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Ciência & Educação

Print version ISSN 1516-7313On-line version ISSN 1980-850X

Ciência educ. vol.26  Bauru  2020  Epub Nov 03, 2020

https://doi.org/10.1590/1516-731320200062 

Artigo Original

Contextualização no Ensino de Química: conexões estabelecidas por um professor ao discutir uma questão do ENEM em sala de aula

Contextualization in Chemistry Teaching: connections established by a teacher when discussing a High School exam question in the classroom

1Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Faculdade de Educação, Belo Horizonte, MG, Brasil.


Resumo:

Neste artigo analisamos como um professor de Química estabeleceu relações intercontextuais junto a estudantes do 3° ano do Ensino Médio enquanto discutia uma questão do Exame Nacional do Ensino Médio. Para isto, apresentamos e analisamos interações discursivas professor-estudantes que ocorreram durante uma aula, apoiados no constructo intercontextualidade. A mobilização de diferentes níveis contextuais por parte do professor, considerando o discurso dos estudantes, aponta formas de como promover a contextualização na sala de aula a partir da interação. Além disso, discutimos como contextualizar o ensino assumiu significados distintos na prática do professor, o que ampliou as potencialidades do contexto instrucional inicialmente proposto na questão em discussão. Por fim, indicamos implicações da contextualização em interação para a prática pedagógica e contribuições deste estudo para a ampliação da literatura da área de Educação em Ciências.

Palavras-chave: Ensino de química; Intercontextualidade; Contextualização do conteúdo; Interação discursiva

Abstract:

In this paper we analyse how a Chemistry teacher established inter-contextual relationships with students of the 3rd grade of High School while discussing a question from Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) - the Brazilian High School Exam. Supported by the construct of inter-contextuality, we present and investigate teacher-student discursive interactions that occurred during a lesson. The teacher’s mobilization of different levels of contexts, taking into account students’ discourse, indicates ways on how to promote contextualization in the classroom from interaction. In addition, we discuss how contextualizing teaching took on different meanings in the teacher's practice, which expanded the potential of the instructional context initially proposed in the question under discussion. Finally, we indicate implications of contextualization in interaction to pedagogical practice, and the contributions of this study to the literature on science education.

Keywords: Chemistry teaching; Inter-contextuality; Contextualization of content; Discursive interaction

Introdução

É crescente a demanda por atividades e currículos de Ciências capazes de envolver estudantes em questões contemporâneas e socialmente relevantes (BRICKER; REEVE; BELL, 2014; CONRADO; NUNES-NETO, 2018). Diversas vivências de dentro e fora do ambiente escolar que podem ser articuladas ao cotidiano de salas de aula poderiam ser consideradas na formação científica escolar. Contudo, apesar do incentivo a esse tipo de prática, principalmente pelos programas de formação de professores, essa é uma estratégia de ensino pouco presente nas aulas de Ciências, tendo em vista os currículos e as práticas tradicionais ainda vigentes (PADERNA; YANGCO; FERIDO, 2019), além de sua complexidade.

No ensino de Química, especificamente, vários desafios são enfrentados. Dentre eles, Gilbert (2006) destaca a sobrecarga do currículo, em termos de uso de conceitos e princípios científicos e a própria natureza da "linguagem química". Esta ênfase é dada porque, para o autor, tanto a natureza dessa Ciência quanto sua linguagem própria devem ser aprendidas e usadas pelos estudantes de modo que eles possam compreender conceitos químicos a partir de contextos mais próximos de sua realidade e em uma perspectiva mais ampla. Além disso, Gilbert afirma que muitos estudantes vivenciam as disciplinas científicas de forma instrumental, como um pré-requisito para cumprir etapas obrigatórias da escolarização ou se preparar para algo em que eles realmente estão interessados. Tais desafios têm se refletido em propostas que estimulam a contextualização do que se ensina (BENNETT; LUBBEN; HOGARTH, 2007).

Para Gilbert (2006), contextualizar tem sido uma alternativa que visa tornar o currículo articulado às vivências dos estudantes, tratando os conhecimentos científicos não como fatos isolados, mas como ferramentas cognitivas para pensar e agir sobre o mundo natural e social. Mais especificamente, Gilbert explica que um contexto deve fornecer um significado estrutural coerente para algo novo, definido em uma perspectiva mais ampla. Quando isso ocorre no ensino de Química, são favorecidas circunstâncias em que os estudantes atribuem significado à aprendizagem deste campo disciplinar e podem reconhecer sua relevância em algum aspecto de suas vidas.

Além disto, Gilbert (2006) entende que usar “contexto” como o elemento estruturador do currículo e de aulas pode ser uma das maneiras centrais de lidar com vários desafios contemporâneos na área de Educação em Ciências. Nesse sentido, contexto deve ser usado visando: (i) simplificar e/ou reduzir os conteúdos presentes no currículo a partir da identificação de conceitos chave e do foco na discussão de contextos que os exemplificam; (ii) prover uma base para o desenvolvimento, por parte dos estudantes, de algo como um “mapa mental” de relações entre conceitos; (iii) ampliar a probabilidade de que conceitos ensinados em um dado contexto sejam transferidos para a compreensão de outros contextos; e (iv) desenvolver um senso de pertencimento em relação ao que está sendo aprendido, contribuindo para um maior engajamento dos estudantes na aprendizagem.

Apesar de alguns avanços relacionados aos objetivos acima mencionados (GILBERT, 2014), pesquisadores têm questionado o modo superficial e difuso com que contextos têm sido tratados em processos de ensino (RAJALA et al., 2016; WIIG; SILSETH; ERSTAD, 2018). Alguns autores reconhecem que há uma série de desafios conceituais e metodológicos para a construção de conexões entre os contextos dos estudantes e o contexto instrucional da Ciência escolar (BRONKHORST; AKKERMAN, 2016).

