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Revista Brasileira de Educação Especial

versión impresa ISSN 1413-6538versión On-line ISSN 1980-5470

Rev. bras. educ. espec. vol.29  Marília  2023  Epub 15-Mayo-2023

https://doi.org/10.1590/1980-54702023v29e0229 

Entrevistas

ENTREVISTA COM A PROFESSORA MÔNICA DE CARVALHO MAGALHÃES KASSAR: POLÍTICAS DE EDUCAÇÃO ESPECIAL NO BRASIL

INTERVIEW WITH PROFESSOR MôNICA DE CARVALHO MAGALHãES KASSAR: SPECIAL EDUCATION POLICIES IN BRAZIL

Mônica de Carvalho Magalhães KASSAR2 
http://orcid.org/0000-0001-5577-6269

Kamila LOCKMANN3 
http://orcid.org/0000-0002-1993-8088

Andressa Santos REBELO4 
http://orcid.org/0000-0003-1873-5622

2Professora Titular. Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), campus do Pantanal. Corumbá/Mato Grosso do Sul/Brasil

3Professora Associada. Instituto de Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEDU) e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Rio Grande/Rio Grande do Sul/Brasil

4Professora Adjunta. Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da UFMS campus do Pantanal. Corumbá/Mato Grosso do Sul/Brasil


RESUMO

O presente texto traz uma entrevista realizada com a Professora Mônica de Carvalho Magalhães Kassar, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, acerca das movimentações e dos deslocamentos históricos produzidos nas políticas de Educação Especial no Brasil, especialmente no que se refere às problematizações acerca do Decreto nº 10.502/2020. Ao longo da entrevista, a pesquisadora destaca alguns marcos históricos importantes no campo da Educação Especial, refere os retrocessos e os perigos que se vislumbram com o Decreto n° 10.502/2020 e ainda discute o problema do financiamento público à educação.

PALAVRAS-CHAVE: Educação Especial; Política de Educação Especial; História da Educação Especial

ABSTRACT

This article presents an interview with Professor Mônica de Carvalho Magalhães Kassar, from the Federal University of Mato Grosso do Sul, about the historical movements and displacements produced in the Special Education policies in Brazil, especially regarding the issues surrounding Decree no. 10.502/2020. Throughout the interview, the researcher highlights some important historical milestones in the field of Special Education, refers to the setbacks and dangers that are foreseen with Decree no. 10.502/2020 and also discusses the problem of public funding for education.

KEYWORDS Special Education; Special Education Policy; History of Special Education

INTRODUÇÃO

Este texto apresenta um diálogo desenvolvido com a Professora Mônica de Carvalho Magalhães Kassar, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), acerca das diferentes propostas políticas em Educação Especial no país nos últimos 30/40 anos, período que tem sido foco de suas pesquisas. Formada em Pedagogia, em 1983, pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), teve, desde o início de sua carreira profissional, o interesse pela pesquisa acerca da política e da história da Educação Especial. A partir das oportunidades vivenciadas em âmbito nacional e internacional, pôde realizar Mestrado em Educação pela UFMS (1993) e Doutorado em Educação pela Unicamp (1999). Realizou estágios de Pós-doutorado na Universidad de Alcalá (2005), na Unicamp (2011) e na Universidade de Lisboa (2017 a 2018), o que a permitiu consolidar-se como uma pesquisadora de referência na área da Educação e da Educação Especial.

Atualmente, Mônica é Professora Titular pela UFMS e Pesquisadora Sênior Voluntária da mesma universidade, atuando no Programa de Pós-Graduação em Educação - Educação Social, no campus do Pantanal. É Bolsista Produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) - Categoria 2, e presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores em Educação Especial - ABPEE (2021-2023). Durante sua trajetória como professora e pesquisadora, orientou mais de 25 mestres e doutores em Educação, com ênfase na história e nas políticas de Educação Especial. Além disso, com parcerias com universidades públicas nacionais e internacionais e um grupo importante de pesquisadores, tem se dedicado a fazer o registro da história e da memória da Educação Especial no Brasil. Como uma das sócias-fundadoras da Associação Brasileira de Educação Especial e com grande influência na criação da Revista Brasileira de Educação Especial (RBEE), suas pesquisas têm contribuído para o registro histórico da área, colaborando para a formação de novos pesquisadores. Considera-se suas reflexões sobre as políticas de Educação Especial de 1994, 2008 e 2020 extremamente importantes para o debate sobre os caminhos para a área no país.

