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Revista Brasileira de Educação Especial

versão impressa ISSN 1413-6538versão On-line ISSN 1980-5470

Rev. bras. educ. espec. vol.28  Marília  2022  Epub 09-Ago-2022

https://doi.org/10.1590/1980-54702022v28e0152 

Relato de Pesquisa

Cada Criança é uma: Histórias de Desenvolvimento e Aquisição da Linguagem

Every Child is Unique: Stories of Development and Language Acquisition

Débora DAINEZ2 
http://orcid.org/0000-0002-8223-098X

Adriana Lia Friszman de LAPLANE3 
http://orcid.org/0000-0003-0755-3110

Kelly Cristina Brandão da SILVA4 
http://orcid.org/0000-0002-3512-1481

Maria Fernanda BAGAROLLO5 
http://orcid.org/0000-0003-3325-2370

2Docente do Departamento de Ciências Humanas e Educação (DCHE) e do Programa de Pós-Graduação em Educação (PP-GEd). Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), campus Sorocaba. Campinas/São Paulo/Brasil. E-mail: ddainez@ufscar.br.

3Docente do Departamento de Desenvolvimento Humano e Reabilitação (DDHR). Faculdade de Ciências Médicas (FCM). Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Campinas/São Paulo/Brasil. E-mail: adrifri@unicamp.br.

4Docente do Departamento de Desenvolvimento Humano e Reabilitação (DDHR). Faculdade de Ciências Médicas (FCM). Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Campinas/São Paulo/Brasil. E-mail: kcbsilva@unicamp.br.

5Docente do Departamento de Desenvolvimento Humano e Reabilitação (DDHR). Faculdade de Ciências Médicas (FCM). Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Campinas/São Paulo/Brasil. E-mail: mariafer@unicamp.br.


RESUMO:

O objetivo deste artigo é caracterizar a variabilidade das formas de aquisição da linguagem e analisar os meios de produção verbal, focalizando o papel da interação social. Na contramão de um modelo pautado na descrição de ausências, sintomas e desvios, adotou-se um ponto de vista dinâmico e processual na investigação da linguagem, considerando o sujeito, a sua história, seu meio social e sua condição de desenvolvimento. A pesquisa consistiu no seguimento de cinco crianças com idades entre dois e quatro anos, com queixas relacionadas à aquisição da fala. As sessões foram gravadas em vídeo e os dados foram construídos a partir da descrição do processo aquisicional envolvendo a produção das crianças em situações clínicas. Observou-se que os processos de aquisição da linguagem são entrelaçados com a história de constituição da singularidade dos sujeitos, e que os diversos fatores de caráter orgânico, psíquico e social incidem na trama do desenvolvimento linguístico e na formação da personalidade. Nas análises, chama-se atenção para o mosaico de recursos comunicacionais que se confgura ao confrontarem-se os casos e examinarem-se os componentes aquisicionais que se differenciam e se assemelham. Verificou-se que, para além de alterações de linguagem, se faz necessário focalizar os usos peculiares de recursos da linguagem.

PALAVRAS-CHAVE: Desenvolvimento infantil; Aquisição de linguagem; Interação social

ABSTRACT:

The aim of this paper is to characterize the variability in the forms of language acquisition and to analyze the means of verbal production, focusing on the role of social interaction. As opposed to a model based on the description of absences, symptoms, and deviations, we have adopted a dynamic and procedural point of view in the investigation of language, considering the subject, their history, social environment and development condition. The research consisted in the follow-up of fve children aged two to four years with indications related to speech acquisition. The sessions were video-recorded, and the data were constructed based on the description of the acquisition process involving the production of children in a clinical context. We have perceived that language acquisition processes are intertwined with the account in the constitution of singularity of the subjects, and that various organic, psychic, and social factors affect language development and personality formation. In the analyses, we draw attention to the mosaic of communicational resources that is revealed when we confront the cases and examine the acquisition components that are different from each other and that are similar. We have found that, in addition to language alterations, it is necessary to focus on the peculiar uses of language resources.

KEYWORDS: Child development; Language acquisition; Social interaction

1 Introdução

Quando se trata de compreender a emergência da linguagem infantil, torna-se intrigante o fato de algumas crianças produzirem as primeiras palavras antes mesmo de completarem um ano, enquanto outras chegam aos quatro anos de idade sem falar ou emitindo palavras isoladas.

Uma vez que a inserção do sujeito na cultura é conduzida pela comunidade linguística, a falta de produções verbais esperadas em determinada faixa etária é fonte de desconcertos, dificuldades e dúvidas. Elas geram angústias nos pais e queixas sobre a fala da criança (Laplane et al., 2013), além de provocar preocupação nos profssionais da saúde e da educação em relação aos problemas decorrentes. O efeito da linguagem da criança no outro pode suscitar um quadro sintomático. A tendência é fazer sobressair a face patológica do processo, confgurando-se como demanda para a intervenção clínica.

