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Revista Brasileira de Educação Especial

Print version ISSN 1413-6538On-line version ISSN 1980-5470

Rev. bras. educ. espec. vol.28  Marília  2022  Epub Feb 25, 2022

https://doi.org/10.1590/1980-54702022v28e0084 

Relato de Pesquisa

As Condições de Trabalho do Docente de Apoio à Inclusão (DAI) na Província de Córdoba, Argentina

The Inclusion Support Teacher (IST) Working Conditions in the Province of Córdoba, Argentina

Lilian Vegini BAPTISTA2 
http://orcid.org/0000-0002-5884-069X

Aliciene Fusca Machado CORDEIRO3 
http://orcid.org/0000-0001-6778-5285

Allan Henrique GOMES4 
http://orcid.org/0000-0001-5366-8600

2Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre o Trabalho e a Formação Docente (Getrafor). Psicóloga. Mestra em Educação pela Universidade da Região de Joinville (Univille). Joinville/Santa Catarina/Brasil

3Professora-pesquisadora da Universidade da Região de Joinville (Univille) e coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre o Trabalho e a Formação Docente (Getrafor). Psicóloga. Doutora em Educação (Psicologia da Educação) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Joinville/Santa Catarina/Brasil

4Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação na Universidade da Região de Joinville - SC, vice-líder do Núcleo de Pesquisa em Educação, Políticas e Subjetividades (NEPS). Professor da Associação Catarinense de Ensino - ACE. Membro do GT ANPEPP Psicologia, estética e arte. Doutor em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Joinville/Santa Catarina/Brasil


RESUMO:

Este trabalho tem como objetivo analisar as condições de trabalho do Docente de Apoio à Inclusão (DAI) em Córdoba, Argentina, a partir da Resolução nº 1.825, de 2019, sob a perspectiva das influências neoliberais na educação da América Latina. O percurso metodológico desta pesquisa qualitativa de inspiração etnográfica encontrou sustentação na teoria histórico-cultural, e contou com pesquisa de campo em Córdoba, pesquisa bibliográfica e documental, entrevista não estruturada e análise de conteúdo. Os resultados apontam para a presença de efeitos do capitalismo de cunho neoliberal na política educacional que orienta o trabalho da DAI. Um dos efeitos percebidos foi a intensificação das atribuições docentes, que pode resultar em uma sobrecarga de trabalho na medida em que a política exige um “superprofessor” e contrasta com a adoção de uma concepção social de deficiência para orientar o trabalho do DAI.

PALAVRAS-CHAVE: Trabalho docente; Educação especial; Argentina; América Latina; Política educacional

ABSTRACT:

This paper aims to analyze the Inclusion Support Teacher’s (IST) working conditions in Córdoba, Argentina, based on Resolution no. 1.825, 2019, from the perspective of neoliberal influences on education in Latin America. The methodological course of this qualitative research of ethnographic inspiration found support in the historical-cultural theory, and counted on field research in Córdoba, bibliographic and documentary research, unstructured interviews and content analysis. The results point to the presence of effects of neoliberal capitalism in the education policy that guides the work of the IST. One of the effects that was noticed was the intensification of teaching assignments, which can result in an overload of work as the policy requires a “super teacher”, and contrasts with the adoption of a social conception of disability to guide the work of the IST.

KEYWORDS: Teaching work; Special education; Teacher training; Argentina; Latin America; Education policy

1 Introdução

A criação de políticas públicas configura-se como uma maneira de responder a determinadas demandas que são reivindicadas por um grupo, seja na área da Saúde, da Economia, da Segurança ou da Educação. Esses documentos trazem consigo muito mais que orientações e normas a serem seguidas, pois são constituídas por uma trama complexa de diversos elementos, como as teorias de embasamento, os ideais defendidos por quem as elabora, algumas especificidades do campo para a qual estão sendo destinadas, entre outros.

As políticas públicas, independentemente da área que representam, devem ser compreendidas a partir das relações que estabelecem com outras áreas. De acordo com Tello e Almeida (2014), essas relações são semelhantes às tramas de um tecido, as quais “se despregam e se desenvolvem à medida em que as diversas linhas se constituem” (p. 165). Ao considerarmos um contexto macro, é possível encontrarmos elementos para compreender as motivações e as intenções presentes em uma política. Isso quer dizer que, para analisar uma política pública educacional, por exemplo, é necessário atentarmo-nos para as políticas econômicas - municipais, estaduais e nacionais.

As políticas públicas da área educacional podem ser compreendidas, segundo Hofling (2001), como “uma política pública de corte social, de responsabilidade do Estado - mas não pensada somente por seus organismos” (p. 31). Ao partirmos da compreensão desse conceito de modo ampliado, a análise de alguns pontos nos permite compreender as intenções incorporadas à criação de uma política, tais como: modelo de educação abordado; perfil de estudante descrito no documento; quem são os atores considerados nessa proposta; quais condições de trabalho são proporcionadas.

Os aspectos citados encontram-se como pontos de tensão constante nas políticas voltadas para o público-alvo da educação especial, considerando que as políticas são uma resposta social às diferentes tratativas dadas às pessoas com deficiência ao longo da história em culturas e épocas variadas (Jannuzzi, 2004). De modo geral, essas tratativas foram marcadas por práticas e por concepções de deficiência que promoviam um esvaziamento da condição humana em pessoas com deficiência, colocando-as em um lugar marginalizado de inferioridade e de incapacidade. Privadas dos direitos humanos, não tinham possibilidade de conviver de maneira equitativa na sociedade e nem de acessar a educação formal (Silva, 1987).

Existem pelo menos dois modelos em disputa que oferecem diferentes perspectivas para a compreensão da deficiência. Um deles refere-se ao modelo médico pedagógico, que parte de explicações biológicas para compreender o insucesso escolar, e, portanto, de acordo com Michels (2011), defende que “o fracasso escolar decorre de questões individuais, e não sociais” (p. 227). Nesse modelo, o foco é direcionado para a cegueira, para a surdez, para a paraplegia ou para a Síndrome de Down, por exemplo, de modo que a atenção recaia mais nas características, na falta, em detrimento da pessoa. Assim, a deficiência é utilizada para justificar as dificuldades apresentadas pelo estudante, sem problematizar as condições sociais (Ferrante, 2014).

O segundo modelo corresponde ao social, no qual a deficiência não é constituída somente pelo fator biológico, mas como resultante de uma construção histórica e social (Vigotski, 1997). Essa perspectiva considera que as barreiras para a vida social, e consequentemente para a aprendizagem, residem nas limitações da própria sociedade ao prestar serviços e outras atividades que permitam a inclusão de pessoas com deficiência.

A adoção de um ou de outro modelo impacta diretamente no ensino oferecido aos estudantes com deficiência por meio da tratativa dada a eles, da organização do currículo escolar, dos conteúdos, dos profissionais envolvidos, e consequentemente, das condições de trabalho para que o processo de inclusão possa acontecer.

Considerando que os docentes são uma das partes do processo de inclusão, eles encontram expectativas e reconhecimento social a partir da utilidade de seu trabalho, que é constituído a partir de um conjunto de saberes que envolve tanto conhecimentos teóricos e práticos, como competências e capacidades específicas. A forma como exercem seu papel é marcada por uma certa atribuição de poder, autonomia e responsabilização de suas práticas, o que pode permitir um movimento constante de repensar e de ajustar suas decisões e suas ferramentas de trabalho (Roldão, 1998).

As características apresentadas, conforme Morgado (2005), demarcam um “papel específico que está designado aos professores” (p. 72), o que confere um caráter de heterogeneidade para a profissão e, por consequência, para os profissionais. Como exemplos de heterogenia, temos o fato de que grande parte da categoria profissional é formada por mulheres, principalmente no ensino básico, e a finalidade do trabalho, que é dedicado ao ensino (Garcia et al., 2005).

Para este estudo, optamos por analisar os percursos de uma política pública de educação especial da Província de Córdoba, na Argentina, pois essa província ocupa um lugar de destaque e até mesmo de referência para as demais localidades do país em relação à educação especial. Assim, o objetivo deste trabalho reside em analisar as condições de trabalho da Docente de Apoio à Inclusão (DAI)5 em Córdoba, a partir da Resolução nº 1.825/2019, sob a perspectiva das influências neoliberais na educação.

A Argentina é um dos dez maiores países do mundo, e sua estimativa populacional é de 40.117.096 habitantes, distribuídos em 23 províncias. Esse país possui um histórico de crises socioeconômicas e políticas que impactam a população e seus parceiros econômicos internacionais de diversas maneiras.

O momento presente da Argentina é marcado por um cenário de crise, que teve origem em 2018, a partir da desvalorização da moeda nacional em decorrência de um aumento das taxas de juros nos Estados Unidos. Essa situação foi agravada no ano de 2020, em função do surgimento da pandemia da Covid-19 (Coronavírus), que impactou o país a partir do mês de março do mesmo ano e que coincidiu com o momento da realização da nossa pesquisa de campo.

Uma das muitas repercussões da crise contemporânea consiste no aumento de 35,5% para 40,9% da taxa de pobreza, considerando que os principais afetados pela pandemia pertencem à parte inferior da classe média e às classes mais pobres (Molina, 2020). Dentre os maiores prejudicados economicamente pelas restrições sociais, encontram-se os trabalhadores informais (garçons, empregadas domésticas, pedreiros etc.) que não tiveram direito ao subsídio oferecido pelo governo.

Na tentativa de encontrar estratégias para lidar com a situação, o país buscou o auxílio de organismos internacionais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), que possibilitou um empréstimo de mais de 50 bilhões de dólares em 2018, apesar do descrédito gerado pelo não cumprimento dos acordos de dívidas anteriores. Em decorrência da pandemia, em 2021, a Argentina buscou um novo acordo de cerca de 44 bilhões de dólares para reduzir o déficit do Produto Interno Bruto (PIB), agravado no ano de 2020 (Dantas, 2021).

Essa conjuntura de crises, dívidas e influências de organismos internacionais aponta para outro elemento importante que integra nossa análise, que é a participação desses organismos na construção de políticas educacionais, por meio da inserção, segundo Bordin (2015), de “componentes do âmbito empresarial que são inseridos no meio educacional como forma de melhorar a qualidade do ensino ofertado” (p. 80).

As propostas de melhoria no ensino, em uma perspectiva de universalização e de homogeneização, são feitas, de acordo com Evangelista e Triches (2012), com o objetivo implícito de “adaptar a Educação às novas demandas da sociedade capitalista em base neoliberal” (p. 186). A articulação dessas demandas não é uma exclusividade da realidade argentina, mas também de outros países periféricos que integram a América Latina e que possuem algumas características em comum ao longo de sua trajetória, como a colonização por outros países, as crises socioeconômicas e políticas e os altos índices de desigualdade social.

Conforme descrito, as demandas da sociedade capitalista com base neoliberal influenciam as pautas presentes nas políticas educacionais e, consequentemente, as condições de trabalho docente. A seguir, apresentamos uma breve caracterização da DAI de Córdoba.

1.1 A Docente de Apoio à Inclusão (DAI)

Na Província de Córdoba, há uma modalidade de trabalho do docente de educação especial que consiste em um modelo diferenciado, não encontrado em outras províncias, que é o trabalho da DAI. Para atuar como DAI, é necessário que o profissional tenha a formação em educação especial e participe dos encontros formativos oferecidos pela Subdireção de Educação Especial de Córdoba, que é responsável pela regulamentação do trabalho das Docentes de Apoio à Inclusão.

De acordo com o material de recomendações para a elaboração de desenhos curriculares, desenvolvido pelo Ministério da Educação da Argentina (2009), a formação do professor de educação especial inclui: “a. Didáticas das disciplinas. b. Disciplinas relativas à educação especial. c. Instâncias que abordem as problemáticas relativas aos sujeitos da educação especial” (p. 44).

Atualmente, a formação em educação especial é oferecida pela Universidade Provincial de Córdoba (UPC) e é chamada de Profesorado universitario de educación especial. A duração do curso é de quatro anos e oferece a possibilidade de participação em atividades de “práticas docentes”, que podem ser compreendidas como os estágios curriculares desenvolvidos nos cursos superiores no Brasil.

Na grade curricular da formação, disponível no site oficial da UPC6, constam disciplinas relacionadas à didática das disciplinas, como: “Filosofia e Educação”, “Ciências Sociais”, “Matemática”, “Linguagem e Literatura”, e suas respectivas didáticas. Também estão presentes disciplinas relacionadas à educação especial, como: “História e perspectivas da educação especial”, “Educação inclusiva”, “Abordagens educativas para as pessoas com deficiência múltipla”; e, também, às práticas docentes.

Ainda de acordo com as informações disponíveis no site da UPC, a prática docente, no primeiro ano, proporciona uma aproximação de contextos e de práticas educativas em educação especial, por meio de discussões com base em: “Psicologia e Educação”, “Educação psicomotora”, “Linguagem corporal”, “Psicologia do desenvolvimento”, “Educação artístico-expressivo”. No segundo ano, a prática docente é voltada para instituições educativas e conta com: “Introdução à língua de sinais argentina” e ao “Sistema Braille”. No terceiro e quarto anos, a prática docente abrange “Orientações para deficiência visual e intelectual”, com disciplinas que fomentam a discussão teórica e prática por meio da compreensão de abordagens educativas, de recursos e de ferramentas.

Recentemente, a província de Córdoba promulgou a Resolução nº 1.825/2019, que originou algumas alterações referentes à forma como é desenvolvido o processo de inclusão de estudantes com deficiência. Esse documento apresenta uma definição da DAI como uma professora de Grau de Ensino Especial dependente de uma escola de educação especial de gestão estatal ou privada. Desse modo, ao estar vinculada à uma escola de educação especial, a DAI pode desenvolver seu trabalho nessa mesma escola, ou também em escolas de nível7. Essa Resolução apresenta, de modo sucinto, três atribuições fundamentais referentes ao desenvolvimento do trabalho dessa profissional, que podem ser visualizadas no Quadro 1:

Quadro 1 Atribuições da DAI definidas pela Resolução nº 1.825/2019  

Atribuições da DAI
Realizar o acompanhamento da trajetória escolar do estudante com deficiência em processo de inclusão escolar.
Assessorar e orientar a equipe de gestão e o docente da escola de nível em relação aos processos de inclusão escolar, sendo esta uma estratégia educativa que tende a promover a inclusão em todos os seus âmbitos.
Acompanhar a trajetória escolar integral desde as seguintes configurações de apoio: atenção, assessoramento e orientação, capacitação, provisão de recursos, cooperação e ação coordenada, e acompanhamento.

As configurações de apoio podem ser compreendidas como as atividades desenvolvidas pela DAI com todas as instâncias do processo de inclusão (estudantes, familiares, professores e demais membros da equipe escolar). De acordo com Pereira (2019), as configurações de apoio são “redes e interações entre pessoas, grupos ou instituições que se organizam para identificar as possíveis barreiras na aprendizagem, bem como desenvolvem estratégias educativas para participação escolar e comunitária” (p. 43). Desse modo, a viabilidade das configurações bem como do desenvolvimento das atribuições da DAI está condicionada às condições de trabalho que essa profissional dispõe para tal.

2 Método

A composição metodológica para a realização deste trabalho deu-se a partir de uma pesquisa de cunho qualitativo e de inspiração etnográfica (André, 2009). Para isso, uma das pesquisadoras deste artigo foi à Província de Córdoba, em março de 2020, e contatou a Subdireção de Educação Especial e Hospitalar de Córdoba, que faz parte do Ministério da Educação. Lá, a pesquisadora realizou uma entrevista não estruturada com a Coordenadora Pedagógica e a Diretora Geral da Subdireção com o objetivo de conhecer o funcionamento e a organização da educação especial na Província de Córdoba.

A partir dos alinhamentos feitos com as responsáveis da Subdireção, a pesquisadora conheceu uma escola de educação especial, designada pelas responsáveis, e conversou com o Diretor e com a Coordenadora da equipe de inclusão dessa escola, que selecionaram uma DAI para participar da pesquisa. Assim, a pesquisadora acompanhou o desenvolvimento do trabalho de uma DAI pelo período de uma semana, tendo suas atividades interrompidas em função da pandemia da Covid-19. Nesse período, a pesquisadora conheceu três escolas de nível que estavam sob responsabilidade da DAI.

