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Avaliação: Revista da Avaliação da Educação Superior (Campinas)

Print version ISSN 1414-4077On-line version ISSN 1982-5765

Avaliação (Campinas) vol.26 no.2 Sorocaba May/Aug 2021

https://doi.org/10.1590/s1414-40772021000200003 

Artigos

A interdisciplinaridade na prática acadêmica universitária: conquistas e desafios a partir de um projeto de pesquisa-ação

Interdisciplinarity in university academic practice: achievements and challenges from a research-action project

Renata Evangelista de Oliveira1 
http://orcid.org/0000-0002-4410-7809

Rodolfo Antônio de Figueiredo2 
http://orcid.org/0000-0002-8481-1008

Fausto Makishi3 
http://orcid.org/0000-0003-3154-9357

Adriana Cavalieri Sais4 
http://orcid.org/0000-0002-5169-882X

Alexandre de Azevedo Olival5 
http://orcid.org/0000-0001-5080-3846

Liliane Cristine Schlemer Alcântara6 
http://orcid.org/0000-0001-8502-720X

Jozivaldo Prudêncio Gomes de Morais7 
http://orcid.org/0000-0001-8418-2224

João Paulo Candia Veiga8 
http://orcid.org/0000-0002-4375-2152

1 Universidade Federal de São Carlos, Programa de Pós-grad. em Agroecologia e Desenvolvimento Rural| Araras, SP, Brasil. Contato: reolivei@ufscar.br

2 Universidade Federal de São Carlos, Programa de Pós-grad. em Ciências Ambientais| São Carlos, SP, Brasil. Contato: rodolfo@ufscar.br .

3 Universidade Federal de Minas Gerais, Programa de Pós-grad. em Sociedade, Ambiente e Território, Montes Claros, MG, Brasil. Contato: faustomakishi@gmail.com.

4 Universidade Federal de São Carlos, Programa de Pós-grad. em Agroecologia e Desenvolvimento Rural, Araras, SP, Brasil. Contato: adrianacs@ufscar.br.

5 Universidade do Estado do Mato Grosso, Programa de Pós-grad. em Biodiversidade e Agroecossistemas Amazônicos, Alta Floresta, MT, Brasil. Contato: aolival@unemat.br

6 Universidade Federal de Mato Grosso, Faculdade de administração e ciências contábeisCuiabá, MT, Brasil. Contato: lilianecsa@yahoo.com.br

7 Universidade Federal de São Carlos, Departamento de Biotecnologia e Produção Vegetal e Animal, Araras, SP, Brasil. Contato: jozivaldo@ufscar.br

8 Universidade de São Paulo, Programa de Pós-graduação em Ciência Política, São Paulo, SP, Brasil. Contato: candia@usp.br


RESUMO

O objetivo deste artigo é apresentar as reflexões de um grupo de docentes e pesquisadores, com diferentes formações, perfis e áreas de atuação, sobre o processo de construção de uma nova agenda de pesquisa e extensão interdisciplinares, com vistas à transdisciplinaridade. Para tanto, descreve um processo de concepção e elaboração de projetos, baseado no conceito de pesquisa-ação e tendo a interdisciplinaridade como meta, na caracterização de sistemas socioecológicos complexos. Os projetos realizados enfocaram a resiliência da agricultura familiar, na região de fronteira agrícola intitulado Portal da Amazônia (MT). Discute-se, a partir desse processo, a possibilidade de construção dialógica de projetos, narrando seus principais desafios na busca pela real indissociabilidade entre o ensino, a pesquisa e a extensão. Conclui-se que as escolhas relativas aos fundamentos teóricos e metodológicos que embasaram os projetos foram essenciais para a construção do fazer acadêmico interdisciplinar, e que o processo de pesquisa-ação, conforme construído e aqui descrito, possibilitou a relação dialética entre a transdisciplinaridade e as três dimensões do conhecimento acadêmico, pauta constante nas discussões atuais sobre a avaliação do Ensino Superior no Brasil.

Palavras-chave: Sistemas socioecológicos; Resiliência; Transdisciplinaridade; Processos dialógicos; Ensino Superior; Agricultura familiar

ABSTRACT

The purpose of this article is to present the reflections of a group of professors and researchers, with different backgrounds, profiles and areas of expertise, on the process of building a new interdisciplinary research and extension agenda, with a view to transdisciplinarity. For that, it describes a process of conception and elaboration of projects, based on the concept of action research and having interdisciplinarity as a goal, in the characterization of complex socio-ecological systems. The projects carried out focused on the resilience of family farming, in the agricultural frontier in the region called ‘Portal da Amazônia’ (MT). From this process, the possibility of dialogical construction of projects is discussed, narrating its main challenges in the search for the real inseparability between teaching, research and extension. The conclusion points out that the choices related to the theoretical and methodological foundations that supported the projects were essential for the construction of interdisciplinary academic practice. The action research process, as constructed and described here, enabled the dialectical relationship between transdisciplinarity and the three dimensions of academic knowledge, constant in current discussions on the evaluation of Higher Education in Brazil.

Keywords: Socioecological systems; Resilience; Transdisciplinarity; Dialogic processes; Higher education; Family farming

1 Introdução

A principal função da Universidade é sistematizar e apresentar o conhecimento socialmente construído pela humanidade ao longo de sua história, além de produzir novos conhecimentos através da utilização do método científico. O método científico, cartesiano por tradição, prevê que para acessar o mundo é preciso dividi-lo em partes cada vez menores e se dedicar ao estudo destas partes separadamente (GRÜN, 2006). Esse conhecimento fragmentado também define a “Natureza sem considerar a Humanidade como sua parte integral, desconsiderando que os seres humanos também são Natureza” (ACOSTA, 2016, p. 55).

É importante que os educandos, ao longo de sua formação, passem do senso comum à consciência filosófica, que segundo Saviani (2009, p. 2) significa “passar de uma concepção fragmentária, incoerente, desarticulada, implícita, degradada, mecânica, passiva e simplista a uma concepção unitária, coerente, articulada, explícita, original, intencional, ativa e cultivada”. Afinal, “a passagem do senso comum à consciência filosófica é condição necessária para situar a educação numa perspectiva revolucionária” (SAVIANI, 2009, p. 7).

Os conhecimentos novos advindos da pesquisa devem ser incorporados às aulas, naquelas universidades onde ensino e pesquisa são indissociáveis e, em decorrência, os estudantes podem ter contato com o que há de mais novo em um determinado campo de conhecimento. Como afirmou Paulo Freire: “não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino” (FREIRE, 2004, p. 29). No entanto, a pesquisa científica realizada nas universidades tende a seguir a lógica cartesiana, separando as partes e produzindo a fragmentação do conhecimento científico.