Assim sendo, tendo em vista a vasta trajetória da Professora Mônica no campo da Educação Especial e suas valiosas contribuições tecidas ao longo do tempo para o avanço na produção de conhecimento dessa área, apresentamos, a seguir, a entrevista realizada com essa importante pesquisadora.

ENTREVISTA

Andressa Santos Rebelo e Kamila Lockmann: Pergunta 1: Nas últimas décadas, temos observado avanços e retrocessos no que se refere à consolidação do direito das pessoas com deficiência à escolarização. Poderias destacar alguns marcos históricos que são considerados importantes para contar essa história?

Mônica de Carvalho Magalhães Kassar: Inicialmente, gostaria de agradecer o carinhoso convite. É uma honra participar dessa iniciativa, para comemorar 30 anos de nossa revista! Espero que minhas respostas possam colaborar um pouco com trabalhos que se dedicam a análises das políticas de Educação Especial em nosso país.

Esta pergunta é muito desafiadora, pois entendo que a identificação de “avanços” ou de “retrocessos” depende do ponto de vista que se adota e das “consequências” ocasionadas por determinado fenômeno. Ao olhar a educação direcionada às pessoas com deficiência, podemos considerar alguns “marcos” como exemplares de avanço. Um dos primeiros “marcos” é a experiência realizada no início do século XIX, na França, por Jean Itard. Em suas memórias iniciais, Itard expõe seu objetivo de fazer com que o “Selvagem de Aveyron” transite da “selvageria” à “cultura” (MONTANARI, 1978). Apesar da expressão estranha aos nossos dias, Itard evidencia a perspectiva que considera a grande importância da interação social (cultura) no desenvolvimento humano. Seu pensamento contrapunha-se à percepção da deficiência, comum naquele tempo, de que se tratava de uma situação estática e intransponível. A despeito da percepção hegemônica de sua época, Itard tenta algo diferente e essa experiência possibilita a construção de outras novas tentativas futuras, que fazem com que a compreensão sobre a deficiência, até então estabelecida, seja abalada.

Tomo a experiência de Itard para definir o que entendo como “avanço” no campo da Educação Especial: práxis que direcione as pessoas a superarem os limites inicialmente percebidos como intransponíveis e que, como decorrência, leve ao seu desenvolvimento amplo, tendo como consequências a melhoria da qualidade de sua vida e a sua realização como pessoa. Na verdade, é como eu entendo o sentido de “avanço” para a Educação e não apenas para a Educação Especial. A diferença é que a Educação Especial é um campo de pesquisa e de práxis pedagógica que está “antenada” aos estudantes com deficiência, Transtornos do Espectro Autista e com Altas habilidades/superdotação.

A partir dessa concepção, vejo que o Brasil possui uma história de avanços no que se refere à educação oferecida a esses estudantes, apesar de muitas dificuldades impostas, dentre outros fatores, pelas políticas econômicas adotadas no país. Podemos identificar como avanços a consideração da população com deficiência nas campanhas empreendidas pelo Ministério da Educação, no final dos anos de 1950, e a inclusão de artigos sobre a “Educação do Excepcional” na Lei de Diretrizes de Bases da Educação Nacional em 1961 [Lei n° 4.024, de 20 de dezembro de 1961], inclusive com a explicitação do atendimento no “sistema geral de educação”. De certa forma, em sua época, a formação do Centro Nacional de Educação Especial (Cenesp), primeiro setor governamental com a incumbência de traçar políticas de Educação Especial para todo o país, também pode ser entendida como um avanço ao possibilitar que, ainda hoje, ocorra a permanente atenção a essa população no organograma dos Ministérios da administração pública federal, com previsão de dotação de recursos.

Outro marco pode ser a consideração da investigação do tema “pessoas com deficiência”, no primeiro recenciamento populacional ocorrido no Brasil ainda no Império (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2018), e, a partir do Censo de 1991, a presença desse quesito de forma obrigatória nos censos populacionais.

Referente ainda à existência de informações, outro marco é a criação do órgão federal que atualmente é denominado Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), que passou a desenvolver estudos, pesquisas e levantamentos censitários sobre a educação brasileira, inclusive com o registro das características das matrículas dos alunos da “Educação Especial”, como esses estudantes são denominados por esse instituto. A publicização dos dados, sejam os populacionais, sejam os educacionais, sob as responsabilidades respectivamente do IBGE e do Inep, de forma ampla, configura-se como avanço, por possibilitar estudos, pesquisas e avaliações de ações públicas, inclusive pela academia.

