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Ciência & Educação

Print version ISSN 1516-7313On-line version ISSN 1980-850X

Ciência educ. vol.26  Bauru  2020  Epub May 13, 2020

https://doi.org/10.1590/1516-731320200005 

Artigo Original

Solução Mineral Milagrosa: um Tema para o Ensino de Química na Perspectiva da Alfabetização Científica e Tecnológica

Miracle Mineral Solution: a Thematic for Chemical Education in View of Technological Scientific Literacy

Tathiane Milaré1 
http://orcid.org/0000-0001-6557-1769

Graziela Piccoli Richetti2 
http://orcid.org/0000-0001-9868-7768

Larissa Aparecida Rosendo da Silva1 
http://orcid.org/0000-0003-3739-2311

1UniversidadeFederal de São Carlos (UFSCar), Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências e Matemática, Araras, SP, Brasil.

2Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Departamento de Ciências Exatas e Educação, Blumenau, SC, Brasil.


Resumo:

A solução mineral milagrosa (MMS em inglês) é uma mistura clorada que tem sido divulgada na internet como um medicamento capaz de curar diversas patologias sem oferecer efeitos colaterais. Entretanto, não há estudos científicos que indiquem as qualidades medicinais alegadas, e entidades de diversos países têm alertado sobre os riscos do uso da solução. Um dos objetivos do ensino de química é formar pessoas críticas, que saibam avaliar informações e possam reconhecer fake news. Com base nisso, este trabalho tem como objetivo analisar e discutir as potencialidades do uso de situações reais, amplamente disseminadas redes sociais e outras plataformas virtuais, como é o caso do MMS, para o ensino de química na perspectiva da Alfabetização Científica e Tecnológica.

Palavras-chave: Ensino de química; Alfabetização científica; MMS; Fake news; Pseudociência

Abstract:

Miracle Mineral Solution (MMS) is a chlorinated mixture that has been publicized on the Internet as a medicine that can cure various pathologies without offering side effects. However, there is no scientific study that proves the medicinal qualities alleged, and entities from several countries have warned about the risks of using the substance. One of the goals of chemistry education is to train people critically and enable them to evaluate information and recognize fake news. Based on this, this paper aims to analyze the use of MMS controversy in social networks and other virtual platforms as a learning vector, with a view to teaching chemistry from the perspective of Scientific and Technological Literacy.

Keywords: Chemistry teaching; Scientific literacy; MMS; Fake-news; Pseudoscience

Introdução

Os resultados da pesquisa em ensino de química têm indicado as contribuições de um ensino contextualizado, problematizador, interdisciplinar, relacionando os aspectos macroscópico, (sub)microscópico e representacional da química, bem como do ensino que leva em consideração aspectos sociais, políticos, econômicos e ambientais de forma a contribuir para a formação crítica e cidadã desde a educação básica (SANTOS; SCHNETZLER, 2010; SOARES, MESQUITA; REZENDE, 2017; TALANQUER, 2011). Essa formação é consonante com os propósitos da Alfabetização Científica e Tecnológica, alinhados às perspectivas humanistas, sociais e econômicas, expressas por meio da apropriação de conhecimentos científicos necessários à tomada de decisões autônomas e responsáveis (FOUREZ, 1997). Atualmente, são diversas as situações que demandam conhecimentos científicos e tecnológicos para serem compreendidas e avaliadas. O domínio desses conhecimentos pode favorecer a negociação de significados e sentidos e, posteriormente, pode conduzir à resolução de situações e problemas concretos.

A ampliação do acesso e do uso da internet também tem contribuído para essa demanda. Muitas informações veiculadas em forma de vídeos, figuras, animações, áudios, entre outros, são criadas e difundidas com facilidade e rapidez atualmente (MATEUS, 2015; MORENO; HEIDELMANN, 2017; VIEIRA; VIEIRA, 2013). Com alguns cliques no computador, em smartphones ou em outros equipamentos eletrônicos, é possível acessar e divulgar informações, muitas vezes de origem e autoria desconhecidas.