De igual maneira, a extensão universitária representa uma forma de interação imediata entre universidade e seu entorno, interligando diretamente a pesquisa, o ensino e a sociedade de forma indissociável conforme preconiza a Constituição Federal de 19881. Os projetos de extensão, quase sempre, se integram às temáticas e linhas de pesquisa em que o professor atua e anseia desenvolver junto à comunidade não universitária. O Plano Nacional de Educação (2014-2024) indica que 10% da carga horária dos cursos de graduação deveriam ser dedicados à atuação do estudante em atividades de cultura e extensão. Isso porque “a reflexão crítica sobre a prática se torna exigência da relação Teoria/Prática sem a qual a teoria pode ir virando blábláblá e a prática, ativismo” (FREIRE, 2004, p. 22).

Assim, um ponto importante para se embasar um novo fazer é conceber que a pesquisa científica deva existir para melhorar as condições de vida das pessoas. Nossa percepção é que essa é a principal justificativa para que ela seja realizada, a sua verdadeira relevância social. Segundo Moacir Gadotti,

[...] a educação sempre foi e será instrumento de integração do indivíduo com a sociedade, a tomada de consciência para a participação social. A educação superior deverá levar o aluno a se comprometer com a busca de soluções para os problemas do povo brasileiro (GADOTTI, 2006, p. 138).

Gonçalves (2015, p. 1229) indica que “o modelo consolidado no Brasil ao longo do tempo, foi o do tripé ensino, pesquisa e extensão como missão da Universidade” junto à sociedade, fazendo com que a indissociabilidade dessas dimensões seja fundamental para que a universidade produza conhecimento socialmente relevante.

A indissociabilidade entre as dimensões da produção de conhecimento científico pressupõe que as metodologias científicas incluam o ser humano em todas as etapas do processo de produção do conhecimento como, por exemplo, a agenda de pesquisa-ação, ou de pesquisa participante (BRANDÃO, 1981). Trata-se de uma agenda que procura articular uma síntese entre os processos de mudança socioambiental, e o envolvimento do pesquisador participante nos rumos e dinâmicas dos resultados alcançados, tendo em vista os grupos sociais envolvidos. O método científico deve estar integrado à ação social produzida pela agenda de pesquisa. Para que esse objetivo seja alcançado em sua plenitude, há que se considerar a necessidade de se afrouxar os limites epistemológicos e ontológicos entre diferentes áreas acadêmicas para que dialoguem em seus objetivos e fazeres, e alavanquem uma produção de conhecimento acadêmico verdadeiramente interdisciplinar.

Nesse sentido, o objetivo do presente artigo é refletir sobre a possibilidade de construção dialógica de projetos de pesquisa, ensino e extensão a partir do relato do processo de concepção, elaboração e execução de um programa de pesquisa, baseado na metodologia de pesquisa-ação, que traz em seu bojo a proposta a construção de conhecimento interdisciplinar, a partir da participação dos grupos sociais envolvidos.

Para tanto, trazemos aqui as abordagens teóricas da interdisciplinaridade e da pesquisa-ação, e apresentamos a teoria da resiliência como tema integrador de diferentes saberes e conhecimentos. Em seguida, descrevemos a criação e desenvolvimento de um programa de pesquisa voltado ao fortalecimento da resiliência da agricultura familiar na Amazônia Matogrossense, ao qual foram integrados vários de nossos projetos de pesquisa, realizados de 2017 a 2019. Discorremos ainda sobre a construção coletiva e dialógica desses projetos, refletindo sobre o caminho rumo à inter e transdisciplinaridade durante esse processo. Finalmente, buscamos partilhar nosso aprendizado e principais desafios, a partir dessa experiência, na busca pela real indissociabilidade entre o ensino, a pesquisa e a extensão no Ensino Superior brasileiro.

2 Interdisciplinaridade e pesquisa-ação: ferramentas de pesquisa e extensão

A interdisciplinaridade implica em “[...] um processo de inter-relação de processos, conhecimentos e práticas que transborda e transcende o campo da pesquisa e do ensino no que se refere estritamente às disciplinas científicas e a suas possíveis articulações” (LEFF, 2000, p. 22). Essas atitudes precisam ser reconhecidas como pontos básicos para uma revisão nas práticas pedagógicas e nas áreas do conhecimento em todos os níveis de ensino, adotando-se metodologias e instrumentos que objetivem desenvolver nos estudantes o pensamento de contexto - oportunizando a análise multidimensional das questões ambientais e a busca de alternativas metadisciplinares, solidárias e inclusivas para seu equacionamento, na perspectiva local, regional e planetária (MORIN, 2003). Através da interdisciplinaridade o conhecimento passa de algo setorizado e especializado para um conhecimento integrado onde as disciplinas científicas interagem entre si. Para Fazenda (2003), uma postura interdisciplinar é uma atitude de busca, inclusão, acordo e sintonia diante do conhecimento.

Hoje percebe-se a interdisciplinaridade como um conceito polissêmico, pois a atitude interdisciplinar depende da história vivida, ou seja, das concepções apropriadas e possibilidades de um olhar de diferentes perspectivas a partir de um mesmo tema. Para Fazenda (2003) “[...] é impossível a construção de uma única, absoluta e geral teoria da interdisciplinaridade, mas é necessária a busca ou o desvelamento do percurso teórico pessoal de cada pesquisador que se aventurou a tratar as questões deste tema” (p. 13).

Segundo Farral (2012) a interdisciplinaridade (enfoques e definições provenientes de áreas distintas) tem sido uma das abordagens para a temática da resiliência, enquanto objeto ou enfoque de estudo. Por seu turno, a pesquisa-ação tem a função de diagnosticar uma situação permitindo à comunidade participante ser também protagonista da pesquisa, pois tanto pesquisadores como pesquisados participam ativamente do processo de produção de conhecimento (TOZONI-REIS; VASCONCELLOS, 2014).

O processo de pesquisa-ação segue um ciclo no qual se aprimora a prática pela oscilação sistemática entre agir no campo da prática e investigar a respeito dela. Planeja-se, implementa-se, descreve-se e avalia-se uma mudança para a melhora de sua prática, aprendendo mais, no correr do processo, tanto a respeito da prática quanto da própria investigação (TRIPP, 2005). Thiollent (2008) observa que a pesquisa-ação está diretamente associada à resolução de um problema coletivo por meio da interação de pesquisadores e participantes representativos do problema, de modo colaborativo. Cabe observar que a participação é apontada como um atributo de governança em resiliência, favorecendo o processo de auto-organização, aprendizagem a adaptação individual e coletiva (LEBEL et al., 2006).

