná-los, visto que são deficientes intelectuais.

Talvez a acusação mais forte da frase “retardo mental” não resida em sua confusão lógica e imprecisão conceitual, mas em seus efeitos devastadores nas pessoas. Embora o retardo mental seja considerado um conceito neutro e sem valores, ele implica tanto inferioridade moral quanto deficiência intelectual. [...]. Ser chamado de retardado é ter seu valor moral e humano questionados. É ser certificado como “não um de nós”. (Bogdan & Taylor, 1994, p. 13-14)

As palavras de Bogdan e Taylor (1994) podem soar duras, mas sua afirmação de que o diagnóstico do retardo mental certifica o indivíduo como “não um de nós” pode ser observada não somente nas práticas mais claras de discriminação, mas também, ainda que de forma velada, nas perspectivas que agrupam todas as pessoas com a Síndrome de Down sob uma pressuposta natureza específica, que determinam capacidades ou dificuldades de aprendizagem possíveis de serem pré-conhecidas, comuns a todos, para as quais métodos especiais são invariavelmente requeridos. Como observa Goodey (2011), os deficientes intelectuais são definidos mais dogmaticamente do que qualquer outro grupo humano, eles ainda são vistos como uma categoria natural, o último bastião justificável do essencialismo (p. 4).

5 Questionando uma lógica problemática

Podemos descrever as proposições decantadas do percurso histórico e conceitual da Síndrome de Down por meio de um silogismo – um raciocínio lógico aparentemente bem encadeado, estruturado a partir de duas premissas das quais se deduz uma conclusão necessária. À maneira de um silogismo condicional, em que a premissa maior afirma ou nega algo sob alguma condição, temos:

  1. A. Se tem Síndrome de Down, então tem deficiência intelectual.

  2. B. Tem deficiência intelectual, terá um aprender restrito.

  3. C. Logo, se tem Síndrome de Down, terá um aprender restrito.

Esse argumento pode ser lido sob um aspecto logicamente formal. Desse modo, o argumento é dedutivamente válido, pois a verdade das premissas apropriadamente ligadas garante, absolutamente, a verdade da conclusão. Em outras palavras, se concordamos com as premissas A e B, e com a conexão entre elas, temos como inevitável a conclusão de que a Síndrome de Down implica um aprender restrito.

No entanto, é importante questionarmos se concordamos com as premissas A e B, com seu conteúdo. Um aspecto que podemos questionar nas premissas é o conceito de deficiência intelectual: sua herança histórica, a multiplicidade e a ambiguidade de nomenclaturas e de conceituações que convergiram para essa categoria diagnóstica. Poderíamos aceitar a continuidade da ideia de idiotia à ideia de deficiência intelectual, na qual um termo substitui outro de maneira aparentemente não problemática e de modo esclarecedor. Entretanto, nada há de uma continuidade não problemática, tampouco existe um conceito definitivo de deficiência intelectual. A própria proposição do conceito, para Scior (2016), pressupõe que seja há a possibilidade de traçar uma linha demarcatória clara entre capacidade intelectual e deficiência (p. 4), o que não tem sido possível. A linguagem para descrever a deficiência intelectual é imprecisa, resultado de contingências históricas, desde a modernidade até as suas descrições atuais, do que se segue que, segundo Louhiala (2004), talvez seja melhor aceitar que uma definição universal nunca possa ser alcançada (p. 8).

Outro aspecto a ser questionado é a imprecisão do diagnóstico de deficiência intelectual, já que as definições desse conceito controverso são baseadas no também controverso conceito de inteligência, visto que, para Goodey (2011), se reforçam mutuamente. [...]. Sem o outro eles não são nada (p. 1). Segundo Bogdan e Taylor (1994), os conceitos associados de inteligência e de deficiência intelectual são noções abstratas e imprecisas, ambas parecem ser medidas, mas, na realidade, são definidas pelos testes de inteligência e pelas escalas de comportamento adaptativo. Em resumo, “esses conceitos significam o que os testadores dizem que significam. [...]. Tal suposição garante que certa proporção de pessoas terá um desempenho na extremidade inferior da escala, não por causa de sua condição ou competência, mas por causa do design do teste” (Bogdan & Taylor, 1994, p. 6).

