1 Introdução
Para conceituar a diversidade neurológica da população humana, a socióloga australiana Judy Singer (que também está incluída no espectro autista, portadora da síndrome de Asperger), com o jornalista Harvey Blume, em 1998, popularizaram o termo “neurodiversidade” (Singer, 2016). Esse termo diz respeito às variações das composições neurológicas que abrangem os seres humanos, nos quesitos sociais e comportamentais, envolvendo características de aprendizagem, atenção, humor e outras funções cognitivas (Bolourian et al., 2018).
Esse conceito engloba diferenças de neurocognição que não devem ser vistas como déficits, distúrbios ou deficiências, reunindo conhecimentos sobre outras condições. Entre essas composições neurológicas, podem ser incluídas: dispraxia, dislexia, discalculia, síndrome de Tourette, transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), entre outras como o Transtorno do Espectro Autista (TEA) como forte expoente do conceito da neurodiversidade (American Psychiatric Association [APA], 2013; Bolourian et al., 2018). Todas essas condições fazem parte da diversidade humana, devendo ser respeitadas como qualquer outra diferença - sexualidade, gênero, etnias etc.
A neurodiversidade reconhece e respeita as diversidades neurológicas que fazem parte da vida das pessoas. Cada ser humano apresenta uma “conexão neurológica” própria, e, quando essa conexão “foge” do considerado padrão, ela é chamada de atípica (ou neurodivergente). Nesse sentido, as variações típicas de pessoas neurodivergentes não são algo negativo ou limitante (Hu & Chandrasekhar, 2021). São formas diferentes de expressar-se como indivíduo, fazendo parte de uma diversidade humana, e essas expressões podem ser interpretadas como vantagens competitivas e, inclusive, potencializadoras (Chandrasekhar & Hu, 2021).
O termo “neurodiversidade” foi adotado pela comunidade autista e tão logo chegou às outras diversidades neurológicas (Bolourian et al., 2018). O uso desse conceito combate o estigma e promove a inclusão dessa população nas escolas e no mercado de trabalho. Principalmente durante a pandemia, as redes sociais promoveram o reconhecimento das pessoas com os chamados “cérebros diversos” ou neurodivergentes que se encontraram no mundo virtual (Hu & Chandrasekhar, 2021).
Falando mais especificamente, o TEA é conceituado como sendo uma desordem heterogênea, de causa multifatorial, que gera prejuízos qualitativos nas habilidades de comunicação social e em habilidades sociais (Demetriou et al., 2018; Sousa et al., 2022). Além disso, há desequilíbrios sensoriais, interesses restritos, rigidez em rotinas e hábitos e comportamentos repetitivos. Os sinais aparecem na infância e as incapacidades são persistentes e, geralmente, limitam a autonomia e a funcionalidade dos indivíduos (Olivati & Leite, 2019). Os prejuízos podem ser amplos e de intensidade variável em múltiplas áreas do funcionamento, como linguagem, aprendizagem e comportamentos adaptativos. Com frequência, há comorbidades associadas, como outros transtornos do neurodesenvolvimento, transtornos mentais e neurológicos. Destaca-se, ainda, que essa alteração do neurodesenvolvimento envolve fatores genéticos, neurobiológicos e funções neurocognitivas (Silva et al., 2021).
Dados do Centros de Controle e Prevenção de Doenças (Centers for Disease Control and Prevention - CDC) indicam que a prevalência de pessoas com TEA vem aumentando progressivamente ao longo dos anos. Em 2004, era uma pessoa com autismo a cada 166. Na última publicação do CDC, a prevalência estava em uma em 44 (Nardi et al., 2021). Além da prevalência, os diagnósticos são cada vez mais precoces. No estudo de Nardi et al. (2021), as crianças tinham 50% mais chances de receber um diagnóstico de autismo até os 4 anos de idade, quando comparadas às crianças de 8 anos. Esse fato melhora o prognóstico, e um diagnóstico prematuro reflete em um tratamento e acompanhamento mais adequado (Demetriou et al., 2018; Maenner et al., 2020).