O diário de campo também compôs a gama de ferramentas utilizadas pela pesquisadora, como forma de registrar percepções, dúvidas e minúcias do campo a serem retomadas posteriormente, de modo que puderam contribuir com o desenvolvimento das análises.

Além da visita ao campo, foi feita uma análise documental com base em documentos oficiais da Argentina e da Província de Córdoba. Os principais documentos estudados foram a Lei Nacional de Educação (LEN) nº 26.206/2006 e as Resoluções nº 667/2011 (Instituto de Capacitación y Investigación de los Educadores de Córdoba - ICIEC, 2016), nº 311/2016 e nº 1825/2019, sendo esta última o principal foco deste estudo.

Os dados foram analisados a partir da análise de conteúdo, que tem por objetivo realizar uma análise crítica de discursos em formas variadas, com a intenção de “ver e ouvir” o que está para além daquilo que foi pronunciado (Bardin, 1977). Organizamos duas categorias de análise: modelos de compreensão de deficiência e condições de trabalho docente da DAI. Optamos por não fragmentar a discussão das categorias, que estão na seção de análise “As tensões da Resolução nº 1825/2019 e as implicações para as condições de trabalho da DAI”, mais adiante.

O projeto de pesquisa seguiu as exigências da Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde do Brasil e foi submetido à avaliação pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade da Região de Joinville (Univille). Por meio do Parecer n° 3.552.752, recebemos a resposta de que o CEP e a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) não estavam habilitados para a aprovação de estudos internacionais.

Os referenciais teóricos utilizados para a construção e a análise deste estudo estão pautados na psicologia histórico-cultural, que propõe uma compreensão do ser humano em sua totalidade, a partir das mediações estabelecidas na vida social (Vigotski, 1997).

3 Resultados e discussão

Esta seção está organizada em duas partes. A primeira consiste em uma apresentação do campo de estudo, com o objetivo de contextualizar a organização da educação especial na Província de Córdoba. A segunda apresenta as análises feitas a partir das alterações realizadas pela Resolução nº 1.825/2019 e suas implicações para o desenvolvimento do trabalho da DAI.

3.1 A educação especial em Córdoba: apresentação do campo de estudo

Na Província de Córdoba, existem escolas de educação especial de gestão pública e de gestão privada, sendo as atividades de ambas orientadas pela Subdireção de Educação Especial e Hospitalar de Córdoba. A organização e a divisão dessas escolas dão-se a partir de zonas, de modo que uma escola de educação especial possa fazer a cobertura de um número variável de escolas de nível nas proximidades de uma determinada região.

Nem todas as escolas de nível da Província estão inseridas em alguma zona das escolas de educação especial, devido a alguns fatores, dentre eles: a extensão territorial de Córdoba, que implica a existência de diversas escolas; as regiões rurais, que implicam a distância entre as escolas; recursos financeiros para o deslocamento da DAI e outros profissionais da equipe; quantidade de Docentes de Apoio à Inclusão habilitadas para fazer a cobertura da escola.

A instituição designada pela Subdireção de Educação Especial para ser acompanhada nesta pesquisa é a Escola de Educação Especial La Docta8. Para compreendermos melhor sua equipe de trabalho, a Tabela 1 apresenta a quantidade de DAI que atuam na cobertura das escolas de nível que compõem a zona pela qual a Escola La Docta é responsável.

Tabela 1 Distribuição das Docentes de Apoio à Inclusão da equipe da Escola de Educação Especial La Docta 

Nível Profissionais Escolas
Inicial 1 docente 15
Primário 9 docentes 31
Secundário 3 docentes 10

Para realizar a cobertura das escolas de nível, existem duas equipes de trabalho que atuam de maneira conjunta na Escola La Docta: a equipe técnica e a equipe de apoio à inclusão. A equipe técnica é composta por duas psicólogas, um psicopedagogo, uma assistente social e uma terapeuta ocupacional. Já a equipe de apoio é formada pelas Docentes de Apoio à Inclusão e por uma coordenadora. Essas equipes possuem momentos para avaliar as solicitações de acompanhamento e para identificar se são demandas para o trabalho da DAI ou para outros profissionais (psicólogos, terapeutas ocupacionais, entre outros).

A solicitação de acompanhamento é oficializada a partir da elaboração de um documento, em formato de relatório, chamado de informe. Esse documento deve apontar quais são as capacidades do estudante, entendidas, segundo a Resolução nº 311/2016, como “recursos e aptidões que um indivíduo tem para desempenhar uma determinada tarefa. [...]. Como exemplos: criatividade, comunicação, autorregulação do próprio processo de participação e aprendizagem” (p. 11).

Um informe pode ser elaborado pela docente de nível e pode receber contribuições de outros membros da equipe escolar, como outros professores e membros da equipe diretiva. Se essa escola já possui uma DAI atuando em seu espaço, ela também pode contribuir com a elaboração do documento.

As etapas percorridas pelo informe fazem parte de um processo chamado de “circuito”. O primeiro momento desse processo corresponde à elaboração do informe, que é encaminhado à direção da escola de nível, responsável por registrar a solicitação nos arquivos do estudante e encaminhar o documento à inspeção de nível (inicial, primário e secundário)9. Em seguida, o informe é encaminhado para a inspeção da modalidade de educação especial, que é responsável por encaminhá-lo para a última instância - a escola de educação especial, encarregada pela zona da qual a escola de nível faz parte. Ao chegar na última instância, o documento será avaliado pela equipe da escola de educação especial para determinar se a solicitação se configura como uma demanda para o trabalho da DAI ou não.