Segundo as diretrizes diagnósticas atuais (DSM-V), os critérios para que alguém seja considerado deficiente intelectual consistem, inicialmente, nos resultados da mensuração do funcionamento intelectual por meio de testes de inteligência padronizados administrados individualmente. O funcionamento adaptativo, que se refere a “quão bem uma pessoa alcança os padrões de sua comunidade em termos de independência pessoal e responsabilidade social” (APA, 2014, p. 37), também é avaliado, e a necessidade de apoios14 é o que mede esse funcionamento. No entanto, quando se trata da Síndrome de Down, esses critérios são dispensáveis, uma vez que, se a deficiência intelectual está associada a uma síndrome genética, pode haver uma aparência física característica que pode facilitar e até garantir o diagnóstico. Tiramos, assim, a necessidade e mesmo a possibilidade de essas pessoas serem testadas. Reforçamos um modelo médico de deficiência e reiteramos o determinismo orgânico, genético, da deficiência intelectual na Síndrome de Down, como exposto na primeira premissa do raciocínio.

Com isso, não há muita diferença entre o idiota de Down e o deficiente intelectual de Lejeune, tampouco são suficientes para contestar uma certeza instituída, registros na literatura científica15 que apresentem casos de pessoas com a síndrome com “desenvolvimento intelectual limítrofe ou mesmo normal” (Moreira, El-Hani et al., 2000, p. 96). Ironicamente, tais casos são justificados, por exemplo, pelo tipo de aberração cromossômica: “não tem trissomia 21 padrão, tem mosaicismo”. Quer dizer, a trissomia 21 padrão continua a restringir, de modo determinista, o desenvolvimento intelectual.

Casos que não se enquadram nesse tipo de justificativa, a qual apela a um desvio de um tipo padrão da Síndrome de Down, são tomados, então, como exceções à regra, como beneficiários de um contexto único ou de um método e de uma mediação específicos que, de certo modo, parece reverter a condição inicial de deficiência intelectual, mostrando que, conforme Feuerstein et al. (2010), o cromossomo não representa um obstáculo intransponível (p. 23). Todavia, mesmo quando se apresentam essas exceções, ou se afirma que “o sucesso das intervenções psicomotoras e pedagógicas na Síndrome de Down mostra como não se pode afirmar que o conjunto fenotípico dessa síndrome seja determinado geneticamente” (Moreira, El-Hani et al., 2000, p. 98), algo sempre está determinado: a deficiência intelectual na Síndrome de Down, como condição congênita, genética. A aposta, portanto, é no método, no tratamento, em uma espécie de reversão da deficiência intelectual que sempre esteve lá. Improvável que fosse considerada a hipótese de que não houvesse uma deficiência, visto que, segundo Zimpel (2016),

quando crianças com trissomia 21 apresentam desempenho melhor do que o esperado em um teste de inteligência, sempre há dúvidas sobre a validade do escore. [...]. Trissomia 21 e um QI acima de 80? O que não deveria ser, não pode ser! O que quer que abra a porta para um futuro promissor para outras crianças, frequentemente a mantém firmemente fechada para as pessoas com trissomia 21. (p. 14)

Aceitar um raciocínio como o exposto no silogismo anterior é desconsiderar o que ele contém de generalização, de previsão, de analogia, de circularidade (por meio de uma conversão lógica entre os termos aprender restrito e deficiência intelectual), e, por fim, de petição de princípio, uma vez que a primeira premissa e a conclusão encerram o mesmo sentido. No entanto, nosso propósito, ao expor um raciocínio em forma de silogismo, é o de, em primeiro lugar, auxiliar a visualizar a forma como os enunciados culturais associam Síndrome de Down e deficiência intelectual, demonstrando a fragilidade do conteúdo das premissas que ensejam a conclusão de um aprender restrito.

Em segundo lugar, pretendemos destacar uma coincidência entre o argumento silogístico e a própria história da deficiência intelectual e seu discurso. Ambos tomam como válidas suas ideias pela forma. A forma dá a validade do argumento. Se a forma está correta, o argumento é válido. Assim também o modelo médico de deficiência se apoia em observações fisiológicas e na constatação de características orgânicas ou genéticas de um indivíduo – o que justifica sua caracterização também como modelo individual de deficiência – para fazer ciência das suas hipóteses.