Um desses desafios é a mudança na compreensão do significado de contextualização que, na maioria das vezes, está limitada à aplicação da Ciência à vida cotidiana. Em grande parte, esse tipo de noção tem como base a ideia de que conhecimentos oriundos do cotidiano do estudante dão sentido ao que se ensina, e que a utilidade prática do conhecimento científico oferece garantias ao processo de aprendizagem. Porém, a utilização do conhecimento científico escolar e suas relações com o cotidiano é algo mais complexo do que uma mera aplicação por sobreposição (GUTIERREZ, 2014), o que torna este argumento muito limitado para sustentar os objetivos da Educação Científica no século XXI (MILLAR, 2003). Professores e estudantes vivem diferentes experiências em suas famílias e círculos de amizades, têm acesso a uma infinidade de informações e se relacionam uns com os outros por meios diversos (BLOMMAERT; BACKUS, 2011). Assim, membros de uma turma vivem em um mundo constituído por significados translocais (BLOMMAERT, 2015) e constroem repertórios materiais, sociais e intelectuais diversos (BRICKER; REEVE; BELL, 2014).

Outro desafio é proporcionar a valorização dos contextos na Educação Científica, seja em documentos curriculares ou no desenvolvimento de propostas didáticas em sala de aula de modo a oportunizar a participação de todos os sujeitos nela presentes. Grande parte da literatura apresenta contextos dados pelos professores aos estudantes, existindo poucas indicações sobre como contextos são gerados pelos próprios estudantes (PADERNA; YANGCO; FERIDO, 2019). Por outro lado, nos currículos prescritos, contextualização é definida previamente por aquilo que "não-estudantes" imaginam que seja o cotidiano de estudantes (COSTA; LOPES, 2018). Assim, conexões nem sempre são efetivas e, em determinadas situações, podem se tornar uma forma de restrição da participação ativa dos membros de cada turma. Sobre este aspecto, Franco e Munford (2020) afirmam ser necessário avançar nas discussões sobre o que significa um ensino contextualizado, tendo em vista aquilo que, de fato, acontece no cotidiano das salas de aula.

Ainda sabemos pouco sobre como relações intercontextuais são construídas em espaços de interação nas aulas de Ciências (FRANCO; MUNFORD, 2018). Isto implica que, para além de planejamentos ou documentos oficiais que considerem os contextos de estudantes, é relevante compreendermos como diferentes contextos são mobilizados em interações nas salas de aula (FRANCO; MUNFORD, 2020; WIIG; SILSETH; ERSTAD, 2018). Vivências de diferentes contextos emergem neste espaço interacional e constituem parte importante das oportunidades de aprendizagem de Ciências.

No presente artigo, buscamos investigar como um professor de Química do 3º ano do Ensino Médio estabelece relações intercontextuais em interações discursivas professor-estudantes durante a resolução de uma questão do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Essa forma de contextualização, denominada em interação (FRANCO; MUNFORD, 2020), pode gerar novos conhecimentos sobre como diferentes contextos são considerados em sala de aula e articulados nos processos de ensino e aprendizagem de Ciências.

Referencial Teórico

Buscando delinear as noções de contextualização que orientam esta pesquisa, nos voltamos para um construto anterior, necessário a esta compreensão: a noção de contexto. Como discutido por Goodwin e Duranti (1992), não é possível definir, de modo simples e técnico, o significado de contexto. Diferentes áreas das Ciências Humanas buscam definir e utilizar esse construto, o que se reflete em uma diversidade teórica e metodológica dos trabalhos nessa área. Apesar disso, tais autores apontam uma noção mais ampla e compartilhada por diferentes áreas do conhecimento. Assim, tem-se "contexto como uma justaposição fundamental entre duas entidades: (1) um evento focal; e (2) um campo de ação no qual este evento está envolvido" (GOODWIN; DURANTI, 1992, p. 3).

A partir desta compreensão mais ampla e amparado por estudos da área da Linguagem, Franco (2018) apresenta uma imagem (figura 1) que é útil para esclarecermos as noções de contexto e contextualização utilizadas no presente estudo. Na imagem, o objeto de análise, a esfera menor, está imerso no contexto dos fenômenos investigados, a esfera maior. O octaedro, por sua vez, representa diferentes possibilidades de enquadres teórico-metodológicos. Dessa forma, contexto poderia ser definido e utilizado de diferentes formas

Fonte: Adaptada de Franco (2018, p. 47).

Figura 1 Uma forma de compreender contexto a partir de estudos da área da Linguagem 

Como discutido por Franco e Munford (2018), esta diversidade se materializa no uso do construto contexto de diferentes formas em estudos da área de Linguagem, por exemplo, como um conjunto de características situacionais de um evento local (GOFFMAN, 1967; GUMPERZ, 1982), nas interações sociais que constituem o uso da linguagem (BAKHTIN, 1988; VYGOTSKY, 2007), ou no papel de relações de poder em um evento (FAIRCLOUGH, 1992; GEE, 1990). Cada uma dessas perspectivas representa uma possível face do octaedro. As faces ocupam diferentes lugares no espaço, implicando construir visões limitadas por essas filiações distintas. Assim, analisar um fenômeno a partir de certa posição gera compreensões de uma determinada perspectiva sem a possibilidade de contemplar as esferas em sua completude.

Além disso, as faces delimitam as esferas. O alinhamento a cada filiação teórico-metodológica implica optar por construir determinada visão do objeto de estudo, e não a verdade sobre o fenômeno. Desse modo, a esfera maior não significa o contexto real do fenômeno, mas os significados que as pesquisas estão construindo sobre o que é contexto. Apesar das diferenças nas noções de contexto e das implicações de tais diferenças, a imagem possui arestas pontilhadas. Isso indica que limites entre cada filiação não são absolutamente estáveis, podendo haver aproximações. Entendemos, então, que há possibilidades de diálogo entre diferentes perspectivas.

Partindo dos pressupostos representados na figura 1, construímos noções de contexto que dialogam com estudos das áreas da Linguagem e Educação. Tendo em vista que as interações discursivas em sala de aula são o objeto de nossa análise (BLOOME et al., 2008; BLOOME; GREEN, 1982), buscamos olhar o contexto das interações considerando:

O caráter histórico do contexto. Isto significa reconhecer que acontecimentos do passado, do presente e do futuro estão conectados no fluxo de acontecimentos vivenciados em sala de aula (BLOOME et al., 2008).

