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Ciência & Educação

versión impresa ISSN 1516-7313versión On-line ISSN 1980-850X

Ciência educ. vol.25 no.3 Bauru jul./sept 2019  Epub 30-Sep-2019

https://doi.org/10.1590/1516-731320190030010 

Artigos

Interlocuções entre a Pedagogia Histórico-Crítica e a Psicologia Histórico-Cultural para o ensino de Ciências

Interlocutions between Historical-Critical Pedagogy and Historical-Cultural Psychology for science teaching

Carolina Borghi Mendes1 
http://orcid.org/0000-0001-6963-0121

Mateus Luiz Biancon2 
http://orcid.org/0000-0001-6716-9378

Paulo Borges Fazan3 
http://orcid.org/0000-0001-9168-9787

1Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), Colegiado de Ciências Biológicas, Jacarezinho, PR, Brasil. E-mail: carolina.mendes@uenp.edu.br

2UENP, Centro de Ciências Humanas e da Educação, Jacarezinho, PR, Brasil.

3Universidade Estadual Paulista (UNESP), Departamento de Psicologia, Bauru, SP, Brasil.


Resumo:

Evidenciando o conceito de trabalho como categoria ontológica do ser social, e a importância da mediação, necessária à humanização, o presente artigo se caracteriza como ensaio teórico e se propõe a apresentar interlocuções entre a Pedagogia Histórico-Crítica e a Psicologia Histórico-Cultural como fundamentos para o Ensino de Ciências, importantes à objetivação da atividade docente comprometida com o desenvolvimento humano dos estudantes em formação. Partimos do pressuposto de que a função social da educação escolar se concentra na socialização dos conhecimentos clássicos produzidos pela humanidade, sem desconsiderar, no entanto, a qual papel esta serve historicamente para, então, evidenciar a importância do ensino de Ciências que supere as perspectivas naturalizantes de desenvolvimento que o desvinculam da totalidade social, apresentando-o na dialética singular-particular-universal.

Palavras-chave: Ensino de ciências; Pedagogia histórico-crítica; Psicologia histórico-cultural; Educação escolar

Abstract:

By presenting the concept of work as an ontological category of the social being and the importance of mediation as a necessary activity for humanization, this article is characterized as a theoretical essay and aims to present links between Historical-Critical Pedagogy and Historical-Cultural Psychology as the foundations for science education, which is required for teaching committed to the humanistic development of students. We assume that the social function of school education concentrates on the socialization of the classical knowledge produced by humankind, without neglecting, however, which role it has been serving historically to highlight the importance of science education that surpasses the naturalizing perspectives of development which detach from the social totality, presenting it in the singular-particular-universal dialectics.

Keywords: Science teaching; Historical-critical pedagogy; Historical-cultural psychology; School education

Introdução

Contemporaneamente, o debate sobre a educação escolar ainda se mostra pertinente quando a entendemos como prática social integrante de nossa sociedade, baseada no modo de produção capitalista, devido às inúmeras contradições que emergem desse sistema e interferem no processo educativo. Inserir-se no debate, compreendendo a relevância do papel da educação na busca da transformação social, pressupõe averiguar, no arcabouço geral da teoria do ser social, os embasamentos que possibilitam, objetivamente, atuar no mundo e delinear a função do processo educativo e, particularmente, do ensino de Ciências como objeto de análise para o desenvolvimento humano dos indivíduos em formação. Vale lembrar que o ensino constitui-se como uma atividade dirigida por finalidades cujo planejamento e desenvolvimento cabem, sobretudo, ao professor, com objetivo de proporcionar a formação omnilateral dos indivíduos. Nosso objeto de análise se alicerça na certeza de que é esse o “objeto sobre o qual o ser humano [professor] intenciona, com sua atividade, operar uma transformação” (RIBEIRO, 2001, p. 22), o que resulta na importante compreensão entre nós, educadores, de como o ensino de Ciências se comprometeria com transformação social.

Para tanto, desenvolvemos esta produção teórica respaldando-nos em clássicos que utilizam o Materialismo Histórico-Dialético como método e a teoria do conhecimento. Buscamos, dentro dos limites deste texto, discorrer inicialmente sobre a atividade vital do ser humano, que o distingue dos demais animais, para, então, refletir sobre o desenvolvimento humano. Considerando a realidade, é importante apresentar brevemente como a educação escolar está condicionada a adequar os indivíduos às exigências de mercado.

Percorrido o caminho inicial, indagamos o objetivo da educação escolar atual, valendo-nos dos pressupostos da Pedagogia Histórico-Crítica (SAVIANI, 2012), que entende que a educação escolar deve possibilitar a apropriação da realidade, esta última definida como um processo que tem como objetivo a reprodução, pelos indivíduos, das características, conhecimentos e técnicas produzidos historicamente pela humanidade. De forma articulada, nos propomos a discorrer sobre a necessidade de desenvolver o ensino de Ciências objetivando o desenvolvimento humano e as funções psíquicas superiores, conforme preconiza a Psicologia Histórico-Cultural, a partir da efetivação de um processo científico que vise à humanização dos sujeitos, com suporte na dialética do singular-particular-universal.

Este ensaio teórico justifica-se pela necessidade de superar as concepções naturalizantes, neutras e estritamente técnicas que permeiam o ensino de Ciências ainda nos dias de hoje, e que retiram dele o importante papel de possibilitar a apropriação dos conhecimentos científicos integrados à realidade social por meio do processo pedagógico. Defendemos que o ensino deve atuar como a mediação entre o singular e o universal, tendo, para isso, destaque o papel do professor.