Pessoas dentro desse espectro buscam concluir cursos de graduação e entrar no mercado de trabalho, mas, para terem efetividade em sua jornada, é primordial a aplicação de políticas, legislações e práticas educacionais que garantam a inclusão de pessoas autistas, uma vez que um sistema educacional inclusivo é direito da pessoa com deficiência (Olivati & Leite, 2019). A Lei nº 12.764, de 27 de dezembro de 2012, garante o acesso à educação, ao ensino profissionalizante e ao mercado de trabalho, por meio da institucionalização da Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoas com Transtorno do Espectro Autista (Talarico et al., 2019). Esse modelo didático deve permitir o maior desenvolvimento possível dos talentos e das habilidades desses sujeitos, considerando suas características, seus interesses e suas necessidades, o que ainda se configura como um desafio em diversas instituições de ensino, nas quais os indivíduos não usufruem de seus direitos e de sua autonomia, pela ausência da institucionalização dessa Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoas com Transtorno do Espectro Autista (Decreto nº 8.368, de 2 de dezembro de 2014; Lei nº 12.764, 2012; Ministério da Educação, 2001, 2013; Resolução CNE/CES nº 3, de 20 de junho de 2014; Sousa et al., 2022).
No Estados Unidos, a cada 59 estudantes do Ensino Médio um estudante apresenta TEA (Anderson et al., 2018). A falta de diagnóstico do TEA para muitos casos ainda é um fator de confusão recorrente. No entanto, com o crescimento de estudantes com TEA diagnosticados e matriculados na Educação Infantil e no Ensino Fundamental, estima-se um aumento futuro desses estudantes com TEA no Ensino Superior (Aguilar & Rauli, 2020; Anderson & Butt, 2017; Camalionte et al., 2021; Donatti & Capellini, 2018; Olivati & Leite, 2019; Silva & Moreira, 2022; Silva et al., 2020; Silva et al., 2021). Um estudo realizado na Austrália observou que apenas 19% de pessoas com TEA que finalizaram a Educação Básica concluíram o Ensino Superior (Australian Bureau of Statistics, 2012).
Muitos cursos de graduação em Medicina têm adotado a prática pedagógica do Problem-Based Learning (PBL), que inclui a apresentação de um problema a ser resolvido pelos estudantes divididos em pequenos grupos (Decreto nº 8.368, 2014; Gomes et al., 2009). Essa prática incentiva o uso de metodologias ativas para os processos de ensino-aprendizagem; um facilitador, denominado tutor, dará suporte e orientação aos estudantes (Menezes et al., 2021). Existem muitas variantes da metodologia PBL, mas todas se baseiam na aquisição de conhecimento no formato espiral, englobando diferentes disciplinas em subáreas correlatas (Torres et al., 2019). No entanto, algumas pesquisas indicam que ainda são comuns a identificação de desafios relacionados à adoção de práticas pedagógicas inclusivas como adaptações curriculares ou metodológicas, além da precariedade na formação docente (Dhuga et al., 2022; Fischer, 2019; Nogueira et al., 2022; Silva & Pavão, 2018; Silva et al., 2021).
Nesse sentido, o presente estudo relata o caso de uma acadêmica com TEA inserida na metodologia PBL do curso de Medicina. É abordado o processo diagnóstico da acadêmica, destacando-se as implicações do autismo, nesse caso, e relacionando-o com as adaptações curriculares necessárias para sua inclusão acadêmica.
2 Método
O presente relato de caso foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Evangélica de Goiás - (UniEVANGÉLICA) - Certificado de Apresentação de Apreciação Ética (CAAE) 68605023.8.0000.5076). Estudos que descrevem casos são muito comuns nas ciências, não somente na saúde, visto que eles permitem fornecer subsídios fundamentais para melhorar o tratamento dos pacientes em determinadas situações. Eles evocam ensinamentos que podem ser aplicados na clínica ou direcionam futuras pesquisas gerando novas hipóteses para lacunas da ciência. Relatos de caso são simples, porém muito importantes para apresentar dados de uma observação baseada em evidências científicas.
2.1 Descrição do caso
Uma estudante de Medicina recebeu, aos 20 anos de idade, o diagnóstico de TEA obtido a partir dos atrasos no desenvolvimento neurocognitivo, nos aspectos relacionados ao prejuízo na comunicação interpessoal, comportamentos repetitivos, interesses restritos e dificuldade na interação social, exacerbados após o início de seu primeiro semestre letivo no curso de Medicina, em 2021. Essa estudante buscou atendimento médico especializado (pediatra e neurologista) desde a infância. Inclusive, fez acompanhamento com psicólogo comportamental desde o início de sua vida educacional, aos 5 anos, quando as dificuldades de interação social ficaram mais evidentes, porém fazia tratamento para fobia social.