  • - As relações intercontextuais. Nesta perspectiva, os contextos são interativos. Professores e estudantes constroem, por meio de interações discursivas, "relações entre eventos e contextos" (BLOOME et al., 2009, p. 319) que afetam uns aos outros. Os membros da sala de aula evocam tais relações, o que gera implicações sobre o que está acontecendo no presente, estando este processo articulado ao papel de diferentes níveis contextuais.

  • - Os múltiplos níveis contextuais de uma interação. Tais níveis correspondem a diferentes "camadas" do contexto, desde elementos mais locais, até elementos translocais (BLOOME; GREEN, 1982).

Desse modo, entendemos que a análise do processo de contextualização em sala de aula demanda considerar o que acontece nesse espaço em relação a outros acontecimentos com múltiplos níveis contextuais. A discussão de Bloome e Green (1982) sobre os múltiplos níveis de contexto ajuda a compreender essas relações e nos fornece elementos orientadores para a análise neste estudo. Estes autores consideram os processos de ensino e aprendizagem contexto-dependentes, isto é, como processos que devem ser analisados à luz dos diversos níveis contextuais que constituem a sala de aula. Tais níveis podem ser caracterizados a partir de elementos micro contextuais (ou locais) e de elementos macro contextuais (ou translocais).

Os elementos que caracterizam o contexto micro (local) referem-se a aspectos próprios de cada turma, relacionados às contingências interacionais e cotidianas de um grupo social. Bloome e Green (1982), citam, por exemplo, o contexto instrucional, que se refere às tarefas que o professor propõe para serem desenvolvidas pelos estudantes. Outro contexto se refere a aspectos mais amplos do que uma tarefa específica. O conjunto de atividades desenvolvidas ao longo do tempo e suas relações com a aprendizagem constituem o contexto estrutural. Por outro lado, as orientações pedagógicas, que norteiam o modo como o professor de uma turma desenvolve as aulas constitui o contexto temático. Nesses casos, observamos características que vão além do papel de uma atividade específica em sala de aula, mas que ainda dizem respeito à caracterização local de cada turma.

Os elementos mais globais do contexto (translocais) referem-se a aspectos que ultrapassam as paredes de uma sala de aula, mas que também interpelam os processos de ensino e aprendizagem que ali ocorrem. Um exemplo é o contexto institucional que se refere a práticas institucionalizadas da escola em que a turma está inserida e aos elementos prescritos por documentos curriculares. Tais aspectos criam demandas que vão além de uma única sala de aula, mas que têm influência sobre o que acontece nos contextos locais. De forma semelhante, outros elementos macro contextuais também se articulam. Alguns exemplos são o contexto comunitário, relacionado às características da comunidade em que a escola está inserida, e os contextos social e cultural, relacionados a fatores como estratificação social, questões de raça, relações de gênero, crenças religiosas, influências políticas etc.

A partir de tais noções, indicamos que a contextualização, em nossa compreensão, significa estabelecer relações intercontextuais. Nesse sentido, ela é algo que vai além do ensino de Ciências e se refere às formas como nós, em diferentes espaços de nossa vida cotidiana, estabelecemos relações entre contextos. No caso da sala de aula, especificamente, a intercontextualidade refere-se às formas com as quais professores e estudantes criam, de forma interativa, conexões entre eventos e diferentes contextos (BLOOME et al., 2009). Desse modo, caracterizamos a contextualização como algo que acontece em interação (FRANCO; MUNFORD, 2020).

As propostas de Bloome e Green (1982) sobre níveis de contexto foram utilizadas neste artigo para orientar as análises. No entanto, indicamos que não foi nossa intenção simplesmente categorizar cada contexto identificado nas interações analisadas, tendo em vista que essas não são categorias fixas ou isoladas, mas se configuram como múltiplas e interativas. Antes, as propostas de níveis de contexto orientaram nosso olhar para as interações e, a partir delas, buscamos construir interpretações sobre o modo como um professor de Química estabeleceu relações intercontextuais junto a estudantes em uma sala de aula. Para isso, desenvolvemos análises para responder duas questões de pesquisa:

  • - Como um professor de Química estabeleceu relações intercontextuais ao discutir uma questão do ENEM com uma turma de estudantes do Ensino Médio?

  • - Quais significados o processo de contextualização do ensino assumiu na prática deste professor?

Aspectos Metodológicos

Contexto da Pesquisa

As interações analisadas neste artigo aconteceram em uma aula de Química de uma turma do 3° ano do Ensino Médio em uma Escola da Rede Estadual situada no Sudeste do Brasil, no segundo semestre de 2018. A turma era constituída de 36 estudantes com idade entre 16 e 18 anos. O professor de Química da turma, Filipe1, possuía dois anos de experiência docente no Ensino Médio, sendo um ano e meio na referida escola. Filipe é formado em Química Licenciatura, possui Mestrado em Educação na área de Educação em Ciências e, naquele período, cursava o Doutorado, na mesma área.

A aula selecionada para a análise ocorreu em um projeto interdisciplinar envolvendo as disciplinas Química e Física. O projeto se desenvolveu a partir de um trabalho conjunto dos professores destas disciplinas sobre o conteúdo científico curricular Eletricidade, a partir do qual os estudantes produziram modelos de pilhas e baterias para apresentá-los em uma Feira de Ciências na própria escola.

Nas aulas de Química, o professor trabalhou o conteúdo científico curricular relativo à Eletroquímica ao longo de oito aulas. As duas primeiras aulas envolveram a exposição de aspectos teóricos sobre reações de oxirredução e foram seguidas de outras duas aulas nas quais a turma discutiu e resolveu questões sobre tal conteúdo. Estas aulas foram baseadas na resolução prévia pelos estudantes de uma lista de questões extraídas de provas do ENEM. Nas duas aulas seguintes, o professor discutiu o funcionamento e tipos de pilhas e baterias, finalizando o conteúdo com outras duas aulas de discussão de exercícios diversos. Por fim, a Feira de Ciências ocorreu na semana seguinte à ultima aula.