A educação escolar para apropriação dos signos da cultura como mediação às funções psíquicas superiores

Discorrer sobre os seres humanos e a sociedade pressupõe pautar-nos na materialidade, nas bases concretas da realidade e na historicidade da sociedade, considerando que os indivíduos são reais e possuem condições reais e materiais de vida (MARX; ENGELS, 2007). Diferentemente dos demais animais, o ser humano, para existir, precisa transformar intencionalmente a natureza para satisfazer suas necessidades. Segundo Marx (2010), o trabalho se constitui como uma atividade vital humana, sendo categoria fundante do ser social. Sendo assim, supera, por incorporação, seu aspecto puramente biológico, num movimento dialético em que modifica a natureza, produzindo novas realidades - objetiva e subjetiva - e transformando a si mesmo, pois é integrante dela. O movimento se efetiva na objetivação do subjetivo, modificando a prévia-ideação em realidade concreta, isto é, converte a ideia do resultado pensado e esperado em ação exteriorizada:

O trabalho, tendo como característica essencial a pré-ideação do produto a ser alcançado por ele, por encerrar uma finalidade precedente ao seu resultado, exigiu domínios cognitivos necessários à criação de uma imagem mental da realidade. Determinou, portanto, profundas alterações no substrato psíquico natural, próprio ao homem como animal superior, descortinando as possibilidades para a estruturação de um psiquismo especificamente humano, apto a edificar a referida imagem (MARTINS, 2015, p. 45).

Vigotski, Luria e Leontiev, preponentes da Psicologia Histórico-Cultural no século XX - atualmente articulada à Pedagogia Histórico-Crítica -, evidenciam que o psiquismo humano é um sistema interfuncional que se complexifica à medida que reelabora sua estrutura elementar orgânica a partir de elementos produzidos pela cultura humana, incluindo os diferentes saberes e conteúdos que os indivíduos precisam assimilar. Portanto, a partir do trabalho, as demais atividades da realidade social são desenvolvidas, atividades essas que configuram a estruturação do psiquismo humano.

Vigotski afirmou que:

[...] as particularidades psíquicas especificamente humanas se instituem na transformação dos processos naturais - que ligam de modo imediato o ser ao meio - em processos mediados, que dirigem o comportamento humano por intermédio do signo. (MARTINS, 2015, p. 45, grifo da autora).

Os signos são entendidos como meios auxiliares para os indivíduos entenderem o mundo e atuarem nele, análogos às ferramentas do trabalho material (VIGOTSKI, 1991). Assim como no uso de uma ferramenta, exige-se uma adequação do comportamento para a utilização dos signos da cultura, fato que resulta na transformação psíquica como processo de interiorização desses signos. Inclui compreender a linguagem (entendida como sistema de signos) e as ciências, com suporte na educação escolar, enquanto processo que oportuniza o entendimento dos elementos da realidade e dos próprios signos. Em consequência, “o acesso ao concreto não se efetiva sem a mediação do abstrato, isto é, de signos” (MARTINS, 2015, p. 49). Isso significa que a complexificação do psiquismo humano e, portanto, do próprio desenvolvimento humano, não se assinala como processo interno, individual, característico da evolução natural do ser humano. Ao contrário, o processo é conquistado socialmente pelo indivíduo que, por sua vez, é um ser social e necessita da mediação.

Não sem sentido, Martins (2013b) assegura que a educação escolar é condição fundante para o desenvolvimento humano. A afirmação se baseia nos estudos de Vigotski (2001) que, respaldando-se no legado filogenético da espécie humana, ressalta as funções psíquicas elementares e superiores. As elementares, segundo ele, são caracterizadas pelas respostas imediatas do ser humano aos estímulos do ambiente. Devem ser, portanto, superadas - mas não abandonadas, pois “integram uma nova estrutura, formam uma nova síntese como parte subordinada de um todo complexo” (VIGOTSKI, 2001, p. 172) - pela elaboração das funções psíquicas superiores, próprias da cultura humana à medida que se rompe com o imediatismo e se apropria dos signos. Vigotski afirma que:

Todas as funções psicológicas elementares, que costumam ser apontadas, participam do processo de formação de conceitos, mas participam de modo inteiramente diverso como processos que não se desenvolvem de maneira autônoma, segundo a lógica das suas próprias leis, mas são mediados pelo signo ou pela palavra e orientados para a solução de um determinado problema, levando a uma nova combinação, uma nova síntese, momento único em que cada processo participante adquire o seu verdadeiro sentido funcional (VIGOTSKI, 2001, p. 169-170).

Em outras palavras, os signos auxiliam o desenvolvimento humano ao possibilitar a mediação entre o material e o ideal, ou seja, entre o objetivo e o subjetivo, sendo um elemento fundamental da mediação (VIGOTSKI, 2001, p. 170). Apropriar-se deles permite que o sujeito sintetize e interiorize a sociedade que comporta e elabora tais signos, a ponto de desenvolver-se como ser social. O processo complexifica a elaboração dos pensamentos à medida que ultrapassa as sensações iniciais e imediatas e alcança altos níveis de abstração e generalização. Esses são aspectos essenciais para o sujeito compreender a totalidade social para, com isso, realizar sínteses e intervenções concretas - aspecto que debateremos mais pormenorizadamente no decorrer do texto.

Quando a educação escolar tem essa finalidade, ela promove condições para a interiorização dos signos da cultura, modificando radicalmente a elaboração do psiquismo humano, já que “o fator propulsor dessa transformação é a internalização de signos, graças à qual o sistema psíquico requalifica sua dinâmica interna” (MARTINS, 2015, p. 49). Sintetizando, ao discorrer sobre as funções psíquicas superiores, Vigotski (2001, p. 161) afirma que todas elas “[...] têm como traço comum o fato de serem processos mediatos [...] de incorporarem à sua estrutura, como parte central de todo o processo, o emprego de signos como meio fundamental de orientação e domínio nos processos psíquicos”.

Reitera-se, portanto, a necessidade da atividade de ensino e aprendizagem para a formulação do pensamento mais complexo e aprofundado dos indivíduos começam a ter a possibilidade de atuar conscientemente no mundo concreto, pois passam a compreendê-lo em suas inúmeras determinações.