A ausência de fala e o sofrimento causado pela pressão social para que ela emerja propiciam a abertura de um espaço para a atuação do clínico de linguagem. Esse contexto é favorável à observação da relação sujeito-linguagem-interação, a qual nos instiga a investigar a variabilidade na aquisição da linguagem e seus enigmas.

Em meados da década de 1970, já se mencionava o fato de que algumas crianças começam a falar de maneira repentina, produzindo sentenças sem, necessariamente, seguir os estágios precedentes. Outras enunciam as primeiras palavras por volta de 1 a 2 anos e param nesse ponto, passando a produzir raramente ou deixando de falar por um período, adotando uma estratégia de compreensão e não de emissão. Ainda há aquelas que adquirem a fala tardiamente e as que não chegam a falar, mas compreendem e fazem uso de funções comunicativas (Nelson, 1977).

Nessa linha de raciocínio, o conceito de estágios na aquisição da linguagem refete a dinamicidade dos momentos de emergência dos processos, que implica rupturas e continuidades qualitativas. Essa ideia contrapõe-se à concepção da linearidade dos fenômenos, identificada com a forma regular, estática e universal. O principal fator que dificulta o empreendimento de determinação de estágios do desenvolvimento linguístico é o da variação individual do desenvolvimento (Perroni, 1994).

Pensar a variabilidade implicada na aquisição da linguagem requer a observação dos processos de constituição social da subjetividade que se manifesta na unicidade dos atos. Nosso estudo se propõe, assim, a dar visibilidade aos modos singulares de cada criança imergir no universo da língua(linguagem) via interação. Objetivamos, portanto, caracterizar a variabilidade das formas de aquisição da linguagem de crianças em acompanhamento terapêutico, com foco no papel da interação social, analisando os meios de produção verbal de crianças pequenas. As perguntas norteadoras do estudo são: Qual é o papel da interação nas differentes formas de aquisição da linguagem que as crianças apresentam? Quais são os recursos comunicacionais utilizados pelas crianças no processo de aquisição da linguagem?

A pesquisa foi realizada em uma clínica-escola ligada ao curso de Fonoaudiologia de uma universidade pública do estado de São Paulo. A clínica é campo de estágio do curso, e uma das disciplinas práticas semanalmente recebe crianças de até cinco anos de idade com queixas relacionadas à aquisição da fala, propostas por pais, profssionais e escolas. A disciplina caracteriza-se como espaço de atendimento preventivo, e a proposta terapêutica visa a acompanhar e a favorecer os processos de aquisição da linguagem por meio de atividades lúdicas e de interação. Com uma perspectiva interdisciplinar, busca colaborar com a família e a escola, de modo a acolher suas angústias e suas preocupações, oferecendo conhecimento, interlocução e apoio.

O estudo debruça-se sobre as histórias de algumas das crianças atendidas nesse contexto, escolhidas por evidenciar a diversidade dos modos/ meios de aquisição e uso da linguagem. Buscamos problematizar as variadas formas de imersão da criança no fluxo da língua(linguagem), possível na dinâmica interacional.

2 Discussão teórica

O avanço nos estudos linguísticos, nas teorias da psicologia do desenvolvimento e em outras disciplinas fazem da área de aquisição da linguagem um cenário marcado pelo hibridismo teórico-metodológico e por controvérsias argumentativas. A busca de entendimento do fenômeno leva os pesquisadores a filiações e a perspectivas teóricas advindas de differentes campos de conhecimento, o que colabora para a conformação de uma problemática interdisciplinar por excelência.

Sem perdermos de vista as demarcações do espaço-tempo de produção teórico-conceitual e as distintas nuances que caracterizam os enfoques, podemos dizer que, na contemporaneidade, os trabalhos de Bruner (1986), Lemos (2002) e Tomasello (2003), entre outros, contribuem para respaldar a inclusão da dimensão social e interacional no quadro explicativo da aquisição da linguagem. Essa ancoragem permite compreendermos que as experiências linguísticas vividas pela criança são possibilitadas pela interação com o outro.

Como efeito da condição de dependência prolongada do bebê da espécie humana, o recurso disponível no início da vida para satisfazer as suas necessidades é a interação com outro ser humano. Suas primeiras formas de ação, seus primeiros sons adquirem intenção e expressão, função comunicacional e emocional na interpretação da mãe, que acolhe, atribui valor, confere sentido, significado e forma. Desde que nasce, até mesmo antes disso, a criança já é falada pelo outro que também fala com ela. A criança participa em escuta ativa e, aos poucos, vai se confrontando com os usos da linguagem, retomando fragmentos do enunciado de seu interlocutor, modificando-o em partes ou totalmente (Del Ré, Paula, et al., 2014; Del Ré et al., 2021; Delamotte, 2021).

A respeito disso, o papel estruturante de uma forma particular da fala dos adultos dirigida aos bebês, nomeada como manhês (Dominguez et al., 2017; Snow, 1989), possui características peculiares em termos de sintaxe, léxico e prosódia. Essas características fornecem pistas importantes sobre a língua materna e auxiliam o bebê na segmentação do enunciado que lhe chega (além de outras, não menos importantes, de cunho afetivo).