Como é próprio das abordagens de pesquisa ativa, ou pesquisa participante, a ação requer um esforço adicional por parte da equipe de pesquisa envolvida no sentido de evitar abstrações demasiadas que acabam por distanciar o objeto de estudo do pesquisador proponente, comuns à análise científica convencional. E, como a pesquisa-ação requer ação de transformação da realidade social, exige da equipe de pesquisa, preparação, pois a pesquisa cientifica dos processos sociais, tanto objetivos como subjetivos, deve saber trabalhar o objeto de estudo de forma interdisciplinar, integrante de diferentes concepções teóricas e práticas direcionadas a tomada de consciência coletiva para uma ação, também coletiva, na busca dos interesses dos envolvidos na pesquisa, ou seja, pesquisadores, pesquisados e comunidade (BALDISSERA, 2001).

A interdisciplinaridade passa assim a ser um quesito quase obrigatório quando se trata de sistemas socioecológicos complexos. A integração de diferentes abordagens teóricas e práticas direcionadas à tomada de consciência coletiva por grupos sociais envolvidos na pesquisa-ação, passa a ser um exercício constante ao longo do desenvolvimento da pesquisa. Desse processo emerge a necessidade de se criar mecanismos de governança que fomentem a cooperação e coordenação entre as partes, fugindo de eventuais conflitos advindos dos interesses individuais de pesquisadores, grupos de agricultores e da própria comunidade local.

A participação de todas as pessoas envolvidas na pesquisa-ação, pesquisadores, extensionistas e agricultores, portanto, é fundamental para que a produção de conhecimentos sobre a realidade social não se dissocie das condições reais de vida e promova a emancipação da comunidade frente aos desafios sociais e ambientais (TOZONI-REIS, 2007).

3 O Programa interdisciplinar de pesquisa voltado à resiliência da agricultura familiar

A concepção de um programa interdisciplinar de pesquisa e extensão voltado à agricultura familiar, integrado à formação, à educação e à cultura e extensão em instituições de ensino superior foi fruto de um processo de construção coletiva, participativa e dialógica, iniciado em 2016. Trata-se do “Programa de Pesquisa em Resiliência da Agricultura Familiar no Norte e Noroeste do Mato Grosso” cujo objetivo é o de integrar comunidades rurais, organizações não governamentais e universidades para a realização de ações de pesquisa e formação acadêmica, e de extensão e apoio ao desenvolvimento local, explorando diferentes cenários e buscando a criação de processos e estruturas para o fortalecimento da agricultura de base familiar bem como a análise de sua resiliência.

Baseado em uma perspectiva sistêmica a respeito da complexidade da agricultura familiar, o programa envolve as relações com atores e processos em diferentes escalas, que provocam mudanças sociais e ambientais, buscando compreender como essas interações afetam a paisagem e o território. O intuito é envolver a articulação de pesquisa interdisciplinar com ações de formação e extensão, voltadas ao desenvolvimento de estratégias para a resiliência da agricultura familiar e os desafios teóricos e práticos associados a este conceito.

Segundo Olival et al. (2016, p. 1308):

Este programa envolve a articulação de Universidades, Organizações Não Governamentais e representantes de comunidades rurais que buscam, através da integração de diferentes escalas e dimensões de análise, a construção de um processo de aprendizagem coletivo para gerar conhecimentos teóricos e práticos visando fortalecer as iniciativas desenvolvidas por organizações públicas, do terceiro setor e movimentos sociais que apoiam a agricultura familiar e camponesa, ao mesmo tempo que desperta inovação quanto ao papel social da universidade.

As linhas temáticas de pesquisa, definidas coletivamente, para desenvolvimento de projetos, foram as seguintes: “Formas de ocupação da paisagem e uso de recursos naturais”; “Interações sociais, cultura e modos de vida”; “Governança, gestão e instituições”; “Relações econômicas e de mercado”; nas escalas: parcela, unidade de produção, comunidade, município, território e Amazônia mato-grossense.

No arranjo pensado para este programa, integrado por duas organizações não governamentais, (Instituto Ouro Verde - IOV, Instituto Centro de Vida - ICV) e cinco universidades2. As duas ONGs atuam como articuladoras, facilitando o diálogo entre universidades e grupos de agricultores, conectando pesquisa e prática e fortalecendo uma ampla rede de organizações. A ideia geral para esse arranjo é articular os componentes de formação, pesquisa e monitoramento, permitindo, de um lado, o desenvolvimento de trabalhos acadêmicos e, por outro, o fortalecimento de ações das ONGs locais que atuam com a agricultura familiar na região Norte e Noroeste de Mato Grosso (Olival et al., 2016).

As etapas de pesquisa e ação, planejadas para a primeira fase de desenvolvimento do programa foram:

  1. Alinhamento Conceitual: formação específica em Resiliência e na agenda de Pesquisa-ação para os representantes das instituições envolvidas, com o objetivo de alinhar conhecimentos e iniciar o processo de planejamento e colaboração nos projetos de pesquisa;

  2. Construção dos projetos de pesquisa;

  3. Integração dos projetos de pesquisa: alinhamento de objetivos e métodos, voltados à criação de um processo dialógico de pesquisa e extensão;

  4. Realização das pesquisas;

  5. Seminário de integração e avaliação: Encontro presencial para articulação de resultados e análise conjunta dos trabalhos.

Conforme descrito por Olival et al. (2016), o objetivo geral, concebido para atender aos diferentes projetos e sua integração dialógica e interdisciplinar, é o de possibilitar a avaliação da resiliência, abordando as questões e metodologia propostas pela rede intitulada Resilience Alliance (2010):

  • Resiliência do quê? Buscando caracterizar o sistema socioecológico em análise (compreender e definir limites e atributos, no caso, da Agricultura Familiar) - ou seja, as características a serem mantidas, mediante processos de degradação ou ameaça.

  • Resiliência contra o quê? Envolvendo a compreensão das fragilidades do sistema, mediante processos históricos de impacto ou ameaça a seus principais atributos - ou seja, a definição dos desafios socioambientais enfrentados pela Agricultura Familiar.

  • Avaliação de cenários e possibilidades: Voltada à proposição de processos e estruturas de fortalecimento da resiliência da agricultura familiar na região estudada.

A fundamentação teórico-metodológica para as pesquisas abrange a teoria de resiliência e o conceito de sistemas socioecológicos complexos, conforme pontuados a seguir.

3.1 Teoria da Resiliência e sistemas socioecológicos: integrando as áreas de pesquisa

Existem várias definições para o conceito de resiliência, mas todas estão baseadas na teoria de sistemas e na teoria da complexidade. A sua aplicação é vasta, mas tem sido particularmente empregada no domínio dos sistemas socioecológicos complexos (FARRAL, 2012). A rede Resilience Alliance (2010) conceitua a resiliência como a capacidade de um sistema socioecológico de absorver ou suportar perturbações e outras pressões, de modo que o sistema permaneça dentro do mesmo regime, mantendo essencialmente sua estrutura e funções. A resiliência descreve o grau em que o sistema é capaz de auto-organização, aprendizagem e adaptação.