Esse processo não tem um tempo determinado, pode levar entre dias e meses. Enquanto o resultado não é deliberado, a DAI pode orientar, pontualmente, a escola e os docentes, pois ainda não possui autorização para desenvolver seu trabalho com o estudante. Quando se trata de uma escola que ainda não conta com uma DAI, a equipe da própria escola pode mobilizar-se e elaborar estratégias de intervenção para com aquele estudante.

As propostas de atendimento para os estudantes que são público-alvo da educação especial, de acordo com a LEN da Argentina (2006), têm a função de “assegurar o direito à educação de todas as pessoas com deficiências, temporárias ou permanentes, em todos os níveis e modalidades do sistema educativo” (p. 9). Para isso, as concepções de deficiência defendidas pelo Ministério de Educação da Argentina são sustentadas pelo modelo social de compreensão das deficiências, conforme aponta a Resolução nº 155/2011, do Conselho Federal de Educação da Argentina:

A deficiência não é um atributo da pessoa, mas sim um conjunto de condições que respondem à interação entre as características do indivíduo e o contexto social. Neste sentido, a deficiência é um resultado negativo da interação entre uma condição pessoal (a deficiência) e o meio (devido a suas barreiras). (p. 7)

Essa concepção de deficiência é um dos elementos que orienta o trabalho da DAI e dos demais atores do processo de inclusão, a fim de que as barreiras encontradas não sejam impedimentos do processo de aprendizagem e de desenvolvimento dos estudantes.

Além da concepção de deficiência, existem outros elementos importantes a serem considerados na construção do processo de inclusão, como as condições de trabalho docente que serão apresentadas a seguir.

3.2 As tensões da Resolução nº 1.825, de 2019, e as implicações para as condições de trabalho da DAI

A Resolução nº 1.825/2019 não apresenta as justificativas consideradas para sua aprovação, mas é possível conjecturarmos a influência de alguns fatores, dentre eles o movimento que a educação especial vem fazendo para construir um modelo de trabalho calcado em uma perspectiva social da deficiência, as diversas crises econômicas, políticas e sociais vivenciadas pela Argentina ao longo de sua história e a participação dos organismos internacionais nas políticas educacionais de países da América Latina, atravessados pela perspectiva neoliberal.

Esses atravessamentos encontraram forças no período da década de 1990, na qual, conforme Tello e Almeida (2014), os países da América Latina passaram por uma reorganização em relação à “racionalização da despesa pública, a descentralização administrativa e a transferência de responsabilidades da educação para níveis provinciais e municipais” (p. 165). Essa reorganização implicou, diretamente, as condições de trabalho docente, como a especificação de um salário, de carga horária e de atribuição de tarefas que esse profissional deve desempenhar, uma vez que esses três elementos estão interligados e podem sofrer alterações conjuntas, isto é, se a carga horária é modificada, espera-se que o salário e o rol de tarefas também sejam modificados.

De acordo com Morgado (2005), “não pode falar-se do papel do professor como se tratasse de algo perfeito e previamente definido, atribuível a qualquer docente, independentemente do contexto em que desempenha a sua função” (p. 33). Desse modo, o docente deve ser considerado como uma das partes envolvidas no processo escolar, o qual se dá em contextos diferenciados e específicos apesar dos pontos em comum.

O trabalho docente é marcado por uma série de relações que são construídas constantemente junto aos seus pares, aos estudantes, aos familiares e a todos aqueles que atuam na dinâmica escolar. Segundo Garcia et al. (2005), nessa dinâmica também participam outros elementos, como as histórias de vida dos professores, os discursos sobre eles e suas funções e as condições de trabalho.

De acordo com Vigotski (1999), as relações têm papel fundamental na constituição da personalidade das pessoas, pois possibilitam a apropriação dos conhecimentos produzidos e acumulados historicamente e medeiam a relação do indivíduo com o mundo, pois “nós nos tornamos nós mesmos através dos outros” (p. 56). Assim, as mediações e as apropriações do seu entorno são elementos fundamentais para que o indivíduo possa desenvolver novas formas de pensamento e de ação a partir da reflexão sobre si e sobre suas práticas.

A Resolução nº 1.825/2019 dispõe que o

Estado Provincial garanta as condições que favoreçam a inclusão escolar no sistema educativo da Província de Córdoba, no acompanhamento das trajetórias escolares de estudantes com deficiência, diminuindo e/ou eliminando toda barreira física, ambiental e de organização institucional que o impeça ou atrapalhe. (p. 6)

Além disso, o documento apresenta seis anexos referentes a cada nível da trajetória escolar: Anexo I: orientações gerais; Anexo II: orientações para o nível inicial; Anexo III: orientações para o nível primário; Anexo IV: orientações para o nível secundário; Anexo V: guia de orientação para implementação do Projeto Pedagógico para a Inclusão (PPI); Anexo VI: apresenta dois documentos para firmar o trabalho, entre a DAI e a escola, de acompanhamento de estudantes com deficiência em processo de inclusão. Ainda, a Resolução nº 1.825/2019 revoga outras quatro resoluções provinciais, algumas mais recentes, outras nem tanto: Resolução nº 1.114/2000 (Instituto de Capacitación e Investigación de los Educadores de Córdoba [ICIEC], 2016), Resolução nº 667/2011, Resolução nº 712/2015 e Resolução nº 311/2016.

Existem duas alterações promovidas oficialmente a partir da aprovação da Resolução nº 1.825/2019 em relação às terminologias utilizadas. A primeira refere-se à DAI, que era nomeada como “docente de apoio à integração10” e passou a ser “docente de apoio à inclusão”. A segunda alteração diz respeito ao termo “estudantes com Necessidades Educativas Derivadas da Deficiência” (NEDD), que deu lugar a “estudantes com deficiência”. Ambas as alterações, conforme a fala da Coordenadora Pedagógica entrevistada, são uma tentativa de “diferenciar-nos daquele programa que dependia da [Declaração] de Salamanca de 1994, onde a integração era que as crianças se adaptem ao currículo”. Assim, a mudança desses termos direciona o foco para o entorno social e para as dificuldades encontradas para incluir o estudante com deficiência, e não para o estudante ou para suas dificuldades.

Adotar essa perspectiva na educação especial possibilita-nos considerar as potencialidades de desenvolvimento de um estudante e perceber os avanços dele em comparação com sua própria trajetória. Isso permite identificarmos e investirmos em estratégias que estejam de acordo com as condições de cada um, considerando os conhecimentos e as habilidades que o estudante já tem, sem que as dificuldades estejam sobrepostas às potencialidades.

As alterações das terminologias encontram justificativa a partir de um distanciamento intencional de uma compreensão da deficiência pautada no modelo médico pedagógico. Esse modelo opera de forma oposta ao modelo social, e, para Michels (2011), propõe um “pensamento hegemônico, não somente na educação especial, mas na educação de maneira geral, que tem a base biológica como explicação para o insucesso escolar” (p. 227).

Ao assumir perspectivas que individualizam as causas e as estratégias para lidar com a deficiência e suas repercussões, há uma inviabilização de um modelo de trabalho calcado na colaboração entre os diferentes atores que atuam no processo de inclusão de estudantes com deficiência.

De acordo com as atribuições da DAI apresentadas no Quadro 1, seu trabalho é bastante dinâmico e relacional, pois dialoga com o estudante, com a equipe de gestão da escola, com o docente de nível e com a família. Pela variedade de ações que precisam ser acompanhadas, assessoradas e orientadas, compreendemos que seu papel é marcado por uma pluralidade de funções.

A Resolução nº 1.825/2019 apresenta as atribuições referentes à escola e aos familiares, que são compreendidos como parceiros de trabalho da DAI no processo de inclusão de estudantes com deficiência. Apesar de cada instância ter suas próprias atribuições, a DAI parece ser a maior responsável pelo desenvolvimento e acompanhamento de estratégias de intervenção, de modo que pode apresentar uma sobrecarga de trabalho, associada ao esgotamento e ao adoecimento (Gomes & Brito, 2006).

A DAI acompanhada nesta pesquisa é responsável pela cobertura de sete escolas de nível. Tanto as escolas como o número de estudantes que serão acompanhados em cada uma delas é definido a partir da avaliação do informe elaborado por parte da equipe da escola de educação especial. O informe é construído a partir de uma orientação pautada no modelo social de compreensão da deficiência e que enfatiza as capacidades do estudante sobre as dificuldades, assim como a teoria de Vigotski (1997) ao valorizar as potencialidades do estudante.

Ao adotar essa forma de compreensão da deficiência e do estudante, é possível desenvolver um trabalho que considera os caminhos já percorridos pelo estudante e valoriza uma trajetória enquanto potência, de modo que as dificuldades não sejam configuradas como incapacidades para o processo de aprendizagem e de desenvolvimento.

Para visualizarmos parte da demanda de trabalho dessa DAI, apresentamos a Tabela 2 com a quantidade de estudantes que já estavam sendo acompanhados no ano anterior pela mesma DAI ou outro profissional, e a quantidade de novas solicitações de acompanhamento, que ainda seriam avaliadas pela equipe da escola de educação especial para o ano de 2020. Às vezes, a solicitação não se configura como uma demanda para trabalho da DAI, mas, sim, para outros profissionais, como psicólogos, psicopedagogos, terapeutas ocupacionais, entre outros.

Tabela 2 Estudantes com solicitação para acompanhamento 

Escola11 Estudantes em acompanhamento Estudantes com solicitações novas Total
1 8 13 21
2 3 4 7
3 1 2 3
4 0 4 4
5 0 1 1
6 1 6 7
7 5 1 6
Total 18 31 49

Os dados contidos na Tabela 2 foram construídos a partir de um levantamento realizado nas reuniões iniciais da DAI com a direção de cada escola de nível sob sua responsabilidade. Assim, além dos 18 estudantes que já estavam em acompanhamento no ano anterior, e que continuariam sendo acompanhados no ano de 2020, outros 31 ainda seriam avaliados, o que representa uma demanda de trabalho bastante densa para uma DAI.

Conforme descrito na Tabela 1, reforçamos que o trabalho da DAI não envolve somente o estudante, mas seus familiares e toda a escola. No desenvolvimento do trabalho da DAI, o estudante não é retirado da sala de aula. Observar o aluno em sala é apenas uma das estratégias de seu trabalho que encontra continuidade nas orientações construídas junto à equipe escolar.

A distribuição da carga horária da DAI é organizada a partir da quantidade de escolas e de alunos a serem acompanhados, bem como a disponibilidade de horários da coordenação. A DAI pode estar presente um período (manhã ou tarde) por semana, dois períodos (manhã e tarde) por semana, ou quinzenalmente.

