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Revista Brasileira de Educação Especial

versión impresa ISSN 1413-6538versión On-line ISSN 1980-5470

Rev. bras. educ. espec. vol.28  Marília  2022  Epub 09-Ago-2022

https://doi.org/10.1590/1980-54702022v28e0003 

Relato de Pesquisa

A Institucionalização Escolar e sua Contribuição para a Produção de Transtornos de Aprendizagem: um Estudo sobre a Subjetividade Social da Escola

School Institutionalization and its Contribution to the Production of Learning Disorders: a Study on the School’S Social Subjectivity

Ana Luiza DE FRANÇA SÁ2 
http://orcid.org/0000-0001-6962-7408

Giuseppina MARSICO3 
http://orcid.org/0000-0002-8683-2814

2Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA) na linha de pesquisa Transições Desenvolvimentais e Processos Educacionais. Professora do Instituto Federal de Brasília (IFB), campus Riacho Fundo. Mestre em Educação. Pedagoga. Salvador/Bahia/Brasil. E-mail: analuizadefrancasa@gmail.com.

3Professora da Universidade de Salerno (UNISA) e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Fisciano/Salerno/Itália. E-mail: pina.marsico@gmail.com.


RESUMO:

A subjetividade expressa uma qualidade específica da experiência do indivíduo marcada pela cultura ao integrar os elementos simbólicos à emocionalidade que constituem os sujeitos e seus contextos simultaneamente. A partir do referencial teórico da subjetividade em uma perspectiva cultural-histórica, a presença do diagnóstico de transtorno de aprendizagem na escola é entendida como fenômeno da subjetividade social. Assim sendo, o objetivo deste estudo foi compreender como o diagnóstico de transtorno de aprendizagem se integra à subjetividade social da escola. O estudo foi realizado em uma escola de anos iniciais do Ensino Fundamental de Brasília, Distrito Federal. O método e os procedimentos de análise basearam-se na Epistemologia Qualitativa com o uso de uma diversidade de instrumentos escritos e não-escritos aplicados com os profissionais da escola, entre os quais três professores se constituíram como informantes privilegiados. Por meio da produção de indicadores, construiu-se a hipótese de que a institucionalização escolar contribui para a produção de transtornos de aprendizagem. Nesse sentido, é apresentado um modelo teórico, o qual representa a configuração da subjetividade social da escola da qual a institucionalização escolar faz parte. Conclui-se que a incorporação do diagnóstico de transtorno de aprendizagem na rotina pedagógica colabora para um refinamento científico da exclusão de alunos que destoam das expectativas escolares.

PALAVRAS-CHAVE: Escola; Diagnóstico clínico; Subjetividade; Teoria sócio-histórico-cultural

ABSTRACT:

Subjectivity expresses a specific quality of the individual’s experience marked by culture when integrating symbolic elements with emotionality that simultaneously constitute the subjects and their contexts. From the theoretical framework of subjectivity in a cultural-historical perspective, the presence of a diagnosis of learning disorder at school is understood as a phenomenon of social subjectivity. Tus, the aim of this study was to understand how a diagnosis of learning disorder is integrated into the social subjectivity of the school. Te study was carried out in the early grades of an Elementary School in Brasília, Distrito Federal, Brazil. Te method and procedures of analysis were based on the Qualitative Epistemology with the use of a variety of written and non-written instruments applied to school professionals, among which three teachers constituted privileged informants. Trough the production of indicators, the hypothesis that school institutionalization contributes to the production of learning disorders was defined. In this sense, a theoretical model is presented, which represents the configuration of the social subjectivity of the school of which school institutionalization is part. It is concluded that the incorporation of the diagnosis of learning disorder into the pedagogical routine contributes to a scientific refinement of the exclusion of students who disagree with school expectations.

KEYWORDS: School; Clinic diagnosis; Subjectivity; Socio-historical-cultural theory

1 Introdução

A escola de Educação Básica enfrenta diversos problemas e, dentre as iniciativas tomadas para enfrentá-los, estão aquelas direcionadas para o alcance do sucesso escolar. Esse sucesso é entendido como a aprendizagem de conteúdos pré-estabelecidos pelos currículos e que precisam ser assimilados no tempo e no espaço definidos pela escola. A partir da definição de parâmetros de aprendizagem com base nas regulamentações curriculares, professores4 e estudantes desempenham seus papéis para que o sucesso seja alcançado. Quando esses papéis não resultam conforme o planejado, desafios e tensionamentos ancorados em representações sobre a função social da escola ocorrem. Nesse quesito, os desafios apresentam-se de forma oscilante: ora são os professores que precisam de mais formação para lidar com esses desafios, ora são os estudantes que não conseguem se adequar àqueles parâmetros de aprendizagem definidos em âmbito legal e institucional.

O fenômeno estudado neste artigo está situado nesse cenário relativo ao diagnóstico de transtorno de aprendizagem utilizado para justificar e explicar as dificuldades escolares de alunos (Algozzine & Ysseldike, 1986; Gebhardt et al., 2013). A centralidade desses estudos está, por um lado, na consideração dos aspectos biológicos do aprender (Lewis, 2014), e, por outro, na necessidade do refinamento das formas de investigação (Tamayo-Orrego et al., 2015). Contudo, ambos revelam o caráter desarticulado do conhecimento produzido (Latour, 2004).

De acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais (DSM) em sua 5a edição, a definição de transtorno é aquela que atribui ao indivíduo uma disfunção que afeta suas capacidades sociais, profissionais dentre outras (American Psychiatric Association [APA], 2014). Entretanto, o uso indiscriminado do termo e seu diagnóstico nos discursos e nas práticas escolares revela uma tendência homogeneizadora em detrimento das singularidades de cada caso e das distinções entre as diversas classificações, sendo os mais recorrentes o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e as Dificuldades de Aprendizagem.

O levantamento bibliográfico demonstrou que o fenômeno possui uma interface entre Educação, Saúde, Psicologia e Psicanálise. Nessa interface, destacamos a perspectiva crítica adotada por trabalhos que se delineiam entre a Psicologia e a Educação (Goulart & Alcântara, 2016; Patto, 1988) e entre a Psicanálise e a Educação (Minnicelli, 2019). Na presente pesquisa, esse fenômeno é compreendido como expressão da subjetividade em uma perspectiva cultural-histórica. Por subjetividade, entendemos a qualidade em que a vida se manifesta em sua dimensão social e individual simultaneamente (González Rey, 2003, 2011, 2012a, 2019a, 2019b). Nessa direção, destacamos estudos realizados por Bezerra e González Rey (2014, 2019), Oliveira e González Rey (2019) e Passos e Tacca (2019).

Oliveira e González Rey (2019) investigaram, sob o prisma teórico da subjetividade, como ocorre o desenvolvimento subjetivo de crianças com dificuldades escolares e de relacionamento entre os seus pares e professora. A pesquisa realizada pelos autores demonstrou que a patologização das dificuldades de aprendizagem impede que professores gerem novas reflexões acerca de seus alunos, impedindo a emergência de relações qualitativamente diferenciadas (Oliveira & González Rey, 2019). Assim, a ausência de qualidade nas relações pode provocar a reificação das dificuldades e a produção do rótulo de transtorno de aprendizagem mesmo quando não há um diagnóstico clínico.

Para Bezerra e González Rey (2014), a dimensão subjetiva da aprendizagem é um aspecto relevante para a superação de dicotomias, tais como o afetivo e o cognitivo na aprendizagem escolar. Os autores buscaram compreender como a superação da fragmentação entre funções intelectivas e afetivas podem avançar no entendimento da aprendizagem como produção subjetiva (González Rey, 2012b; Mitjáns Martínez & González Rey, 2012). Por meio de um estudo de caso com crianças com queixa escolar, os autores apresentaram que processos de ensino-aprendizagem baseados em práticas de caráter assimilativo e reprodutor contribuem para uma patologização da aprendizagem. Essa lógica assimilativa justifica “a não aprendizagem, gerando, assim, um espaço de exclusão no contexto social da escola” (Bezerra & González Rey, 2019, p. 115).

Passos e Tacca (2019) orientaram-se pelo olhar do sujeito que aprende para tecerem suas análises acerca de crianças que experimentam o fracasso escolar. As autoras defendem que o uso da teoria da subjetividade de González Rey proporciona o enfoque na singularidade do estudante, de seus processos de aprendizagem e de seu desenvolvimento pessoal, para além das determinações impostas pelo rótulo de fracasso. Embora a pesquisa não se refira ao uso do diagnóstico de transtorno de aprendizagem como parte da definição de fracasso escolar, a contribuição desse estudo reside na consideração da subjetividade em uma perspectiva cultural-histórica que modifica qualitativamente as relações vivenciadas pela adolescente participante da pesquisa. Segundo as autoras, transformadas as relações, é possível que se evite “a perpetuação de situações de fracasso escolar nas experiências escolares” (Passos & Tacca, 2019, p. 144).

Considerando que os estudos apresentados possuem foco no processo de aprendizagem da criança e em seu desenvolvimento na escola, questionamos qual o papel do diagnóstico de transtorno de aprendizagem na explicação dos desafios enfrentados pelos alunos. Em outras palavras, indagamos como o diagnóstico de transtorno de aprendizagem se integra à subjetividade social da escola por meio do trabalho realizado por seus profissionais. Dessa forma, não consideramos aprofundar a definição de transtorno de aprendizagem segundo a literatura científica, tampouco o estudo se limitou a investigar as representações de professores sobre o diagnóstico de transtorno de aprendizagem. Nossa contribuição está centrada na articulação dos aspectos sociais e individuais desse fenômeno, o que nos permite ir além do diagnóstico de transtorno de aprendizagem: em nível individual, por meio da crítica ao caráter restritivo do diagnóstico clínico; e, em nível social, ao questionarmos as práticas medicalizantes que têm permeado grande parte das escolas. Longe de darmos termo a todos os dilemas e desafios vivenciados pelos profissionais na escola contemporânea, nossa reflexão responde a uma demanda específica que se refere ao uso de um instrumento em um processo de rotulação e de manutenção das dificuldades quando utilizado de forma indiscriminada.