Sistemas considerados resilientes apresentam quatro características fundamentais: capacidade de suportar condições de estresse sem sofrer degradação, a partir de vários cenários; possibilidade de substituição de elementos componentes do sistema face à degradação; capacidade de atingir objetivos em tempo adequado para evitar crises; capacidade de identificar problemas e mobilizar recursos para minimizá-los, em situações de ameaça (BRUNEAU et al., 2003).

Os sistemas socioecológicos são complexos, integrados e adaptativos, nos quais seres humanos são parte da natureza (RESILIENCE ALLIANCE, 2010) e onde interagem componentes culturais, políticos, sociais, econômicos, ecológicos e tecnológicos. Para Buschbacher (2014, p. 20):

O conceito de sistemas socioecológicos destaca a importância de se integrar a gestão dos recursos naturais com as pessoas. A teoria da resiliência traz uma nova forma de enxergar estes sistemas como complexos, dinâmicos, imprevisíveis e não lineares. Nessa visão de mundo, nenhum ator tem o poder de direcionar o sistema (mesmo que alguns tenham maior poder de influência que outros), e não existe certeza de como o sistema vai responder a cada ação. Esta compreensão leva à humildade, mas não à resignação. Significa que, em vez de maximizar um único fator, torna-se necessário se preparar para uma gama de possíveis futuros. Em outras palavras, aumentar a resiliência geral ou capacidade adaptativa.

A compreensão e análise desses sistemas e suas conexões deve estar embasada em múltiplas epistemologias, e envolver diálogos inter e transdisciplinares (ALBERNAZ-SILVEIRA, 2016), com foco e ênfase em suas interações.

A região da pesquisa de campo - o Portal da Amazônia (MT)3, é compreendida aqui como um sistema socioecológico (BUSCHBACHER et al., 2016), em uma paisagem em que trabalham agricultores e agricultoras familiares que desenvolvem múltiplas atividades produtivas (criação de gado e produção de leite, extrativismo florestal, implantação e manejo de sistemas agroflorestais e silvipastoris com vistas a uso múltiplo e cultivos agrícolas diversos) em várias escalas, que podem ser analisadas desde a escala da parcela produtiva na propriedade rural até o território, e que integram e ajudam a descrever os modos de vida de pessoas e comunidades. Todas essas escalas se interconectam e se relacionam, influenciando a dinâmica da agricultura familiar na região.

Nossa equipe, integrada ao programa de pesquisa-ação, é multidisciplinar, com distintas formações teórico-metodológicas e atuações profissionais o que, certamente, traz abordagens e percepções múltiplas sobre os sistemas em análise. Para a caracterização dos sistemas socioecológicos presentes, e a fim de buscar estratégias para o aumento da resiliência da Agricultura familiar na região de estudo, buscamos integrar nossas áreas de pesquisa e atuação acadêmica - descritas a seguir, a partir das quais construímos diferentes projetos de pesquisa e extensão (Figura 1).

Figura 1 Esquema representativo da interação entre as áreas de pesquisa e extensão, que integram a construção dialógica desses projetos: 

a) Florestas e agroflorestas na paisagem rural: seu papel, possibilidades, modelos e relação com a agricultura familiar desenvolvida no Portal da Amazônia

O componente florestal na paisagem pode estar presente como vegetação nativa remanescente ou a partir da inserção de espécies arbóreas em diversos modelos, florestais e agroflorestais. As pesquisas nessa área relacionam-se à implantação e manejo desses modelos, voltados à adequação e demandas das propriedades rurais em restauração florestal (quando em áreas de preservação permanente), e à silvicultura e agrossilvicultura (quando implantados reservas legais ou áreas não protegidas voltadas à produção). O desenvolvimento de ações de conservação e manejo de espécies e sistemas de produção, voltadas às agroflorestas implantadas e manejadas por agricultores familiares, perpassa por processos de mudança social e de qualidade de vida para as comunidades.

b) A pecuária de leite praticada por agricultores familiares nos sistemas socioecológicos do Portal da Amazônia

Atualmente estima-se que a renda de grande parte dos agricultores familiares no Portal da Amazônia dependa, em maior ou menor grau, da produção de leite. Um grupo numeroso de pequenos produtores de leite subsiste na região anteriormente ocupada por florestas, vivendo e produzindo de forma específica, em condição de exclusão e aproveitando e adaptando elementos da paisagem local ao processo produtivo. Porém, essa adaptação tem sido feita de forma empírica, não acompanhada dos ajustes técnicos e científicos necessários. Esses produtores foram conduzidos para esta atividade por absoluta falta de opção, pois a produção de leite, apesar de pouco rentável, tem fluxo financeiro mensal regular, o que garante a subsistência das famílias e faz com que a produção de leite se mantenha ativa numa região aparentemente com pouca ou nenhuma aptidão.

Entendemos que a melhoria dos sistemas produtivos nas propriedades, em diferentes comunidades, passa necessariamente por um melhor entendimento sobre a capacidade produtiva regional. Além disso, é de suma importância caracterizar as estratégias de resiliência desses agricultores familiares, com diferentes níveis de intensificação do sistema de produção de leite.

c) Modos de vida na perspectiva do “Bem Viver” e a paisagem alvo

O conceito do “Bem Viver” se contrapõe à ideia tradicional de desenvolvimento, e propõe uma visão de sociedade e economia voltada para a melhoria da qualidade de vida das pessoas, na qual se tem o pressuposto que o homem é um elemento da natureza (ACOSTA, 2008). A abordagem do Bem Viver contraria a visão utilitarista, e integra o ser humano à natureza, entendida como sujeito de direitos. Neste sentido, privilegia a pluralidade e diversidade de possibilidades de modos de vida, superando a lógica hegemônica da sociedade de consumo e promovendo a inter-relação humana com a natureza, no sentido de (re)significar o senso de pertencimento à comunidade e ao território. Neste contexto, o Bem Viver explora novas perspectivas criativas e inovadoras tanto no plano das ideias como nas práticas adotadas pelas famílias de agricultores. Propostas como as do Bem Viver correm o risco de perder seu potencial crítico e transformador com projetos desenvolvimentistas baseados na exploração dos recursos naturais, por isso a importância de projetos interdisciplinares focados na resiliência da Agricultura Familiar na Amazônia, promovendo o desenvolvimento territorial sustentável.

d) O solo, a paisagem e o redesenho de agroecossistemas

O solo é um recurso natural fundamental para a sobrevivência de seres vivos, mas que sofre processos de degradação com a supressão da vegetação para o seu uso na agricultura, dinâmica que tem sido intensificada no Portal da Amazônia. Para restabelecer o equilíbrio do solo em um patamar de exploração mais sustentável é necessária a análise integrada da paisagem, entendendo as relações dinâmicas entre os meios físico, biótico e antrópico no processo de evolução da ocupação e uso das terras. O estudo da interação solo-paisagem-homem ainda é um desafio, mas o espaço ocupado pelo homem (e as modificações na paisagem natural) pode ser representado e processado digitalmente por meio de geotecnologias, sensoriamento remoto e sistemas de informação geográfica. As pesquisas desenvolvidas nessa temática têm como premissa básica o estudo da evolução da paisagem, com ênfase no desenho e redesenho de agroecossistemas. Na escala regional (com a bacia hidrográfica como base), são propostas ações que visem o estabelecimento de mosaicos sustentáveis do ponto de vista socioambiental, diminuindo os impactos negativos das atividades agrícolas e promovendo meios mais eficientes de produção.

e) A educação no rural para a resiliência de sistemas socioecológicos

O aprendizado sobre os atributos de um sistema socioecológico resiliente pode levar as pessoas a terem novas percepções sobre as pressões, as mudanças ocorridas e as possibilidades de rumos para o futuro desenvolvimento do sistema. As ações educativas realizadas em escolas e comunidades têm sido importantes para fortalecer a resiliência das pessoas envolvidas (REIS; FERREIRA, 2015). A educação da maioria das crianças e jovens oriundos de famílias de pequenos agricultores na região de estudo é realizada em escolas rurais públicas. Estudos recentes indicam que em muitas escolas rurais da região amazônica o que impera é o ensino conteudista, utilitarista, voltado exclusivamente para o indivíduo e baseado na reprodução de desigualdades (SATO, 1997; PERIPOLLI, 2008; FERRAZ, 2010). Para Guimarães (2004), a educação ambiental, voltada para a formação da cidadania ativa e planetária, poderá ser um importante instrumento a contribuir para a gestação de relações sustentáveis entre as sociedades humanas e a Natureza.

No contexto em que as agendas de pesquisas se inserem, a educação (e a educação ambiental) tem um importante papel na resiliência dos sistemas socioecológicos, uma vez que podem ampliar a reflexão e o aprendizado individual e coletivo sobre os seus atributos, quais sejam a diversidade biológica, os serviços ecossistêmicos, a diversidade cultural, a estrutura de governança e o capital social. Esse aprendizado deve acontecer através da observação, da ação e da reflexão sobre as formas de manejo dos recursos socioambientais atuais e de como tais práticas podem ser aperfeiçoadas (KRASNY et al., 2011)

f) Políticas Públicas, Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional

O combate à fome e a miséria tornou-se objeto da articulação política e social no cenário nacional e internacional. O debate posiciona o acesso à alimentação e à geração de renda no centro de diferentes iniciativas no âmbito das políticas públicas visando atacar a desnutrição e a pobreza por diferentes ângulos, com destaque para a transferência condicionada de renda e a promoção da produção rural de base familiar.

O conceito de segurança alimentar e nutricional (SAN) por si só já compreende um tema complexo que se relaciona à resiliência socioecológica na medida em que as decisões de produção e consumo alimentar estão diretamente associadas a forma em que os indivíduos se organizam em um ecossistema econômico, social e natural. No campo da política pública, a discussão envolvendo soberania e segurança alimentar e nutricional e os modelos de produção rural traz à tona a necessidade de diálogo intersetorial e interdisciplinar, envolvendo uma articulação horizontal (entre setores do governo) e vertical (entre níveis do governo), muitas vezes com perspectivas e interesses distintos (BURLANDY et al., 2015). É imperativo participar a construção da abordagem do conhecimento científico destas construções institucionais, fomentando reflexões e, se possível, contribuindo para sistematização analítica e funcional de programas e ações de impacto junto à sociedade. No caso específico do presente programa de pesquisa, espera-se compreender melhor a relação entre os mecanismos de incentivos e monitoramento, a resiliência da agricultura familiar e a promoção de soberania e segurança alimentar e nutricional.

3.2 Pressupostos para a concepção e elaboração dos projetos

Algumas definições foram previamente acordadas quanto á construção dos projetos de pesquisa (OLIVAL et al., 2016):

  1. (i) Os objetivos dos projetos e perguntas de pesquisa deveriam estar diretamente relacionados a necessidades práticas dos agricultores, relacionadas aos seus sistemas de produção e meios de vida;

  2. (ii) Todos os projetos deveriam ter caráter interdisciplinar e obrigatoriamente deveriam ter seus resultados científicos transformados em ferramentas de cultura e extensão;

  3. (iii) Os projetos deveriam estar inseridos e gerar informações relacionadas a múltiplas escalas (desde a escala da parcela produtiva na propriedade rural até o território);

  4. (iv) A elaboração desses projetos deveria contribuir com o aprendizado coletivo e aprofundamento teórico e metodológico de todos envolvidos no que diz respeito às teorias da resiliência;

  5. (v) Os projetos deveriam auxiliar na descrição dos sistemas socioecológicos da região de estudo, bem como no processo de avaliação e promoção da resiliência socioecológica da Agricultura Familiar.

Num segundo momento, construímos a hipótese de que a promoção da resiliência estaria atrelada e seria alcançada, inicialmente, a partir da melhoria da qualidade de vida das populações rurais na região em tela a partir de maior autonomia nas propriedades (através de geração de trabalho e renda, diversificação e promoção de maior eficiência na produção agrícola, acesso a mercados locais, acesso a políticas públicas, melhorias na educação, valorização de modos de vida locais e promoção de saúde e segurança alimentar das famílias). Esses aspectos foram então definidos como fundantes para a construção dialógica dos projetos, de caráter interdisciplinar.

3.3 Do ‘multi’ ao ‘inter’ disciplinar na construção e desenvolvimento de projetos

Temos nos empenhado em entremear nossas áreas e projetos, ultrapassando os limites pragmáticos de seus campos de conhecimento. No decorrer de um ano (abril de 2016 a abril de 2017), foram realizados quatro encontros presenciais (paralelamente a múltiplos momentos de comunicação virtual), para formação e integração da equipe, alinhamento conceitual, definição de escalas e linhas gerais de pesquisa, elaboração de projetos de pesquisa a campo e estratégias de monitoramento, dos quais participamos ativamente. Cabe destacar que foi necessário um ano para esse processo de construção de pesquisa interdisciplinar ser sistematizado, antes de os procedimentos terem início em campo. As pesquisas de campo começaram somente em agosto de 2017, dado sua complexidade e, também, a necessidade de complementação de recursos e suporte financeiro. O encerramento da primeira fase do programa se deu em setembro de 2019.