Nas escolas de nível, a DAI pode atuar com a equipe por meio de encontros agendados ou no dia a dia, como no momento de intervalo na sala dos professores ou no pátio e nos corredores entre o horário das aulas. Durante a imersão no campo, a pesquisadora pôde acompanhar um momento desses na sala de professores de uma das escolas de nível. Enquanto compartilhavam um mate12, as professoras que estavam presentes também compartilhavam cenas vivenciadas referentes à sala de aula e aos estudantes. De maneira informal, isto é, sem um documento oficial, solicitaram auxílio à DAI em relação a alguns estudantes que ainda não eram acompanhados e trocaram informações sobre aqueles que já vinham sendo acompanhados desde o ano anterior.

A partir de momentos como esse, a DAI tem a possibilidade de construir uma relação com os docentes da escola e conhecer mais a dinâmica escolar por meio dos relatos compartilhados. Essa construção também implica condições de trabalho necessárias para a atuação da DAI, como tempo e espaço para a realização desses encontros e o desenvolvimento de um plano de trabalho pensado a partir das necessidades de cada estudante, de cada turma, de cada professor de nível.

Para isso, defende-se a proposta de um trabalho interdisciplinar e colaborativo, pois, segundo Damiani (2008), apresenta “potencial para enriquecer sua [dos professores] maneira de pensar, agir e resolver problemas, criando possibilidades de sucesso à difícil tarefa pedagógica” (p. 18). Além disso, um trabalho colaborativo deve resultar na distribuição de tarefas, de modo que nenhuma das partes fique sobrecarregada durante o desenvolvimento das propostas educativas.

Conforme já apontamos, a DAI pode encontrar uma sobrecarga de trabalho devido às variadas atividades que possui sob sua responsabilidade. Essa sobrecarga parece ser ampliada a partir de outra alteração na Resolução nº 1.825/2019, que está relacionada à retirada do número limite de estudantes a serem acompanhados por uma mesma profissional.

Em uma das Resoluções revogadas, a Resolução nº 667/2011 (ICIEC, 2016), consta, no Art. 8°, que a DAI “cumprirá suas funções atendendo um número de estudantes integrados não maior que dez (10)” (p. 68). Já na nº 1.825/2019 não consta essa delimitação, o que indica uma intensificação do trabalho da DAI, bem como uma diminuição dos direitos docentes, que são inerentes às condições de trabalho possibilitadas pelas políticas educacionais. Sem respaldo, o docente fica sujeito a uma perspectiva mercadológica da educação, na qual impera a lógica da produtividade defendida pelo capitalismo, que tem como objetivo principal a acumulação de capital. Desse modo, quanto mais estudantes um mesmo docente puder acompanhar, menor será o investimento em recursos humanos e financeiros.

Esse é um dos efeitos gerados pelo processo capitalista que transfere ao profissional o custo emocional de seu trabalho. De acordo com Pereira e Cordeiro (2020), ao considerarmos que nossa “sociedade [é] individualista, consumista e extremamente imediatista, incluir a diversidade e trabalhar colaborativamente apresentam-se como grandes desafios, gerando pontos de tensão” (p. 18) evidenciados nas políticas públicas e vivenciados não só pelos docentes, mas por todos os atores escolares.

Assim, para Nascimento et al. (2019), “a implantação e implementação de políticas educacionais de cunho neoliberal tendem a usurpar tempo, privacidade, ousadia e sonhos de grande parte dos profissionais da educação, interferindo na identidade profissional” (p. 51). Exige-se do profissional que faça mais, acompanhe mais, crie mais, gerencie mais, tudo mais, como um “superprofessor” (Evangelista & Triches, 2012), exceto as condições necessárias para que ele desenvolva essa ampliação de atribuições relacionados ao seu trabalho.

As condições de trabalho necessárias para o desenvolvimento do trabalho da DAI podem ser percebidas a partir de outro trecho do anexo da Resolução nº 1.825/2019:

As instituições educativas colocarão à disposição quatro (4) horas mensais, no âmbito do horário de trabalho habitual, para as tarefas de reflexão, análise, coordenação e avaliação do processo de inclusão a ser levado a cabo, envolvendo os dirigentes, docentes do estabelecimento educativo e docentes de apoio à inclusão. (p. 4)

A proposta de disponibilizar quatro horas para reuniões entre a equipe representa um elemento de contradição na política educacional, que aponta para uma discrepância entre norma e realidade, e entre gestão política e trabalho docente. Por um lado, esses momentos de encontro e de construção coletiva são fundamentais para o desenvolvimento do trabalho da DAI, bem como para o processo de inclusão de cada estudante. Por outro lado, a organização dessas reuniões implica a mobilização de alguns fatores, como encontrar horários compatíveis com as agendas dos participantes, conciliar essa atividade com as demais atribuições, o deslocamento da DAI entre as escolas, entre outros.

Considerando essas implicações, a exigência das novas necessidades apontadas pela Resolução nº 1.825/2019 pode trazer como consequência um cenário de precarização e/ou agravamento das condições de trabalho. Pereira (2019) já havia sinalizado a sobrecarga de trabalho da DAI mesmo quando a Resolução defendia o número limite de estudantes a serem acompanhados. Destacamos que essa delimitação estar presente no documento não é garantia de que isso será cumprido na prática. Isso corrobora as discussões de Rockwell (1999) sobre o cotidiano escolar, ao afirmar que a realidade documentada é diferente da realidade vivida no dia a dia.

O que apresentamos, aqui, são alguns apontamentos sobre os possíveis efeitos da Resolução nº 1.825/2019 estudada, considerando que esta é bastante recente e não teve tempo para uma experimentação efetiva, dada a interrupção das aulas presenciais por conta da pandemia, em março de 2020, menos de quatro meses após a data de publicação do documento.