O presente artigo está organizado como se segue: (1) apresentamos uma breve definição do referencial teórico adotado que nos auxiliou no delineamento do fenômeno estudado; (2) esse mesmo referencial teórico se desdobra no método escolhido que viabiliza a articulação social e individual necessária para a compreensão do fenômeno; (3) os resultados e a discussão são apresentados a partir da produção de indicadores derivados da pesquisa empírica, de modo que as evidências se convertem na hipótese construída acerca da institucionalização escolar e sua contribuição na produção de transtornos de aprendizagem; (4) por fim, o modelo teórico produzido permite a visualização da configuração da subjetividade social da escola investigada. A testagem do modelo e de seus limites contribui para ampliar a compreensão sobre os desafios escolares e questionar os percursos universais utilizados na educação de crianças com transtornos e/ou deficiência.

1.1 A definição da subjetividade em uma perspectiva cultural-histórica

A subjetividade expressa uma qualidade específica da experiência do indivíduo marcada pela cultura na qual essa experiência é vivida. Por meio do termo “subjetividade”, indicamos que a organização psíquica ocorre nas vivências culturais integradas aos aspectos emocionais. Essa incorporação de aspectos emocionais nos espaços simbólicos delineia a produção de novas emoções, gerando significados que possuem valor dentro da experiência do indivíduo. Essa experiência culturalmente situada desloca o indivíduo de uma homogeneidade biológica, em outras palavras, daquilo que o assemelha em relação aos demais indivíduos, para o lugar da singularidade e o que ele produz em contextos compartilhados (González Rey, 2004).

A subjetividade é um sistema que possui um duplo nível de constituição: individual e social (González Rey, 2019a). Instituições como a escola são espaços sociais de compartilhamento de representações que têm sua gênese na cultura. A participação na cultura que se dá por intermédio das instituições sociais indica a importância desses espaços para o estudo da subjetividade. À medida que os indivíduos compartilham, resistem e ancoram suas produções culturais nesses espaços, novas produções sobre essa mesma cultura ocorrem conformando uma rede tecida pela subjetividade dos indivíduos. A escola, assim, representa um recorte do campo de disputas originado dos tensionamentos presentes em níveis mais amplos da educação.

Dentre as categorias da teoria da subjetividade – sentido subjetivo, configuração subjetiva, subjetividade individual, subjetividade social e sujeito –, destacamos a de subjetividade social criada para dar visibilidade aos processos simbólico-emocionais de grupos sociais e instituições. A subjetividade social é um espaço de retroalimentação de sentidos subjetivos produzidos por meio dos significados compartilhados em determinado contexto sob uma forte base emocional (González Rey, 2012a). São os significados compartilhados que são atualizados pelos sentidos subjetivos produzidos pelos sujeitos que participam do espaço social e que contribuem para a configuração da subjetividade social desse espaço. É essa articulação entre sujeitos-professores e dinâmicas sociais que compõe uma configuração representativa da subjetividade social da escola no estudo que será apresentado na próxima sessão.

2 Método

O método utilizado foi o qualitativo apoiado na Epistemologia Qualitativa que se orienta pelos princípios da dialogicidade, da singularidade do fenômeno investigado e do caráter construtivo-interpretativo da pesquisa (González Rey, 2005, 2019b).

A pesquisa foi realizada em uma escola pública de Brasília, Distrito Federal, Brasil. Na época, a escola oferecia os anos iniciais do Ensino Fundamental com 502 alunos divididos entre os turnos matutino e vespertino. Dentre eles, 21 possuíam diagnóstico de transtorno de aprendizagem matriculados nos anos que correspondiam à transição dos dois blocos que organizam os anos iniciais do Ensino Fundamental no Distrito Federal. O Bloco Inicial de Alfabetização (BIA) compreende os três primeiros anos do Ensino Fundamental, e o segundo bloco é formado pelos 4º e 5º anos do mesmo nível de ensino. A escola foi selecionada para a pesquisa de acordo com os seguintes critérios:

  • Nota no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb): alcance da meta estabelecida nos três anos anteriores à pesquisa.

  • Localização: distante do centro de Brasília.

  • Atendimento à comunidade de baixa renda.

A investigação deu-se durante os anos de 2013 e 2014 com um total de 17 encontros em diferentes momentos dos referidos anos. O processo de construção do cenário de pesquisa (González Rey, 2005) ocorreu no final do ano letivo de 2013 quando foi apresentada a proposta ao grupo de professores da escola em reunião pedagógica. Essa iniciativa teve como intuito assegurar a ciência de todos os profissionais sobre o processo de investigação em curso e motivar a participação voluntária de professores, informantes privilegiados. Os demais encontros ocorreram ao longo de todo o ano letivo de 2014 quando foram realizados os procedimentos que serão descritos em seção subsequente.

2.1 Participantes

Tendo em vista o uso intensivo de situações conversacionais com as diversas profissionais da escola respaldado pelo método escolhido, optamos por convidar três professores que se tornaram informantes privilegiados da pesquisa. Dois professores foram indicados pela coordenadora pedagógica da escola, ambos em regime de trabalho temporário5. Somente uma professora em regime de trabalho efetivo se voluntariou em participar da pesquisa.