Faz-se necessário pontuar, no entanto, que historicamente a educação escolar não se comprometeu com esse objetivo durante o processo formativo das diferentes classes sociais, limitando-se a reproduzir os valores e ideologias hegemônicos vigentes, que mantêm a formação das classes trabalhadoras atrelada às exigências de mercado. O breve recorte a seguir visa contextualizar o papel da educação escolar na sociedade contemporânea, na intenção de evidenciar a adequação da educação ao modelo de produção vigente sem, com isso, reforçá-la, a fim de elucidar a interlocução entre a escola e sociedade. Assim, destacamos que, em consequência da determinação sofrida pela primeira em relação à segunda, tivemos desdobramentos no Ensino de Ciências.

A virada do século XIX para o XX foi bastante significativa no tocante às transformações do pensamento sobre o trabalho baseado na mão de obra assalariada dentro das fábricas. Desde então, deparamo-nos com a adoção de “novos” paradigmas produtivos - todos pautados no modo de produção capitalista -, que resultaram em implicações diretas e indiretas na educação escolar. (SAVIANI, 2013).

No final de 1960, por exemplo, as características do processo produtivo reforçaram o momento de inserção da pedagogia tecnicista no contexto educacional brasileiro (SAVIANI, 2012, p. 11), definida como “a pedagogia que advoga a reordenação do processo educativo de maneira a torná-lo objetivo e operacional [...] semelhante ao que ocorreu no trabalho fabril”. Não era preciso que, naquele momento, o ensino fosse humanizador e pautado na formação cidadã; o Ensino de Ciências, nesse escopo, nitidamente passou a ser direcionado à profissionalização, com a compreensão da ciência como campo neutro e técnico (NARDI; CORTELA, 2014), subordinando o conhecimento das ciências às imposições da demanda produtiva.

A configuração das diretrizes para a educação no Brasil e na América Latina, sobretudo a partir da década de 1970, veio de países que estavam à frente do desenvolvimento produtivo e econômico, como os Estados Unidos. Os acordos MEC-USAD e as influências decisivas do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional evidenciaram essa determinação (BASSO; BEZERRA NETO, 2014). Mais adiante, tivemos o Consenso de Washington, o Relatório Jacques Delors e a Conferência Todos pela Educação que delinearam as políticas públicas educacionais brasileiras, como reflexo das mudanças nos sistemas de produção e na difusão da concepção neoliberal para a educação (MENDES, 2015). Na esteira dos acontecimentos, percebemos que, “nas duas últimas décadas, o debate educacional tem se caracterizado pela quase total hegemonia das ‘pedagogias do aprender a aprender’” (DUARTE, 2010, p. 33), as quais envolvem “o construtivismo, a pedagogia do professor reflexivo, a pedagogia das competências, a pedagogia dos projetos e a pedagogia multiculturalista” (DUARTE, 2010, p. 33). Especificamente sobre o ensino de Ciências, vivenciamos um processo educativo atrelado às diretrizes positivistas e internalistas (SANTOS, 2012) que ainda hoje regem a ciência moderna e se expressam no ensino.

Vemos a difusão, na escola, de concepções de ciência neutra, externa às causas dos problemas socioambientais, com vistas à melhoria de vida da população, em um processo unidirecional em que nós dependemos da ciência e ela nos serve favoravelmente. Não há preocupação em relacioná-la com as inúmeras contradições e interesses que a permeiam, tanto nos aspectos políticos quanto econômicos, como se fosse uma prática desatrelada da realidade social. Nesses moldes, retira-se dos indivíduos a possibilidade de conseguirem desenvolver suas potencialidades, porque essa abordagem cerceia a compreensão sobre as determinações e limitações da ciência e de seus produtos enquanto aspectos que devem integrar o ensino.

Ao considerarmos a realidade social como ponto de partida e ponto de chegada da prática educativa, constatamos que a educação escolar, enquanto “atividade mediadora no interior da prática social global” (SAVIANI, 2015, p. 35), deve ser entendida como constituinte de uma sociedade regida pelo modo capitalista de produção, o que não significa que precise ou deva corroborar a perpetuação desse sistema ou a adequação dos indivíduos a ele, mas que, na verdade, pode buscar superá-lo.

Por isso, ao relembrar a qual papel a educação tem se subordinado e qual deveria cumprir, precisamos nos indagar: qual ser humano formamos ou pretendemos formar no processo educativo escolar? A que/quem deve servir a educação escolar? Qual o papel do Ensino de Ciências como integrante do processo educativo? No que se afirma o conceito de mediação diante desse debate?

A reflexão sobre essas questões exige que iniciemos um debate a partir da relação entre o desenvolvimento humano e a educação escolar. O primeiro é essencial à vida dos indivíduos, às ações objetivas dos indivíduos em sociedade - inclusive para buscar a transformação desta; e a segunda é atividade que se propõe possibilitar aos mesmos a apropriação dos conhecimentos e valores produzidos historicamente pelo conjunto da humanidade para atuar sobre/na realidade (SAVIANI, 2012). Parece-nos claro pretendermos formar um ser humano plenamente humanizado. Por isso, a educação escolar deve servir aos sujeitos com o objetivo de humanizá-los, não de corroborar com a perpetuação dos moldes produtivos, que acabam por negar a humanização. Quanto ao papel do Ensino de Ciências e à mediação, vejamos alguns elementos teóricos importantes nos próximos subtópicos.

Ciência e Ensino de Ciências na dialética singular-particular-universal

Definido o papel da educação escolar, cabe agora explicitar sua relação com o Ensino de Ciências. Para isso, discorreremos brevemente sobre a importância da dialética do singular-particular-universal para a percepção da relevância do processo de ensino - entre tantos outros, no tocante ao desenvolvimento humano:

[...] a relação singular-particular-universal não é somente uma questão logico-epistemológica, mas também ontológica, isto é, ela é uma das relações que constituem o vir-a-ser da sociedade que se processa dentro de determinadas relações. Para que uma atuação possa interferir nesse vir-a-ser para transformá-lo, tendo em vista o propósito eticopolitico da emancipação humana, torna-se imprescindível que tal atuação esteja baseada na compreensão profunda da dialeticidade da relação singular-particular-universal (OLIVEIRA, 2005, p. 10).