Entendo que esses são apenas alguns marcos (dentre muitos outros) que podem ser considerados avanços, quando olhamos, posteriormente, a crescente consolidação do direito das pessoas com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento ou Transtornos do Espectro Autista e Altas habilidades/superdotação à escolarização.

Essa volta ao passado também é interessante para elucidar elementos de retrocessos. Para mim (e para muitos autores), a proposição do Decreto nº 10.502, [de 30 de setembro de 2020], é um marco de retrocesso, por vários aspectos. As justificativas apresentadas para a existência desse Decreto se baseiam, principalmente, em características da Educação Inclusiva, que são decorrentes de políticas econômicas e de interesses privatistas, como recursos limitados para a qualificação da educação pública e a destinação de recursos para instituições privado-assistenciais ou privado-comerciais. Ainda, o Decreto e suas justificativas passam a ideia de que a educação bilingue para surdos estaria garantida apenas com esse documento, quando, desde 2005, o Decreto n° 5.626, [de 22 de dezembro], já trazia a obrigatoriedade do ensino da Libras [Língua Brasileira de Sinais], como primeira língua, e da Língua Portuguesa, como segunda língua, para alunos surdos desde a Educação Infantil, e a possibilidade de escolas e classes de educação bilíngue. Outra falácia difundida pelo Decreto [nº 10.502/2020] é a ideia fictícia de que a família poderia escolher a forma de atendimento mais adequado a seu filho, aspecto que desconsidera o princípio constitucional da obrigatoriedade da Educação Básica a crianças e adolescentes de 4 a 17 anos, especialmente pelo fato de que parte significativa das instituições especializadas para deficiência intelectual, principalmente as direcionadas para deficiência intelectual, não possibilita a escolaridade plena.

Ainda, quero ressaltar que a classificação de um fenômeno como “avanço” ou “retrocesso” não deve se dar de forma simplista. Os fenômenos são prenhes de contradições e marcados pelas possibilidades históricas. Assim sendo, a garantia da educação/escolarização dos estudantes com deficiência, Transtornos do Espectro Autista e com Altas habilidades/superdotação em salas de aulas comuns, de escolas regulares, com Atendimento Educacional Especializado como dever público, é um avanço, mas essa política, como qualquer outra, traz limitações, especialmente quando condicionada por contingências econômicas ou interesses demagógicos.

Andressa Santos Rebelo e Kamila Lockmann: Pergunta 2: Na sua opinião, quais as contribuições da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva em relação à Política Nacional de Educação Especial de 1994?

Mônica de Carvalho Magalhães Kassar: Entendo que a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, [de 2008], teve o mérito de impulsionar, de fato, a escolaridade de parte significativa de crianças e de adolescentes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento, Altas habilidades/superdotação em classes comuns de escolas regulares, especialmente de escolas públicas. Também teve o mérito de chamar atenção para o fato de que o oferecimento de Atendimento Educacional Especializado não pode substituir a escolarização comum, mas, diferentemente disso, deve possibilitar o pleno acompanhamento do desenvolvimento escolar.

Andressa Santos Rebelo e Kamila Lockmann: Pergunta 3: Por muitos anos, a academia teceu inúmeras críticas aos rumos dados à política de inclusão escolar no país. Em 2020, com a publicação da Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida, muitos de nós nos vimos na obrigação de defendê-la. Como você compreende esse processo?

Mônica de Carvalho Magalhães Kassar: É compreensível que pesquisadores que criticavam a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva passassem a defendê-la frente à Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida, apresentada em 2020, com o Decreto n° 10.502/2020, pois grande parte das críticas ao documento de 2008 evidenciavam as fragilidades causadas especialmente por interesses econômicos ou privatistas.

Explico: com a política de 2008, vários municípios encerraram formas interessantes de atendimento, oferecido por instituições públicas, alegando que essas formas não estariam “de acordo” com a Educação Inclusiva. Isso foi uma falácia, pois muitos desses atendimentos em nada entravam em choque com a política de 2008. Então, em nome de uma “Educação Inclusiva”, municípios aproveitaram para “enxugar a máquina” pública, encerrando atendimentos especializados a bebês, serviços integrados de saúde e reabilitação para apoio às escolas, professores itinerantes etc., e concentram seus atendimentos nas salas de recursos multifuncionais, nem sempre com recursos materiais e humanos adequados. A academia, com muita razão e com base em pesquisas empíricas, teceu críticas severas à precariedade dos atendimentos que passaram a ser oferecidos à população.