Conforme destaca Rose (2007), a partir dos desenvolvimentos no campo da genética, foi possível, nas últimas décadas, identificar os seres humanos “geneticamente em risco” para uma condição de saúde específica antes do aparecimento de quaisquer sintomas relacionados. Com isso, conforme Rose (2007), houve uma reorganização de muitas doenças e patologias ao longo de um eixo genético, o que gerou, inclusive, uma obrigação de agir no presente em relação aos futuros potenciais que agora vêm à tona. Entretanto, no que diz respeito a quem nasce com a Síndrome de Down, a deficiência intelectual não se constitui como uma probabilidade, mas como algo categórico. Enquanto a triagem genética indica o risco para o desenvolvimento de certas patologias, como alguns tipos de câncer, a verificação da trissomia 21 já inclui a certeza: se há marca genética, ou mesmo apenas os sinais físicos da síndrome, então há deficiência intelectual. Destacando possíveis sentidos envolvidos no termo “triagem”, no primeiro caso, a disponibilidade de testes genéticos preditivos introduz uma nova lógica, criando novas categorias de indivíduos e de acordo com o risco genético, uma nova calculabilidade (Rose, 2007); no segundo caso, ela pode levar até mesmo ao restabelecimento de práticas eugênicas supostamente superadas.

Em 2016, André Frank Zimpel, juntamente a sua equipe de pesquisadores, lançou a obra Trisomy 21: What we can learn from people with Down syndrome.Zimpel (2016), que em suas pesquisas investigou 2.000 pessoas com Síndrome de Down, faz referência a essa associação direta: as pessoas com Síndrome de Down são diagnosticadas como deficientes mentais mesmo antes do nascimento. O aconselhamento genético humano prepara os pais para isso (p. 13), perpetuando, em suas palavras, uma falácia, já que a trissomia 21 não precisa, necessariamente, ser acompanhada de uma redução na inteligência. No entanto, para Zimpel (2016), ao serem associados de modo necessário, Síndrome de Down e deficiência intelectual acabam por soar, em nossa sociedade do conhecimento, governada por um culto à inteligência, [...] uma sentença de morte16 (p. 13).

6 conclusões

Ao abordar a história da Síndrome de Down, procuramos evidenciar o que constituiu um raciocínio culturalmente não questionado sobre as restrições do aprender dessas pessoas. Expor esse raciocínio foi uma forma de evidenciarmos os problemas da história da síndrome, principalmente em sua associação com a também complexa e problemática história da deficiência intelectual. Muitas reformulações foram realizadas desde o entendimento de John Langdon Down sobre a sua etiologia, e a associação com o mongolismo e a degeneração das raças foram superadas em favor de uma explicação genética, permitindo que uma visão de menos valia em relação a essas pessoas fosse aos poucos questionada, bem como a abertura para sua inserção em outros espaços sociais, em especial a escola.

No entanto, mesmo diante dessa nova compreensão e do desenvolvimento de propostas pedagógicas específicas para essas pessoas, a associação direta entre Síndrome de Down e deficiência intelectual é ainda pouco questionada. Considera-se que a pessoa com a síndrome nasce com deficiência intelectual e se ensina com base nisso. Cogita-se uma aprendizagem possível, porém a partir de métodos específicos de ensino que não deixam de pressupor a deficiência. E quando a aprendizagem não ocorre a contento, a explicação para o fracasso é a própria deficiência, que já estipula limites bem definidos do que se pode alcançar. É essa associação direta e o entendimento de que a deficiência intelectual é um atributo inato e determinado para as pessoas com a Síndrome de Down que explica por que, apesar dos alegados avanços nas teorias sobre aprendizagem de pessoas com a síndrome, a deficiência intelectual ainda aparece como uma certeza e tem efeitos sobre a forma de entender o aprender dessas pessoas.

Assim, ao destacarmos a persistência de uma lógica determinista, apoiada em um raciocínio questionável, alertamos para a urgência não apenas de denunciarmos os problemas dessa lógica, mas de considerarmos outras possibilidades de interpretação, de questionamento e mesmo de refutação para aquilo que pode ter, na vida das pessoas, efeitos que funcionam como uma sentença moral. Faz-se necessária a suposição de uma outra lógica que permita de fato nos opormos a uma imagem do confinamento que permanece central para as pessoas com a Síndrome de Down: a imagem de um confinamento que não se encerrou com as portas fechadas de algumas instituições, tampouco com a abertura de espaços entendidos como inclusivos, para McDonagh et al. (2018), o confinamento conceitual da “deficiência intelectual” – o domínio do modelo cognitivo do que significa ser humano (p. 22).

Um movimento de questionamento dessa associação torna-se urgente, principalmente considerando que as pessoas com a Síndrome de Down ainda estão sujeitas a uma perspectiva determinista, essencialista e generalizante estabelecida há aproximadamente 130 anos, que afirma que todas as pessoas com essa síndrome sempre serão, congenitamente, deficientes intelectuais – o que marca destinos, formas de ensinar e de aprender, delimita expectativas e possibilidades de vida.

4Julgamos coerente manter os termos empregados pelos autores nos diversos momentos e contextos históricos.

5Primeiro hospital a atender idiotas, no qual John Langdon Down foi diretor. Foi renomeado como Royal Earlswood Institution for Mental Defectives em 1926, e passou a fazer parte do serviço de saúde nacional inglês em 1948, como The Royal Earlswood Hospital. Encerrou suas atividades em 1997, como parte das ações da reforma antimanicomial na Europa.

6A versão em inglês é a tradução do original francês Les chromosomes humains (caryotype normal et variations pathologiques), de 1965.

7No original idiots.

8As edições subsequentes de Mental Deficiency: amentia trouxeram informações sociais e educacionais sobre o status do que Tredgold nomeou crianças mongóis nas primeiras décadas do século XX, com uma preocupação particular, não incomum na época, em classificar as crianças com base em sua inteligência. Ele concluiu que a maioria pertencia a um grau médio de amência. Muitos, ele acreditava, poderiam ser ensinados a ler, a escrever e a executar tarefas simples (Wright, 2011).

9Convencionou-se adotar a sigla do termo em língua inglesa Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (APA, 2014).

10Publicado em 1993, está em sua 14ª edição no Brasil. É uma das referências mais utilizadas por associações que informam sobre a síndrome e por pesquisadores. Ver, por exemplo, Barby et al. (2017), Lima e Sobreira (2019) e Marques (2016).

11O currículo funcional, proposto pelo autor para substituir o currículo educacional, consiste no ensino de habilidades básicas de cuidados pessoais e de controle de dinheiro, condicionado ao uso da calculadora. Administração da casa, uso do telefone, realização de pequenas compras e aplicação de técnicas básicas de trabalho são apresentadas como as ações possíveis de serem aprendidas.

12Em inglês: Mediated Learning Experience (MLE).

13No original, andamiaje. A teoria dos andaimes de aprendizagem (scafolding) foi proposta pelo psicólogo estadunidense Jerome Bruner (Wood, 2003), como parte da teoria social construtivista. É uma forma de interação estruturada entre a criança e o adulto, inspirada nos andaimes que sustentam a construção de um edifício. Consiste nos suportes que alguém mais capaz dá ao aprendiz para que ele consiga resolver problemas que não conseguiria resolver sem auxílio (colocá-lo para realizar as tarefas junto a um colega que já tenha aprendido, por exemplo).

14O DSM refere que “é o funcionamento adaptativo que determina o nível de apoio necessário” (APA, 2014). Notamos uma perspectiva que abre espaço para pensar os apoios, no entanto, o nível de apoio é determinado por um funcionamento adaptativo que é característica do indivíduo e do seu grau de deficiência, reforçando um modelo que centra no indivíduo e em seu organismo a problemática.

16O autor refere-se ao avanço nas tecnologias diagnósticas pré-natais e seus impactos no aumento das taxas de aborto de fetos com Síndrome de Down em países em que essa prática é permitida.

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Recebido: 11 de Maio de 2022; Revisado: 05 de Julho de 2022; Aceito: 08 de Julho de 2022

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