Conforme explorado por Bruner (1986), as ações mãe-bebê vão se coordenando em formatos interacionais, abarcando cenas e jogos de ação e atenção conjunta e suas equivalentes linguísticas – inversão de papéis enunciativos, alternância de turnos conversacionais, permanência de tópicos. Em situações de atenção e ação conjunta com a mãe, a criança não só aprende a distinguir o segmento da ação como também as regras de substituição, as trocas de posições, a mudança de perspectivas. Nesse jogo, alinham-se formatos do tipo indicar e solicitar. Tal estrutura viabiliza processos de referenciação, os quais dizem respeito à forma como o outro dirige a atenção da criança por meios linguísticos. Os processos de assumir papéis, negociar, alternar turnos e adotar a perspectiva do outro instrumentalizam a criança para articular os próprios atos referenciais com os de seus interlocutores – amplia-se a atividade referencial de linguagem, que permite o acesso a níveis mais complexos de comunicação.

Tomasello (2003), por uma perspectiva evolucionista para explicar a cognição social, também focaliza os aspectos interacionais no processo de aquisição da linguagem. O autor propõe uma teoria baseada no uso, segundo a qual o processo de aquisição está relacionado ao fato de a criança compreender que existe uma intenção na ação comunicativa do outro em cenas de atenção conjunta, e que ela pode valer-se desse mesmo recurso linguístico. Presumimos que esse fenômeno deriva de uma forma de cognição inferencial, contingenciada/contextualizada, intersubjetiva/socialmente compartilhada, perspectivada/ percepção dos differentes pontos de vista.

De acordo com essa visão, vivendo em um mundo cultural, com artefatos, práticas e pessoas, a criança envolve-se em formas colaborativas e coordenadas de interação, o que possibilita a leitura da intencionalidade comunicacional, a interpretação do dizer e certa ordenação do sentido. Isso porque a natureza perspectivada implica a não co-incidência do mesmo referente, pressupondo um processo de regulação com fluidez. O engajamento em cenas de atenção conjunta e referencial, o reconhecimento mútuo, a partilha de intenções e as operações perspectivadas são processos que ancoram a apropriação de signos linguísticos, os quais, por sua vez, incidem na organização cognitiva da criança, viabilizando formas de categorização, analogia, causalidade.

Como podemos notar, Bruner (1986), precursor da teorização sobre atenção conjunta que emerge no plano ontogenético, realça a estruturação de formatos interacionais mãe-bebê para explicar os processos que subsidiam a emergência da linguagem, enquanto Tomasello (2003), a partir de um ponto de vista evolucionário, enfatiza a ideia de uma cognição inferencial, contextualizada, intersubjetiva e perspectivada, que se tornou viável no plano filogenético, sustentando a apropriação de signos linguísticos no contexto interacional. De differentes formas, focalizando dimensões distintas do processo de humanização, ambos os autores salientam a importância de compartilhar intenções nas cenas de atenção conjunta e privilegiam a interação como fator que incide na ordenação e na continuidade da aquisição da linguagem.

No âmbito de uma perspectiva linguística ancorada na psicanálise, Lemos (2002, p. 45) tratou de “regularizar o heterogêneo” na fala da criança pequena em conexão com a fala daquele já submetido à ordem da linguagem – daquele que lhe oferece os significantes. Detevese a descrever processos de vinculação linguística que a interação adulto-criança produz, seja evidenciando indicadores de coesão e de progressão ou de incongruências e de discrepâncias que aí emergem. Os aspectos subjetivos emergentes são reconhecidos tanto na identificação da criança com a fala da mãe quanto na não-coincidência entre os significados de seus enunciados.

No domínio da interação, na assimetria entre falas, reside o modo singular de enlaçamento da criança pela linguagem, atrelado à interpretação do outro. Em se adotando a interpretação como determinante do processo, ressaltamos que a fala dirigida à criança é habitada por valores, ideologias, imagens, sentidos que se cruzam e produzem uma pluralidade de efeitos, dentre eles o patológico (Lier-De Vitto, 2001, 2015). Se a estruturação da linguagem está ligada aos processos de subjetivação, a ausência de fala diz da condição-sujeito na língua(linguagem).

Faz-se necessário, portanto, suplantarmos uma visão descritiva e classificatória que circunscreve a fala como ato motor passível de ser corrigido, pressupondo um falante ideal. De acordo com Santana e Santos (2017), uma das perspectivas que se afastam dessa visão é a que compreende o processo linguístico em sua dinamicidade, o que permite considerarmos as situações enunciativas nas relações com as histórias dos falantes e com os contextos de que participam.