Processos de Coleta, Construção e Análise dos Dados

Este estudo foi orientado por princípios da pesquisa qualitativa (LINCOLN; GUBA, 1985). Os dados que utilizamos foram coletados por meio de registro em vídeo de interações discursivas entre professor e estudantes. Nesse processo de coleta de dados, nos orientamos pelos princípios éticos da pesquisa qualitativa com seres humanos, que prezam pelo respeito e bem estar do participante (SPRADLEY,1980). Para construir os dados aqui analisados, selecionamos as interações da terceira aula sobre Eletroquímica devido às suas potencialidades para análise das relações intercontextuais em sala de aula.

Nesta aula, o professor discutiu e resolveu com a turma uma questão do ENEM do ano de 20142, cuja temática geral era o processo de oxirredução sofrido pelo elemento químico Nitrogênio quando em diferentes espécies no Ciclo Biogeoquímico, representado em um diagrama (figura 2). As potencialidades dessa discussão foram observadas a partir de dois aspectos: (i) o contexto instrucional em si, caracterizado pelos elementos fornecidos pela questão do ENEM; e (ii) o modo como diferentes níveis contextuais foram mobilizados pelo professor ao discutir a questão com os estudantes.

Fonte: adaptada de INEP (2014, p. 22).

Figura 2 Questão discutida e resolvida durante a aula 

Com relação ao primeiro aspecto, observamos elementos presentes no texto da questão com potencial para gerar uma discussão contextualizada. O processo de oxirredução, conteúdo canônico do ensino de Química, foi tratado a partir de uma prática social relevante: o uso de fertilizantes na agricultura. Apesar de a contextualização ser uma das orientações dos documentos que norteiam a construção da prova (INEP, 2009), pesquisas (por exemplo, STADLER; HUSSEIN, 2017) têm indicado que, em geral, ela só aparece para exemplificar os contextos sociais, econômicos e ambientais das Ciências da Natureza. Assim, o estudante não precisa ponderar as implicações destes contextos para responder à questão, apenas dominar os conteúdos científicos curriculares.

Nesse sentido, apontamos o papel do professor em sala de aula. Este é o segundo aspecto que nos levou a selecionar a discussão desta questão para uma análise mais detalhada. Observamos que o professor explorou diversas temáticas além daquelas fornecidas no texto da questão, mobilizando diferentes níveis contextuais a partir de desdobramentos dessas temáticas, e propondo reflexões sobre possíveis implicações dos assuntos tratados.

O mapeamento gerado por meio do software NVivo12 Pro (figura 3) oferece uma visão holística dessa diversidade temática, o que, a princípio, dirigiu nosso olhar para tais interações.

Fonte: adaptada de Oliveira, Santos e Justi (2019, p. 27).

Figura 3 Temáticas apresentadas pelo professor ao longo da discussão e resolução da questão do ENEM3  

Conforme indicado na figura 3, o professor introduziu e utilizou as temáticas de forma alternada e estas foram relacionadas às etapas I a V representadas no diagrama da questão, algo que não foi feito no texto da questão (figura 2). Isto nos deu evidências de que as interações investigadas não estavam relacionadas apenas ao processo de resolver a questão e encontrar a resposta certa. Se fosse assim, o professor poderia ter ajudado os estudantes a resolver a questão em poucos minutos, verificando a variação do número de oxidação do Nitrogênio nas espécies nitrogenadas do esquema, ou apresentando o conceito de desnitrificação. Entretanto, o professor explorou temáticas diversas, presentes ou não no texto da questão, gerando desdobramentos que mobilizaram elementos contextuais de diferentes níveis e suas implicações. Dessa forma, entendemos que o professor ampliou as oportunidades de contextualização que a questão oferecia.

Como nosso interesse foi compreender esses processos de contextualização em interação, a discussão selecionada foi transcrita, palavra a palavra. Utilizamos o software Windows Media Player para reproduzir o vídeo e, simultaneamente, o software Word, para a escrita do conteúdo da interação. Selecionamos duas partes desta transcrição nas quais observamos maior diversidade de níveis de contextos (BLOOME; GREEN, 1982) na discussão. Fizemos, então, uma nova transcrição dos trechos selecionados, utilizando sinais verbais e não verbais propostos por Gumperz (1982) 4. Assim, buscamos dar maior visibilidade à forma da interação. A partir desses dados interacionais, caracterizamos o modo com o qual o professor interagia com os estudantes e estabelecia relações intercontextuais, além de construirmos inferências sobre os significados do processo de contextualização na prática deste professor. 

Resultados e Discussões

Primeira interação: discutindo os fertilizantes

A primeira interação analisada (apresentada no quadro 1) ocorreu imediatamente após a leitura da questão do ENEM com a turma (03’14’’ a 07’25’’ do vídeo). Conforme indicamos, o texto da questão fazia referência a fertilizantes nitrogenados, assunto explorado pelo professor nesta discussão.

Quadro 1 Trecho 1 da primeira interação discursiva professor-estudantes 

Linha Falante Discurso
1 Professor Esses fertilizantes I a gente conhece eles como o quê I no dia a dia ↑
2 Fred Adubo I
3 Professor Adubo I Professor escreveu no quadro a palavra adubo.
4 Iza Ó+
5 Professor Adubos I Mas são só os adubos que são fertilizantes ↑
6 Estudantes Não I
7 Professor Têm outras coisas né ↑
8 Rod Aham I
9 Professor Tipo I esterco ▲ I O professor sinalizou uma contagem com os dedos.
10 Nino Esterco não é adubo não ↑
11 Professor É um tipo de adubo I mas I quando eu estava pensando em adubo I eu estava pensando naquele que a gente compra lá na I Professor fez um gesto com o braço esticado e o dedo indicador para o lado direito I Mas tudo isso é adubo na verdade I Está correto I Restos de alimento I não é isso ↑ Casca de ovo I é adubo↑
12 Estudantes É I
13 Professor Pode misturar ali no resto de alimentos para formar o adubo orgânico ↑
14 Estudantes Pode I
15 Juca Pode por pó de café também I Não é ↑
16 Professor Pó de café também ↑ O que vocês acham ↑ I Enquanto os estudantes falavam o professor sinalizou com a cabeça positivamente.
Casca de banana I
17 Maju Laranja ▲
18 Professor Laranja ↑ Casca de laranja I tudo isso pode servir de adubo ↑
19 Estudantes Pode I
20 Professor Pode I não pode ↑
21 Estudantes XXXX
22 Professor Toda matéria orgânica I pode servir de adubo I Como é que chama aquele processo que a gente pega essa I Professor pegou algo no ar com as mãos.Matéria orgânica e coloca I no reator I e transforma em I chorume I é esse adubo orgânico ↑ II Professor colocou algo em algum recipiente com as mãos e agitou.
Como é que se chama esse processo ↑Quem se lembra ↑
23 ENI Adubação I
24 Professor Adubação é quando a gente pega o adubo L г
25 ENI XXXX
26 Professor É I mas e a produção do adubo por meio de matéria orgânica ↑ III
27 Fred Decomposição ↑
28 Professor Hã ↑▲ IIII Se chama ↑ I Professor se voltou para o quadro e começou a escrever a palavra compostagem I Co+m I po+s I ta+ ▲ I
29 Estudantes Compostagem I
30 Professor O meu cunhado I ele faz esse processo I Ele pega restos de alimentos II Professor fez gestos com as duas mãos indicando que alguma coisa se misturava à outra coisa I Que a gente produz lá em casa e coloca no meio da terra dentro do tambor I deixa lá e revira I a terra de vez em quando e começa a liberar um liquidozinho e joga água I que chama-se II Chorume I Professor fez gestos circulares com as mãos e gestos de água pingando I Que é rico em quê ↑
31 Juca Matéria orgânica I
32 Professor Matéria orgânica I que a planta consegue ▲ I absorver I não é isso ↑ IIII

Fonte: elaborado pelos autores.

O professor mobilizou elementos do contexto comunitário ao construir relações entre os "fertilizantes" indicados no texto da questão a outras formas de nomeá-los (L1). A palavra adubo passou a ser utilizada como referência (L2-26), além de outras expressões como esterco, restos de alimentos, pó de café, casca de ovo, casca de banana, casca de laranja e matéria orgânica. A reação dos estudantes foi também utilizar exemplos de fertilizantes já conhecidos, evidenciando sua inclusão na discussão (L10, 15, 17).

Na sequência, Filipe buscou retomar conhecimentos sobre compostagem (L28), solicitando a nomeação de um processo de mistura da matéria orgânica (L22). Diante das respostas dos estudantes (L23, 27), a reação do professor foi mobilizar, novamente, elementos do contexto comunitário, ao oferecer o relato de uma vivência familiar (L30). Desse modo, ele estabeleceu relações intercontextuais entre a Ciência escolar e a vida fora da sala de aula.

O relato sobre como seu cunhado realizava o processo de compostagem em casa (L30) indicou conexões entre o conhecimento científico e vivências do dia a dia. Ao dizer "a gente produz lá em casa e coloca no meio da terra dentro do tambor, deixa lá e revira a terra de vez em quando e começa a liberar um liquidozinho e joga água", o professor indicou algo que era parte de sua vida em casa, o que foi acompanhado por gestos que evidenciam uma proximidade com o processo. Não houve, no entanto, demarcação de distinções entre a compostagem "caseira" e os "fertilizantes nitrogenados" mencionados no texto da questão, o que foi evidenciado pelo uso do termo "chorume" (L30), referência ao líquido que é produto de qualquer compostagem e que, também, é usado como fertilizante. Na linha 32, Filipe relacionou a discussão em curso aos elementos textuais da questão do ENEM, indicando que as plantas absorviam matéria orgânica.

Nesse caso, dois movimentos discursivos caracterizam o modo como o professor buscou contextualizar a questão: mobilizando possíveis fertilizantes já conhecidos pelos estudantes e relatando uma vivência em sua família.

Por meio do primeiro movimento, o professor indicou a proximidade entre o assunto tratado na questão e aquilo que os estudantes já conheciam sobre esse assunto. Dessa forma, elementos do contexto comunitário foram articulados ao contexto instrucional, sendo mobilizados como suporte para auxiliar os estudantes na compreensão daquilo que era tratado na questão.

Por outro lado, o segundo movimento indicou um processo de contextualização diante de contingências imediatas da interação. A interação como um todo indica que o professor construiu a seguinte sequência narrativa: (i) favoreceu a compreensão de o que são fertilizantes e (ii) como eles são produzidos, para, então, (iii) relacioná-los às plantas e (iv) a elementos químicos. Porém, os estudantes não reconheciam o processo de produção ao qual o professor se referia (compostagem). Diante disso, sua reação foi descrever este processo mobilizando sua casa/família. Neste caso, o contexto familiar foi articulado ao contexto instrucional não apenas para a compreensão da questão em si, mas como suporte para que os estudantes acompanhassem a narrativa em curso.

Na sequência desta interação (apresentada no quadro 2), o professor mobilizou, novamente, elementos do contexto comunitário ao falar sobre a compra de adubo.

Quadro 2 Trecho 2 da primeira interação discursiva professor-estudantes 

Linha Falante Discurso
33 Professor Alguém aqui já foi comprar adubo ou conhece alguém que mexe com adubo em casa ↑
34 Estudantes Já I
35 Professor O quê que [sic] eles fazem ↑Quando eles vão comprar adubo I o quê que [sic] eles pedem ↑
36 ENI Adubo
37 Professor Adubo ▲II ou ▲▲ uma coisinha que se chama o quê ↑I O professor se voltou para o quadro.
38 Fred Fertilizante
39 Professor Fertilizante II também II Mas é muito comum falar lá na IIII os agrônomos falam NPK ▲ I Enquanto soletrava as letras NPK, o professor as escreveu no quadro.
Ah+ I me dá aí um NPK para as plantas ↑
40 ENI Eu nunca ouvi falar isso I
41 Maju Eu falaria adubo mesmo I
42 Professor Adubo né I porque você está mais acostumada
43 ENI XXXX
44 Estudantes O que esse NPK significa pra [sic] gente ↑Três elementos químicos que são essenciais para a+s plantas I quais são eles ↑
45 Guto Nitrogênio I Fósforo e Potássio I

Fonte: elaborado pelos autores.

Comprar adubo, no relato do professor, nem sempre acontece da mesma forma. Quando as pessoas "vão comprar adubo, o quê que [sic] eles pedem?" (L35). As pessoas podem simplesmente pedir por adubo (L36, 41), ou então, por fertilizante (L38), conforme indicado pelos estudantes. E no caso de um agrônomo? Nesse caso, o contexto é outro e envolve aspectos técnicos. Agrônomos compram adubo de uma forma específica: "falam NPK" (L39). Os estudantes não conheciam a expressão NPK (L40, 41) e a reação do professor foi retomar conhecimentos das aulas de Química que dessem suporte à compreensão: "três elementos químicos" (L44). Na linha 45, Guto reconheceu a referência ao conhecimento químico nomeando os elementos representados na sigla NPK.

Contextualizar, nesse caso, envolveu o estabelecimento de conexões entre vivências cotidianas, conhecimentos técnicos e aulas de Química, a partir de uma discussão sobre quem compra o quê e como. Discutir sobre adubo significou falar de algo que era da vivência dos estudantes (L34, 41, 42), mas que também poderia envolver algo que se aprendeu na escola (L45) ou mesmo um contexto científico específico que se refere ao trabalho de um agrônomo (L39). Aqui, a contextualização assumiu uma forma diferente do que observamos nas interações anteriores (L1-32), as conexões significaram não apenas suportes para compreensão, mas um recurso para reconhecer diferentes perspectivas sobre um mesmo assunto, fertilizantes.

Segunda interação: discutindo as alterações na água acarretadas por fertilizantes

Na segunda interação discursiva (apresentada no quadro 3, ocorrida entre 9’28’’ a 16’22’’ do vídeo), o professor passou a discutir outro aspecto presente no texto da questão do ENEM: as possíveis alterações na água acarretadas pelos fertilizantes.

Quadro 3 Segunda interação discursiva professor-estudantes 

Linha Falante Discurso
1 Professor Primeiro vamos falar da questão da água II Professor se dirigiu ao quadro e grifou a palavra água que ele havia escrito.
Só para a gente poder entender um pouquinho esse fenômeno que acontece lá ▲▲ na Lagoa da Pampulha5 I Mas que acontece em qualquer ▲ Professor apontou com o dedo indicador e braço estendido para a direção em que se encontra a Lagoa da Pampulha
2 Fred Lugar I
3 Professor Ambiente aquático II Professor disse isso balançando a cabeça positivamente em relação à fala anterior de Fred. Não é isso ↑
4 Fred É I
5 Professor Vamos lá I Vou desenhar a Lagoa da Pampulha I Vou fazer o desenho tá bom ↑I Vocês têm passado na Lagoa da Pampulha esses dias ↑O que vocês têm percebido ↑ Professor foi desenhando a Lagoa da Pampulha no quadro.
6 Estudantes Aham I Sim I
7 Professor O que vocês têm observado lá ↑
8 ENI Cheiro horrível I
9 Professor O cheiro está maravilhoso ↑ I Professor disse em tom de ironia enquanto fez apontamentos com os dedos.
10 Estudantes XXXX
11 Professor Terrível né ↑Isso é uma percepção olfativa né ↑II E a visual ↑I Professor foi desenhando no quadro os elementos que surgiam nas falas de alguns estudantes.
12 Estudantes XXXX
13 Guto Têm uns cocôs lá boiando I
14 Estudantes XXXX
15 Professor Então I vamos lá I Vamos concentrar aqui I A gente percebe uma coisa verde lá I Várias pessoas falaram isso não foi ↑O quê que [sic] é essa coisa verde ↑Alguém sabe me falar ↑I O professor desenhou algo cobrindo a superfície da Lagoa da Pampulha.
16 ENI Cocô I
17 ENI Lodo I
18 Professor Lodo ↑I Professor sinalizou com o dedo polegar enquanto repete a palavra lodo.
19 Estudantes XXXX
20 Rod Fezes I
21 Professor Lodo misturado com fezes humanas ↑
22 Estudantes XXXX
23 Professor Olha só I Esse lodo é formado por quê ↑
24 Estudantes XXXX
25 Professor Ahn ↑Alguém falou aí I
26 Guto Algas I
27 Professor Algas ▲ I Professor escreveu a palavra enquanto a pronunciava e a palavra cianobactéria abaixo da palavra algas I O que acontece quando está muito verde ↑I É sinal de que está acontecendo o quê ali ↑ I
28 Estudantes XXXX
29 Professor Está havendo ▲▲↑
30 Guto Proliferação I
31 Professor Uma proliferação em um processo acele+rado ▲ I Por que vocês acham que está acelerado ↑
32 Rod Porque joga muito II muito adubo lá I
33 Professor Joga muito adubo ↑
34 ENI Sujeira I
35 Estudantes XXXX
36 Professor Sujeira ou adubo ↑
37 Estudantes XXXX
38 Rod Fezes I
39 Professor Por que vocês acham I que essas algas e cianobactérias e outros microorganismos se reproduzem muito ali ↑ Professor falou apontando para o desenho da Lagoa da Pampulha.
40 Estudantes XXXX
41 Professor Eu estou jogando nutriente lá ↑
42 Estudantes Sim I
43 Professor Como é que a gente joga nutriente lá na Lagoa da Pampulha ↑
44 Fred Esgoto I Lixo I
45 Professor E+sgoto ▲ Esse esgoto cai na Lagoa da Pampulha I O quê que [sic] tem lá dentro ↑ Vamos pensar no que tem lá dentro da água ↑
46-73 Estudantes - mencionaram uma série de animais, plantas e nutrientes que podem ser encontrados na Lagoa da Pampulha6
74 Professor O quê que [sic] tem na água aqui dissolvido ↑I Professor falou apontando para a representação do interior da Lagoa da Pampulha.
75 Fred Oxigênio I
76 Professor Oxigênio ↑ Quem produz o oxigênio ↑ I Professor falou apontando para o diagrama.
77 Fred e Rod As algas I
78 Estudantes As plantas I
79 Professor Quais plantas ↑
80 Estudantes As algas I
81 Professor Mas como essas plantas produzem esse oxigênio ↑
82 Estudantes Fotossíntese
83 Professor A+ ↑Olha o processo na outra planta que eu tinha mostrado IIII Fotossíntese I Fotossíntese precisa de+ ↑ ▲▲ I Luz I Como essas luzes chegam aqui ↑Professor apontou o pincel para o fundo da representação da Lagoa da Pampulha e desenhou linhas pontilhadas representando os raios solares.
84 Fred Boa pergunta I
85 Guto Não chega I
86 Rod Não chegou porque está coberto I Professor fez expressão de contente.
87 Professor Se eu tenho uma camada aqui física ▲ eu vou conseguir que chegue luz do sol lá embaixo ↑Professor fez gesto com a palma da mão virada para baixo como se estivesse paralela à superfície da Lagoa da Pampulha.
88 Estudantes Não I
89 Professor O que as plantas vão ter dificuldade de fazer ↑I Professor apontou para o fundo da representação da Lagoa da Pampulha.
90 Fred Fotossíntese I
91 Professor E produzir o quê ↑I Professor discursou apontando para o fundo da representação da Lagoa da Pampulha e voltado para os estudantes.
92 Estudantes Oxigênio I
93 Professor E os peixes vão ter oxigênio para respirar ↑I Professor apontou para o fundo da representação da Lagoa da Pampulha
94 Estudantes Não I

Fonte: elaborado pelos autores.

Elementos do contexto temático, isto é, referentes às orientações formativas do professor, são significativos para esta análise. Informações sobre o processo formativo de Filipe nos dão evidências sobre o modo como ele contextualizou a questão em discussão. Em sua formação inicial, ele participou do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID). Especificamente, Filipe teve a Lagoa da Pampulha como um de seus objetos de investigação junto a estudantes ao longo do desenvolvimento de um dos projetos de tal programa. Conforme indicações de Almeida (2017), a partir de Roth e Jornet (2013), consideramos que tal experiência anterior se configurou como significativa em sua formação. Assim, ela se constituiu um recurso para que, na situação ora em análise, Filipe fizesse a contextualização da questão do ENEM, que não mencionava tal Lagoa em seu texto.

Desse modo, o professor mobilizou elementos do contexto comunitário ao solicitar que os estudantes pensassem na Lagoa da Pampulha (L1). Filipe solicitou dados oriundos de observações realizadas pelos próprios estudantes na Lagoa da Pampulha (L5, 7): percepção olfativa (cheiro horrível) e visual (cocô, coisa verde, lodo e fezes) (L8-20).

O professor usou estes dados para dar visibilidade a um fenômeno específico: uma "coisa verde" (L15) na superfície da Lagoa da Pampulha. Este fenômeno estabeleceu uma conexão entre o contexto curricular de dois campos disciplinares: a Química, que já estava sendo discutida desde a primeira interação; e a Biologia, pois se tratava de um fenômeno de proliferação de algas, conforme indicado por Guto (L26, 30). Esta conexão se tornou mais visível quando Rod (L32) mencionou o adubo, termo que havia sido utilizado como referência para fertilizantes no trecho 1 da primeira interação, e que em sua fala atual passou a ser usado como explicação para o crescimento acelerado de algas (L31-32).

A relação de proximidade com a Lagoa da Pampulha foi expressa pelo professor quando questionou: "Eu estou jogando nutriente lá?" (L41). Para os estudantes, nós jogamos nutrientes na Lagoa da Pampulha quando a poluímos, lançando lixo e esgoto (L44). Nutrientes, gerados pelo lançamento de lixo e esgoto, favorecem uma proliferação que gera uma barreira física (L87). O professor mobilizou, aqui, conhecimentos de Física, indicando conexões com o contexto curricular deste campo disciplinar. Guto e Rod reconheceram que a luz não pode chegar às algas e plantas (L85, 86), dando elementos para que o professor prosseguisse com a construção de relações de causalidade do fenômeno discutido (L89, 91). Tais relações nos ajudam a compreender os elementos contextuais de diferentes campos disciplinares mobilizados na interação: se há nutrientes em excesso (L45), as plantas não podem fazer fotossíntese e produzir oxigênio (L89, 91) em função da geração de uma barreira física que impede a passagem de luz (L85, 86). Logo, seres vivos presentes na Lagoa da Pampulha morrerão (L93, 94).

Nesse caso, contextualizar significou estabelecer conexões entre vivências cotidianas dos estudantes e elementos dos contextos curriculares de Química, Biologia e Física. Porém, este processo surgiu de forma distinta das interações anteriores: o contexto comunitário atuou como fonte de dados para construção de significados acerca de um fenômeno. Isto é, por meio das observações cotidianas da Lagoa da Pampulha, os estudantes mobilizaram elementos capazes de subsidiar as relações de causalidade construídas pelo professor com a participação dos estudantes. Circular próximo à Lagoa da Pampulha no dia a dia e observar certas características e fenômenos ali presentes gerou recursos para compreender como fertilizantes poderiam acarretar alterações na água a partir de uma cadeia complexa de agentes químicos, biológicos e físicos.

Conclusões e Implicações

Nesta pesquisa, caracterizamos diferentes formas pelas quais um professor de Química estabeleceu relações intercontextuais ao discutir uma questão do ENEM com seus estudantes. Indicamos a mobilização de conhecimentos já trazidos pelos estudantes, vivências cotidiana e familiar, conexões interdisciplinares, espaços comunitários circulados tanto pelo professor quanto pelos estudantes e dados observados no dia a dia.

Esses processos de mobilização ficaram nítidos, por exemplo, quando o reconhecimento de diferentes tipos de fertilizantes foi articulado ao relato sobre como o cunhado do professor realizava o processo de compostagem em casa (quadro 1). Em outro ponto das interações, relações entre vivência cotidiana, conhecimentos técnicos de agronomia e curriculares de Química oriundas da discussão de um termo específico (NPK) também indicaram essa mobilização (quadro 2). Isto também aconteceu quando exemplos vivenciados pelo professor em sua formação inicial foram mobilizados, contribuindo para que ele conduzisse a explicação de modo interdisciplinar. A partir disso, consideramos que as interações discursivas foram construídas a partir de um ensino contextualizado que parece ter sido produtivo no que se refere à construção de significados - aspecto evidenciado pela observação da participação dos estudantes na construção dessas interações.

A análise oferece contribuições à área de Educação em Ciências ao compartilhar dados sobre o processo de contextualização em interação. Isto é, para além de compreendermos e utilizarmos a contextualização como orientação na elaboração de sequências didáticas e documentos curriculares, é necessário compreender seus significados em salas de aula, materializados nas interações entre professor e estudantes. Nesse sentido, demos visibilidade a diferentes significados de contextualizar nesta aula, tais como ser um recurso que possibilitou: (i) auxiliar os estudantes na compreensão do contexto instrucional em discussão; (ii) reconhecer diferentes perspectivas sobre o tema discutido; e (iii) fornecer dados para subsidiar a construção de relações envolvidas no fenômeno em discussão.

Conforme indicado por publicações recentes (PADERNA; YANGCO; FERIDO, 2019), cabe, ainda, avançarmos neste tipo de análise explorando, por exemplo, como os próprios estudantes estabelecem relações intercontextuais em sala de aula. Desse modo, poderemos compreender melhor os significados da contextualização do ponto de vista dos estudantes.

Indicamos ainda implicações para a relação entre contextualização e interdisciplinaridade. A tarefa de definir interdisciplinaridade é complexa e não é o foco deste artigo. Porém, sua relação com a contextualização está bastante presente em documentos curriculares e pesquisas na área de Educação em Ciências. As interações que analisamos agregam aspectos relevantes nesta discussão, apesar de não constituírem o objetivo da análise. Ao contextualizar trazendo elementos do contexto comunitário (Lagoa da Pampulha), o professor demandou dos estudantes a análise de um fenômeno usando conhecimentos de diferentes áreas disciplinares (Química, Biologia e Física). A complexidade do fenômeno exigiu esta articulação. Assim, contextualizar gerou um cenário propício à interdisciplinaridade. Isso nos leva a compreender a relação entre contextualização e interdisciplinaridade de forma dialética. Conforme indicado por Morin (2002, p. 29), um ensino interdisciplinar pode formar estudantes capazes de "contextualizar, situar-se num contexto". As interações aqui analisadas indicam que, paralelamente, um ensino contextualizado pode favorecer relações entre conhecimentos de diferentes áreas disciplinares.

Por fim, destacamos o papel do professor ao mobilizar diferentes contextos extrapolando os elementos fornecidos pela questão do ENEM. Em sua atual configuração no contexto educacional brasileiro, o ENEM se tornou realidade presente na vida dos estudantes. Conforme indicamos, o processo de contextualização orienta a produção deste exame, apesar das críticas e limitações observadas (STADLER; HUSSEIN, 2017). As interações analisadas apontam para a mediação do professor como forma de aprofundar discussões relacionadas aos contextos propostos, alinhar a instrução à realidade comunitária e social dos estudantes, bem como explorar outras relações intercontextuais relevantes para o processo de ensino e de aprendizagem de Ciências.

1Utilizamos pseudônimos para identificar os participantes da pesquisa, tendo em vista o sigilo de suas identidades.

2Essa questão (n. 63) está contida no caderno 1 de cor azul aplicado no primeiro dia do ENEM, e está disponível em: http://inep.gov.br/provas-e-gabaritos. Acesso em: 5 jan. 2020.

3Os números no topo desta figura correspondem ao tempo de gravação do vídeo; abaixo da linha do tempo, a densidade de codificação (em cinza escuro) evidencia os momentos em que houve codificação; abaixo da linha de densidade de codificação, as cores marrom, verde, azul e laranja representam as temáticas solo, água, ar e corpo humano, respectivamente; e abaixo da linha de temáticas, identificamos vários tópicos relacionados às temáticas que emergiram na fala do professor ao longo da aula. As diferentes cores que representam esses tópicos, por sua vez, são aleatórias, geradas pelo próprio software.

4Os símbolos e os significados para cada um desses sinais verbais e não verbais, são: ↑ (aumento da entonação no final da fala); ↓ (diminuição da entonação); XXXX (fala indecifrável); ênfase; ▲ (maior volume); ▲▲ (grande aumento de volume); ▼ (menor volume); enunciado com maior velocidade; L г (sobreposição de falas); vogal+ (vogal alongada); Comportamento não verbal em itálico; I (pausa); IIII (pausa longa); - (palavra incompleta). Além disso, usamos a sigla ENI para nos referirmos aos estudantes não identificados na coluna falante.

5Tal Lagoa se localiza próxima à escola e é um ambiente no qual os estudantes circulam com frequência.

6Optamos por não usar toda a interação devido à sua extensão, tendo em vista os elementos mais relevantes para a presente análise.

Agradecimentos

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pelos auxílios financeiros que nos possibilitaram dedicar tempo para desenvolver a pesquisa e produzir o artigo. Agradecemos também a Matheus Campelo pelo auxílio na filmagem da aula analisada neste artigo.

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Recebido: 31 de Março de 2020; Aceito: 11 de Agosto de 2020

Autor Correspondente: leo84184558@ufmg.br

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