Apesar dos benefícios envolvidos na troca rápida de informação, as novas tecnologias facilitam a propagação de inverdades e também das pseudociências. Nesse contexto, espera-se que uma pessoa alfabetizada científica e tecnologicamente seja capaz de avaliar as informações com respaldo científico, e, no caso de se deparar com informações de veracidade duvidosa, tenha meios de verificar autonomamente sua validade, construindo os conhecimentos necessários para isso. A importância dessa habilidade reforça a importância do ensino de ciências na perspectiva da Alfabetização Científica e Tecnológica.

Embora a Alfabetização Científica e Tecnológica não seja um processo finito e restrito às instituições escolares, sua promoção deve ser parte de uma educação geral e um dos principais objetivos do ensino de ciências (FOUREZ, 1997). Para isso, é necessário superar o ensino propedêutico, reprodutivista e fragmentado. Com vistas aos problemas emergentes das novas tecnologias de comunicação, deve-se buscar abordagens temáticas que aproximem os conteúdos estudados da realidade social e problematizem os impactos sociais, ambientais, políticos e econômicos da criação e difusão de mitos, pseudociências e notícias falsas, estas últimas também conhecidas como fake news.

Fourez (1997) apresenta como finalidade da Alfabetização Científica e Tecnológica o desenvolvimento da autonomia, da comunicação e do domínio frente a aspectos políticos, econômicos, históricos e sociais, de modo a possibilitar que os estudantes utilizem o conhecimento científico como base para compreensão de sua realidade, correção de informações distorcidas ou equivocadas e adotem práticas comprometidas com uma sociedade mais justa, igualitária e sustentável. Também indica objetivos operacionais, no sentido de direcionar de forma mais concreta os fundamentos da Alfabetização Científica e Tecnológica. Assim, é fundamental uma boa compreensão do papel dos especialistas, não se deixando levar por receitas prontas e opiniões formadas.

Significa ser autônomo para alcançar suas próprias conclusões e reduzir a dependência. Outro critério se refere ao fazer bom uso das chamadas "caixas pretas", definidas como "[...] um objeto, uma situação ou noção teórica que se utiliza sem necessariamente saber como funciona" (FOUREZ; ENGLEBERT-LECOMPTE; MATHY, 1997, p. 112). Desta forma, abrir uma "caixa preta" significa buscar conhecimentos mais aprofundados sobre ela e fazer bom uso significa saber reconhecer quando e como abri-las. É necessário domínio para escolher quais "caixas pretas" são adequadas às situações e problemas em questão. A perspectiva dos especialistas também pode ser compreendida desta forma, de modo que o estudante utilize os conhecimentos que possui a respeito de um determinado assunto para dialogar com os especialistas.

Outro objetivo operacional refere-se à capacidade do estudante utilizar modelos simples para auxiliá-lo na resolução de problemas, requisito fundamental para a construção do pensamento científico. Saber fazer o bom uso dos modelos interdisciplinares é igualmente fundamental, uma vez que o entendimento sobre situações cotidianas, aspectos econômicos, sociais, éticos e políticos requer informações de diferentes áreas do conhecimento de modo que, ao final, o estudante tenha condições de expressar reflexões, conhecimentos e posicionamentos responsáveis em diferentes contextos. Finalmente, é necessário o desenvolvimento da capacidade de argumentação, incentivando o bom uso da negociação e da articulação na defesa de posicionamentos e decisões, sabendo sempre fazer bom uso de aspectos técnicos, éticos e políticos de acordo com sua necessidade.

Os objetivos apresentados para a Alfabetização Científica e Tecnológica podem ser contemplados de diferentes formas, por meio de estratégias didáticas e temas de estudo variados. Não se pretende que todos os objetivos sejam alcançados com uma única intervenção, mas devem ser compreendidos como aspectos norteadores de um processo formativo mais amplo.