Esses estudos contemporâneos sobre a aquisição da linguagem provocam-nos a revisitar os trabalhos vigotskianos pautados na abordagem histórico-cultural do desenvolvimento humano que concebe a linguagem como uma nova formação psíquica emergente da história de vivência social da criança. Com esse pressuposto, chamamos atenção para o fato de que as interações, que promovem a emergência dos processos (patológicos) de linguagem, são demarcadas pela situação social do desenvolvimento, produzidas culturalmente (Vygotski, 1996).

A periodização é, então, reformulada como produção sociocultural – portanto, dinâmica. Assinalam-se a orientação social e o caráter histórico-dialético do desenvolvimento, dissolvendo a suposta eficácia da cronologia das faixas etárias. Nesse sentido, os processos de aquisição da linguagem condensam tensões entre as pressuposições, as expectativas, as imposições do grupo social e as condições de cada criança. “O que acaba definindo um quadro patológico de linguagem é menos um déficit [...] e mais a insistência/persistência de algo que é reconhecido como fora do tempo – algo que não é mais esperado ocorrer numa certa idade” (Lier-De Vitto, 2001, p. 249).

A delimitação do tempo e a cobrança das aquisições correspondentes são produzidas e ordenadas socialmente, afetando a relação da criança com o meio e a orientação dos processos de desenvolvimento. O tempo do desenvolvimento de uma criança pode não coincidir com o tempo do desenvolvimento da linguagem previsto para cada faixa etária. No percurso de aquisição, manifestam-se as divergências de ritmo, de sucessão de eventos, de aquisições esperadas/ desejadas em determinada idade.

A atividade de linguagem ocorre, assim, entranhada nas vivências impregnadas de sentidos e de significados, possíveis no sistema de relações em que a criança é envolvida. Entende-se por vivência/perejivânie (Vigotski, 2018) a fusão da dimensão individual e social, subjetiva e objetiva, emocional e cognitiva, em outras palavras, a síntese da personalidade formada pelas condições do meio e as particularidades do indivíduo. O termo perejivânie, usado na língua russa, remete ao modo como o indivíduo refrata a situação social vivida (Veresov, 2016). Na vivência, são representadas a situação social de desenvolvimento e a singularidade de uma história construída.

Essa forma de abordar a aquisição da linguagem, na sua heterogeneidade de possibilidades, remete à compreensão de como os differentes elementos do meio são vivenciados por cada criança. E, ainda, coloca o desafo de instaurar um espaço interacional que favoreça novas aquisições e novos intercâmbios.

3 Método

Caracterizarmos a variabilidade dos modos de aquisição da linguagem atentando aos fatores e processos relacionais e interativos implica termos em vista a especificidade dos dados advindos de uma realidade dinâmica e não controlada. Essa preocupação exige escolhas metodológicas que encaminhem o olhar para o processo, a descoberta exploratória, descritiva e explicativa. Por isso, esta pesquisa insere-se no âmbito da abordagem qualitativa, ancora-se na experiência e considera a subjetividade dos participantes, pautando-se na compreensão e na interpretação do fenômeno estudado e suas (ir)regularidades e complexidades (Minayo, 2012).

A pesquisa confgura-se como estudo de caso, de modo a investigar o processo de aquisição da linguagem em seu contexto real. Buscamos a generalização a partir do estudo aprofundado de casos únicos (Flyvbjerg, 2006) – a generalização é analítica, e não estatística (Del Ré, Hilário, & Mogno, 2014).

O trabalho de campo foi realizado no ambulatório de Avaliação e Prevenção de Alterações de Linguagem que funciona como campo de prática do curso de Fonoaudiologia de uma universidade pública no interior do estado de São Paulo. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da instituição, por meio do Parecer nº 95296418.0.0000.5404. A duração foi de um ano, ao longo do 2º semestre de 2018 e o 1º semestre de 2019, uma vez por semana. Acompanhamos as sessões de atendimento de seis crianças na faixa etária de 2 a 4 anos com queixas relacionadas à aquisição da fala. Uma das crianças foi encaminhada a outro serviço antes da conclusão da pesquisa; por isso, seus dados foram excluídos deste estudo. O atendimento foi realizado por terceiranistas do curso de Fonoaudiologia e supervisionado pelas três docentes que conduzem a disciplina prática (Fonoaudióloga, Psicóloga e Pedagoga).

As cinco crianças escolhidas para participar deste estudo apresentam differentes histórias de desenvolvimento e características. Elas têm em comum a queixa de atraso na aquisição da linguagem, mas differem nas idades e nos modos de agir e de interagir. As differenças são representativas da variabilidade de possibilidades de as crianças se relacionarem com a linguagem.

As sessões foram registradas em vídeo, recurso que permite revisitar um evento único para que gestos e expressões, movimentos corporais e faciais, vocalizações, falas e entonações possam ser reavaliados e analisados. Viabiliza capturar detalhes precisos e reproduzir inúmeras vezes a situação observada, possibilitando interpretações minuciosas e sistemáticas.