Ainda durante a infância, ela relatava distúrbios do sono desde o nascimento, crises de ansiedade, comportamentos restritos (brincava apenas com um brinquedo por longos períodos), apresentava hiper foco, ausência de contato visual com as pessoas e movimentos repetitivos (balançava o corpo e as pernas em momentos de ansiedade). Durante esse período, ela não recebeu qualquer tipo de adaptação pedagógica.
Durante o Ensino Médio, ela desenvolveu transtorno do pânico e depressão e buscou auxílio de um psiquiatra. Ela afirma ter passado por seis médicos, dentre eles psiquiatras e neurologistas, os quais trataram a Síndrome do Pânico, distúrbios de sono, fobia social e depressão. Com o diagnóstico de Fobia Social e o agravamento das crises, a estudante recebeu da escola em que cursava o Ensino Médio, após recomendação médica, as seguintes adaptações: realização das provas em ambiente isolado e finalização do ano letivo estudando em seu domicílio, para que não houvesse contato social, visando a redução das crises de pânico.
Ao final do Ensino Médio, em 2018, a estudante iniciou o curso de graduação em Jornalismo, em 2019, e recebeu adaptações da instituição de ensino para o diagnóstico de Fobia Social. Assim, ficou acordado a não participação dela em seminários e a realização de trabalhos escritos para substituir esse tipo de avaliação. Entretanto, a estudante cancelou sua matrícula ainda no primeiro semestre letivo, ainda em 2019. Ademais, interrompeu o tratamento medicamentoso, devido aos insuportáveis efeitos colaterais dos medicamentos.
Ao iniciar o curso de graduação em Medicina, em 2020, em uma renomada instituição particular com mais de 1.200 alunos no curso de Medicina, cujo método de ensino segue a metodologia PBL, as crises de pânico se intensificaram, o que a fez procurar novamente apoio médico. Após avaliação neuropsicológica realizada em abril de 2021, iniciou os acompanhamentos psicológicos e psiquiátricos direcionados ao diagnóstico do TEA. Essa estudante manifesta déficit na interação social, comprometimento da linguagem, perfil de comportamento repetitivo, padrão motor peculiar, alterações na integração sensorial, alterações qualitativas em funções executivas e crises paroxísticas de ansiedade em situações de exposição social, principalmente no ambiente acadêmico. Ela necessita de atendimento por uma equipe multidisciplinar, ações farmacológicas e não farmacológicas e programa pedagógico adaptado conforme as necessidades específicas.
Dentre as medidas de adaptação solicitadas pelos profissionais que a acompanham, foram implementadas: tempo adicional em determinadas avaliações; iniciar as discussões em sessões de estudo em grupo e ser avaliada nos debates em grupo por meio de resumos escritos, visando a flexibilizar a obrigatoriedade da fala; receber acompanhamento de duas horas semanais por um tutor médico; informar o corpo docente sobre as necessidades e as adaptações envolvendo a estudante; nas divisões em grupos, a aluna deve ficar com colegas aos quais tenha desenvolvido maior proximidade e afinidade, para que eles possam auxiliá-la; e, quando necessário, realizar atividades em um grupo pequeno de estudantes, no espaço fora da sala de aula.
3 Resultados e discussão
Singer (2016) diz que nós somos todos habitantes neurodiversos do planeta, porque não há duas mentes neste mundo que possam ser exatamente iguais. As principais características observadas em pessoas com TEA são relacionadas à comunicação e às habilidades sociais deficientes, interesses e atividades restritas (APA, 2013; Demetriou et al., 2018; Sousa et al., 2022). Essas características colocam esses estudantes em desafios acadêmicos e não acadêmicos significativos (Jansen et al., 2017). De fato, uma revisão da literatura revelou algumas das questões mais comumente identificadas por estudantes universitários com TEA, das quais se ressalta a dificuldade em responder perguntas em sala de aula, a percepção de que suas necessidades não são levadas a sério e o embaraço ao pedir ajuda (Anderson et al., 2018).
Políticas de Educação Especial buscam garantir acesso e aprendizagem de pessoas com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação na escola comum. No entanto, variados desafios e adaptações são necessários nas instituições de ensino para que tais indivíduos possam usufruir de seus direitos e autonomia (Chandrasekhar & Hu, 2021; Hu & Chandrasekhar, 2021; Silva & Pavão, 2018). Entre esses estudantes da “educação especial”, estão aqueles com TEA, os quais buscam concluir seus estudos, como um curso de graduação, e conquistar espaços dentro do mercado de trabalho (Olivati & Leite, 2019; Talarico et al., 2019). Desse modo, para ter efetividade em sua caminhada, esses alunos necessitam de medidas políticas, legislações e práticas educacionais que assegurem a inclusão de pessoas com TEA (Donati & Capellini, 2018).