Nesse sentido, a Alfabetização Científica e Tecnológica também pode ser compreendida como um processo que permite alcançar os objetivos educacionais do enfoque Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS). Na pesquisa empreendida por Bocheco (2011) foram estabelecidos parâmetros de alfabetização científica e alfabetização tecnológica com o objetivo de auxiliar o trabalho docente na abordagem de eventos ou temas na perspectiva do enfoque CTS. Partindo de categorias existentes na literatura, Bocheco (2011) estabeleceu quatro dimensões para a Alfabetização Científica: (i) prática; (ii) cívica; (iii) cultural; e, (iv) profissional; e três para a alfabetização tecnológica: (i) prática; (ii) cívica; e, (iii) cultural.

Os parâmetros relacionados à prática, tanto na Alfabetização Científica quanto na Tecnológica, estão voltados para a compreensão de fenômenos naturais, processos e funcionamento de aparatos tecnológicos por meio dos conhecimentos científicos e tecnológicos, utilizando-se dos seus conceitos e linguagem. Nas vertentes culturais, leva-se em consideração aspectos históricos, filosóficos e sociais dos conhecimentos científicos e tecnológicos, discutindo suas naturezas (BOCHECO, 2011).

A Alfabetização Científica Cívica consiste na tomada de decisões, individuais e coletivas, relacionadas a saúde, meio ambiente e bem-estar social, identificando pontos de conflito e contextualizando socialmente o conhecimento científico. Já a Alfabetização Tecnológica Cívica refere-se à contextualização social da tecnologia, identificando possíveis debates relacionados à economia, profissionais, consumidores, ética, valores, etc. A Alfabetização Científica Profissional ou econômica enfatiza a abordagem de conhecimentos científicos mais específicos e complexos, voltados para áreas profissionais e setor produtivo, vislumbrando carreiras profissionais ligadas à Ciência e à Tecnologia (BOCHECO, 2011). Assim, verifica-se que o processo de escolha dos conteúdos e conhecimentos científicos e tecnológicos a serem trabalhados em sala de aula pode ser orientado por situações ou temas que contemplem critérios apresentados por Fourez (1997) e os parâmetros apresentados por Bocheco (2011).

Os objetivos deste trabalho inserem-se nesse contexto. Propõe-se a analisar e discutir as potencialidades do uso de situações amplamente disseminadas em redes sociais e outras plataformas virtuais, para o ensino de química na perspectiva da Alfabetização Científica e Tecnológica. Para isso, será dado enfoque à situação de consumo de uma solução clorada, conhecida pela sigla MMS, da abreviação do termo em inglês miracle mineral solution (solução mineral milagrosa). A solução polêmica promete o tratamento de diversas doenças e tem alcançado adeptos em países como Estados Unidos, Canadá, Espanha, Portugal e, inclusive, Brasil. Após realizar uma busca na internet sobre o MMS, verificou-se que por ser controverso, o uso e a divulgação do MMS envolve tomada de decisões - usar ou não, difundir ou não, legitimar ou não seu uso -, portanto, pode ser abordado no ensino de química como processo de ACT, uma vez que possibilita o estudo acerca de misturas de substâncias e reações químicas.

O Que Dizem ser o Miracle Mineral Solution (MMS)

Uma pesquisa mais abrangente sobre o uso do MMS foi realizada nas plataformas de pesquisa Scielo e Google Acadêmico, nas quais os trabalhos das principais áreas de conhecimento acadêmico são encontrados. É importante destacar que não foram localizados artigos ou textos acadêmicos sobre o uso do MMS. Porém, as informações sobre esse produto, seu histórico e testemunhos dos benefícios de seu uso estão disponíveis em páginas eletrônicas e, também, em livros como A solução mineral mestre do 3º milênio (HUMBLE, 2011), disponíveis em português, inglês e espanhol. Também é possível encontrar dezenas de vídeos sobre o MMS na plataforma Youtube.1