Após o registro, as filmagens foram assistidas e transcritas ortograficamente. Também utilizamos como fonte de dados os prontuários e os relatórios escritos por differentes observadores (alunos do curso de Fonoaudiologia, profssionais, alunos dos programas de pós-graduação). Esse material permitiu compor uma história detalhada de cada criança e de seu contexto de vida.

Os dados foram construídos com base na descrição indiciária (Ginzburg, 2003) do processo aquisicional, envolvendo a produção das crianças em situações de interação e em atividades lúdicas.

4 Resultados e discussão

Apresentamos, a seguir, os casos estudados, em busca de extrair indícios do processo de aquisição e analisar as características comunicacionais nas situações de interação. Focalizamos a relação da criança com a linguagem em sua história de vida, atentando aos usos singulares de recursos e às particularidades aquisicionais que se atualizam no espaço intersubjetivo partilhado, criado no contexto clínico.

Caso 1: Fred (2 anos) foi atendido durante 12 meses por queixa de atraso de fala. A criança nasceu com 37 semanas e 2 quilos e 700 gramas, teve anemia e episódio de hiperbilirrubinemia. Fez uma transfusão de sangue com um mês de vida e outra aos dois meses. No momento de atendimento, a criança não frequentava a escola. Ao iniciar o processo terapêutico, apresentava intenção comunicativa, respondia aos chamados e mantinha contato visual, mas participava pouco das interações e das brincadeiras propostas. Repetia várias vezes as ações, produzia onomatopeias e as palavras não e mãe. Também apontava e acenava com a cabeça. Ao longo do processo, ampliou o vínculo e a interação com o terapeuta. Envolveu-se em brincadeiras simbólicas e que pressupõem o outro, engajado efetivamente em cenas de atenção conjunta. Passou a solicitar a atenção do outro, a colaborar nas atividades e demonstrar preocupação com o outro, oferecendo ajuda. Emitiu abiu associado ao gesto de apontar, repetindo a fala da terapeuta e se referindo à porta de uma casinha de brinquedo que foi aberta com a chave.

Caso 2: Gael (2 anos e 2 meses) foi atendido durante 13 meses. A mãe relatou queixa de atraso no desenvolvimento neuropsicomotor devido à prematuridade (diabetes gestacional). Nos atendimentos, Gael mostrou-se disposto a cooperar com o terapeuta no desenvolvimento da atividade, olhando para o interlocutor e chamando-o para brincar. Vocalizou /eS/ na tentativa de imitar a palavra três emitida pelo terapeuta e produziu onomatopeia /pa/ para colisões no contexto de brincadeira de carrinhos. Mostrou compreensão em situações como: olhar imediatamente quando chamado, manter a atenção durante o discurso do interlocutor, sorrir, acenar positiva e negativamente com a cabeça, apontar e executar diversas ações. Apesar de apresentar uma ampla interação com adultos, resistia a interagir com crianças. Demonstrou compreender jogos com regras e atribuiu valor simbólico aos objetos. No decorrer dos atendimentos em dupla, foi estabelecendo interação com outras crianças. Participou sistematicamente em cenas de atenção conjunta e buscou cada vez mais chamar atenção do interlocutor com o olhar e oferta ou demonstração de objetos. Também ampliou a imitação das ações do terapeuta, incorporando-as em sua atividade e iniciando diálogos. Continuou vocalizando /eS/ de forma generalizada, mas, no contexto da conversação, tentou produzir algumas palavras como achei, emitida em uma situação de brincadeira de esconde-esconde. A mãe relatou que a criança, quando se despediu dos convidados em sua festa de aniversário, acenou tchau e emitiu tau.

Caso 3: Manuel (2 anos e 8 meses) frequentou sessões de fonoaudiologia durante 16 meses. A queixa inicial da mãe era não fala nada. Em momento posterior, a mãe relatou que o filho era tímido na escola e evitava contato com outras crianças. Manuel é o caçula, irmão de um menino com diagnóstico de autismo e fssura labiopalatina. A mãe comentou que Manuel nasceu para cuidar de seu irmão. No início do atendimento, apresentou produção vocal semelhante à do irmão com incidência de maior nasalidade, não justificada por intercorrências na função velofaríngea. Na sala de espera, notou-se que ele imitava o comportamento do irmão. Tinha interesse em personagens de filmes infantis que utilizam acessórios como chapéus e botas. Muitas vezes, vestia-se como esses personagens e usava chapéus. Engajava-se em brincadeiras de faz-de-conta, principalmente em encenações de seus personagens favoritos. Nessas ocasiões, minimizava o caráter introspectivo de suas ações, interagindo mais com o terapeuta e se colocando oralmente na narração da história. Ao longo dos atendimentos, foi se mostrando mais comunicativo e interativo. Produziu frases, algumas ininteligíveis. No entanto, em situações de encenação, emitia palavras e frases de forma nítida. Passou a ter iniciativa comunicativa e a modular velocidade e ritmo de fala, demonstrando descontentamento quando não era compreendido. Fazia tentativas de se comunicar, utilizando outras palavras, gestos e desenhos. De acordo com a mãe, a professora da escola notou um avanço significativo em sua interação com os colegas.