A construção em tela - descrita e avaliada a seguir - parte das respectivas áreas de atuação acadêmica dos pesquisadores envolvidos (ver item 3.1) para se obter uma visão ampliada de um sistema socioecológico tido como complexo. Ao mesmo tempo em que cada linha de pesquisa parte de questões específicas (sobre caracterização e manejo de agroflorestas, segurança alimentar, bem viver, educação e educação ambiental, políticas públicas e mudanças do uso do solo e da paisagem), elas também se voltam a questões maiores e comuns ao interesse coletivo de estudar a resiliência da agricultura familiar, incorporando visões que extravasam a própria rede de pesquisadores. Entendemos que esta construção coletiva permitiu dialogar com os diferentes saberes e experiências acumulados, evitando-se, desta forma, a armadilha da super especialização e fragmentação do conhecimento científico.

O processo de construção de projetos, e o que almejamos a partir dele, é representado na Figura 2.

Figura 2 Desenho da estrutura hierárquica das etapas do Programa de Pesquisa Ação, e sua relação com a multi, inter e transdisciplinaridade  

Para Bicalho e Oliveira (2011) “a multidisciplinaridade está hierarquicamente no primeiro nível, inferior, de integração entre disciplinas, quando comparada à inter e à transdisciplinaridade” (p. 7), e “a interdisciplinaridade ocupa posição intermediária entre a multi e a transdisciplinaridade, com a ocorrência de intercâmbios e enriquecimentos mútuos” entre elas (p. 8), fazendo jus a um espaço de coesão, considerando diferentes saberes. Segundo esses autores, a interdisciplinaridade pode ter enfoques diferentes, a busca por uma “unidade do saber” (quando da união de conhecimentos diferentes para a construção de uma única perspectiva - em que se enquadra o saber científico); ou a “busca de solução para problemas concretos” (pensando-se situações cotidianas, mais voltadas às pautas sociais), como é o caso da estratégia definida para o programa e desenvolvimento de projetos, descrita neste manuscrito.

A base da pirâmide, a dimensão multidisciplinar indicada na Figura 2 é formada por nossas áreas e experiências acadêmicas, pelo conhecimento empírico tácito dos agricultores com suas demandas e perguntas, e pelas questões levantadas pela equipe de extensionistas traduzida em perguntas de pesquisa e organizada em diferentes projetos separados, com suas especificidades metodológicas, mas que têm a potencialidade de dialogar entre si. Neste nível, predomina uma coleção de linhas de pesquisa que adotam perspectivas diferentes sobre um mesmo problema ou tema, a partir de uma dimensão empírica.

Fruto da interseção entre as linhas de pesquisa, a partir de construção coletiva e diálogo permanente entre os atores, diferentes estratégias contribuíram para formação de um programa de pesquisa de caráter interdisciplinar, conforme visto no segundo nível da figura. Esse segundo nível da pirâmide refere-se ao programa de pesquisa, entendido como conjunto de projetos coordenados entre si de forma articulada e dinâmica e que visam objetivos comuns.

Propõe-se que esse processo paulatinamente agregue as compreensões e formulações dos técnicos das ONGs, dos pesquisadores e também dos próprios agricultores e agricultoras, de tal forma que o conhecimento se torne híbrido entre o acadêmico e o popular, chegando a um conhecimento total, transdisciplinar, constituído a partir de uma pluralidade metodológica e local, que “constitui-se em redor de temas que em dado momento são adotados por grupos sociais concretos como projetos de vida locais” (SANTOS, 2008, p.76).

Para Santos (2008, p. 75):

O conhecimento transdisciplinar associa-se à dinâmica da multiplicidade das dimensões da realidade e apoia-se no próprio conhecimento disciplinar. Isso quer dizer que a pesquisa transdisciplinar pressupõe a pesquisa disciplinar, no entanto, deve ser enfocada a partir da articulação de referências diversas. Desse modo, os conhecimentos disciplinares e transdisciplinares não se antagonizam, mas se complementam.

Com vistas a garantir o exercício da interdisciplinaridade (segundo nível) foram traçadas algumas estratégias, a saber: i) Construção de uma base de dados comum no formato de ‘big picture’ dos sistemas socioecológicos no Portal da Amazônia; ii) Reuniões e encontros para nivelamento, discussão de resultados e definição de agenda; iii) Compartilhamento de um corpus de trabalhos teórico-metodológicos sobre Resiliência; iv) Produção coletiva de publicações; v) Validação dos resultados de pesquisa pelos principais interessados, os agricultores.

Tendo em vista a realização de uma grande fotografia dos sistemas socioecológicos envolvendo a agricultura familiar na região do Portal da Amazônia - e como estratégia de suporte ao item (i), acima, foi construído pela equipe de técnicos e pesquisadores um “Protocolo Comum de Análise da Resiliência”. Este instrumento de coleta de informações foi criado com propósito de ser aplicado em todos os trabalhos de campo, integrando as pesquisas em uma base de dados comum, sem necessariamente estar limitado aos interesses de pesquisa e projetos individuais dos pesquisadores. Ele representa o elemento de diálogo entre os diferentes focos investigativos, e seu conteúdo abrange dados demográficos, socioeconômicos, caracterização das propriedades e de seus residentes, aspectos ambientais e de moradia, informações sobre saúde e consumo de alimentos, nível de organização, ação coletiva e mecanismos de aprendizado e transferência de conhecimento, além de uma análise da percepção dos entrevistados sobre os desafios e perspectivas de futuro. O Protocolo Comum é um instrumento pactuado entre pesquisadores e serve de ponto de partida para as diferentes abordagens de pesquisa desenvolvidas no programa. Em outras palavras, as pesquisas realizadas aplicam o protocolo comum de métodos complementares de investigação pertinentes a cada objetivo específico, em cada projeto.

A realização de reuniões, oficinas e workshops para apresentação e discussão dos resultados das pesquisas representa uma ferramenta importante no nivelamento e troca de conhecimento. Adicionalmente, a análise coletiva de resultados contribui para a criação de conhecimento não incremental, lançando mão de diferentes olhares sobre a problemática investigada. A ideia é a de criar uma interface entre as múltiplas áreas do conhecimento, para responder às perguntas gerais do programa de pesquisa, no tocante à caracterização dos sistemas socioecológicos e da agricultura familiar em diferentes escalas, e gerar cenários desejáveis.

Ao estudo para aprofundamento teórico-metodológico sobre resiliência e à efetiva construção e desenvolvimento dos projetos foram integrados estudantes de graduação e de pós-graduação, para que participassem das pesquisas de campo e vivenciassem, desde o início de sua formação acadêmica, as oportunidades e dificuldades do campo de conhecimento interdisciplinar. O compartilhamento de materiais e publicações, a orientação conjunta de estudantes nas várias universidades, a participação em bancas de avaliação e a publicação em conjunto de livros e artigos contribuem para o nivelamento e avanço do grupo no entendimento do assunto e a produção de conhecimento.

Algumas publicações em conjunto, a exemplo deste artigo, foram e estão sendo realizadas com vistas a retratar a experiência no Portal de Amazônia, também para discutir a resiliência da agricultura familiar em uma perspectiva mais multidisciplinar a partir dos resultados dos projetos de pesquisa e de suas interfaces.

Seguindo a lógica metodológica de pesquisa-ação, todas as pesquisas foram submetidas à avaliação dos principais interessados, agricultores familiares, desde a definição de temas e demandas de pesquisa até a apresentação e discussão de resultados, ao longo de sua realização. A realização de seminários e workshops com a participação de técnicos e agricultores revelou-se uma experiência agregadora na construção da abordagem multidisciplinar de produção de conhecimento. Em primeiro lugar porque a avaliação dos agricultores parte de uma análise, salvo melhor juízo, de vieses comuns aos pares das áreas individuais de conhecimento. Trata-se de uma reflexão direta acerca dos resultados alcançados acompanhada por aqueles que vivenciam a problemática na prática cotidiana. Em segundo lugar, o mecanismo de feedback criado no programa permitiu ainda a identificação de novas demandas e, em muitos casos, a própria definição dos novos rumos na investigação científica de interesse comunitário. Para se ter uma ideia da amplitude dessa abordagem, o Congresso da Agricultura Familiar do Portal da Amazônia é um evento realizado anualmente que reúne cerca de 350 representantes de comunidades rurais para, entre outros pontos, debater os resultados das pesquisas realizadas.

Entendemos que no processo de avaliação da resiliência socioecológica (RESILIENCE ALLIANCE, 2010; BUSCHBACHER et al., 2016) responde às seguintes etapas: (i) Definição do sistema - questões chave, limites espaciais e temporais e a escala focal; (ii) História - construção de linha do tempo e definição de fatores desencadeantes de cada fase em uma trajetória histórica; (iii) Definição de atributos e variáveis do sistema (a fim de definir “resiliência de que” e “contra que”; (iv) Construção de cenários - possíveis (desejados e não desejados); (v) Considerações sobre a gestão e a definição de como promover cenários desejáveis; nós nos encontramos nas etapas de diagnóstico e descrição do Sistema Socioecológico, com nossas pesquisas (iniciadas em 2017 e finalizadas em 2019) contribuindo com as etapas (i) a (iii).

Neste estágio do processo fazemos essas reflexões a partir de uma autoanálise do programa, que acreditamos ser importante para avançar na construção transdisciplinar. Analisando criticamente a experiência aqui retratada e a forma como a mesma dialoga com o papel da Universidade e com a produção de conhecimento científico, entendemos que pudemos atender a alguns objetivos da interdisciplinaridade, quais sejam: a integração de disciplinas, a articulação entre ensino, pesquisa, cultura e extensão, a troca de experiências e a obtenção confiável de informações científicas. Essa análise (iniciada neste item 3) segue melhor aprofundada, na forma de fortalezas e fragilidades, no item 4.

4 Os desafios da interdisciplinaridade e da transdisciplinaridade identificados

Os resultados apresentados até aqui refletem o retrato, sistematização e reflexões trazidas pela operacionalização do programa de pesquisa e extensão em resiliência da agricultura familiar no Portal de Amazônia. Fruto desse processo de análise dos caminhos que nos trouxeram até aqui e, tendo em vista os rumos que devem ser traçados para o entendimento mais amplo da resiliência e da transdisciplinaridade, apresentamos uma autoanálise do referido programa indicando as forças e oportunidades, fraquezas e ameaças - FOFA, ou do inglês SWOT. A análise em tela contribui para avaliação dos resultados atingidos, no delineamento de estratégias ou adaptações quanto aos procedimentos dos quais vimos nos utilizando e foram aqui descritos.

Quadro 1 Análise SWOT para a construção da interdisciplinaridade a partir das estratégias e da governança do Programa de Pesquisa Ação 

FATORES POSITIVOS FATORES NEGATIVOS
Forças Fraquezas
INTERNOS - Articulação de várias áreas em um projeto comum - Interesse e engajamento de pesquisadores e estudantes de graduação e pós-graduação em ações de pesquisa e extensão na Amazônia - Governança do programa - Articulação entre pesquisadores e comunidades rurais - Imersão de forma conjunta dos pesquisadores (e suas ações) na dinâmica local das comunidades - Construção de um protocolo comum de forma coletiva e participativa para uso em todas pesquisas e coletas de dados - Troca de saberes inter e transdisciplinares - Integração de conhecimentos tácitos e explícitos - Dedicação a uma nova área do conhecimento como motivação para estudos coletivos - Possibilidade de atuação nas três dimensões do “fazer acadêmico” (Ensino, pesquisa e extensão) - Momentos específicos de troca de saberes com a comunidade planejados por toda a equipe - Possibilidade de autoavaliação durante todo o processo - Formação original do grupo de pesquisa não permite o enfoque multidisciplinar desejado - Predominância de algumas áreas em detrimento de outras - Número de encontros presenciais aquém do desejado - Dificuldade na aplicação do protocolo comum em todas pesquisas - Resistência a mudanças - Dificuldade de estabelecer mudanças a partir de processos autoavaliativos - Dificuldade em articular pesquisas temáticas na abordagem interdisciplinar da resiliência - Dificuldade na elaboração e publicação de artigos e de fortalecimento do grupo no meio acadêmico - Dificuldade em conciliar os tempos e demandas da universidade com a dinâmica das comunidades
Oportunidades Ameaças
EXTERNOS - Temática das pesquisas alinhada a demandas internacionais sobre sustentabilidade - Contato e estabelecimento de parcerias com outras universidades e com as ONGs - Estabelecimento de novas parcerias para pesquisa, com possibilidade de inserção internacional - Possibilidade de agregar a experiência e capacidade de articular recursos de todas instituições envolvidas. - Recursos financeiros aquém do ideal e dependência de poucos financiadores - Distância entre instituições de pesquisa dificulta a articulação - Distribuição das comunidades no território (grandes distâncias) dificulta a amostragem e ações em campo - Alto custo para realização de encontros presenciais e deslocamento para pesquisas - Divulgação científica dificultada pela “novidade” da temática

Entendemos que o programa é resultado da interação de atores, da construção coletiva de projetos de pesquisa e extensão ao longo de mais de três anos de trajetória. Esse sistema, chamado de ‘programa de pesquisa’, não está isolado, mas inserido em um ambiente político, tecnológico, econômico e cultural que interfere no seu desenvolvimento. Por essa razão, são apresentados alguns pontos relacionados a dois níveis de análise: os fatores internos, próprios da rede de pesquisa que se estabeleceu para tratar a temática, e de fatores externos, decorrentes de aspectos maiores que fogem a capacidade de intervenção do grupo.