Nossos apontamentos refletem uma preocupação com a expansão do capitalismo de cunho neoliberal presente nas políticas educacionais, visto que esse modelo de organização social atua de maneira rizomática, segundo Pelbart (2003), “na sociedade em seu conjunto, na qualidade da população, na cooperação, na convenção, na aprendizagem, nas formas de organização que hibridizam o mercado, a empresa, a sociedade” (p. 110).

Nessa lógica de mercado, os organismos internacionais, especialmente os Bancos, conforme Tello e Almeida (2014), têm “na sua argumentação, a profissionalização docente em termos de resultados, descontextualizada de todo o contexto social, político e econômico dos educadores e estudantes da escola na América Latina” (p. 168). Desse modo, reforça-se a figura do docente como responsável pela produção e pela garantia de resultados.

Essa imagem docente está associada à ideia de um professor gestor, advinda dos modelos corporativos aplicados à educação. De acordo com Evangelista e Triches (2012), “a gestão é colocada como estratégica, pois se entrelaça com responsabilização, resultados, cumprimento de metas, participação, inclusão, envolvimento e empreendedorismo - assim como numa empresa” (p. 190).

Esses termos direcionam para uma prática docente ampliada, na qual o professor deve assumir funções de gerenciamento na escola, como acontece com as atribuições da DAI. É ela quem faz o gerenciamento das atividades e da equipe envolvida no processo de inclusão dos estudantes com deficiência. A ampliação da prática docente reflete na intensificação do trabalho, de modo que o professor seja um “superprofessor”, o qual, segundo Evangelista e Triches (2012), “é posto como solução para os problemas da sociedade” (p. 190) de maneira individualizada e perversa.

4 Conclusões

Nossa pretensão não foi esgotar as possibilidades de análises da Resolução nº 1.825/2019 estudada e nem dos efeitos do capitalismo de cunho neoliberal nas políticas educacionais, mas levantar alguns pontos que estão presentes no dia a dia das DAI, e de algum modo dos docentes da América Latina.

O fenômeno da intensificação do trabalho docente não é uma realidade exclusiva da Argentina, e sua presença nos países latino-americanos é decorrente de uma das principais características que representam o modelo de organização social capitalista - a homogeneização. A partir dessa característica, encontramos diversas similaridades nos países referidos, como serem países emergentes, marcados por desigualdade social acentuada e altos níveis de pobreza.

Há um avanço na concepção de deficiência adotada pelas Resoluções de educação especial em Córdoba, e na Argentina de modo geral, mas a partir da última Resolução provincial aprovada, a nº 1.825/2019, evidencia-se que as condições efetivas para a realização do trabalho podem não ser condizentes com as necessidades reais.

O aumento do número de estudantes, e talvez de escolas de nível a serem acompanhadas, configura-se como indícios de que o trabalho docente é intensificado, pois há a necessidade de deslocamento, de planejamento individual para cada estudante, de conversa com as famílias, os professores e os demais membros da equipe escolar.

Assim, destacamos duas principais consequências da intensificação do trabalho dos docentes de apoio à inclusão. A primeira consequência diz respeito a um possível adoecimento e esgotamento dos professores que precisam trabalhar mais, mesmo que as condições não sejam ampliadas proporcionalmente. A segunda consequência reside na forma como a inclusão educacional é realizada. Com a diminuição das condições de trabalho, o processo de inclusão pode ser precarizado, o que, muitas vezes, pode favorecer a segregação ou a “inclusão perversa” (Sawaia, 2010) de estudantes com deficiência.

5Utilizaremos “a DAI”, no feminino, pois as docentes entrevistadas para a pesquisa eram mulheres, o que corrobora a discussão de Hypolito (1997) acerca da feminização do magistério na América Latina.

6Universidade Provincial de Córdoba. Profesorado Universitario de Educación Especial. Ver mais em http://upc.edu.ar/fes/profesorado-universitario-en-educacion-especial/

7Escola de nível é a denominação utilizada na Argentina equivalente às escolas de ensino regular no Brasil. Utilizaremos essa nomenclatura para diferenciar da escola de educação especial ao longo deste trabalho.

8La Docta em latim quer dizer “A sábia” e é um dos apelidos da cidade de Córdoba por abrigar a Universidade Nacional de Córdoba (UNC), a mais antiga do país e a quarta na América.

9Segundo a Lei Nacional de Educação (LEN) nº 26.206 (2006), na Argentina, a divisão do sistema de ensino dá-se em três níveis: inicial (45 dias - 5 anos de idade, sendo obrigatórios os dois últimos); primário (6 anos de idade, totaliza seis ou sete anos de estudo) e secundário (adolescentes e jovens que tenham cumprido o nível de educação primária, totalizando cinco ou seis anos de estudo).

10No trabalho de Pereira (2019), consta o termo “docente de apoio à integração”, pois era a denominação vigente no momento da pesquisa, e a Resolução nº 1.825/2019 com as alterações foi publicada somente após a data de defesa.

11 Os nomes das escolas de nível nãoconstam na pesquisa, pois não tivemos confirmação do Ministério de Educaçãoquanto à autorização para identificá-las.

12O costume de tomar e compartilhar o mate na Argentina é muito semelhante ao costume do chimarrão dos brasileiros. No Brasil, o preparo é feito com uma erva grossa e água quente, servidos em uma cuia geralmente média ou grande. Enquanto na Argentina, o mate é preparado com uma erva mais fina e água quente, servido em uma cuia pequena, pois, assim, as pessoas não levam muito tempo para beber e passar para a próxima.

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Recebido: 01 de Junho de 2021; Revisado: 16 de Agosto de 2021; Aceito: 13 de Outubro de 2021

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