Caso 4: Rafa (3 anos e 8 meses) frequentou a clínica durante 12 meses. Filho único de pais consanguíneos, passou por sofrimento fetal ao nascimento. Não frequentava escola e não tinha contato com outras crianças, a não ser no ambulatório. Nos primeiros atendimentos, foi observada emissão de vocábulos isolados ba (banana) e gogo (morango), além da vocalização /Rã/ e organização prosódica de frases na conversação. Fazia uso de expressões e gestos, e sinalizava sim e não com a cabeça. Fazia pouco contato visual e frequentemente não atendia quando era chamado. Dificilmente se mantinha nas atividades propostas, trocando rapidamente de brinquedos. Nas situações de brincadeira com a terapeuta e com outras crianças que frequentavam a clínica (durante o tempo de espera e após atendimento), ficava absorto em sua atividade, brincando sozinho. Em uma situação de brincadeira de roda com outras crianças, entrou no meio da roda sem saber como agir; saiu correndo. Quando se deparava com adulto desconhecido, corria mudando a expressão do rosto. Ao longo do acompanhamento, Rafa tentou se comunicar mais, sobretudo por meio da vocalização /Rã/ com mudanças de entonação associadas ao uso de linguagem corporal. Aos poucos, diminuiu significativamente essa vocalização e produziu novas emissões como cogô (carro), emeio (vermelho), onis (ônibus), ma (mãe), neném (neném). Demonstrou interesse em se aproximar, tocar, abraçar, brincar com outras crianças. Nas últimas sessões, tentou narrar para a mãe eventos da terapia: mostrou a massinha para a mãe e falou neném, referindo-se à brincadeira de dar comida para a boneca. A mãe relatou perceber mudanças importantes no desenvolvimento da linguagem do filho e compartilhou com o terapeuta uma lista com as novas palavras que Rafa passou a enunciar em casa.

Caso 5: Rick (2 anos e 2 meses) foi atendido durante dez meses. A família relatou suspeita de Transtorno do Espectro do Autismo. De acordo com a mãe, o menino falou mamã algumas vezes e parou de falar. No início do atendimento, demonstrou compreender a fala do terapeuta e da mãe, olhando para o interlocutor e, de forma assistemática, orientando a atenção para os objetos ou sujeitos nomeados pelo interlocutor. No brincar conjunto, evitava a participação do outro, resistia a atender solicitações e seguir regras. Todavia, imitava e incorporava as ações do terapeuta em sua brincadeira. Sempre que Rick não era atendido prontamente pelo interlocutor ou não recebia a resposta esperada, assim como quando esgotava seu interesse na brincadeira, ele andava pela sala, vocalizava de maneira constante e sem mudança de tonalidade, coçava a cabeça, agitava as mãos e tocava as orelhas. Depois passou a demandar a fala do outro na relação que estabelecia com o objeto, solicitando sua nomeação. As mudanças de entonação começaram a captar sua atenção. Nesses momentos, olhava para o outro, esperava pela fala, sorria e repetia a ação realizada com o brinquedo. Passou a modular a entonação de acordo com o contexto: escolha de atividade, pedido de brinquedo, narração de história. Também passou a olhar para a boca do terapeuta quando este variava a entonação e produzia onomatopeias; produziu gestos de cumprimento (toque de mão) e despedida (tchau), gestos indicativos no contexto de leitura de histórias – apontou para os números, para os desenhos, enquanto o terapeuta nomeava e narrava a história – e realizou gestos representativos de números quando mencionados em músicas infantis, com ajuda da mãe e do terapeuta. Foi possível observar a emergência de indicadores que denotam senso do outro. Rick percebeu o sentimento do terapeuta, permitiu sua participação na brincadeira, muitas vezes convocando-o para brincar junto. Ofereceu brinquedos e tomou iniciativa na interação, ampliando formas de colaboração. Passou a fazer mais trocas de olhar. Começou a diversificar e a modular as vocalizações de acordo com o contexto conversacional. Tentou repetir algumas palavras enunciadas pelo interlocutor.

Chamamos atenção para os processos de aquisição da linguagem entrelaçados à história de constituição da singularidade dos sujeitos. Os diversos fatores, de caráter orgânico, psíquico e social enraizados na vida de cada criança incidem na trama do desenvolvimento linguístico e na formação integral da personalidade.

Nos casos descritos, podemos elencar: o baixo peso ao nascimento, a anemia e o episódio de hiperbilirrubinemia, seguidos de formas de proteção que subsidiaram a pouca participação de Fred nas práticas sociais de uso da linguagem; a prematuridade e o atraso no desenvolvimento neuropsicomotor, no caso de Gael, que demandaram formas específicas de cuidado; o lugar ocupado por Manuel na dinâmica familiar e os processos de identificação com o irmão; a ocorrência de sofrimento fetal e o pouco contato social na vivência de Rafa; a suspeita de autismo e as differentes formas de interpretação e aceitação familiar, no caso de Rick. Esses condicionantes permeiam a situação social de desenvolvimento (Vygotski, 1996), operam nas relações intersubjetivas, demarcam modos particulares de vivenciar o mundo e singularizam a posição de sujeito na linguagem. Indiciam as variadas formas de imersão e as condições heterogêneas de participação das crianças no fluxo da língua(linguagem).

