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Avaliação: Revista da Avaliação da Educação Superior (Campinas)

Print version ISSN 1414-4077On-line version ISSN 1982-5765

Avaliação (Campinas) vol.26 no.3 Sorocaba Sept./Dec 2021

https://doi.org/10.1590/s1414-40772021000300001 

Editorial

Editorial - Os cortes no orçamento da ciência brasileira: da Fronteira Sem Fim ao Fim da Linha?

Budget cuts in Brazilian science: from the Endless Frontier to the End of the Line?

1 1 Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil. Contato: milenaps@unicamp.br

2 Universidade Estadual de Campinas, Limeira, SP, Brasil. Contato: rbdias@unicamp.br

3 Universidade Estadual de Campinas, Limeira, SP, Brasil., etulain@unicamp.br


Vannevar Bush foi um engenheiro elétrico do Massachusetts Institute of Technology (MIT), pioneiro da computação e braço direito para assuntos relativos à ciência do Presidente Franklin Roosevelt. Durante a II Guerra Mundial, ele teve um papel importante na constituição do Escritório de Pesquisa e Desenvolvimento Científico dos EUA, que tinha como objetivo articular grupos de trabalho de cientistas civis e desenvolver e aplicar conhecimento científico para a solução de problemas técnicos fundamentais na guerra. Os esforços do Escritório naquele período foram bem-sucedidos e os grupos de trabalho liderados por Bush tiveram êxito em suas atividades.

A despeito das conquistas resultantes dos esforços chefiados por Bush, seu principal legado não se refere à condução do Escritório no contexto da Guerra, mas na proposta do padrão de política científica e tecnológica que seria consolidado pelos EUA após o término do conflito, bem como na articulação que possibilitou sua efetiva implementação. Em julho de 1945, Vannevar Bush publicou o Relatório Science: The Endless Frontier - A report to the President on a Program for Postwar Scientific Research. Esse relatório surgiu de uma encomenda feita pelo próprio Presidente Franklin Roosevelt, que estava preocupado com a continuidade do investimento na ciência em tempos de paz; contudo, com o falecimento do Presidente Roosevelt, Bush entregou o relatório ao Presidente Harry Truman.

Desde então, as análises acerca dos resultados produzidos pelo Relatório foram das mais diversas. Alguns enalteceram sua capacidade em advogar pela comunidade científica, outros o criticaram no sentido de que ele apresentava ou uma visão ingênua ou ultrapassada em nome do corporativismo (Sarewitz, 1996). O que é notável é que, apesar das críticas sobre sua visão linear de desenvolvimento científico e tecnológico, destacada por autores latinoamericanos como Varsavsky (1976) e Dias e Dagnino (2006), essa visão pautou as estratégias públicas de boa parte dos Estados ocidentais desde a segunda metade do Século XX (Salomon, 1999).

Segundo Bush (1945), "o progresso científico é um elemento essencial para nossa segurança como nação, para uma saúde melhor, para mais empregos, para um melhor padrão de vida e para nosso progresso cultural". Partindo dessa prerrogativa, a proposta contida no documento aponta a necessidade de criação das condições para que a produção de conhecimento continuasse a se dar em semelhante velocidade e com a relevância do tempo da Guerra. Para tanto, fez-se necessário o efetivo comprometimento do Estado, na forma da destinação regular de recursos públicos às atividades voltadas ao avanço da ciência e da tecnologia. Bush propôs assim uma agência independente de fomento à pesquisa, National Science Foundation, criada em 1950, pouco antes do CNPq.

No contexto da racionalidade consolidada a partir do Relatório Bush, deveria haver autonomia das instituições científicas, uma vez que o avanço do conhecimento seria fruto do livre exercício de pensar, refletir e investigar. A liberdade de investigação teria de ser assegurada em qualquer plano governamental de apoio à ciência, conforme os fundamentos que embasaram o Relatório, a saber:

(1) Estabilidade e perenidade no fluxo de financiamento aos programas e projetos científicos de longo prazo;

(2) Quadro técnico com compreensão das peculiaridades da pesquisa científica e da educação para atuação nas agências de fomento;

(3) Fomento à pesquisa por meio de contratos a organizações científicas e de ensino superior;

(4) Apoio à pesquisa básica em Universidades e Institutos Públicos e Privados de Pesquisa, garantindo autonomia das próprias instituições;

(5) Independência e liberdade no que diz respeito à natureza, ao alcance e à metodologia da pesquisa desenvolvida nas instituições que recebem recursos públicos.

Apoiado nesses elementos, o Relatório conformou as condições a partir das quais foi possível pautar as tomadas de decisão sobre modelos de política, estratégias e ações, e sobre o gasto público em ciência e tecnologia, estabelecendo no âmbito da racionalidade das políticas científicas e tecnológicas nacionais a importância e a contribuição da ciência e da pesquisa básica ao desenvolvimento econômico e social (Dias & Dagnino, 2006). Uma das principais conquistas de Vannevar Bush foi assegurar o compromisso do governo dos EUA com a ampliação dos investimentos públicos em ciência e tecnologia, relacionando-os à academia e às empresas, ao alcance da competitividade e à geração de empregos, à busca pela cura de doenças e por condições que pudessem ampliar a segurança nacional.

Avancemos agora 75 anos após a publicação do Relatório Bush e voltemos nosso olhar para o Brasil.

No ápice da pandemia, em fevereiro de 2021, o Governo Federal vetou dois dispositivos da Lei Complementar 177 de 2021, que permitiriam resgatar a ciência brasileira da penúria orçamentária em que se encontrava. Apesar do projeto de lei ter sido comemorado pela Comunidade Científica, a qual contava com alterações propostas pela Lei em relação à natureza e fontes de receita do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), uma fonte vital de recursos para a ciência brasileira, o texto aprovado - em ampla maioria pelo Senado e Câmara dos Deputados - foi alterado nos pontos que permitiram a recuperação do financiamento à ciência brasileira. O Presidente Jair Bolsonaro vetou exatamente os dispositivos que proibiam o uso inadequado dos recursos destinados à ciência, tecnologia e Inovação (CTI), permitindo assim a criação de reservas de contingência, a qual autoriza que o orçamento do fundo seja apropriado pelo governo para ser usado em outras finalidades, e a possibilidade de limites de empenho, o qual permite que recursos aprovados no orçamento sejam contingenciados.

Quando já não havia espaço para piorar o "apagão" à ciência, que era da ordem de quase R$5 bilhões (com o contingenciamento de 90% do FNDCT), o Ministério da Economia em julho deste ano solicitou ao Congresso Brasileiro que o crédito suplementar de R$ 690 milhões, que seria integralmente destinado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) (PLN 16/21), fosse redistribuído a outros ministérios, sendo mantido apenas R$ 89,7 milhões à ciência.

Esse estrangulamento orçamentário afeta diretamente a produção de conhecimento, a formação de profissionais e pesquisadores altamente qualificados, a infraestrutura necessária para a realização de pesquisas e a sobrevivência de instituições com décadas de contribuições relevantes para a sociedade brasileira. Não se trata de um ataque isolado, mas de uma ação deliberada no âmbito do projeto de desmonte de nosso complexo público de ensino superior e de pesquisa. Soma-se, assim, à grande estratégia que envolve também o negacionismo da ciência, o ataque à autonomia das universidades públicas e à liberdade de cátedra.

O que está em jogo é a capacidade das instituições brasileiras de fazer cumprir, por meio da educação superior, da ciência e da tecnologia, a sua missão civilizatória. É justamente essa tarefa que se busca minar por meio dos reiterados ataques que essas instituições têm sofrido ao longo dos últimos anos. Afinal, elas são, fundamentalmente, produtoras de futuro, viabilizadoras de utopias. Ao contrário, o Governo Federal, com essas medidas, despreza o papel que a boa gestão da política científica e tecnológica tem para a autonomia do país, necessária para garantir o desenvolvimento local e regional em conexão com o mundo globalizado. Políticas de ataque à ciência e de desmonte do complexo institucional que a produz configuram o mecanismo que leva países às posições subalternas, típicas do domínio colonial e neocolonial, longe e dependente dos que criam e distribuem os frutos do progresso técnico e humano.

Em resposta aos cortes ao orçamento da ciência brasileira promovidos pelo governo Bolsonaro, diversos membros da comunidade de pesquisa, bem como órgãos de representação, têm se posicionado contra essa política de desmonte institucional, que conduz à erosão um sistema ativo e relevante, construído com muito esforço ao longo de décadas. Esses posicionamentos, contudo, não parecem ter efetivamente ressoado para além das fronteiras da academia.

Talvez seja necessário, nesse momento, a renovação do pacto que permitiu que a ciência brasileira se desenvolvesse. Um pacto como aquele forjado por Vannevar Bush e a comunidade científica dos EUA nos anos 1940, que permita a valorização da atividade científica e o respeito a suas instituições. Para dar sustentação a esse novo pacto, desejável e necessário, seria preciso, mais do que nunca, ampliar as alianças que até esse momento possibilitaram o avanço da ciência brasileira. É preciso que a comunidade científica se mobilize coletivamente e que leve o pleito por reconhecimento e legitimidade para além dos espaços tipicamente acadêmicos. É preciso envolver amplos setores da sociedade - sobretudo aqueles que até agora estiveram distantes e até mesmo invisibilizados - numa aliança duradoura que permita, enfim, que a ciência brasileira não apenas sobreviva, mas que possa sair mais forte e mais relevante.

Referências

BUSH, Vannevar. Science, the Endless Frontier: a report to the President by Vannevar Bush, Director of the Office of Scientific Research and Development. Washington: United States Government Printing Office, 1945. [ Links ]

DIAS, Rafael; DAGNINO, Renato. Políticas de ciência e tecnologia: sessenta anos do Relatório Science: the Endless Frontier. Avaliação: Revista da Avaliação da Educação Superior, Campinas, v. 11, n. 2, 2006. [ Links ]

SALOMON, Jear-Jacques. Comentarios al Dossier: Ciencia, la Frontera sin Fin. REDES, v. 6, n. 14, 1999 [ Links ]

SAREWITZ, Daniel. Frontiers of illusion: Science, technology, and the politics of progress. Filadélfia: Temple University Press, 2010. [ Links ]

VARSAVSKY, Oscar. Por uma política científica nacional. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976 [ Links ]

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