Cabe ressaltar que a academia também se mobilizou para construir propostas pedagógicas colaborativas com redes municipais e estaduais, e registrou e analisou casos interessantes de experiências bem-sucedidas. Com a aprovação do Decreto de 2020, frente às características ainda mais precárias da Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida, obviamente a academia precisou se manifestar.

Andressa Santos Rebelo e Kamila Lockmann: Pergunta 4: De que maneira você percebe que se abriu espaço para o que foi definido como tese revisionista da política, e que implicações esse movimento pode produzir para a Educação Inclusiva?

Mônica de Carvalho Magalhães Kassar: Não sei se entendo claramente o que vocês estão denominando de “tese revisionista da política”. Se estão se referindo ao que Sena Júnior (2019) denomina de “ofensiva obscurantista e anticientificista contra a inteligência e as universidades”, com o governo de Jair Messias Bolsonaro, posso dizer que há um movimento internacional, evidenciado por diferentes estudiosos, de uma virada “à ultradireita”, especialmente nos últimos anos, com partidos neofacistas ou neonazistas se fortalecendo, em vários países.

Especificamente no campo da política de Educação Especial brasileira, Carmo et al. (2019) chamam atenção para “o movimento revisionista”, que se evidenciou após o impeachment da presidenta Dilma Vana Rousseff. Assim dito, penso que o que se passa na política de Educação Especial está intimamente relacionado à política pública brasileira, exposta de forma mais evidente com o governo Bolsonaro, mas já presente nos antecedentes do processo de impeachment da presidenta.

Vejo que a política apresentada no Decreto de 2020 traz traços desse movimento da ultradireita: desconsideração e demérito das instituições públicas; fortalecimento do enfoque privatista; valorização da segregação; supremacia do “mérito” individual; primazia da competitividade; valorização do que se entende por “superioridade”; e, como na propaganda fascista, tudo isso é difundido como “benefício” de todos, por “proteção” dos “mais fracos” e para que estes não atrapalhem os “mais fortes”.

Andressa Santos Rebelo e Kamila Lockmann: Pergunta 5: Quais são, na sua opinião, os pontos que merecem nossa atenção e problematização no que se refere ao texto da Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida, publicada em 2020?

Mônica de Carvalho Magalhães Kassar: Acho que minhas respostas anteriores já explicitaram que o conjunto da política estabelecida no Decreto n° 10.502/2020 é problemático e merece problematização e, até mesmo, revogação. Vejam: na “Apresentação” do documento de 124 páginas, denominado Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida (2020) - que acompanha o Decreto -, assinada por Ilda Ribeiro Peliz, Secretária de Modalidades Especializadas de Educação, já há uma exposição discursiva que inicia afirmando que é “maravilhoso ver o quanto a escola brasileira avançou ao entender a necessidade de se tornar um espaço educacional inclusivo” [p. 10]. Logo adiante, sustenta que “existem milhares de pessoas em idade escolar fora da escola”, e, por “apresentarem demandas que são mais adequadamente atendidas em escolas ou classes especializadas, a PNEE defende a manutenção e a criação dessas classes e escolas”, e declara: “Estas classes e escolas especializadas são também inclusivas” [p. 10]. Escolhi este pequeno trecho, pois acredito que ele seja representativo da ampliação polissêmica intencional e perversa dos termos utilizados tanto no Decreto, quanto nesse documento [Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida] de onde extrai o excerto.

Outro ponto que considero perverso é passar a ideia de que classes e escolas bilingues estariam asseguradas apenas a partir do Decreto de 2020. Como me referi anteriormente, trata-se de uma falácia demagógica, pois esses espaços estão garantidos na legislação brasileira, ao menos, desde 2005, com o Decreto nº 5.626, que regulamentou a Lei nº 10.436, [de 24 de abril de 2002], conhecida como “Lei da Libras”. Esse Decreto já garantia escolas e classes de educação bilíngue (Art. 22). Esse aspecto foi bem explicado pela Professora Doutora Cristina Broglia Feitosa de Lacerda, em uma live denominada “Impacto do Decreto 10.502 na Política Brasileira de Educação Especial”, promovida pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Especial da UFSCar [Universidade Federal de São Carlos], e transmitida pelo YouTube em vinte de outubro de 20205. Como comentei anteriormente, algumas redes de educação pública fecharam serviços e atendimentos, com a justificativa de “adequação à Educação Inclusiva”, quando, em muitos casos, o que se deu foi uma ação com o objetivo de enxugar gastos públicos.