Jim Humble é autor de diversas obras e materiais de divulgação sobre o uso da 'solução milagrosa'. Segundo este autor, a ideia surgiu durante uma expedição em busca de ouro nas selvas da América do Sul, em meados da década de 1990, com a necessidade de ajudar um membro de sua expedição que havia contraído malária. Para tornar a água potável, Humble levava nas expedições oxigênio estabilizado - nome dado por ele ao clorito de sódio -, e o deu ao homem, que, em poucas horas, teria sido curado, despertando sua curiosidade em compreender o que tinha acontecido (HUMBLE, 2011; MMS no Brasil..., 2013). Por meio de suas pesquisas, concluiu que o dióxido de cloro seria o principal responsável pela cura da malária.

O MMS é apresentado como um "fantástico" e seletivo destruidor de "praticamente todos os patógenos" do corpo humano, sendo "o único produto químico conhecido até o momento" (MMS: solução..., 20--?) que possui essa capacidade sem gerar efeitos colaterais. Diante disso, segundo o folheto de informações e procedimentos gerais que acompanha um dos produtos comercializados na internet, o MMS tem sido utilizado para o tratamento de doenças como câncer, diabetes, HIV, malária, asma, artrite, herpes, cândidas, infecções emgeral, autismo, picadas de insetos, alergias, acnes, etc. As explicações sobre seu mecanismo de ação baseiam-se no poder oxidante do MMS, que retira até cinco elétrons das células patógenas, causando micro explosões, provocando aquecimento na região e eliminando-as. Nesse contexto, as células sadias permaneceriam ilesas (MMS no Brasil..., 2013).

O MMS é obtido por meio da mistura de outras duas soluções. Uma das soluções é de clorito de sódio, geralmente em uma concentração de 28%. A outra solução é chamada de ativador, pois seria o responsável por ativar o MMS. É ácida, podendo ser de ácido tartárico, ácido cítrico, ácido acético, ácido clorídrico, ácido sulfúrico ou ácido sulfâmico, dentre outras possibilidades, embora o ácido cítrico seja mais recomendado, por ter sido utilizado na investigação com milhares de pessoas (HUMBLE, 2011). Nas palavras de Humble (2011, p. 12), "[...] a minha sugestão é que use sempre ácido cítrico pois desta forma sabe sempre com o que pode contar - quantos segundos deve esperar e por aí diante. Para quê tentar reinventar a roda quando milhares de outras pessoas já usaram o ácido cítrico e os resultados que obtiveram estão registrados?"

É possível encontrar páginas eletrônicas que comercializam kits para obtenção do MMS. Em geral, o kit é formado por dois frascos, um com solução de clorito de sódio e o outro, comumente, com solução de ácido clorídrico com concentração de 4%. A comercialização do MMS, apesar de proibida na categoria de medicamentos (ANVISA, 2018), é feita há bastante tempo para fins de tratamento de água e para a eliminação de fungos, segundo informações das páginas eletrônicas de divulgação do produto no Brasil (como, por exemplo, MMS no Brasil..., 2013). Esse, inclusive, seria o principal motivo que levou à descoberta das propriedades curadoras do produto: "[...] Jim Humble intuiu que se o MMS servia para matar os patógenos da água, poderá, já que somos cerca de 70% água, para matar os invasores que casam a malária." (MMS: solução..., 20--).

Com intensas críticas às agências de saúde e ao seu aparente abuso do método científico para a autorização da comercialização desses produtos na categoria de medicamentos, a divulgação do MMS acontece principalmente por meio da internet, reunindo comunidades no Facebook e demais redes sociais. Apesar de sua popularidade e fácil aquisição por meio do comércio eletrônico, são vários os riscos de seu consumo à saúde, o que tem sido alertado oficialmente por agências como a Food and Drug Administration (FDA) nos Estados Unidos, Therapeutic Goods Administration (TGA), do Departamento de saúde do governo australiano e a Autoridade de Segurança Alimentar e Econômica do governo português. No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) também se manifestou em abril de 2019 por meio de vídeo institucional intitulado 'Dióxido de cloro não é medicamento'.1

Diante do exposto, verifica-se que a divulgação e o uso do MMS é uma realidade em diversos países, ampliada pelo uso da internet, e que pode trazer sérios prejuízos à saúde. Constitui-se, assim, uma situação atual e que pode ser mais bem avaliada por meio de conhecimentos científicos. Desta forma, tem-se a hipótese de que se trata de um tema com potencial para o trabalho nas aulas de química da educação básica.

Caminhos Metodológicos

Para discutir como as situações em torno do contexto apresentado na seção anterior podem se constituir como uma temática em sala de aula foram estabelecidos os critérios de análise com base na perspectiva da Alfabetização Científica e Tecnológica.

Além dos parâmetros propostos por Bocheco (2011), apresentados na introdução, foram utilizados os nove critérios elaborados por Milaré, Richetti e Alves-Filho (2011) para avaliar informações em correntes de e-mail e suas potencialidades para promoção da Alfabetização Científica Tecnológica no Ensino de Química, apresentados a seguir.

Fonte: adaptado de Milaré, Richetti e Alves-Filho (2011, p. 7).

Quadro 1 Critérios de análise da potencialidade no desenvolvimento da Alfabetização Científica e Tecnológica 

A pesquisa possui caráter teórico, e a análise realizada é de natureza qualitativa (FLICK, 2009), apresentada e discutida a seguir, buscando relacionar, para cada um dos critérios, possibilidades para as aulas de química.

Da Internet para as Aulas de Química

Logo nos primeiros contatos com as informações da divulgação do MMS, um dos aspectos que mais chama a atenção é sua validade científica. A proposta de consumo de uma substância para cura de diversas doenças e sem efeitos colaterais suscita questionamentos sobre os estudos que foram realizados, sob quais condições, quais os principais resultados obtidos e os possíveis efeitos desses resultados para a população. Para a discussão dessas questões, é imprescindível discutir as compreensões de Ciência e de Tecnologia e de seus propósitos, impactos e limitações à sociedade, favorecendo uma avaliação crítica sobre a divulgação e uso do MMS com finalidades terapêuticas, e se isso resulta ou não do desenvolvimento científico e tecnológico. Essas premissas contemplam o desenvolvimento dos objetivos humanistas, o primeiro critério de análise, que também se aproxima da Alfabetização Científica e Tecnológica Cultural (BOCHECO, 2011), porque permeia a discussão acerca da Filosofia e Sociologia da Ciência e da Tecnologia, seus valores, normas e sua epistemologia.

Outras discussões podem levar a avaliação de opiniões e comentários sobre o MMS publicados em páginas da internet. Por exemplo, os comentários a seguir foram encontrados na plataforma Youtube, em fevereiro de 2019, sobre um dos vídeos de divulgação do MMS. Os nomes dos usuários são fictícios.

Juliana: MMS não tem nenhum trabalho científico respaldando esse produto. Desafio qualquer pessoa a me mostrar um papers [sic] sobre isso.

Rodrigo: O fato da maioria dos remédios de farmácia terem [sic] as pesquisas falseadas pelo interesse econômico não faz o MMS ter valor nenhum, mesmo que a indústria farmacêutica não tivesse uma pesquisa, o que é inverdade, isso não tornaria o MMS bom.

Alex: Evidências falseadas pelo interesse econômico como até mesmo você reconhece. A medicina alopática só reconhece como válido um medicamento que tenha sido testado em animais, sem sofrimento provocado deliberadamente a "ciência" não avança. E quando estes medicamentos começam a matar, alguns são retirados do mercado e outros não, nenhum médico pede desculpas aos seus pacientes ou parentes.

Miguel: NO SÍTIO DA UNICAMP tem um estudo apresentado pela universidade QUE FOI ENCOMENDADO pelo governo para saber qual o melhor tratamento de água do volume morto na época da seca. É um PDF e ele informa que a mistura de clorido [sic] de sódio ativado com ácido cítrico que irá formar o DIÓXIDO DE CLORO que revelou-se o melhor agente SANITIZADOR de água para consumo humano. Detalhe supera todos os métodos de purificação de água conhecidos. A descoberta do Dióxido de cloro que seria para purificar agua da natureza para beber, também limpa a água do corpo humano a medida que você vai bebendo dado ao fato de ser realmente pura, livre e leve. Por esse motivo é que estão chamando a água purificada com Dióxido de Cloro de água miraculosa, ou em inglês MMS (mineral miracle solution). Trata-se de uma descoberta ao acaso e que A INDÚSTRIA DA SAÚDE NÃO QUER DIVULGAR. [grifo do autor].

Há comentários que expressam a desconfiança de algumas pessoas em relação à eficácia do produto, enquanto outras acreditam não ser de interesse da ciência a descoberta da cura para diversas doenças, por se tratar de uma forma de enriquecimento da indústria farmacêutica. Nesse contexto, as compreensões de Ciência e Tecnologia podem ser problematizadas e, a partir disso, conduzir a um entendimento sobre os meios de participação da população em questões científicas e tecnológicas, inclusive auxiliando na identificação - e, por que não, na fiscalização - da divulgação e comercialização de produtos não regulamentados. Isso atende ao segundo critério, o desenvolvimento dos objetivos sociais, ao mesmo tempo em que contribui para a promoção da Alfabetização Científica e Tecnológica Cívica. Segundo Bocheco (2011, p. 134), essa perspectiva pode ser contemplada, em termos tecnológicos, por meio da identificação de "[...] debates existentes 1) entre a tecnologia e as atividades econômica e industrial [...]" e, "[...] 2) entre a tecnologia e as atitudes responsáveis de profissionais (engenheiros, tecnólogos), usuários e consumidores [...] sobre os valores, códigos de ética, hábitos e crenças de progresso, tendências de estética e beleza que permeiam a atividade tecnológica [...]". Além disso, identificando "regulamentações, normas e padrões de qualidade tangentes a circulação de produtos tecnológicos" (BOCHECO, 2011, p. 124).

Nota-se, nos comentários apresentados anteriormente, um possível sentimento de impotência frente aos médicos e à indústria farmacêutica que estariam contrários ao bem-estar da população em prol de interesses econômicos. A teoria de que existe um controle governamental e das empresas sobre os tipos de medicamentos aos quais a população pode ter acesso, devido a fins lucrativos, também foi utilizada para interpretar a postagem do alerta sobre o MMS do Ministério da Saúde Português na página eletrônica de uma empresa privada de segurança alimentar1. Por que um produto que supostamente faria bem à saúde pública estaria sendo ignorado pelos estudos científicos e órgãos governamentais? Essa questão introduz, na abordagem do tema, aspectos políticos e econômicos, abrangendo o terceiro critério de análise, conforme exemplificado nos comentários a seguir, encontrados em fevereiro de 2019:

Filipe: Pois é, a indústria farmacêutica está em polvorosa, o MMS veio pra ficar e governo nenhum vai impedir que nós usemos essa solução milagrosa mais científica.

Sofia: Verdade? Porque se todos souberem os benefícios a indústria farmacêutica e médica deixa de faturar bastante né? Não acreditem, realmente faz bem e é solução para doenças como artrite, altismo, Alzeimer [sic] e câncer!

Cláudia: A verdade vem à tona. A indústria farmacêutica junto com a OMS saem [sic] em combate às terapêuticas baratas e curativas, pois há interesse em manter a população doente. Primeiramente, devido a um controle populacional velado e, simultaneamente, com o interesse econômico de se vender remédios caros. A medicina contemporânea que nos é imposta é uma fraude. Médicos programados para receitar remédios, sem examinar, em troca de benefícios das empresas farmacêuticas, viciaram a medicina atualmente praticada. A verdade vem através dos médicos alternativos, que não se sujeitaram ao capitalismo e a mentiras [sic] do mundo.

Ricardo: Indústria farmacêutica deve ter comprado vocês, né? Uso e só me faz bem. Anteontem fui mordida pelo meu gato e passei, em questão de horas obtive melhora. Além de eliminar vários parasitas com o uso do enema. Só que é algo barato... E não dá lucro, né? Enquanto isso há milionários que lucram com quimioterapia e outros que vcs [sic] sabem... E quem depende do SUS morre aguardando ser atendido.

As informações sobre o MMS demandam dos leitores, principalmente daqueles que estão sofrendo com alguma enfermidade e buscando tratamento, a tomada de decisão sobre sua aquisição e uso, além da manutenção de sua viralização nas redes sociais. De uma forma mais coletiva, a exigência de políticas públicas que incentivem a pesquisa sobre propriedades e usos das substâncias, que amplie e democratize o acesso à saúde e que regularizem e fiscalizem a comercialização de produtos também é uma ação possibilitada por pelo desenvolvimento da autonomia. Trata-se de decisões relacionadas com saúde, bem-estar social e meio ambiente. Cabe, no entanto, ressaltar que se almeja a tomada de decisões racionalizadas e fundamentadas em conhecimentos científicos e tecnológicos, aproximando da perspectiva da Alfabetização Científica Cívica, que é possibilitada pela identificação de "[...] pontos de conflito e discussão que permitam os estudantes contextualizarem socialmente os conceitos científicos, elementos da linguagem científica e aspectos sócio-científicos." (BOCHECO, 2011, p. 131).

A autonomia só é possível diante do saber-fazer e do poder-fazer, o que, no caso do MMS, implica o domínio de conhecimentos (quinto critério) sobre as causas das doenças e forma de tratamento, propriedades das substâncias e seu impacto no organismo. No comentário de Miguel, por exemplo, verifica-se que ele, de alguma forma, e talvez provocada pelo primeiro comentário, buscou informações sobre o MMS com respaldo científico, referindo-se à Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). No entanto, a falta de domínio de conhecimentos acerca dos diferentes contextos, variáveis e complexidade de processos envolvendo a água utilizada para tratamento e consumo e a água presente no corpo humano, gera interpretações equivocadas sobre o impacto da substância em distintas circunstâncias. Esse exemplo ilustra a necessidade do bom uso das traduções (FOUREZ, 1997), pois as explicações dadas em um determinado contexto não podem ser simplesmente transpostas para outros contextos sem uma análise do 'poder-fazer'.

O desenvolvimento da comunicação, sexto critério, perpassa toda a situação em análise, da divulgação do MMS até o diálogo necessário para incluir a perspectiva científica sobre as propriedades e impactos do uso do produto. Assim, durante todo o processo de problematização e análise da divulgação e uso do MMS, a comunicação se faz necessária em diferentes perspectivas (científica, senso comum e pseudociências), entre diferentes sujeitos (idealizadores, usuários, médicos, estudantes, professores e cientistas), em diferentes ambientes, virtuais ou não (redes sociais, e-mail, sala de aula, etc.).