De imediato, a questão que se apresenta é “como a singularidade se constrói na universalidade e, ao mesmo tempo e do mesmo modo, como a universalidade se concretiza na singularidade, tendo a particularidade como mediação”? (OLIVEIRA, 2005, p. 1). Não podemos perder de vista que “a gênese desse desenvolvimento [humano] reside no material disponibilizado pela captação sensorial, mas, ao mesmo tempo, na ampliação deste” (MARTINS, 2015, p. 50), ou seja, na elaboração das funções psíquicas superiores. Para isso, nossa análise se debruça na Ciência como prática social e no Ensino de Ciências como elemento humanizador dessa prática. De que forma? Historicamente, a ciência apresentou um salto qualitativo a partir do século XVI, com a Revolução Científica, ocasião em que surgiram contribuições de nomes como Galileu, Bacon, Newton e Descartes. Esse último apresentou subsídios importantes à ciência moderna de base antropocêntrica, com a divulgação de seu método pautado na racionalidade (MAIA, 2015). Debruçou-se, ainda, no caráter empírico da ciência, ao defender a divisibilidade infinita do objeto a ser dominado pelo ser humano; aspecto retomado, nos séculos seguintes, pela corrente positivista.

Diante das modificações da sociedade moderna, é inegável o avanço científico na ocasião da Revolução Industrial. “A ciência passa a servir ao capital e a desenvolver os instrumentos para ampliar a força produtiva” (MAIA, 2015, p. 36). Adiante, no século XX, nos deparamos com uma significativa expansão do desenvolvimento científico, também nos períodos das Grandes Guerras. Se o conhecimento e a própria elaboração da ciência são elementos formadores da realidade concreta e desenvolvidos ao longo da história pela humanidade, é incoerente entendê-los como neutros e intocados pelo contexto social. Eles sofrem influências políticas, econômicas e culturais condizentes com cada período histórico. Seria possível exemplificarmos com inúmeros eventos essa afirmação. Por exemplo, os conhecimentos científicos sobre o urânio e a fissão nuclear não poderiam ser reduzidos a um erro devido à utilização durante a Segunda Guerra Mundial; ao contrário, foram importantes em inúmeros aspectos. Ainda assim, não é coerente afirmar qualquer neutralidade na utilização dos produtos da ciência, visto o exemplo citado, em que tivemos o desenvolvimento de uma bomba atômica como arma de guerra.

Ainda hoje carregamos preponderantes características da construção histórica do desenvolvimento e da aplicação da ciência, como pode ser visto na sistemática análise bibliográfica feita por Gil Pérez et al. (2001). Os autores ressaltam as deformações sobre a natureza da ciência e do trabalho científico e, em consequência, a forma como o Ensino de Ciências é desenvolvido. Em nossa análise, Gil Pérez et al. (2001) e outros autores por eles citados indicam que a ciência se apresenta aos indivíduos como prática social não humanizadora. A afirmação fica mais contundente quando analisada pelo e a partir do Ensino de Ciências. Retomaremos essa questão em breve.

Ainda que seja uma prática social, a ciência tem se mostrado como uma elaboração descolada da realidade social. Não porque de fato o seja, mas por assim ser difundida, entre os leigos e seus próprios praticantes - os cientistas. Exatamente por ser um elemento da realidade concreta - desenvolvida no processo histórico que evidencia a objetivação do trabalho humano, resultando em conhecimento teórico, em produtos e técnicas que integram a sociedade -, devemos percebê-la como elemento particular (mediador) entre os indivíduos (singular) e o gênero humano (universal). Com base na concepção dialética, Lukács (2018, p. 92) afirma que “A ciência autêntica extrai da própria realidade as condições estruturais e as suas transformações históricas” a tal ponto que, quando “[...] se formula leis, estas abraçam a universalidade do processo, mas de um modo tal que deste conjunto de leis pode-se sempre retornar [...] aos fatos singulares da vida. É precisamente esta a dialética concretamente realizada de universal, particular e singular” (LUCKÁCS, 2018, p. 92).

Como particularidade, ou seja, como mediação entre o singular e o universal, a ciência deveria objetivar a humanização dos indivíduos singulares em busca da universalidade que se expressa no gênero humano.

Uma das categorias fundamentais que caracterizam a concepção de homem em Marx é a categoria de universalidade. [...] refere-se ao fato de que o homem, enquanto um ser social que se forma pelo trabalho, desenvolve a capacidade de se apropriar das leis essenciais da natureza e transformá-las em “órgãos da sua individualidade”, isto é, em objeto e condição de sua vida. [...] O novo tipo de sua atividade vital é o resultado do rompimento dos limites das leis biológicas que determinam a espécie homo, a qual passou a ser dirigida por uma finalidade, determinada histórica e socialmente pela consciência (OLIVEIRA, 2005, p. 14).

Entretanto, por ainda ser fundamentada na concepção empírico-analítica e a favor da expansão do capital, relegando seus produtos (materiais ou imateriais) a poucos indivíduos singulares, a mediação não se concretizou. Porém, enquanto prática sócio-histórica e inacabada, as contradições expressas nela e por ela são parte dessa realidade e podem ser superadas a fim de possibilitar a humanização. O Ensino de Ciências se concentra nesse aspecto - especificamente na humanização. Retomando o trabalho de Gil Pérez et al. (2001), entendemos que, por alicerçar-se na própria compreensão de ciência neutra, analítica, empírica, linear e anistórica (entre tantas outras adjetivações que poderiam, aqui, ser resumidas à ciência servindo aos interesses do capital), o Ensino de Ciências perpetua as várias deformações do trabalho científico, sendo, portanto, também deformado. A nosso ver, isso resulta na impossibilidade de um processo de humanização dos indivíduos, retirando do ensino e da própria educação escolar o caráter essencial ao desenvolvimento humano, segundo os pressupostos aqui defendidos.

Constatar que o Ensino de Ciências ocorre dessa maneira não encerra a discussão. Na verdade, é exatamente por ser a favor de uma ciência humanizadora que o Ensino de Ciências se apresenta como elemento particular (mediador) da singularidade-universalidade. Por meio dele se torna possível, ao indivíduo singular, se apropriar da ciência, pois é ele que permite o acesso aos conhecimentos científicos como elaboração do gênero humano, estabelecendo a dialética singular-particular-universal. Apoiando-se em conceitos de Marx, Martins (2015, p. 50, grifo da autora) reforça que “à educação escolar cabe o ensino dos conhecimentos científicos historicamente sistematizados e referendados pela prática social da humanidade, cabe promover a formação de conceitos [...] que Vigotski adjetivou como os verdadeiros conceitos”.

A ciência precisa ser analisada como integrante da totalidade para que o próprio ensino de ciências possibilite que os estudantes consigam entender os fenômenos estruturais relacionados aos conteúdos e métodos científicos. Ou seja, a ciência precisa ser assumida e compreendida como prática social para que o Ensino de Ciências - enquanto processo que busca possibilitar a apropriação dos elementos científicos aos indivíduos - supere a compreensão fenomênica dos objetos de estudo.

A formação de conceitos no desenvolvimento dos indivíduos depende das condições objetivas de vida e de educação, “de apropriação dos produtos culturais simbólicos” (MARTINS, 2015, p. 53), sem os quais esses indivíduos não interiorizam os conhecimentos científicos para torná-los integrantes de sua reelaboração psíquica. A ciência integra o trabalho humano - ontológico - historicamente e, como tal, depende da mediação do Ensino de Ciências para que seus constructos e implicações sejam apropriados pelos sujeitos. Por isso, “o concreto só pode ser apreendido pelo pensamento como resultado de um processo de análise que supera a dimensão singular do fenômeno” (PASQUALINI; MARTINS, 2015, p. 364), ou seja, se a humanização (universalidade) de um estudante (indivíduo singular) depende da educação escolar, é preciso buscar a particularidade, isto é, a atividade mediadora que possibilita tal humanização. O singular e o universal só se relacionam e se autodeterminam como contrários de uma mesma unidade (polos opostos) a partir e por meio de um processo de mediação:

[...] todo ser determinado é um ser singular e, para se chegar ao conceito, é necessário estabelecer a conexão dialética entre singular e universal. Nessa conexão surge o papel do particular como mediador entre o universal e o singular. O particular é o ponto de partida do pensamento para chegar ao universal, bem como para explicar o singular. Portanto, para a formação de conceitos que penetrem além do sensível aparente é necessário estabelecer a conexão dialética entre o universal, o particular e o singular. A particularidade é uma categoria historicizante que possibilita a compreensão de outros aspectos do real, já que está no âmbito das mediações (MASSON, 2007, p. 111).

Afirmamos a importância do ensino de Ciências como particularidade que possibilita a dialética entre o indivíduo e o gênero humano no que concerne à ciência. Sem o compromisso de desenvolvê-lo para essa potencialidade, negamos um elemento essencial que integra a educação escolar comprometida com a humanização de cada indivíduo singular, qual seja, a apropriação dos conceitos científicos para que a própria ciência possa ser desenvolvida visando à humanização (superação da condição posta). Sem o papel humanizador do ensino de Ciências, de que forma os indivíduos teriam a mediação para se apropriarem (dos elementos) da ciência, compreendendo-a como prática social determinada e permeada por interesses? É ingênuo conceber esse processo sem o papel do professor como planejador e executor do ensino, que atende a objetivos específicos ou, como já afirmava Vigotski (1991), o papel da relação com o “mais capaz” para o desenvolvimento potencial.

Para isso, devemos romper com o caráter estritamente técnico do ensino de Ciências, o que não significa negar a técnica, mas saber que o ensino é composto por dois momentos, o empírico e o concreto (SAVIANI, 2012). Ambos são constituintes de uma unidade contraditória que provoca uma tensão não espontânea, realizada, impreterivelmente, pelo trabalho docente (MARTINS, 2015). Nesse sentido, “A compreensão do real é uma necessidade para todo ser humano [e] não decorre direta e mecanicamente do fato desses mesmos seres humanos estarem nela inseridos” (RIBEIRO, 2001, p. 33), ou seja, é “necessário não só a produção do conhecimento, que expresse as leis que regem esta realidade (conhecimento cientifico), como também a sua difusão/assimilação” (RIBEIRO, 2001, p. 33), decorrente do processo pedagógico.

Ao mesmo tempo, essa responsabilidade com o ensino de Ciências se apresenta como um desafio ao professor. Ribeiro (2001, p. 42) discorre sobre a atividade docente como forma específica de práxis (entendida como a unidade entre teoria e prática) e evidencia que “impõe-se, pois, como necessários ao educador cada vez mais rigor, profundidade e abrangência no grau de conhecimento, de consciência e de compreensão da natureza social da realidade sobre a qual atua e da qual ele é parte”. Sem esse esforço, não é possível falar em humanização por meio do ensino de Ciências. Com a assimilação de conhecimentos científicos, de planejadas e constantes intervenções do professor para relacioná-los à realidade, os estudantes alcançam a possibilidade de realizar abstrações e generalizações, resultando na ampliação do empírico e imediato em direção à compreensão concreta da realidade, condizente com a apropriação do gênero humano. Mas como?