Ao relacionar, ainda, gastos públicos e política de Educação Especial, a política proposta em 2020 facilita mais ainda tal enxugamento, ao privilegiar a ação das escolas especializadas que, no Brasil, estão sob administração privada em sua grande maioria. Ao contextualizar a política de Educação Especial no cenário das outras políticas sociais, sob a política econômica adotada no país, podemos perceber que essa proposta se adequa aos propósitos econômicos também.

A política de 2020 tem outros problemas que têm sido bem abordados em trabalhos acadêmicos, como na dissertação de Mestrado de Caroline Carvalho da Costa Lima Landim (2022), sob orientação da Professora Doutora Andressa Santos Rebelo, defendida neste ano no campus do Pantanal da UFMS.

Andressa Santos Rebelo e Kamila Lockmann: Pergunta 6: Você participou de audiência pública sobre a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida. Como percebe a atuação de diferentes grupos, sobretudo aqueles que defendem a inclusão escolar (com todas as divergências existentes) e os que defendem os interesses das instituições privado-assistenciais? Você acredita que a polarização política mais ampla tem impactado esse debate?

Mônica de Carvalho Magalhães Kassar: Acredito que a polarização política tem impactado o debate sobre os caminhos da Educação Especial no Brasil, sim, mas - posso estar bastante enganada - pareceu-me que parte significativa dos participantes não se deu conta da relação entre esses condicionantes políticos e sua posição. Grande parte aparentou entender que a questão se resumia apenas ao “melhor local para as crianças” ou à “escolha dos pais”. Como disse anteriormente, entendo que o problema não se resume a essas questões (que também são importantes), mas englobam o problema do financiamento público à educação, a melhoria das condições de escolaridade no país e o assentamento da ideia de que todas as pessoas têm direito à educação com a máxima qualidade. Ainda, em algumas defesas das instituições especializadas, percebi, como friso - posso estar enganada -, que alguns participantes entendiam a existência da “Educação Inclusiva” como incompatível à existência dessas entidades, o que não é verdade. Na proposta de política em 2008, há um deslocamento da centralidade dos atendimentos educacionais para a escolarização geral, mas isso não significa a impossibilidade ou a inexistência da ação pedagógica de instituições especializadas, sejam públicas ou privadas. Algumas instituições - públicas e privado-assistenciais - entenderam isso e, hoje, se dedicam a apoiar a frequência de alunos em salas de aulas comuns, oferecendo, de modo complementar ou suplementar, Atendimento Educacional Especializado.

Andressa Santos Rebelo e Kamila Lockmann: Pergunta 7: Houve manifestações contrárias à Política de 2020 de muitos setores sociais. Você identifica diferenças entre o movimento político em defesa dos direitos das pessoas com deficiência da década de 1980 e o de hoje?

Mônica de Carvalho Magalhães Kassar: Não tive a oportunidade de estudar a fundo essas diferenças. Tenho algumas lembranças da movimentação no período da Assembleia Nacional Constituinte e de eventos importantes nesse período, como a criação da Coordenadoria para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (CORDE), em Brasília, e a realização do IX Congresso Mundial da Liga Internacional de Associações para Pessoas com Deficiência Mental (ILSMH), no antigo Hotel Nacional, Rio de Janeiro, eventos que tive oportunidade de presenciar em 1986.

Entendo que, nesse período, década de 1980, houve uma percepção unificada da necessidade de garantia de direitos para a população, com forte atuação de entidades de pessoas com deficiência e instituições especializadas. Embora o debate público versus privado estivesse presente também naquele momento, o que prevaleceu foi a garantia constitucional de políticas sociais a pessoas com deficiência. A dissertação de Joyce Fernanda Guilanda de Amorim, orientada por Kátia Regina Moreno Caiado, defendida na UFSCar em 2018, registra trâmites importantes na mobilização para a garantia desses direitos.

No atual movimento de disputas políticas, claramente exposto, ao menos, desde 2011, quando um ato público, realizado em Brasília em maio de daquele ano, reclamou contra o fechamento de escolas de surdos e o possível encerramento de atividades de ensino no Instituto Nacional de Educação dos Surdos e no Instituto Benjamin Constant, vejo existir uma grande polarização. Essa polarização é muito turva pelo uso polissêmico de expressões como “inclusão”, “Educação Inclusiva”, “educação ao longo da vida”, dentre outras. É possível escutar os diferentes grupos argumentarem “a favor da inclusão”, defendendo ideias muito diferentes e, às vezes, contrárias.