Como indicadores de força do programa foram apontados a governança, com pactos estabelecidos entre pesquisadores, regras e acordos de uso de informação de pesquisa e análise conjunta dos resultados. Também o caráter participativo de construção das pesquisas com demandas e validação provenientes dos agricultores interessados. Adicionalmente, não se pode ignorar o fato de que a Amazônia representa um importante apelo no interesse de pesquisadores e outros atores no Brasil e no exterior, fato que cria importante fluxo de engajamento de jovens pesquisadores, alunos de graduação e pós-graduação.

A principal oportunidade identificada, além dos ganhos na geração de conhecimento empírico e teórico sobre a temática, está na capacidade de agregação de recursos financeiros, humanos, físicos e sociais, explorando externalidades de rede positivas. Tais ganhos decorrem, dentro de outros aspectos, de economias de escala e escopo na captação destes recursos.

Dentre as fraquezas, destacam-se: uma concentração ainda predominante de profissionais e pesquisadores ligados à área de ciências agrárias, os altos custos envolvendo a logística e a operacionalização das pesquisas em campo e encontros do grupo, e a dificuldade de conciliar possíveis conflitos decorrentes das agendas particulares das universidades e comunidades. Sobre isso, aponta-se a gritante diferença entre o tempo da pesquisa acadêmica e o atendimento imediato das necessidades dos agricultores. Esse talvez tenha sido um de nossos maiores aprendizados - e desafios, considerando a construção e realização de projetos com base na pesquisa-ação.

As ameaças identificadas dizem respeito a aspectos contextuais atuais e outros estruturais do ambiente, sobretudo científico. A recente diminuição nas fontes de recursos junto às universidades é uma ameaça real à construção retratada neste artigo e ao programa de resiliência da agricultura familiar no Portal de Amazônia. Do ponto de vista estrutural, verifica-se a dificuldade de acesso a fontes específicas de fomento para programas e projetos com caráter de pesquisa e extensão. Na maior parte das vezes, as formas de fomento são específicas para uma ou outra área de conhecimento, o que dificulta a atuação interdisciplinar. Percebe-se, ainda, uma dificuldade de penetração dos produtos realizados pelo programa em periódicos de maior relevância no meio acadêmico, cujo corpo editorial tende a favorecer pesquisas disciplinares mais compartimentadas e estritas em sua temática e abordagem teórica, do que aquelas abordagens de recorte inter e multidisciplinares. Cabe ressaltar que até o momento, a maioria dos artigos publicados ou aceitos para publicação referem-se a pesquisas individuais, com apresentação isolada de resultados, voltada ao perfil de periódicos melhor avaliados nos sistemas vigentes, aos quais as universidades - e seus cursos de graduação e pós graduação - atualmente respondem. A publicação de artigos com formatos como o deste manuscrito, voltado à discussão dialógica de resultados, envolvendo a multidisciplinaridade de áreas e temas, segue dificultada pela compartimentalização e/ou fragmentação do conhecimento científico. Sendo a publicação de artigos científicos uma das grandes exigências hoje, para docentes e pesquisadores em instituições de ensino superior, esse ainda é um ponto nevrálgico, considerando-se a necessidade de divulgação de um conhecimento científico inter ou transdisciplinar.

Apesar do desafio da participação coletiva continuar, percebemos que a experiência vivenciada até o momento já transformou a forma de encarar a pesquisa científica, no sentido de maior valorização dos diferentes campos disciplinares, assim como o do conhecimento técnico, empírico e popular proveniente das ONGs, agricultores e demais participantes dos projetos.

5 Considerações finais

Neste artigo foram retratadas a pesquisa e extensão no âmbito do programa de pesquisa sobre Resiliência da Agricultura Familiar na Amazônia mato-grossense. Algumas reflexões sobre como a interdisciplinaridade, com vistas à transdisciplinaridade, decorrentes de uma construção coletiva dotada de mecanismos de governança e estratégias particulares foram evidenciadas neste retrato. A narrativa de interdisciplinaridade mostra-se de difícil operacionalização em um contexto marcado pela especialização e fragmentação do conhecimento científico. A problemática de pesquisa na qual está ancorada a rede de pesquisadores e instituições, ou seja, a questão da resiliência da agricultura familiar, representa um ponto de interseção para diferentes abordagens teóricas e conceituais, mas, ainda que a temática suscite a transdisciplinaridade, a construção desta exige um esforço constante por parte dos envolvidos. Sabemos que o diálogo entre as áreas é necessário, estamos aprendendo a fazê-lo.

A interdisciplinaridade, como mudança de paradigma, implica em uma ruptura na narrativa secular e ainda dominante ao contexto da produção de conhecimento acadêmico e científico. Para vencer este desafio é necessário que iniciativas como a retratada aqui sejam capazes de apresentar resultados de fato substanciais à sociedade e a seus pares.

Por fim, entendemos que a multidisciplinaridade a partir de distintas áreas de atuação acadêmica foi o que possibilitou a discussão sobre a resiliência e a descrição do sistema socioecológico da Agricultura Familiar na região do Portal da Amazônia (em andamento), e que o processo de pesquisa-ação, conforme construído e aqui descrito, possibilitou a relação dialética entre a transdisciplinaridade e as três dimensões do conhecimento acadêmico, pauta constante nas discussões atuais sobre a avaliação do Ensino Superior no Brasil.

Agradecimentos:

As atividades aqui descritas inserem-se no âmbito do “Programa de Pesquisa em Resiliência da Agricultura Familiar no Norte e Noroeste do Mato Grosso”. Agradecemos aos técnico(a)s do Instituto Ouro Verde e Instituto Centro de Vida, aos professore(a)s e pesquisadore(a)s das universidades parceiras UNEMAT, UFSCar, USP, UFMG, UFMT e Universidade da Flórida, ao Núcleo de Pesquisa e Extensão em Agricultura Familiar e Agroecologia da UNEMAT (NAFA), e, principalmente, aos agricultores e agricultoras familiares do Portal da Amazônia, por possibilitarem e potencializarem todas as ações que foram a base para construção deste texto. Tivemos o apoio financeiro da University of Florida e Tropical Conservation and Development (TCD), do Instituto Ouro Verde- por meio de recursos do Fundo Amazônia (BNDES) , e do Instituto Centro de Vida. O autor Rodolfo Antonio de Figueiredo agradece ainda o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Processo FAPESP 2018/11165-4).

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2Universidade do Estado do Mato Grosso (UNEMAT), Universidade Federal de São Carlos (UfsCar), Universidade da Flórida (UF), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e Universidade de São Paulo (USP).

3A região do Mato Grosso (MT) conhecida como Portal da Amazônia está localizada no extremo norte do estado, e compreende o território de sete municípios: Apiacás, Alta Floresta, Carlinda, Nova Guarita, Nova Canaã do Norte, Terra Nova do Norte e Matupá.

Recebido: 01 de Setembro de 2019; Aceito: 12 de Maio de 2021

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