A Pedagogia Histórico-Crítica defende o acesso da classe trabalhadora ao patrimônio cultural produzido historicamente pela humanidade. A educação escolar por ela preconizada se alinha ao que foi discorrido nesse texto, sendo intencional e defendendo a humanização dos indivíduos - formação omnilateral - para apreenderem a realidade concreta - seu movimento histórico e suas contradições - a tal ponto que possam intervir como sujeitos sociais com o objetivo de transformar a sociedade pela superação do modo capitalista de produção. Como ação intencional, isto é, com objetivo e clareza sobre a finalidade da ação pedagógica, exprime-se a necessidade de planejamento no que se refere ao ensino e no que se espera alcançar com a aprendizagem, em busca da elaboração das funções psíquicas superiores dos estudantes:

Essa proposição demanda compreender que, ao postular os conhecimentos historicamente sistematizados como objeto do ensino escolar, a pedagogia histórico-crítica está defendendo a escola como espaço de promoção do desenvolvimento das capacidades humanas complexas, das operações lógicas do raciocínio, dos sentimentos éticos e estéticos, do autodomínio da conduta. Em suma, está defendendo o direito de que todos os indivíduos desenvolvam as funções psíquicas superiores expressas nos comportamentos complexos que a humanidade já consolidou (MARTINS, 2013a, p. 135).

Metodologicamente, Saviani (2010) propõe cinco passos ou momentos, entendidos como delineamento didático, que articula a prática pedagógica em sala de aula à realidade social sem, com isso, reforçar um procedimento estanque e reducionista - tal como foi feito por Herbart e Dewey nas pedagogias tradicional e nova, respectivamente. “Os métodos tradicionais assim como os novos implicam uma autonomização da pedagogia em relação à sociedade. Os métodos que preconizo mantêm continuamente presente a vinculação entre educação e sociedade” (SAVIANI, 2010, p. 70).

Saviani (2010) inicia sua proposição com a prática social - momento em que o educador e os educandos leem a realidade concretamente - como caminho da síncrese à síntese, relacionando a realidade ao conhecimento a ser apreendido. Assim, professor e aluno são agentes sociais da mesma realidade, mas com entendimentos distintos sobre ela em decorrência do desenvolvimento psíquico que possuem. O professor possui uma síntese precária sobre o real por entender a realidade em bases concretas e ter clareza dos objetivos do ensino - ainda que seu próprio conhecimento esteja em constante reelaboração. Os estudantes, por sua vez, apresentam nível de psiquismo sincrético - isso quer dizer que sua assimilação inicial é fragmentada, empírica, impossibilitando que articulem, até aquele momento, o que estão aprendendo e com a realidade concreta. Essa condição sincrética é superada com a ampliação da capacidade de abstrações, generalizações e apropriação dos conteúdos científicos no decorrer do processo de ensino e aprendizagem.

Propõe-se, em um segundo momento, a problematização, “isto é, o ato de detectar as questões que precisam ser resolvidas no âmbito da prática social e como a educação poderá encaminhar as devidas soluções.” (SAVIANI, 2016, p. 36). Assim, para o autor, o aprofundamento dado à problematização é variável diante de cada problema que emerge da prática social. Alguns já estão postos na realidade, como é o caso da alfabetização, já que a “[...] necessidade de que todos adquiram o domínio da linguagem escrita se impõe podendo-se, a partir de uma rápida discussão e constatação de sua necessidade, passar ao momento da instrumentação.” (SAVIANI, 2016, p. 37). Há outros, no entanto, que exigem um debate mais aprofundado, pois ainda que emerjam da prática social, não são amplamente compreendidos e as contradições, muitas vezes, são pouco percebidas. Saviani (2016, p. 37) vale-se de um exemplo aplicável ao Ensino de Ciências quando afirma que “o problema da adoção ou não de sementes transgênicas ou a questão do uso de agrotóxicos na agricultura são temas que requerem um aprofundamento maior do momento da problematização.” Esse delineamento é essencial para aquilo que Vigotski afirma sobre a apreensão dos problemas do meio social para o desenvolvimento dos indivíduos em formação:

Ao contrário do amadurecimento dos instintos e das atrações inatas, a força motivadora que determina o desencadeamento do processo, aciona qualquer mecanismo de amadurecimento do comportamento e o impulsiona para a frente pela via do ulterior desenvolvimento não está radicada dentro mas fora do adolescente e, neste sentido, os problemas que o meio social coloca diante do adolescente em processo de amadurecimento e estão vinculados à projeção desse adolescente na vida cultural, profissional e social dos adultos são, efetivamente, momentos funcionais sumamente importantes que tomam a reiterar o intercondicionamento, a conexão orgânica e a unidade interna entre os momentos do conteúdo e da forma no desenvolvimento do pensamento (VIGOTSKI, 2001, p. 171).

Detectar os problemas da prática social não significa simplificá-los aos elementos fragmentados do cotidiano dos estudantes, ou ao que importa de forma pontual a um ou outro estudante (a famosa contextualização) como frequentemente é preconizado pelas pedagogias do “aprender a aprender”. É preciso, pois, “começar daquilo que interessa ao homem como ser genérico” (SANTOS, 2012, p. 70). Em outras palavras, o cotidiano é pontual, fragmentado, que não evidencia os problemas sociais de fato, em suas raízes e contradições. O Ensino de Ciências deve superar essa percepção inicial, tal qual é o cotidiano, pois o objeto de estudo precisa ser analisado amplamente, estabelecendo as relações na busca das determinações últimas implicadas naquele objeto de estudo (um conteúdo, por exemplo). Por isso, “educar é superar o cotidiano e suas limitações e retornar a este, com possibilidade de compreendê-lo em suas mediações” (SANTOS, 2012, p. 58). A educação escolar “serve justamente para que o indivíduo, partindo da prática cotidiana, desta distancie-se” (SANTOS, 2012, p. 58), por consequência da apropriação do saber elaborado, conseguindo “olhar com olhos dos homens e das mulheres que construíram uma visão científica de mundo [...]” (SANTOS, 2012, p. 58).

É nesse sentido que a especificidade da educação escolar e, particularmente, do ensino, se encontra na mediação. A primeira não transforma a sociedade de forma direta e imediata (SAVIANI, 2010), mas possibilita aos indivíduos compreenderem seu cotidiano caó tico, sincré tico e parcial. Pelo ensino, dá-se condição para a apropriação dos conhecimentos pertinentes ao humano-genérico. Essa apreensão contribui para o desenvolvimento humano do estudante. Mais uma vez, a dialética do singular-particular-universal se faz notável. Frisamos que o processo de apropriação não se faz pelo aluno de forma autônoma ou individual, pois exige mediação, própria do processo de ensino, que “permite aos que participem dela exercerem entre si, a partir de suas propriedades essenciais, uma influência recíproca - da qual depende a consecução do seu objetivo” (MARTINS, 2015, p. 46):

Ao introduzir o conceito de mediação, Vygotski [...] não a tomou simplesmente como “ponte”, “elo” ou “meio” entre coisas; tal como muitas vezes referido por seus leitores não marxistas. [Mas como] interposição que provoca transformações, encerra a intencionalidade socialmente construída e promove desenvolvimento; enfim, uma condição externa que, internalizada, potencializa o ato de trabalho, seja ele prático ou teórico (MARTINS, 2015, p. 47).

Os problemas da prática social, elencados e relacionados ao conteúdo a ser ensinado e aprendido, tornam-se objeto de estudo no processo educativo, para que os indivíduos percebam as intervinculações existentes e minimizem o entendimento sincrético do real. Não sem sentido, a prática pedagógica apresenta a necessidade de instrumentalização, denominada de terceiro passo, pois é somente com a apropriação dos conhecimentos, instrumentos teóricos e práticos da ciência - vinculados aos problemas inerentes à prática social dos indivíduos - que esses poderão entender a realidade de forma mais elaborada, decodificando-a, para que busquem o “equacionamento dos problemas detectados na prática social.” (SAVIANI, 2015, p. 37). Nesse momento, o professor tem papel fundamental, pois ele é o possuidor dos conhecimentos científicos e dos meios para transformá-los em saberes escolares para a aprendizagem dos estudantes.

Vigotski (2001, p. 244) mostrou que o desenvolvimento psíquico não ocorre da mesma maneira em qualquer tipo de ensino, pois os conteúdos apresentam aspectos qualitativos distintos, tal como a forma como se dá o processo de ensino. O autor “defendeu vigorosamente que é o ensino que promove desenvolvimento, destacando, inclusive, que a qualidade do primeiro condiciona o segundo. Essa premissa encontra o mais absoluto eco na pedagogia histórico-crítica” (MARTINS, 2013a, p. 134), especialmente porque ela reforça “a dialética entre a forma e o conteúdo que deva pautar o ensino tendo em vista a promoção de um tipo especial de aprendizagem, qual seja, aquela que se identifica com o máximo desenvolvimento do psiquismo dos indivíduos.” (MARTINS, 2013a, p. 134). Nessa perspectiva, a Pedagogia Histórico-Crítica defende o ensino como ação intencional. A seleção de conteúdos e a forma como se dará o processo de ensino não podem ser secundarizadas; na verdade são objetos do trabalho educativo (SAVIANI, 2010).

No entanto, isso não significa que o professor deva abordar “tudo” nas aulas - tampouco nas aulas de Ciências. O ensino nas escolas é disciplinar e compartimentalizado, mas deve ser desenvolvido pelo professor com fundamento na dialética materialista, que exige amplitude nas análises e nas relações que estabelece entre ciência, história, política, cultura e economia, em determinado momento histórico e entre os objetos de ensino. Como alerta Saviani (2015, p. 36), a educação só poderá auxiliar na transformação social “se os professores previamente compreenderem a historicidade do mundo atual” o que exige “[...] identificar os componentes educativos nele albergados. A partir desse requisito estarão qualificados a trabalhar com os educandos os problemas postos pela prática social, propiciando-lhes o acesso aos instrumentos por meio dos quais atingirão o momento catártico [...]” (SAVIANI, 2015, p. 36).

É pela catarse que uma nova forma de entendimento da realidade se apresenta aos estudantes e ao professor. Ao se apropriarem dos conteúdos científicos e estabelecerem as relações por análises, abstrações e generalizações, os sujeitos já apreendem a realidade (prática social inicial) de maneira mais complexa. Consequentemente, as elaborações de pensamento e desenvolvimento das funções psíquicas superiores tornam-se concretas; desenvolve-se o pensamento teórico, ou seja, supera-se a síncrese e alcança-se a síntese. A catarse favorece a ação efetiva na realidade, “representa uma ‘pré-ação’, a compreensão que leva o indivíduo ao estado de prontidão. Ela transforma-nos em sujeitos, quer dizer, não apenas capazes de reagir, mas de agir, agora com clareza e objetividade.” (SANTOS, 2012, p. 67). Para Saviani (2015, p. 37) “Este é, pois, o ponto culminante do processo pedagógico, quando ocorre a efetiva incorporação dos instrumentos culturais [como os signos], transformados em elementos ativos de transformação social”.

Como momento último, Saviani (2010) enfatiza o retorno à prática social, apenas possível devido ao alcance da catarse, visto que os sujeitos do processo pedagógico apresentam-se epistemologicamente diferentes. Ao final desse processo - seja um conjunto de aulas, uma unidade temática ou um nível de ensino -, a realidade estará mais amplamente compreendida por eles, que poderão atuar como agentes sociais de transformação dessa mesma realidade.

Novamente, a concepção dialética da proposição não pode se perder, pois “Na verdade, sendo a educação uma modalidade da própria prática social, nunca se sai dela” (SAVIANI, 2016, p. 39), ou seja, “os educandos permanecem na condição de agentes da prática que, pela mediação da educação, logram alterar a qualidade de sua prática tornando-a mais consistente, coerente e eficaz em relação ao objetivo de transformação da sociedade” (SAVIANI, 2016, p. 39). Saviani (2016, p. 37) é eloquente ao afirmar que “não se trata de uma relação mecânica entre os passos do método que determinaria que primeiro se realizaria o passo da problematização, depois a instrumentalização e, no momento seguinte, a catarse”. Retomando o exemplo sobre as sementes transgênicas, o autor reafirma que os momentos se relacionam, ou seja, “ao se desenvolver a discussão relativamente à problematização da adoção ou não de sementes transgênicas, será necessária a apreensão do conceito e do significado desse tipo de sementes, para se detectarem os problemas implicados em sua adoção” (SAVIANI, 2016, p. 37). Com isso, “já estaria se dando a apropriação dos instrumentos teóricos e práticos necessários ao equacionamento do problema das sementes transgênicas detectado na prática social, o que significa que já se encontrava em andamento o terceiro passo do método” (SAVIANI, 2016, p. 37), ou seja, Saviani reforça a não linearidade dos passos.

Parece ter ficado claro que, com vistas a cumprir a particularidade do Ensino de Ciências na humanização dos sujeitos, o papel do professor é fundamental. Ele, portanto, deve compreender as raízes históricas e contraditórias da ciência como prática social, que se insere na realidade concreta como objetivação humana e é determinada por essa mesma sociedade. Por isso, a superação das teorias e práticas pedagógicas baseadas no aprender a aprender torna-se necessária, visto que essas práticas minimizam a importância dos conteúdos clássicos e reduzem o papel do professor na atividade de ensino. Consideramos, como relembra Ribeiro (2001), que o produto da atividade educativa se concentra na consciência transformada dos estudantes, que necessita da apropriação dos signos, dos conhecimentos científicos e da compreensão aprofundada sobre a realidade, como defende Vigotski. É nessa lógica que Saviani (1996), apoiando-se nos escritos de Marx (2008 apud SAVIANI, 1996, p. 4) defende a lógica dialética materialista para apreensão do real:

A construção do pensamento se daria, pois, da seguinte forma: parte-se do empírico, passa-se pelo abstrato e chega-se ao concreto. Diferentemente, pois, da crença que caracteriza o empirismo, o positivismo, etc. (que confundem o concreto com o empírico) o concreto não é o ponto de partida, mas o ponto de chegada do conhecimento. E no entanto, o concreto é também o ponto de partida. Como entender isso? Poder-se-ia dizer que o concreto-ponto de partida é o concreto real e o concreto-ponto de chegada é o concreto pensado, isto é, a apropriação pelo pensamento do real-concreto. Mais precisamente: o pensamento parte do empírico, mas este tem como suporte o real concreto. Assim, o verdadeiro ponto de partida, bem como o verdadeiro ponto de chegada é o concreto real (SAVIANI, 1996, p. 4).

A título de síntese final, retomemos o exemplo de Saviani (2015) quando o autor discorre sobre o movimento dialético da proposição metodológica no caso do uso de sementes transgênicas - mas que pode ser extrapolado para tantos outros conteúdos do Ensino de Ciências. Ele adverte que esse produto da ciência não está plenamente compreendido, tanto nos aspectos técnicos, quanto sociais, políticos, econômicos e ambientais. Aprofundar as análises sobre eles, suscitadas por problematizações mais complexas, significa que o Ensino de Ciências deve superar a percepção empírica que se apresenta sobre o aparato conceitual científico atrelado aos transgênicos. Assim, o ensino deve levantar as contradições existentes na aplicação desse constructo científico, por meio de análises, abstrações e generalizações. Percebemos que, com esse movimento de pensamento, supera-se a assimilação aparente da técnica - necessária, mas não suficiente -, em direção às determinações reais e às implicações concretas da ciência. Com isso, os estudantes podem - e devem - compreender não somente os aspectos técnicos, mas a relação entre a ciência e a própria sociedade. Vemos, assim, a concretude da dimensão particular do Ensino de Ciências.

Conclusão

Discutir a educação escolar desatrelada da sociedade e das objetivações do trabalho humano - como o é a ciência - parece-nos, ao menos, incoerente. O delineamento desse estudo buscou explicitar a importância do papel da educação escolar, sob a ótica da Pedagogia Histórico-Crítica, articulado ao desenvolvimento humano, sob o postulado da Psicologia Histórico-Cultural, o que nos exigiu esclarecer conceitos e categorias importantes.

Buscamos, de forma inicial, apresentar a relação entre a dialética do singular-particular-universal e o Ensino de Ciências, pois compreendemos que a ciência, como prática social e construção humana, não se mostrou historicamente comprometida com a humanização dos indivíduos, apesar de constituir-se como uma particularidade nessa dialética. Entendemos que extrapolar conceitos tão complexos das teorias basilares trazidas neste ensaio, para que o Ensino de Ciências seja compreendido como particularidade - ou seja, como uma mediação entre os indivíduos singulares e o humano genérico - é uma necessidade, especialmente no que diz respeito à superação de tendências pedagógicas tão cristalizadas e difundidas no ideário escolar brasileiro e que subsidiam o Ensino de Ciências.

A nosso ver, o papel do professor é fundamental para isso, pois não é qualquer ensino que se coloca comprometido em possibilitar a elaboração das funções psíquicas superiores e a humanização dos estudantes. Sem esse comprometimento não se pode falar em ensino escolar para o desenvolvimento humano; ao contrário, nós o colocamos à adequação dos sujeitos à sociedade que se apresenta, negando-lhes a mediação entre o singular-universal. Defendemos que o Ensino de Ciências deva garantir que os educandos saibam que fazer ciência é resultado de intervenção humana no decorrer do processo histórico social repleto de contradições e, assim como ela, não pode ser desinteressado e desarticulado, pois é, objetivamente, dialético.

Reforçamos a necessidade de futuros trabalhos que aprofundem as interlocuções entre essas teorias para o fortalecimento da perspectiva de formação plenamente humana como subsídio teórico-metodológico aos professores

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Recebido: 21 de Dezembro de 2017; Aceito: 23 de Fevereiro de 2019

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