No que diz respeito à integração de indivíduos com TEA no Ensino Superior, independentemente do curso, há diversos aspectos que dificultam o processo de adaptação com a matriz curricular, aprendizagem e socialização, visto que a pessoa autista apresenta considerável limitação da interação social, dificuldades em compreender relacionamentos, bem como apego a rotinas rígidas (Anderson & Butt, 2017; Aguilar & Rauli, 2020; Camalionte et al., 2021; Sociedade Brasileira de Pediatria [SBP], 2022).
Vale lembrar ainda que a acadêmica descrita pelo presente relato frequenta uma instituição de ensino médico particular, com excelente estrutura e corpo docente qualificado, pautada em metodologias ativas de ensino-aprendizagem, como o PBL, as quais são consideradas eficientes por inúmeros estudos, porém caracterizadas como desafiadoras no processo de adaptação por um considerável número de estudantes, podendo causar sentimento de insegurança, instabilidade, desconforto e frustrações no processo de aprendizagem (Silva & Moreira, 2022; Silva & Pavão, 2018; Silva et al., 2020; Torres et al., 2019).
O estudo desenvolvido por Olivati e Leite (2019) classificou as dificuldades gerais de estudantes com TEA em núcleos de significação e indicadores, dentre os quais se destacam as condições relacionadas ao próprio espectro autista, o despreparo dos professores e da instituição, além dos fatores socioemocionais como agravantes para as adequações (Fischer, 2019; Silveira et al., 2020). Há poucos profissionais capacitados e instruídos corretamente, o que favorece o agravamento de possíveis crises e traumas (Donati & Capellini, 2018). Alterações curriculares podem ser empregadas para possibilitar a aprendizagem de todos os estudantes da Educação Especial, abrangendo os objetivos, os conteúdos obrigatórios, os métodos de ensino e as estratégias de avaliação (Silva & Pavão, 2018). Outras adaptações são importantes como serviços de apoio não acadêmicos especializados, como o apoio individualizado do estudante para considerar as singularidades específicas do neurodivergente (Bolourian et al., 2018).
Há um despreparo diante das condições específicas de um aluno com TEA, visto que existem diferentes níveis de apresentação desse espectro. Assim sendo, marcos importantes como as Declarações de Salamanca (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura [Unesco, 1990]) em uma abrangência mundial, de Jomtien (Unesco, 1994) e leis brasileiras como a Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989, e a Lei nº 12.764/2012, que garantem apoio e direito às pessoas com TEA, são algumas das demonstrações de como essa temática está ganhando mais visibilidade, apesar de ainda não serem completamente efetivadas na realidade da educação.
A inclusão de estudantes com TEA é um desafio a ser resolvido e um tema a ser amplamente discutido desde a Educação Básica, isso porque a inserção desse público no contexto do ensino regular traz problematizações sobre a prática docente e a implementação de um currículo apropriado (Neves et al., 2014; Silva et al., 2021). A inclusão de estudantes com neurodiversidades acontece se houver esforço coletivo; assim, é crucial que, em adição à família, o sistema educacional, desde a gestão, acredite no processo, vislumbre a pessoa autista como sujeito global e garanta uma política efetiva de formação docente (Nogueira et al., 2022; Santos et al., 2021).
E no que tange à realidade universitária, os docentes não são formados para lecionar para a diversidade neurológica (Fischer, 2019; Silveira et al., 2020). As pós-graduações dos docentes que lecionam em Instituições de Ensino Superior preconizam a pesquisa e conteúdos específicos da especialidade, o que acaba por resultar em uma formação direcionada mais ao técnico do que à docência e à didática, não os preparando para lidar com as diversidades existentes em um ambiente educacional (Aguilar & Rauli, 2020; Ramos et al., 2021; Silva & Moreira, 2022; Silva et al., 2021).
Diante do exposto, vale ressaltar, em relação ao relato em análise, que algumas medidas de inclusão foram oficializadas e adotadas pela instituição de ensino a qual a estudante está matriculada e obtiveram retorno positivo. É o caso da disponibilização de hora semanal com um tutor também graduado em Medicina, que funciona como principal conexão entre a estudante e os demais docentes do curso, visto que há certa dificuldade, por parte da aluna, em abordar seus professores e expor suas demandas. Além disso, a estudante foi autorizada pela coordenação do curso de Medicina a se manter em silêncio durante sessões tutoriais e entregar resumos escritos para sua avaliação processual.
É importante ressaltar que, na metodologia PBL, existe uma disciplina em que os alunos se encontram em pequenos grupos, sob a orientação de um professor-tutor, e participam ativamente discutindo sobre uma situação-problema abordando os conteúdos que fazem parte da matriz curricular, com o objetivo de colocar o estudante como principal sujeito de sua aprendizagem e desenvolver competências como: habilidades de comunicação, construção colaborativa e atuação em equipe (Demetriou et al., 2018; Menezes et al., 2021). Essa metodologia da tutoria busca desenvolver competências como: atuação em equipe, comunicação de forma eficiente e relacionamento interpessoal (Gomes et al., 2009).
Embora essa subárea tenha um objetivo muito produtivo, essa acadêmica apresenta déficit na interação social, comprometimento da linguagem e crises paroxísticas de ansiedade em situações de exposição social. Portanto, participar de uma aula que segue esse modelo passa a configurar um desafio hostil para ela, por isso houve a permissão de participar nas aulas sem sua fala, o que se mostrou uma medida eficiente para evitar suas crises de pânico. As adaptações oferecidas pelos docentes que a acompanham foram: se manter em silêncio, caso queira, ou falar no início das sessões tutoriais, bem como falar em qualquer momento que desejar e entregar resumos escritos para sua avaliação processual, autorizada pela coordenação do curso.
Entretanto, outros meios para que a aluna desenvolva as habilidades trabalhadas nessa disciplina não foram propostos pela instituição, o que não configura o oferecimento de oportunidades iguais para que a aluna seja autônoma e autodeterminada (Freitas, 2022; Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015; Ordem dos Advogados do Brasil [OAB], 2015; Sousa et al., 2022). Uma possível razão para esse posicionamento da instituição pode ser a ideia de que a aluna deva trabalhar determinadas habilidades apenas em atendimentos médicos e psicológicos, fora desse ambiente educacional. Contudo, a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, a qual estabeleceu a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), determina que é preciso haver apoio especializado para atender as peculiaridades da clientela de Educação Especial.
Em outras subáreas, a coordenação e os docentes que compõem a equipe foram informados da condição dessa estudante e estão cientes de suas dificuldades. No caso das aulas no laboratório, como anatomia ou histologia, os professores permitiram que ela permaneça nos laboratórios por um período maior, para que possa olhar as peças anatômicas ou as lâminas com mais detalhes, sem pressa, além de poder utilizar os intervalos das aulas para ter o silêncio necessário para sua concentração.
Em subáreas nas quais a estudante é avaliada pelo Exame Clínico, Objetivo, Estruturado (do inglês, Objective, Structured, Clinical Examination - OSCE), ela realiza a avaliação com o primeiro grupo. No entanto, essa possibilidade depende do coordenador do período, e, por vezes, os professores não são avisados dessas alterações. Durante as aulas com metodologia de sala de aula invertida, a estudante tem dificuldades em participar com a fala e não há adaptações para auxiliá-la, o que prejudica sua nota processual. O ideal seria o professor direcionar melhor a discussão para que a estudante pudesse participar conforme suas aptidões e sem constrangimentos, de forma inclusiva.
Ressalta-se que, em outras subáreas que compõem a matriz curricular, não houve adaptações metodológicas para essa estudante até o presente momento, ou apenas foram realizadas em períodos específicos. Por exemplo, no terceiro período, uma subcoordenadora de área foi bastante acolhedora. Um ou dois dias antes da aula ela explicava, via aplicativo de mensagem (WhatsApp), qual seria a dinâmica usada no dia da aula, ajudando a estudante a se preparar para a dinâmica e, também, caso necessário, a professora planejava outra maneira de avaliar a estudante nos casos de ela não conseguir lidar com a proposta da aula.
Para finalizar, o tempo adicional para realizar as provas é uma adaptação que ocorre em algumas subáreas, porém depende do coordenador de cada subárea e não são todos que autorizam esse tempo excedente. Na subdivisão da turma em grupos menores de alunos, essa estudante permanece sempre em um grupo que possua um colega/amigo que seja mais próximo a ela, para facilitar sua segurança e inclusão durante as metodologias de estudos.
Outras medidas de adaptação podem ser oferecidas a essa estudante, como a tantos outros alunos que também precisam de outras adequações para seus estudos progredirem. Por exemplo, há carência na capacitação dos docentes que têm contato com a aluna, visto que fica a cargo do professor a organização do espaço e dos aspectos físicos da sala de aula, como é o caso da organização de um ambiente com menos ruídos externos para possibilitar melhor desempenho da aluna durante as aulas; ou a pluralidade metodológica tanto para o ensino quanto para a avaliação (Fischer, 2019; Ministério da Educação, 2000; Silva & Pavão, 2018; Silva et al., 2021).
Sob esse viés, nota-se que não basta apenas comunicar o docente sobre a presença de uma aluna com TEA, é necessário também habilitá-lo para promover a inclusão, visto que os professores da Educação Superior se sentem e, muitas vezes, estão despreparados para lidar com tal situação (Aguilar & Rauli, 2020; Anderson & Butt, 2017; Camalionte et al., 2021; Silva et al., 2021). Além disso, ressalta-se a imprecisão do tempo adicional oferecido à aluna durante a realização de provas, isso porque, segundo a acadêmica, a instituição não disponibilizou oficialmente esse tempo, ficando a critério dos docentes responsáveis pela aplicação da avaliação definir qual o prazo estendido para realizar a avaliação. Esse fato fere o inciso V do art. 30, do capítulo IV, da Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015, que pontua como um direito do aluno com necessidades especiais a dilação de tempo, conforme demanda apresentada, tanto na realização do exame para seleção como nas atividades acadêmicas.
Anderson e Butt (2017) elencaram os problemas mais comuns vivenciados por universitários com TEA, dentre eles: no quesito dificuldades acadêmicas, estão as dificuldades para compreensão de conceitos abstratos e ambíguos, falta de habilidade organizacional e de planejamento; tendência à procrastinação; objeção a trabalhos em grupo; problemas com habilidades sociais, durante as aulas. Em relação a outras dificuldades não acadêmicas estão: ansiedade, socialização, depressão, Disfunções de Integração Sensorial e a execução de atividades do cotidiano.
Anderson et al. (2019) estudaram a eficácia das intervenções destinadas aos universitários com TEA, corroborando com outros estudos, no sentido de que a assistência acadêmica individualizada permite um suporte mais flexível e, portanto, pode atender a diferentes necessidades dos estudantes com TEA. E outros estudos indicam que os estudantes com TEA optam por esse tipo de apoio acadêmico individualizado, por considerá-los úteis, pois esses alunos passam por desafios acadêmicos e não acadêmicos significativos (Jansen et al., 2017).
Por fim, as limitações deste relato incluem que este é apenas um caso de uma estudante que descreveu seu próprio caso, apresentando as adaptações oferecidas ou a falta delas. Nessa mesma instituição, e não só no curso de Medicina, há muitos outros estudantes com neurodiversidades já diagnosticados e que solicitam atendimento especializado, o que reforça a necessidade de capacitação para os docentes do Ensino Superior para proporcionar o melhor da Educação Especial a esses alunos. Ainda assim, novos estudos com rigor metodológico e científico devem ser conduzidos para preencher lacunas do conhecimento nessa área das neurodivergências.
4 Conclusões
Estudos envolvendo as neurodiversidades vêm aumentando significativamente, reforçando que esse é um tema com diversas implicações biopsicossociais, e que desperta interesse no meio acadêmico. Portanto, esse relato teve como finalidade descrever o caso de uma acadêmica de medicina com TEA, bem como refletir sobre as adaptações curriculares necessárias para sua efetiva inclusão, demonstrando que as instituições de ensino podem fazer mais por estudantes com TEA, ou outras neurodivergências, visando sua verdadeira inclusão no meio acadêmico e, consequentemente, seu melhor aperfeiçoamento para o mercado de trabalho.
Aos docentes e à coordenação cabe a responsabilidade de assegurar o acesso, a permanência e a necessidade de implementar medidas que proporcionem a estudantes autistas, ou com outras neurodiversidades, todo o suporte educacional que são de seu direito. Ações que garantam acessibilidade e capacitação a fim de proporcionar aos estudantes melhores condições de aprendizado e adaptação. Cabe ainda ressaltar a importância de um profissional como psicólogo ou psicopedagogo com experiência na área de inclusão de pessoa com deficiência nas Instituições de Ensino Superior. Em relação ao autismo, vale destacar, para docentes, discentes colegas de turma, que o TEA apresenta diferentes manifestações, intensidade e formas de expressão, sendo necessário que uma visão humanista seja utilizada a partir do princípio de que cada indivíduo é singular e que suas necessidades básicas devem ser atendidas da mesma forma, caracterizando a equidade do cuidado e do ensino.