SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.27 número1Aplicação do conceito de crowdsourcing na avaliação de instituições de ensino superior: um estudo comparativo entre instituições públicas e privadas índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Avaliação: Revista da Avaliação da Educação Superior (Campinas)

versión impresa ISSN 1414-4077versión On-line ISSN 1982-5765

Avaliação (Campinas) vol.27 no.1 Sorocaba ene./apr 2022

https://doi.org/10.1590/s1414-40772022000100001 

Editorial

Editorial - A debandada da CAPES: um novo capítulo na história da Pós-Graduação Brasileira

The CAPES stampede: a new chapter in the history of Brazilian Graduate Studies

1Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil. milenaps@unicamp.br

2Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil. osgoju@unicamp.br

3Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil rbdias@unicamp.br


No último editorial desta revista, intitulado ​​Os cortes no orçamento da ciência brasileira: da Fronteira Sem Fim ao Fim da Linha?, publicado em dezembro de 2021, apontamos o desmonte coordenado da estrutura científica brasileira pelo atual governo e seus principais impactos para o desenvolvimento científico, tecnológico e econômico-social do Brasil. Mas como o fundo do poço neste país, neste momento histórico, demonstra sempre ter um alçapão, vivenciamos mais um capítulo deste desmonte: a debandada da CAPES.

A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), criada em 1951, surgiu com o propósito de fomentar a formação de pessoal especializado para atender às necessidades colocadas para impulsionar o desenvolvimento do Brasil. Dentre as suas atribuições, a Capes é responsável por investir na formação de recursos de alto nível no país e no exterior, promover a cooperação científica internacional, induzir e fomentar a formação inicial e continuada de professores e, fundamentalmente, por avaliar e garantir a qualidade da pós-graduação stricto sensu. Para isto, foi implantado em 1976 o sistema de avaliação da pós-graduação, com o intuito de estabelecer o padrão de qualidade exigido aos cursos de mestrado e doutorado. Como todo sistema de avaliação que transcende a esfera meramente ritualística, aquele implementado pela Capes desde então se converteu em bússola para a conformação de padrões institucionais e comportamentais no ensino superior brasileiro.

Em sua história, diversas mudanças foram introduzidas nesse sistema de avaliação. Inicialmente, a Capes tinha como principal foco a formação de quadros de professores e pesquisadores (zelando, em particular, pelo aumento progressivo da quantidade de quadros formados), e atenção secundária às atividades de ensino e extensão. Havia também uma preocupação em se evitar a fuga de cérebros para o exterior, o que nem sempre foi possível. O passo seguinte pode ser observado na década de 1990, quando a Capes manteve o foco na formação, mas introduziu a preocupação com a qualidade nas atividades da pós-graduação, balizada por valores e critérios alóctones. Paralelamente a isso, houve uma melhor divisão das áreas do conhecimento, além da adoção de critérios mais rígidos para atribuição de notas aos cursos (MACCARI, LIMA e RICCIO, 2009).

No final da década de 1990, com o elevado crescimento do número de programas de pós-graduação, a avaliação que era realizada in loco começou a se tornar inviável. Compreendeu-se, naquele momento, que era necessário um modelo que permitisse avaliar à distância e com critérios mais “objetivos” os programas. Neste sentido, o modelo Capes de avaliação passou a ser mais voltado à regulação e controle (SGUISSARDI, 2006), do que necessariamente com processo de avaliação que acompanhe a superação e o crescimento qualitativo dos programas. Assim, a Capes decidiu por um novo modelo de avaliação que desloca a centralidade da docência para a centralidade na pesquisa. Neste modelo voltado à pesquisa, a produção intelectual ganha importância como indicador de avaliação (CURY, 2005; BIANCHETTI e SGUISSARDI, 2009). Ainda que possamos lamentar a pouca atenção dispensada ao ensino e formação, por exemplo, o sistema CAPES de avaliação da pós-graduação brasileira afirmou-se como uma referência para os demais países da América Latina.

A despeito das críticas referentes a indicadores de produção intelectual autocontidos, refletindo um caráter eminentemente produtivista, e a adoção de mecanismos de comparabilidade que reforçam o "efeito Matheus” dos programas (reforçando, assim, as disparidades dentro do sistema de pós-graduação), o desenho e o desenvolvimento desse modelo foram essenciais para a institucionalização e consolidação de um sistema nacional de avaliação e acreditação dos programas de pós-graduação no Brasil. Mesmo com todas as críticas que diferentes grupos e associações acadêmicas pudessem ter para com as métricas utilizadas nas avaliações, o que sempre exige um reexame constante do sistema de avaliação, o campo da disputa e a arena decisória sempre foram respeitadas dentro dos limites dos comitês de avaliação da Capes.