O professor Ivan tinha 26 anos e lecionava no 5º ano na época em que a pesquisa foi realizada. Formado em Pedagogia em uma Instituição de Ensino Superior privada de Brasília, ele atuava como professor temporário na Secretaria de Educação desde 2013, um ano após sua formatura. Assim como o professor Ivan, aquele era o primeiro ano de trabalho da professora Nádia como temporária naquela escola. A professora Nádia era uma mulher de meia idade, pedagoga, e nos informou possuir uma longa experiência no magistério sem precisar de quanto tempo era essa experiência. Durante a realização da pesquisa, a professora Nádia lecionava no 4º ano. A professora Lara era uma mulher jovem formada pelo magistério em nível médio e com graduação em Pedagogia. Atuava como professora desde sua aprovação em concurso público, aos 18 anos, e durante a realização da pesquisa lecionava no 4º ano. Na escola onde a pesquisa foi realizada, a professora Lara trabalhava há 3 anos.

As interações realizadas entre os professores Ivan, Nádia e Lara6 e a pesquisadora foram registradas em diário de campo além do uso de outros instrumentos e estratégias conforme descrevemos a seguir.

2.2 Instrumentos e estratégias de pesquisa

A pesquisa fez uso de uma diversidade de instrumentos escritos e não escritos (González Rey, 2005) e estratégias de investigação a fim de dar visibilidade à complexidade do fenômeno. Os instrumentos e as estratégias utilizadas na pesquisa foram:

  1. Diário de campo – escrito pela pesquisadora (primeira autora do artigo) e composto por registros dos encontros e das interações com os participantes logo após sua realização.

  2. Observação do contexto escolar – reuniões de professores, conselhos de classe e encontros de planejamento com professores e coordenação pedagógica. A observação contava com a intervenção da pesquisadora com perguntas e reflexões sobre o cotidiano, a fim de compreender as dinâmicas do contexto.

  3. Análise dos dossiês escolares de crianças – documento composto por diagnósticos clínicos de crianças com transtorno de aprendizagem e em processo de investigação de possíveis transtornos com materiais elaborados pela escola.

  4. Situações conversacionais – instrumento não escrito que consistiu em diálogos com servidoras da Equipe de Apoio à Aprendizagem (EAA) da escola. A equipe era composta por pedagoga, orientadora educacional e psicóloga. As situações conversacionais também foram usadas com os professores, informantes privilegiados da pesquisa. Nesse instrumento, o diálogo e a produção do vínculo entre participantes e pesquisadora são o foco da produção das informações (González Rey, 2005).

  5. Produção de uma redação – instrumento escrito utilizado com os três professores informantes privilegiados com o tema “Quando eu era criança a gente aprendia na escola assim...”. Esse instrumento teve como objetivo investigar a trajetória escolar dos professores com destaque para os seus processos de aprendizagem e dificuldades.

  6. Questionário estruturado – instrumento utilizado com os três professores com as perguntas: “O que é aprender?” e “O que dificulta a aprendizagem?”.

  7. Análise dos registros de avaliação da aprendizagem7 dos alunos da turma da professora Nádia.

3 Resultados e discussão

As informações registradas no diário de campo oriundas de situações conversacionais com os profissionais da escola e dos instrumentos utilizados com os três professores informantes privilegiados passaram por uma análise sistemática. Essa análise seguiu o princípio construtivo-interpretativo do método escolhido, evidenciando tensões e contradições nas práticas pedagógicas estabelecidas, a fim de termos uma compreensão holística diante da complexidade inerente ao fenômeno e contexto. A sistematização desse material foi realizada a partir da produção de indicadores que abriram zonas de sentido (González Rey, 2005) sobre os elementos que compõem a subjetividade social da escola. A partir da sistematização das informações, foram levantados quatro indicadores da configuração da subjetividade social da escola.

Os indicadores produzidos foram: (1) ausência de reflexão sobre a prática – explicita as dificuldades encontradas pelos profissionais da escola em justificar as ações que visavam investigar supostos transtornos de aprendizagem; (2) culpabilização das dificuldades de aprendizagem – descreve a prática de atribuir às crianças e aos seus familiares as dificuldades de aprendizagem nos diversos espaços escolares, significando seus comportamentos por meio de patologias; (3) instrumentalismo da aprendizagem – discorre sobre as práticas de avaliação da aprendizagem e avaliação médica dos transtornos de aprendizagem de forma universal e homogênea; e (4) cristalização de rotinas como um fim em si mesmas – sintetiza a organização escolar no que se refere ao fenômeno do uso do diagnóstico de transtorno de aprendizagem e sua expressão na subjetividade social da escola.

É importante destacarmos que os indicadores produzidos compõem a configuração da subjetividade social da escola de maneira articulada. Desse modo, a presença ou a ausência de um ou outro afeta toda a configuração. Sua coesão permite assegurar que a emergência da subjetividade está relacionada à forma como esses elementos são percebidos, questionados, enfim, subjetivados pelos professores informantes privilegiados que participaram da pesquisa. O encontro entre os questionamentos dos professores e a configuração da subjetividade social da escola gerou tensionamentos, contradições e aquiescências em relação às práticas que se cristalizavam na escola conformando o que chamamos de institucionalização escolar.

3.1 “Tenho dois, três, quatro alunos com transtorno de aprendizagem!” A escola modelo8

De acordo com a organização do ensino em ciclos adotada pela escola Modelo, o último ano do BIA era o período em que a retenção do aluno ocorria. Era nessa fase que a escola encontrava o maior desafio em relação ao diagnóstico de transtorno. Segundo a orientadora educacional da escola: “É onde iniciamos o processo de investigação de um possível transtorno de aprendizagem”.

Sobre os motivos que levavam a iniciar o processo de investigação, a orientadora educacional da escola Modelo destacou as dificuldades de aprendizagem e os problemas de comportamento. Com base na análise dos dossiês que compilavam informações e documentos dos alunos no processo de investigação de possíveis transtornos, situações conversacionais com a EAA e análise dos registros de avaliação de aprendizagem dos alunos da turma da professora Nádia, esses dois componentes respondiam às expressões apresentadas no Quadro 1.

Quadro 1 Registros escritos e falas compiladas de análises feitas de registros de avaliação de aprendizagem, dossiês e situações conversacionais 

Dificuldades de aprendizagem Problemas de comportamento
“O aluno não consegue se alfabetizar.” “O aluno não tem organização e limpeza com os materiais.”
“O aluno não se esforçou para aprender.” “O aluno não consegue ficar quieto.”

Nas falas de professores e de profissionais da EAA, existia uma generalização das dificuldades de aprendizagem no rótulo de transtorno de aprendizagem que se relacionava à ausência de reflexão sobre a prática. Essa ausência de reflexão ficou marcada em uma das situações conversacionais realizada com a orientadora educacional da EAA quando questionada sobre o diagnóstico emitido pelo médico. Durante a exposição de como era realizado o trabalho cujos dossiês das crianças era o resultado, perguntamos se não havia ocorrido alguma situação em que não concordaram com o diagnóstico médico. A orientadora educacional respondeu que sim: “Certa vez recebemos um diagnóstico que afirmava que a criança era saudável e que seu problema se tratava de incompetência pedagógica. Mas nós que trabalhamos há muito tempo com crianças sabíamos que ela tinha alguma coisa”.

Embora a pergunta tivesse sido direcionada à possibilidade de refutação do diagnóstico de transtorno, o que foi respondido se tratou do contrário: a necessidade de afirmar um diagnóstico de transtorno mesmo quando ele não era o motivo da não aprendizagem. Os diagnósticos clínicos emitidos por médicos, em sua maioria, de clínicas particulares e que constavam dos dossiês das crianças, apresentavam uma classificação geral para todas, sem aprofundamento investigativo. No laudo final, emitido após uma primeira consulta depois de apresentadas as queixas escolares, lia-se: “O diagnóstico foi confirmado clinicamente e por exame complementar (Potencial Evocado P 3009). Em tratamento com metilfenidato 10mg/ dia”. Dessa forma, era confirmado cientificamente que o problema continuava na criança e sua culpa pelo não aprender e não na urgência de refletir sobre as práticas pedagógicas e/ou buscar alternativas (Szulevicz et al., 2016).

Entre os motivos, as dificuldades de aprendizagem e os problemas de comportamento indicados como o que levava a escola a iniciar o processo de investigação de transtornos de aprendizagem, havia uma intersecção que combinava ambos derivados de duas fortes representações sobre o aprender e que compunham a subjetividade social da escola: a falta de concentração durante a realização das avaliações e a patologização das formas de vida das famílias. Esses dois componentes apresentaram-se na fala da pedagoga da EAA: “O aluno não se concentra na hora da realização da prova” e “A família resiste bastante para levar a criança ao médico”. Esses dois trechos estão estreitamente vinculados à forma como a escola entendia o processo de aprendizagem e a patologização das formas de vida que não correspondiam ao modelo esperado pela escola.

O aspecto “falta de concentração durante as avaliações” destacava a característica instrumentalista da escola em relação à aprendizagem. Esse instrumentalismo manifestado pela organização homogênea derivada de um instrumento único usado para mensurar os conhecimentos adquiridos pelos alunos em um determinado período era considerado pelas profissionais da EAA como um grande avanço da escola. Esse instrumento reproduzia práticas de classificação existentes na sociedade e a sua relevância estava no treinamento que essa prática proporcionava aos alunos. A prova universal, assim denominada pelas profissionais da escola, era uma avaliação bimestral única para todos os alunos de um mesmo ano de ambos os turnos. Acreditava-se que os alunos estavam sendo preparados para os mesmos tipos de avaliação no futuro. Em nossos primeiros encontros na escola, era comum vermos crianças na sala da EAA realizando a prova universal de maneira individualizada, porque não conseguiam fazê-lo em sala com os demais colegas. Essa prática ocorria inclusive para os alunos que não tinham diagnóstico clínico.

A pedagoga da EAA afirmou: “Nós temos concurso público, temos vestibular e diversas outras formas de seleção utilizadas na sociedade que classificam as pessoas. Por que a escola não pode ter?!”. Dessa forma, acreditava-se que fazer uso da prova universal poderia ser, inclusive, uma forma de comprovar a incapacidade dos alunos com diagnóstico de transtorno quando não conseguiam realizá-la. Em um dos encontros de planejamento entre professores e coordenação pedagógica, a coordenadora pedagógica tentou convencer a professora Nádia que a prova universal seria: “A comprovação para os pais de que o aluno tem mesmo o transtorno e precisa ser tratado”. Entretanto, a professora Nádia ainda se dizia angustiada com o fato de que não era possível avaliar algo que não se ensinou e usar isso como justificativa para corroborar o transtorno: “Eu fico angustiada porque eles não aprenderam isso! Como posso aplicar essa prova?!”.

O segundo aspecto definido como a patologização das formas de vida ampliava a suspeita do transtorno da criança para toda a sua família. Em um dos conselhos de classe da professora Nádia, discutia-se a necessidade de convocação das famílias de crianças que apresentavam baixo rendimento escolar e problemas de comportamento para encaminhamento médico. Ao destacar um caso, a diretora da escola enfatizou um dos encontros que teve com a mãe da aluna e a qualificou: “Também apresenta DPAC [Distúrbio do Processamento Auditivo Central] severo, pois não consegue manter uma linha de raciocínio durante uma conversa simples”. Essa lógica de patologização das famílias era regida pela incorporação do diagnóstico de transtorno de aprendizagem à rotina escolar de modo que sua integração passava a fazer parte da subjetividade social da escola, orientando padrões de comportamento, impressões pessoais e uma ampla aceitação da medicalização para explicar qualquer problema (Mitjáns Martínez & González Rey, 2017). O papel da escola era reduzido ao ato de identificar, convocar e encaminhar as famílias às clínicas médicas, preferencialmente privadas, sem o propósito relacional que pudesse estabelecer um trabalho em parceria.

Com base na contextualização do ambiente escolar pesquisado, foi possível percebermos a articulação entre os indicadores ausência de reflexão sobre a prática, culpabilização das dificuldades de aprendizagem, instrumentalismo da aprendizagem e cristalização de rotinas como um fim em si mesmas. A relação de interdependência entre os indicadores entrava em conflito com os sentidos subjetivos produzidos pelos professores informantes privilegiados da pesquisa. A despeito da emergência de sentidos subjetivos de angústia, medo, dúvida, insegurança e frustração demonstrados por esses professores, a prevalência dos aspectos dominantes da subjetividade social da escola reforçava o processo de institucionalização conforme apresentamos a seguir.

3.2 As professoras Nádia e Lara e o professor Ivan

A professora Nádia considerava que os desafios que enfrentava como professora no trabalho com alunos com transtorno de aprendizagem poderiam ser superados com atenção diferenciada, pois “trabalho há muito tempo com isso. Essa minha experiência me ajuda a lidar com isso”.

A turma da professora Nádia era considerada difícil pela quantidade de alunos com diagnóstico fechado de transtorno de aprendizagem (três alunos) e em processo de investigação (dois alunos). Apesar de suas queixas em relação às normas escolares, principalmente àquelas voltadas à avaliação da aprendizagem na aplicação da prova universal, a professora Nádia foi substituindo a angústia que dizia sentir porque o “aluno não se esforçou para superar suas dificuldades”, frase reiterada nos registros de avaliação de sua turma e que se enquadra no indicador produzido sobre a culpabilização da aprendizagem. Dessa forma, a professora demonstrava equalizar os conflitos aquiescendo mediante as sugestões dominantes na subjetividade social da escola.

Em uma das situações conversacionais, questionamos a professora Nádia sobre como estavam os alunos com suspeita de transtorno de aprendizagem e se havia conseguido encontrar uma forma de trabalho que os alcançasse. A professora Nádia respondeu:

O César10 foi encaminhado para o médico porque ele não aprendia. Como a família tem boas condições e tem um bom plano de saúde, o caso dele foi resolvido rapidinho. Fez a consulta e já recebeu o laudo. Agora, o Pedro ainda está em processo de investigação, depende do serviço público de saúde, aí demora demais. Assim a gente não inicia o trabalho.

A professora Nádia resolveu sua angústia com a conformação em relação às sugestões dominantes na escola sobre o processo de investigação de transtornos e a dinâmica escolar que integrava esse processo como um fim em si mesmo e não como uma tentativa de superação das dificuldades do aluno. Interessante destacarmos a frase “Assim a gente não inicia o trabalho” na fala da professora, pois encontrávamo-nos no fim do 3º bimestre do ano letivo que é composto por quatro bimestres. Esse processo de aquiescência demonstrou que a subjetividade social da escola atuava como uma força desigual em relação aos professores que chegavam à escola e precisavam se adaptar à rotina escolar. Essa característica da subjetividade social da escola reforçou o indicador produzido sobre a ausência de reflexão sobre as práticas pedagógicas. Mesmo diante das queixas iniciais da professora Nádia, as orientações que recebeu ao longo do ano letivo sobre os alunos com diagnóstico se direcionavam para comprovar suas incapacidades e não potencialidades.

O professor Ivan destacou o conteúdo como a finalidade principal do ensino. Para ele, as escolas particulares enfatizam mais o conteúdo comparadas às escolas públicas, de acordo com sua experiência pessoal. Ao argumentar sobre isso na produção da redação, o professor Ivan teceu uma dura crítica às escolas públicas, afirmando que: “O importante para as instituições é se aproximar da fama de escola modelo; desse modo, cria-se um mundo quimérico de avanços e melhorias educacionais que na realidade não existe”. Embora o professor estivesse relatando sua experiência de escolarização, a crítica realizada nos fez refletir sobre a escola onde o professor trabalhava naquele momento e a forma como essa aparência exemplar era reforçada por elementos que compunham o cenário da Escola Modelo. Considerada uma boa escola, seus êxitos eram exibidos nos murais de entrada por meio de notícias de jornais locais que destacavam o alcance das metas estabelecidas pelo Ideb.