Em vista disso, entendemos que a situação social de desenvolvimento (Vygotski, 1996) constitutiva da personalidade se vincula à situação social de enunciação (Bakhtin, 2006) que contingencia a produção de signos e sentidos. O horizonte social de determinada época define a estrutura de enunciação, sendo a expressão do sujeito ideologicamente marcada. Isso nos leva a pensar em como o lugar ocupado pela criança no sistema de relações sociais repercute no modo como ela é enredada na malha discursiva e nas possibilidades de se articular com a língua.

A forma, a entonação e o estilo de enunciação que se singulariza em cada criança refetem uma orientação social de caráter apreciativo. Desse modo, as possibilidades de comunicação verbal se situam no meio social em que o sujeito é envolvido.

Ao confrontarmos os casos, evidenciam-se os differentes modos de interagir, as diversas características de personalidade e os variados recursos de linguagem usados na dinâmica comunicacional-discursiva. Podemos presumir que as possibilidades de imersão na linguagem imbricamse nos modos de conexão com o outro e no repertório de modelos de sociabilidade que cada criança possui acerca das vivências com diversos interlocutores em distintas práticas sociais.

Em cada caso, observamos modos differentes de interação e de (não) falar, assim como ritmos heterogêneos e uma sucessão de eventos de desenvolvimento que variam e, na maioria das vezes, não coincidem com o esperado para a idade. Constata-se que as crianças não se inserem do mesmo modo na linguagem, porque as condições constitutivas são singulares: “as crianças passam por experiências de vida differentes, em tempos differentes, por interações differentes, por differentes experiências com a linguagem” (Santana, 2004, p. 344): é única a condição do sujeito na linguagem.

A aquisição da linguagem condiz, assim, com um percurso que é singular e dinâmico na forma como articula, desregula e reestrutura o já dito, dando lugar a relações não previstas na língua normatizada (Bosco, 2005). O que costuma ser entendido como comunicação patológica pode ser visto como uma das faces da relação entre o sujeito e a linguagem, dentre as muitas outras que são possíveis. A linguagem inscreve-se na diversidade constitutiva do sujeito, e não, necessariamente, na patologia. Nesse sentido, a heterogeneidade das manifestações da linguagem emerge no processo aquisicional.

Imitação, repetição, brincadeiras simbólicas, atenção conjunta, gestos, expressões faciais, vocalizações (re)inventadas e reiterativas, vocalizações com contornos prosódicos acentuados são componentes/recursos aquisicionais que podemos observar nas crianças “que compreendem, mas falam uma língua não reconhecida como tal” (Bordin & Freire, 2018, p. 394).

O uso desses differentes recursos interacionais e comunicacionais contrapõe-se ao lugar de não falante e dá visibilidade ao percurso particular de cada criança em interação com o contexto social. Em outros termos, o uso destes é indicativo da inserção do sujeito na cadeia falada. Na literatura, tais recursos foram amplamente estudados e vinculados aos processos do desenvolvimento linguístico-comunicativo-discursivo. O elemento prosódico emerge antes das primeiras formas lexicais estáveis no corpus da criança e subsidia o intercâmbio dialógico (Lemos, 1989). A gesticulação, por sua vez, pode ser destacada como uma das primeiras pistas de fluência na fala (Cavalcante & Brandão, 2012). Atribui-se a importância à participação da criança em cenas de atenção conjunta, como indicativo de apropriação de estruturas comunicacionais (Bruner, 1986; Tomasello, 2003). Nas investigações, também encontramos a tônica na imitação como forma de apropriação dos artefatos e signos culturais (Tomasello, 2003; Vygotski, 1995). Tais recursos são característicos do percurso aquisicional e indicam as possibilidades de relação da criança com a linguagem. Emergem no espaço intersubjetivo em resposta à atividade verbal interpretativa.

A análise das trajetórias das crianças no contexto da clínica permite constatar os saltos qualitativos na aquisição da linguagem, os quais coincidem com a ampliação dos processos interacionais, da participação em atividades conjuntas:

  • Fred, quando fortaleceu o vínculo, estreitou os laços de afeto e confança com o terapeuta, demonstrou mais descontração na interação e realizou tentativas de repetir palavras e de participar mais ativamente na dinâmica enunciativa.

  • Gael, nos atendimentos em dupla, vivenciou situações de interação tanto com adultos quanto com crianças, e avançou nos processos de negociação e cooperação. Em muitos desses momentos, se propôs a iniciar diálogos e ensaiou produzir palavras.

  • Manuel, ao encenar seus personagens favoritos, mostrou-se mais disposto a estabelecer trocas interativas, acompanhadas de uma emissão mais nítida e precisa da fala. Aos poucos, isso foi se estendendo para outras situações rotineiras, como aquelas envolvendo o relacionamento com os amigos da escola. A expansão no repertório interacional foi acompanhada de saltos qualitativos no desenvolvimento da linguagem nos seguintes aspectos: iniciativa comunicativa, percepção da velocidade e do ritmo da fala, fazer-se compreender na interlocução.

  • Rafa, nos atendimentos em dupla, foi exposto a situações de contato com o outro e vivenciou cenas de brincadeiras conjuntas que envolveram troca de turnos, disputas de objetos e confitos. Passou a emitir novas palavras e a narrar fatos significativos para ele.

  • Rick, à medida que alargou sua inserção no espaço de relação e de produção de sentidos, expandiu o repertório de ações situadas e apresentou novos gestos aquisicionais: vocalização de sons diversificados e modulados de acordo com o contexto conversacional; repetição de palavras enunciadas pelo interlocutor.

Salientamos, portanto, que a interação pressupõe linguagem e a linguagem implica interação. Ambos os domínios permeiam a história de desenvolvimento da criança entretecida à história coletiva de relações, práticas e atividades sociais. A articulação do sujeito com a língua(linguagem) só se efetiva na interação entre interlocutores. É por meio dela que a criança penetra no movimento da língua(linguagem) e pode encontrar condições de se posicionar como sujeito que enuncia na singularidade de seus modos (Lemos, 2002).

A interação, sustentada por práticas discursivas, confgura-se como instância privilegiada de trabalho clínico com a linguagem, uma vez que possibilita criar situações enunciativas que coloquem a criança (que não fala/não é percebida como alguém que enuncia) na posição de falante. Isso significa compreender a linguagem em situação de uso, considerando o protagonismo dos sujeitos e a situação social da qual participam, assim como a rede de relações que os envolve. No contexto clínico, é papel da interação ampliar e modificar os modos de funcionamento e os recursos linguísticos da criança.

5 Conclusões

O propósito deste estudo foi caracterizar a variabilidade implicada na aquisição da linguagem em função da singularidade do sujeito, o que significa conhecer cientificamente o particular em sua relação com os processos gerais e compreender as idiossincrasias na intrínseca relação sujeito-língua (linguagem)-interação.

Na contramão de um modelo pautado na descrição de ausências, sintomas e desvios a partir do que se entende como norma, adotamos um ponto de vista dinâmico e processual de investigação da linguagem, considerando o sujeito, sua história, seu meio social e sua condição de desenvolvimento. Partimos do pressuposto de que linguagem é interação e, portanto, a comunicação verbal só é compreendida e investigada no vínculo com a situação concreta (Bakhtin, 2006). Por esse prisma, ressaltamos a peculiaridade e a heterogeneidade dos percursos aquisicionais. “Para além de um organismo que fala, tratamos de um sujeito que trabalha linguisticamente para falar, pensar, ser” (Bordin & Freire, 2018, p. 396).

Nas análises, destacamos o mosaico de recursos comunicacionais que se confgura ao confrontarmos os casos e examinarmos os componentes aquisicionais que se differenciam e se assemelham. Procuramos mostrar como esses recursos vão se constituindo de forma peculiar no processo de aquisição de cada criança, em suas circunstâncias de desenvolvimento, permitindo a participação social. Trata-se de alterações de linguagem ou de usos peculiares de recursos da linguagem?

Buscamos, assim, expandir a concepção de linguagem, de modo a incluir uma variedade de manifestações que sejam consideradas, a par das mais convencionais e esperadas, como possibilidades de comunicação e de desenvolvimento da linguagem. Por esse ângulo, o intuito é colaborarmos com a discussão sobre uma Clínica da Linguagem que ultrapasse a caracterização da normalidade e da patologia e, consequentemente, atente às particularidades e às possibilidades de apresentação da língua(linguagem) para cada criança, tendo em vista os fatores operantes. E que possa ser tocada pela escuta e pelo conhecimento da história singular, ampliando a qualidade interacional e impulsionando processos de formação da personalidade.

A variabilidade aquisicional da linguagem das cinco crianças que acompanhamos neste estudo indica a importância de considerarmos as especificidades constitutivas da subjetividade articulada às condições concretas de vida de cada uma delas, o que transcende os determinantes normativos e homogeneizantes que historicamente constituem as práticas avaliativas clínicas e educacionais. A proposição que apresentamos é a confguração de mediações culturais, seja no âmbito da clínica – com objetivo terapêutico –, seja no âmbito da escola – com objetivo pedagógico –, com vistas a favorecer o processo eminente de desenvolvimento cultural da criança.

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Recebido: 03 de Dezembro de 2021; Revisado: 31 de Março de 2022; Aceito: 14 de Abril de 2022

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