A compreensão de todo o contexto envolvendo o MMS e outros compostos para fins medicinais demandam conhecimentos químicos sobre substâncias, misturas, reações químicas, concentração, estrutura molecular, propriedades, estequiometria e ácidos, contemplando o critério sete. Inicialmente, é necessário entender o que é dióxido de cloro, como é formado pela mistura comercializada, quais suas propriedades e concentração nas misturas aquosas sugeridas nos protocolos de uso. Para além da química, conhecimentos sobre o impacto da substância no organismo, fisiologia humana, mecanismos e causas das doenças para as quais supostamente o MMS seria indicado também contribuem para uma compreensão mais ampla sobre a situação em estudo, abrangendo a Biologia e a Medicina. O conhecimento das normas legais e do funcionamento de órgãos fiscalizadores também subsidia a avaliação dos conhecimentos apresentados na divulgação do MMS, bem como de quaisquer outros produtos a que sejam atribuídas propriedades terapêuticas1. Desta forma, verifica-se a possibilidade da abordagem interdisciplinar do tema (oitavo critério), além do desenvolvimento da Alfabetização Científica e Tecnológica Prática (BOCHECO, 2011), que pode ser abordada por meio da identificação de conceitos científicos e elementos da linguagem científica e tecnológica que permitam entender, no caso, o próprio MMS e os fenômenos relacionados ao seu uso.

Acerca do nono e último critério, relação com a realidade ou cotidiano dos estudantes, é possível considerar os seguintes aspectos: a divulgação do MMS é feita, principalmente, por meio da internet, em redes sociais, plataforma de vídeo e blogs, ferramentas amplamente utilizadas pelos estudantes dos diferentes níveis de ensino; as dificuldades de acesso à saúde pública de qualidade, como, por exemplo, demora no agendamento de consultas ou exames médicos, muitas vezes, leva as pessoas - inclusive os estudantes - a buscarem informações sobre tratamento de doenças com colegas, familiares ou na internet, o que pode levar, eventualmente ao MMS ou produto similar.

Deste modo, trata-se de uma situação acessível e de impacto imediato - a saúde.

Considerações Finais

A disseminação de informações sobre o MMS e seu milagre terapêutico constitui uma situação-problema real que pode suscitar discussões éticas, sociais e científicas sobre a confiabilidade deste produto. O contexto envolvendo o MMS caracteriza-se como um tema CTS e, desta forma, avaliamos a existência de potencialidades para o desenvolvimento de propostas de ensino orientadas pela Alfabetização Científica e Tecnológica nas aulas de Química do Ensino Médio. É importante destacar que a abordagem da situação-problema, por si só, não é suficiente para contemplar os objetivos da Alfabetização Científica e Tecnológica, sendo necessárias metodologias de ensino e recursos didáticos compatíveis com abordagens investigativas e dialógicas, que também auxiliem no desenvolvimento da argumentação, além dos conteúdos curriculares.

Conforme apontamos anteriormente, uma quantidade significativa de conteúdos estudados em Química na Educação Básica pode subsidiar a investigação sobre o uso do MMS, além das múltiplas possibilidades de recursos didáticos, tais como experimentação, textos de jornais, redes sociais, blogs e vídeos. Desta forma, a abordagem dessa temática não desconsideraria os currículos escolares, mas possibilitaria o desenvolvimento de propostas investigativas, com potencial para despertar interesse dos estudantes e, ainda, poder auxiliar no combate à disseminação de notícias falsas.

Em uma época em que a Ciência tem sido negligenciada por muitos grupos sociais, a exemplo dos terraplanistas e dos movimentos antivacina, pesquisas teóricas como esta, que fundamentam propostas de ensino em sala de aula, fazem-se necessárias. Trazendo à tona os possíveis impactos para a saúde e para o meio ambiente, busca-se com isso combater campanhas acientíficas de forma crítica e participativa, e não de forma dogmática, como são difundidas, muitas vezes, as pseudociências e as fake news.

1Alguns desses vídeos estão disponíveis em: https://www.youtube.com/results?search_query=MMS. Acesso em: 14 maio 2019.

1Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=P0M45v6Artg. Acesso em: 3 abr. 2020.

1A discussão pode ser estendida para outros produtos como, por exemplo, o MMS-2, que é uma solução de hipoclorito de cálcio.

Referências

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Recebido: 24 de Maio de 2019; Aceito: 07 de Setembro de 2019

Autora correspondente: tmilare@ufscar.br

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