Em uma das situações conversacionais com o professor Ivan, indagamos sobre as orientações recebidas por ele ao chegar à escola quando assinou o contrato de trabalho pelo período de um ano. O professor respondeu que não obteve nenhuma orientação ou material e demonstrava com isso certa insatisfação. Durante as nossas observações nos encontros de planejamento pedagógico, percebemos que o professor Ivan, que costumava planejar suas aulas em uma sala individual, passou a aguardar a chegada de outra professora que trabalhava há mais tempo na escola para iniciar o trabalho. Verificamos que essa prática de aguardar a colega e planejarem juntos as aulas era uma das orientações dadas pela escola para a manutenção da homogeneidade entre as turmas.

Uma das alunas da turma do professor Ivan fazia uso de medicamento para transtorno de aprendizagem. Essa informação foi transmitida pela mãe da aluna, segundo o professor Ivan, que também nos disse, em uma das situações conversacionais, ter dúvidas sobre as estratégias pedagógicas mais adequadas para ela: “Oralmente ela é ótima, se comunica muito bem, mas quando tenta passar as ideias para o papel sente muita dificuldade”. Dessa forma, Ivan carecia de autonomia para o desenvolvimento do trabalho com a aluna ao produzir sentidos subjetivos de insegurança. Sua insegurança no trabalho com a aluna pode ser explicada a partir do foco nos aspectos operacionais da aprendizagem entendidos como operações intelectivas em que a reprodução e a memorização são enfatizadas (Mitjáns Martínez & González Rey, 2012). Mesmo diante da constatação de que, “oralmente a aluna é ótima”, o professor se direcionava para corroborar as sugestões da subjetividade social da escola caracterizada pelo indicador produzido sobre a cristalização de rotinas como um fim em si mesmas. Dentre as práticas presentes na rotina escolar, estava a necessidade de realização da prova universal, de forma escrita e não oral, o que se articula ao outro indicador produzido sobre instrumentalismo na aprendizagem.

A professora Lara descreveu seu processo de escolarização a partir de um episódio específico que culminou na sua escolha pela docência. Escreveu que ela e sua irmã gêmea foram “alfabetizadas pela irmã mais velha que também demonstrava o gosto por ensinar”. Com isso, as irmãs gêmeas foram matriculadas em uma série adiantada em relação às idades que tinham na época. Enquanto Lara passava pelas séries iniciais do Ensino Fundamental com sucesso, sua irmã demandava muita ajuda sua e da irmã mais velha. Com isso, a escola onde estudavam decidiu reter sua irmã gêmea, enquanto Lara deu seguimento na série seguinte. Afastadas, as irmãs trilharam caminhos distintos na escola e na vida, tendo Lara iniciado a carreira docente e, sua irmã gêmea, enfrentado vários percalços durante a escolarização. A professora Lara enfatizou esse episódio como determinante para sua posição de professora no que se refere ao estudo que o professor precisa ter para tomar decisões mais acertadas e não como aquela da escola em que estudou com a irmã.

Em uma das situações conversacionais, a professora Lara nos disse que: “Prefiro criar as atividades do que copiá-las de um site ou livro”. Apesar disso, revelou sentidos subjetivos de frustração em relação aos seus alunos que não conseguiam, às vezes, responder às avaliações e aos exercícios criados por ela. Questionada sobre de que forma essas atividades poderiam ser fomentadoras da superação das limitações impostas pelo diagnóstico de transtorno de aprendizagem, a professora Lara respondeu que a contextualização que as atividades proporcionavam fazia com que os alunos retomassem experiências coletivas que tiveram durante as aulas. De acordo com o questionário respondido pela professora Lara: “As crianças precisam dos seus pares para desenvolver a aprendizagem”.

Coerente com sua defesa sobre a aprendizagem, a professora Lara respondeu nossa questão acerca dos alunos com transtorno de aprendizagem em sua turma com a seguinte frase: “Eu tenho um aluno que, acho, que ele tem autismo. Está sempre quietinho e não interage com os colegas”. Embora o aluno citado pela professora não tivesse diagnóstico, ela ampliou sua concepção de aprendizagem para o comportamento que destoava dessa sua compreensão e sua consequente forma de trabalho para conjecturar acerca de um possível transtorno. A suspeita da professora em relação ao aluno estava fundamentada em suas concepções sobre o aprender que possuíam origem em sentidos subjetivos derivados de esferas da vida distintas daquelas em que a situação atual ocorria.

Na próxima seção, apresentamos uma articulação das informações dos professores informantes privilegiados e a subjetividade social da escola. A partir do modelo teórico elaborado, a configuração da subjetividade social da escola revelou o processo de institucionalização a partir do qual a padronização das práticas de ensinar e avaliar a aprendizagem estão em sua base. A institucionalização escolar contribui para a produção de transtornos de aprendizagem quando iniciado seu processo de investigação orientado pela ausência de reflexão sobre a prática, culpabilização das dificuldades de aprendizagem, instrumentalismo da aprendizagem e cristalização de rotinas como um fim em si mesmas presentes na escola.

3.3 A institucionalização escolar e sua contribuição para a produção de transtornos de aprendizagem

A institucionalização escolar é um processo da subjetividade social entendido como a padronização das práticas de ensino e de avaliação da aprendizagem. A institucionalização fundamenta-se nas rotinas protocolares da escola, evidenciando seu caráter burocrático, meritocrático e rotineiro, se assemelhando a uma fábrica. As práticas padronizadas compõem as linhas de produção de maneira desarticulada e não refletida. O resultado é a idealização da aprendizagem frente à objetificação dos sujeitos realizada por meio do apagamento da subjetividade.

A partir dos indicadores produzidos, interpretamos que as dinâmicas subjetivas dos professores, informantes privilegiados, entravam em tensionamento com a subjetividade social da escola, gerando sentidos subjetivos de angústia, de insegurança e de frustração. Esses sentidos subjetivos produzidos não se restringiam ao discurso proferido pelos professores, pois não encontravam gênese no trabalho docente, mas se originavam de esferas da vida diferentes de cada professor e se atualizavam no momento em que a subjetividade social da escola emergia gerando um desequilíbrio de forças.

No caso da professora Lara, isso ficou evidente quando a sua frustração em relação às dificuldades dos alunos na realização das tarefas produzidas por ela foi apaziguada no momento em que as coordenadoras pedagógicas decidiram usar uma de suas atividades como prova universal do 4º ano. A professora Lara, então, aceitou a defesa de que a prova universal qualificaria os alunos em relação às suas aprendizagens e dificuldades, justificando, assim, as incapacidades daqueles que tinham o diagnóstico de transtorno de aprendizagem. Depois de tomada essa decisão, Lara tentou convencer Nádia de que o conteúdo ministrado era suficiente para realizar a prova universal quando Nádia questionou a realização do instrumento. Lara afirmou: “Mas isso a gente já deu, Nádia! Não é nenhuma novidade para eles”.

É importante destacarmos que o regime de trabalho do professor Ivan e da professora Nádia fragilizava suas atuações a partir do receio da impossibilidade de renovação de seus contratos. A instabilidade proveniente desse tipo de regime trabalhista colocava esses professores em situação diferente da professora Lara. É curioso, contudo, perceber que mesmo a professora Lara, que possuía regime de trabalho estável, era levada a coadunar com as práticas que configuravam a subjetividade social da escola. Esse elemento, embora diferenciador entre os professores, reforçou nossa hipótese da institucionalização escolar como processo que contribuía para a produção de transtornos de aprendizagem.

4 Conclusões

As informações construídas na pesquisa apontaram para um processo de institucionalização escolar caracterizado como a padronização das práticas de ensino e avaliação da aprendizagem. A institucionalização escolar contribuía para a produção de transtornos, pois as iniciativas tomadas pela escola para lidar com a não aprendizagem dos alunos se direcionavam para a manutenção das suas incapacidades. Por meio de um refinamento científico dado pelo diagnóstico clínico, a escola contribuía para o processo de exclusão de alunos que destoavam das expectativas escolares.

Como perspectiva, o modelo teórico pode ser utilizado para compreender como o diagnóstico de transtorno de aprendizagem se integra à subjetividade social da escola em relação às dinâmicas de sala de aula, em intervenções presentes na relação professor-aluno e associadas às políticas públicas educacionais, aspectos não trabalhados nessa investigação. A generalização do modelo poderá contribuir para a compreensão da escola como organização singular que possui uma subjetividade própria apesar de, no momento atual, a patologização das dificuldades de aprendizagem ser algo comum entre todas elas (Mitjáns Martínez & González Rey, 2017). Este estudo, portanto, pode ser um alerta sobre a necessidade de se repensar o formato da escola, seja voltada à educação especial ou não: sua estrutura física, sua função social e, sobretudo, as relações que se estabelecem em seu interior por meio das práticas que a definem e que sustentam sua importância na sociedade.

4O termo “professores” será utilizado neste artigo para se referir aos professores e às professoras.

5Os professores em regime de trabalho temporário costumam trabalhar por curtos períodos de tempo. Geralmente assumem vagas de professores que estão de licença médica ou ocupando cargos administrativos na escola e/ou na Secretaria de Educação do Distrito Federal. Os professores temporários não gozam de estabilidade no trabalho e são avaliados durante o período de contrato.

6Nomes fictícios escolhidos pela pesquisadora.

7Os registros de avaliação da aprendizagem são instrumentos que descrevem o percurso do estudante durante um período letivo. Substituem o boletim e dão informações descritivas do processo em relação às estratégias utilizadas pelo professor e os resultados alcançados pelo estudante. Informações podem ser consultadas em: https://www.educacao.df.gov.br/wp-conteudo/uploads/2020/10/3-RAV_ORIENTACOES_.pdf.

8Nome fictício escolhido pela pesquisadora.

9Exame neurofisiológico para investigação cognitiva, ressaltando aspectos como capacidade de audição e discriminação.

10Os nomes das crianças utilizados nesse trecho da fala da professora Nádia são fictícios.

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Recebido: 10 de Janeiro de 2022; Revisado: 31 de Março de 2022; Aceito: 14 de Abril de 2022

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