Andressa Santos Rebelo e Kamila Lockmann: Pergunta 8: Quais foram os argumentos que sustentaram a revogação da Política de 2020 e que lutas precisamos travar atualmente para consolidar a Educação Inclusiva como um direito humano?

Mônica de Carvalho Magalhães Kassar: A Política de 2020 foi, inicialmente, suspensa e sua revogação ocorreu apenas com a posse de Luiz Inácio Lula da Silva. Até essa data, o Decreto teve sua eficácia suspensa pelo Tribunal Federal Superior (STF) desde dezembro de 2020, mas tudo indica que a gestão anterior do Governo Federal (gestão 2019-2022) ignorou essa suspensão.

Sobre os argumentos que levaram à suspensão da eficácia do Decreto, a página web do STF informa que o Ministro Dias Toffoli entende que a Constituição Federal garante o atendimento especializado preferencialmente na rede regular de ensino. Ainda, ao internalizar a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, com o Decreto Presidencial nº 6.949, [de 25 de agosto de 2009], o Brasil assumiu um compromisso com a Educação Inclusiva e o Decreto contraria esse princípio, portanto o Decreto contraria a própria Constituição Federal de 1988.

Como forças para sua revogação pelo atual governo, registro a atuação política de diferentes entidades científicas, especialmente a Associação Brasileira de Pesquisadores em Educação Especial (ABPEE), a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) e a Rede de Pesquisadoras(es) sobre Financiamento da Educação Especial (Rede Fineesp), que elaboraram conjuntamente um importante documento que contemplou essa pauta e o fizeram chegar ao Grupo Técnico de Educação do Gabinete de Transição Governamental. Mesmo com sua revogação, o certo é que há forças políticas que apoiam e defendem o Decreto de 2020.

A consolidação de uma Educação Inclusiva, ou, como prefiro falar, a consolidação da universalização da educação, é possível com o fortalecimento da escola pública como instituição de qualidade inquestionável, com recursos suficientes e adequados a toda a população.

Andressa Santos Rebelo e Kamila Lockmann: Pergunta 9: Quais as perspectivas para as políticas de Educação Especial, em um contexto de cortes de gastos que se acentua desde a Proposta de Emenda à Constituição n° 55/2016?

Mônica de Carvalho Magalhães Kassar: As perspectivas são as mesmas para qualquer política social: aumento da precariedade dos equipamentos públicos, fragilização e terceirização dos contratos de trabalho, com implicações na rotatividade de funcionários, terceirização de serviços, enfraquecimento das instituições públicas etc. Uma política de Educação Especial é parte da política educacional do país e compõe o conjunto de políticas sociais. Quando existe uma Emenda Constitucional que possibilita o fim da vinculação de verbas constitucionalmente asseguradas para educação e saúde, dentre a previsão de possibilidade de outras limitações, como expõem Leher et al., em artigo publicado em 2017, tem-se uma “justificativa” para o não financiamento da educação pública e para o fortalecimento das entidades privadas, sejam assistenciais-filantrópicas ou comerciais. Como sou otimista, acredito que mudanças são possíveis, com articulação e pressão política, especialmente quando se têm à vista luzes se acendendo no final do túnel.

REFERÊNCIAS

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Sena Júnior, C. Z. (2019). Obscurantismo e anticientificismo no Brasil bolsonarista: anotações sobre a investida protofascista contra a inteligência e a ciência no Brasil. Cadernos GPOSSHE On-line, 2(esp.), 21-49. https://doi.org/10.33241/cadernosdogposshe.v3i1.1987Links ]

Recebido: 28 de Novembro de 2022; Revisado: 01 de Dezembro de 2022; Aceito: 02 de Dezembro de 2022

Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Mestre em Educação pela UFMS. Pedagoga pela Unicamp. Bolsista Produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) - Categoria 2.

Doutora e Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Líder do Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação e In/Exclusão (GEIX/CNPq). Bolsista Produtividade do CNPq - Categoria 2.

Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEdu/UFMS). Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação no campus do Pantanal (PPGE/CPAN) da UFMS. Líder do Grupo de Pesquisa Educação Especial e Inclusão (CNPq).

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