A partir de 2021, a disputa foi deslocada para os tribunais de justiça, em um processo de judicialização que emitia sinais de que o sistema estava colapsando. Em dezembro de 2020, o Sindicato dos Professores de Universidades Federais de Belo Horizonte, Montes Claros e Ouro Branco - APUBH, entrou com uma Ação Civil Pública, alegando a ilegalidade do processo de avaliação em curso. O objeto da discussão da ACP foi que os padrões seguidos pela Capes haviam sido corrompidos por desvios, sobretudo porque os critérios avaliativos não haviam sido publicados no momento anterior ao início do período da avaliação.

Isto é, assinalava-se que sendo os critérios definidos a posteriori, esbarrava-se nos seguintes princípios: I. legalidade, publicidade e transparência, os quais fundamentam princípios da administração pública, conforme a constituição federal, e balizam regramento relativo a concursos, seleções e avaliações públicas, entre outros; II. Previsibilidade e segurança jurídica, os quais permitem com que os sujeitos da avaliação tenham conhecimento e previsibilidade das consequências de suas ações; III. irretroatividade, o qual uma regra só pode ser retroativa se os efeitos forem benéficos àqueles afetados. Em seguida, mais precisamente, em setembro de 2021, a Justiça do Rio de Janeiro suspendeu, a pedido do Ministério Público, a avaliação quadrienal da pós-graduação. As justificativas para tal suspensão se conectam com o pedido feito pela APUBH em Ação Civil Pública.

Com esse contexto de mudança de critérios ao longo do caminhar da avaliação quadrienal e uma forte pressão por parte Capes na aprovação aos programas de pós-graduação à distância - EAD, houve a saída de mais de 100 pesquisadores responsáveis por avaliar os programas de pós-graduação. No mesmo ano em que a agência completa 70 anos de existência, a Capes finaliza o ano vivenciando uma crise sem precedentes.

Diante desse quadro, dois caminhos se mostram necessários: retomar o ideal avaliativo da Capes e, tornando essa "crise uma oportunidade", redefinir os parâmetros utilizados nas avaliações, dando um salto qualitativo com vistas a impulsionar o desenvolvimento da ciência nacional, contornando o que se aponta como "produtivismo acadêmico", assunto amplamente caracterizado numa crescente perspectiva crítica sobre o tema.

O primeiro ponto integra o campo de reconstrução que terá que ser levado adiante com a mudança de governo. O segundo ponto exigirá esforço intelectual para superar um processo anterior, notoriamente marcado pelas insatisfações da comunidade acadêmica frente às avaliações da Capes. Esse movimento não se circunscreve ao contexto brasileiro e iniciativas levadas à cabo em outros países mostram isso, apontando resistências e tentativas de formulação de caminhos alternativos.

Nenhum desses caminhos é simples e a construção de um modelo apropriado às especificidades nacionais exigirá a participação qualificada das Instituições de Ensino Superior (IES) do país. Conta a nosso favor a capacidade instalada, tanto no que se refere às IES quanto da própria Capes, com sua longa trajetória e quadros administrativos experientes.

Tal processo tem na democracia e no espírito republicano pilares imprescindíveis para que se obtenha sucesso. Em problemáticas dessa magnitude, marcadas pela diversidade de visões e de interesses e pela complexidade da situação, a participação ampliada dos atores torna-se condição fundamental para que sejam incorporadas diferentes realidades que caracterizam esse universo, buscando-se um consenso viável que acomode ao máximo aspectos que se tornaram sinônimo de "cegueira burocrática", historicamente geradores de insatisfação e que conduziram a qualidade de vida docente a níveis alarmantes. Não se trata, portanto, de uma simples recusa à avaliação, mas de um pleito para que esta esteja ajustada a finalidades mais virtuosas para a ciência e para o Ensino Superior, deixando de ser um objetivo final que drena o esforço laboral.

Mais uma vez, a ciência e a pós-graduação brasileiras encontram uma encruzilhada. A tensão envolvendo a Capes não deve ser interpretada como um fato pontual ou um simples entrevero jurídico. É sintoma do esgotamento de um sistema autocentrado demais para responder às atuais necessidades da sociedade brasileira e aos ataques aos quais a ciência e nosso complexo de ensino superior têm sofrido. É urgente repensar não apenas a forma e os instrumentos de avaliação da Capes, mas seu próprio sentido e os valores que embasam esse sistema.

Referências

BIANCHETTI, Lúcidio;SGUISSARDIValdemar. Dilemas da pós-graduação: gestão e avaliação. Autores Associados, 2009. [ Links ]

CURY, Carlos Roberto Jamil. Quadragésimo ano do parecer CFE nº 977/65. Revista Brasileira de Educação, n. 30, p. 07-20, 2005. [ Links ]

MACCARI, Emerson Antonio;LIMA,Manolita Correia;RICCIO,Edson Luiz Uso do sistema de avaliação da CAPES por programas de pós-graduação em administração no Brasil. Revista de Ciências da Administração, p. 68-82, 2009. [ Links ]

SGUISSARDI, Valdemar. A avaliação defensiva no “modelo CAPES de avaliação": É possível conciliar avaliação educativa com processos de regulação e controle do Estado?. Perspectiva, v. 24, n. 1, p. 49-88, 2006. [ Links ]

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons