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Ciência & Educação

Print version ISSN 1516-7313On-line version ISSN 1980-850X

Ciência educ. vol.26  Bauru  2020  Epub Nov 10, 2020

https://doi.org/10.1590/1516-731320200065 

Artigo Original

Avaliação de Ciclo de Vida de Produtos como Temática Sociocientífica na Formação de Professores de Química como Intelectuais Transformadores

The Assessment of Product Life Cycles as a Social-Scientific Theme for Training Chemistry Teachers as Transformative Intellectuals

Ademir de Souza Pereira1 
http://orcid.org/0000-0002-3635-7349

Washington Luiz Pacheco de Carvalho2 
http://orcid.org/0000-0002-1283-3021

1Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Faculdade de Ciências Exatas e Tecnologia (FACET), Dourados, MS, Brasil.

2Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Engenharia de Ilha Solteira (FEIS), Ilha Solteira, SP, Brasil.


Resumo:

A avaliação de ciclo de vida é uma técnica utilizada pela indústria que visa a minimização de possíveis impactos ambientais decorrentes de sua produção. Essas informações ambientais possuem potencialidade de serem discutidas em sala de aula. Neste contexto, o objetivo dessa pesquisa é apresentar o conceito de avaliação de ciclo de vida de produtos como uma temática sociocientífica e averiguar quais suas implicações para a formação docente, por meio da teoria de Henry Giroux. A atividade foi realizada com 10 acadêmicos de um curso de licenciatura em química. A investigação possui caráter qualitativo e utilizou o relatório de estágio como instrumento de construção de dados que foi estudado por meio da análise de conteúdo de Laurence Bardin. Com o resultado foi possível perceber que os licenciandos iniciaram um processo de ressignificação do conteúdo de química em direção a um conteúdo global, indissociável, interdisciplinar e essencial para a formação cidadã crítica.

Palavras-chave: Formação inicial do professor; Ensino de química; Sustentabilidade; Educação cidadã; Avaliação de ciclo de vida

Abstract:

Life cycle assessment is a technique used by the industry, which aims to minimize possible environmental impacts resulting from its production. However, in chemistry education, this environmental information has applicability in teacher training. Thus, the purpose in this research is to present the concept of life-cycle assessment as a socio-scientific issue, and to investigate its implications for teacher development, according to Henry Giroux's theory. The research was carried out with 10 Chemistry undergraduate students, and the analysis has a qualitative character, substantiated by reports on academic internship experiences as a tool for data collection. These were analyzed by Laurence Bardin's precepts. As a result, the undergraduate students reframed their experience of chemistry undergraduate studies, towards global, inseparable, interdisciplinary and essential content for critical citizenship education.

Keywords: Initial teacher training; Chemistry teaching; Sustainability; Citizenship education; Life-cycle assessment

Introdução

Na concepção crítica de educação preconizada por Giroux, uma pedagogia que pretende resistir e contrapor-se à rotinização dos fazeres, à imposição, à tecnificação, à objetivação dos conteúdos e à precarização do trabalho dos professores, necessita evidenciar o sentido da perspectiva política na sala de aula e atrever-se em caminhos tradicionalmente não percorridos. Tal pedagogia inquieta-se com questões como: a quem interessa determinado "conteúdo"? A quem interessa apresentá-lo de tal maneira? Como promover a educação comprometida com a formação cidadã? Como os alunos podem vir a entender que suas percepções, compreensões e valores são relevantes para o processo educacional? Essas questões, dentre outras tantas de mesma natureza, estão na base da pedagogia proposta por Giroux, que aponta ser essencial que os professores assumam um papel importante na transformação social a partir da sua atuação na educação, no ensino, como intelectuais que criam e orientam ações que tornam o político mais pedagógico e o pedagógico mais político.

Dado o interesse do presente trabalho, em particular pela formação de professores para o ensino de química, podemos sinalizar o caminho que pretendemos seguir.

Consideraremos, inicialmente, o trabalho de Levinson (2014), que explora a história da manufatura e do uso do alumínio. Esse, por sua vez, ressalta que em uma aula de química os alunos podem estar diante de uma equação que representa uma reação química, na qual um átomo de alumínio é liberado quando um íon desse metal "captura" três elétrons (Al3++3e→Al). Dessa forma, podem facilmente entender a parte lógica dessa equação, salientando que a obtenção do alumínio comercializável pode ser simplificada. Entretanto, a história da obtenção desse produto é muito mais complexa do que a equação indica: ela envolve a extração da bauxita, envolve processos iniciais de separação e purificação altamente contaminantes para a obtenção do “Al3+”; além disso, também envolve uma enorme quantidade de energia elétrica, que está ocultada no “3e-” do processo de eletrólise representado na equação. Sobre isso, vale ressaltar que cerca de 600 bilhões de quilowatt-hora de energia elétrica são destinados à produção mundial anual de alumínio, o que correspondia, em 2011, a 3% da energia elétrica gerada no mundo, e mais de 6%, no caso do Brasil. No final da vida de diversos produtos feitos de alumínio há reciclagem que, percentualmente, é muito pequena quando comparada ao que se produz no mundo com esse metal, e que no Brasil, por exemplo, é um meio de vida, pois gera renda para muitos catadores de latinhas. Dessa forma, quando os contextos históricos, sociais e ambientais relacionados ao desenvolvimento de produções científico-tecnológicas são considerados no ensino, aqueles conteúdos que normalmente são apresentados de maneira fragmentada, enxuta, passam a oferecer maior visibilidade para uma educação comprometida com a crítica curricular, com a formação política cidadã de alunos e de professores.

Nesse sentido, encontramos na Avaliação de Ciclo de Vida (ACV), conceito discutido mais adiante, uma porta de entrada em potencial para a constituição de temáticas sociocientíficas no ensino de química. Ao analisarmos o ciclo de vida de um produto podemos refletir a respeito da origem dos recursos naturais e dos processos que estão na sua base, como são considerados os resíduos (sólidos, líquidos e gasosos) gerados na utilização e descarte, assim como sobre quem são os interessados, sobre quem são as vozes oficiais que defendem que determinados processos devam acontecer de um modo e não de outro. A partir desse ponto, começamos a ter uma visão mais ampla das potencialidades de discussões sociocientíficas em sala de aula.

Articulado a esse conceito buscaremos aproximações teóricas entre ACV e as questões sociocientíficas (QSC) discutidas por Zeidler et al. (2005) e Ratcliffe e Grace (2003). Dessa forma, utilizaremos o conteúdo curricular de química da educação básica para promovermos temáticas de ACV. Diante disso, apresentaremos nesse trabalho conceitos que se relacionam e aproximam a discussão entre a Avaliação de Ciclo de Vida (ACV) e as questões sociocientíficas (QSC).

Professores como Intelectuais Transformadores

O conceito de intelectual fornece base teórica para o questionamento das condições ideológicas e econômicas sob as quais os intelectuais, como um grupo social, precisam trabalhar, a fim de atuar como seres humanos críticos, reflexivos e criativos (GRAMSCI, 1982).

Giroux (1997) possui uma compreensão mais ampliada de intelectual e a contextualiza no trabalho dos profissionais da educação, empregando aos professores a categoria de Intelectuais Transformadores. O autor justifica o emprego dessa categoria a partir da percepção de que ela é útil de várias maneiras: (1) fornece uma base teórica para examinar a atividade docente como uma forma de trabalho intelectual que é constituída ao longo dos anos de formação inicial e continuada; (2) fornece um campo de reflexão e prática sobre o que define a função do professor dentro da sala de aula e perante a sociedade; e, (3) ajuda a esclarecer a função que os professores desempenham na relação escola e sociedade, especificamente, quanto à produção e legitimação de interesses políticos, econômicos e sociais variados expressados nas pedagogias por eles endossadas e utilizadas.

É essencial que a formação de professor, na abordagem de Giroux (1977), envolva a criação de um espaço crítico, público e político dentro da cultura contemporânea, de modo que as relacionem com as histórias culturais, narrativas pessoais e vontade coletiva de professores e alunos. Pois atuar como professor intelectual transformador é desenvolver o pensamento crítico sobre a própria prática docente em sala de aula, dentro da escola, e também, sobre a sociedade, negando a predominância da utilização de práticas que fundamentem a educação em uma perspectiva da racionalidade instrumental.

Entendemos que as ações pedagógicas se referem às medidas realizadas na escola, as quais visam favorecer o processo de ensino e aprendizagem, que envolve a atuação do professor dentro e fora da sala de aula e, ainda, estabelecer uma relação com o conhecimento disciplinar, científico, interdisciplinar; e com as dificuldades, enfrentamentos e desafios para o exercício da docência.

Neste sentido, tornar o pedagógico mais político está relacionado ao fato de levar as necessidades das escolas para discussões da esfera pública, o que significa, por exemplo, colocar em discussão e lutar por direitos de reformulações do currículo, e outras, que atendam demandas específicas. Giroux (1992) se fundamenta em Habermas - teórico da Escola de Frankfurt - para discutir o conceito de esfera pública, como um espaço em que os assuntos públicos e de interesse geral ou específicos são discutidos com o público. Com isso, caracteriza-se como um espaço democrático, de discussão e de participação de representantes de diversos setores da sociedade. Nesse contexto, a esfera pública seria um espaço onde todos pudessem ter voz para garantir direitos e deveres que representem as necessidades da escola como local de formação para a cidadania.

Assim, conforme Giroux (1992), o que vale como conhecimento, o que é importante ensinar, a forma como se julga o objetivo e a natureza do ensino, a forma como se vê o papel da escola na sociedade, e a consequente compreensão dos interesses sociais e culturais que modelam todos os níveis da vida escolar, devem ser princípios a serem refletidos por professores, alunos e administradores de escola.

A ideia de tornar o político mais pedagógico é um dos focos deste trabalho, pois, conforme Giroux (1997), significa utilizar formas de pedagogia que considerem o caráter político e que possuam uma natureza emancipadora. Nesse movimento, podem ser utilizadas formas de pedagogias - estratégias e atividades de ensino - “[...] que tratem os estudantes como agentes críticos; tornem o conhecimento problemático; utilizem o diálogo crítico e afirmativo; e argumentem em prol de um mundo qualitativamente melhor para todas as pessoas”. (GIROUX, 1997, p. 163).

Neste sentido, entendemos que os intelectuais transformadores devam colocar os estudantes para participar de processos argumentativos em suas experiências de aprendizagem em sala de aula, para que possam desenvolver a capacidade de ouvir e de serem ouvidos, de sustentar pontos de vista e de exigi-los, enfim, de desenvolver posturas necessárias ao enfrentamento de situações de interesse da sociedade. Debater em sala de aula ou fora dela situações e assuntos sobre economia, política, cultura, ciência, tecnologia, e, principalmente, as suas diversas relações com a sociedade possibilitam práticas argumentativas que tendem a fazer com que os alunos se sintam parte da sociedade e que por ela possam lutar, questionar e reivindicar (GADOTTI, 2005). Assim, atividades que estejam relacionadas com a argumentação, a partir de estudo de casos reais, locais, regionais, nacionais ou globais, frequentemente alimentados pelas mídias de comunicação, possibilitam o confronto de fatores éticos e morais; enfim, dilemas e controvérsias que devidamente experienciados podem contribuir para o processo de formação cidadã do aluno (RATCLIFE; GRACE, 2003).

As ideias de Gadotti (2005) corroboram com as de Giroux (1997) no que diz respeito a tornar o político mais pedagógico, quando aponta a necessidade de politização do conteúdo e do ensino. Nessa perspectiva, o estudante pode atuar politicamente dentro e fora da escola, e passar a valorizar aquilo que faz sentido para a vida, uma vez que percebe a importância teórica e prático-social do que é ensinado, e com isso passa a solicitar explicações, o que motiva o professor e os administradores da escola.

Politizar o conteúdo, conforme Gadotti (2005) descreve, não é tentar ver a demonstração de uma reação química por uma perspectiva ideológica. É inserir o estudo conceitual das reações químicas, investigando historicamente determinado conceito em um contexto humano e social, em que as equações químicas formadas por letras, números e símbolos têm um sentido para compreender determinadas situações do mundo real, como os avanços da ciência e da tecnologia e de suas implicações na vida cotidiana do aluno.

Assim, para tornar o político mais pedagógico propusemos ações teoricamente fundamentadas para os estagiários em seus trabalhos nas escolas, e que tivessem um viés emancipador, a partir de temáticas que, potencialmente, envolvessem discussões do mundo da vida dos alunos da escola. Nesse viés, enxergamos a necessidade de constituir com os licenciandos, temáticas emergentes que tivessem potencialidade de discussão nas salas de aula, nas escolas, de forma que os estagiários e seus alunos vivenciem um processo formativo e emancipador, a partir da temática avaliação de ciclo de vida de produtos.

A Avaliação de Ciclo de Vida de Produtos

É comum, no ensino de ciências, a referência a produções científico-tecnológicas que são concebidas, fabricadas, industrializadas, comercializadas, consumidas, utilizadas e descartadas. Por vezes, o interesse é devido ao contexto da invenção ("descoberta"); outras vezes, o foco é o funcionamento, envolvendo princípios físicos, conceitos biológicos ou químicos; em outras, a atenção é dada ao descarte, aos processos de contaminação, entre outros. No entanto, as informações genéricas sobre produtos que aparecem em livros didáticos, por vezes, podem até induzir ideias equivocadas sobre um produto ser ambientalmente limpo ou de impacto mínimo. Por exemplo, o uso de etanol como combustível no nosso país apresenta algumas vantagens sobre a gasolina, entretanto, elas não se apresentam como tais, dependendo do modo como se olha para o ciclo de vida do produto (BARBIERI, 2009; CORTEZ, 2016). Ademais, algumas vantagens não podem significar que se passe a ter um nível elevado de condescendência com esse combustível, considerando-o de forma genérica, pois as práticas envolvidas na sua produção apresentam diferentes impactos regionais relativos à utilização de áreas de plantio, mão de obra, agrotóxicos, uso de água na irrigação das culturas de cana e nos processos da sua industrialização, e desmatamento de áreas de preservação (FEIERABEND; EILKS, 2011). Assim, o conhecimento do ciclo de vida de produtos oferece perspectivas bastante interessantes para a educação em ciências, especialmente, pelo potencial de temas que podem ser trabalhados como questões sociocientíficas, como será visto adiante.

Em termos gerais, o ciclo de vida de um produto é considerado um conjunto de etapas envolvidas no período de criação, utilidade e descarte dele. A Avaliação de Ciclo de Vida - Life Cycle Assessment, LCA, - de produtos, é definida por Boustead (1996), Fava (2002), Gibon et al. (2015), Guinée et al. (2011), Horne (2009), e Hunt (1974), como a avaliação que visa investigar o econômico/racional sobre materiais constituintes, processos de transformação, alocação, utilização e rejeitos, bem como seus respectivos impactos sociais e ambientais. Esses produtos são oriundos do meio científico-tecnológico após um determinado processo de fabricação, e são criados para satisfazer as necessidades das pessoas e de diversos setores da sociedade, mas possuem um determinado prazo de validade ou tornam-se obsoletos ao longo dos anos. Por meio da ACV procura-se escolher os materiais mais adequados, otimizar o consumo de fontes de energia e recursos não renováveis, aumentar a vida do produto, evitar o desperdício de materiais, reduzir ou até eliminar o uso de materiais tóxicos e poluentes, reduzir ou eliminar o uso de substâncias que contribuem com a destruição da camada de ozônio, e buscar soluções de logística que reduzam a necessidade de transporte. Pode-se perceber, por meio dos focos de atenção da ACV que a iniciativa de avaliação de ciclo de vida pode partir de quem produz, quando, por exemplo, deseja obter uma certificação ou um reconhecimento público de que está agindo de acordo com práticas sociais e ambientais desejáveis; ou pode partir da consciência cidadã, por meio de organizações não governamentais (ONG), associações, etc., que buscam cuidar da qualidade de vida das pessoas e/ou dos interesses de consumidores.

Conforme Almeida e Gianetti (2006), a ACV pode indicar aspectos importantes de: (1) identificação de possibilidades de aprimoramentos de processos para a diminuição do consumo de recursos naturais e emissão de poluentes; (2) tomada de decisões na produção (indústria) e nas organizações governamentais e não governamentais para que possam reavaliar todos os processos e propor soluções a partir das interpretações dos relatórios sobre avaliação do impacto do ciclo de vida; (3) seleção de indicadores permanentes de desempenho ambiental, incluindo técnicas de medição; (4) rotulagem ambiental que, segundo Barboza (2001) é um tipo de certificação dada aos produtos que estão adequados ao uso e apresentam uma redução de consumo de recursos e menor impacto ambiental em relação a outros produtos disponíveis no mercado.

Embora se detenha predominantemente a especificidades de produtos, de materiais e de processos, a avaliação do ciclo de vida também tem sido considerada, de uma maneira mais abrangente, em áreas como a engenharia ambiental e de produção. O Pensamento de Ciclo de Vida, segundo Lazarevic, Buclet e Brandt (2012), tem sugerido a reflexão da ACV por meio do fluxo dos problemas sociais, ambientais e econômicos vinculados aos ciclos de vida dos produtos, assim como o fluxo das políticas públicas relacionadas a determinada análise de ciclo de vida.

A avaliação do ciclo de vida de produtos como temática pedagógica abre possibilidades de se trabalhar o currículo escolar como viabilizador de questionamentos sobre o espaço social dos alunos e, dessa forma, contribuir com a "[...] identidade sociocultural do educando, dos direitos e deveres do cidadão, do respeito ao bem comum e à democracia, às práticas educativas formais e não formais e à orientação para o trabalho" (BRASIL, 2015, p. 2). Entretanto, essa contribuição que é perceptível do ponto de vista teórico necessita ser efetivada, especialmente, nas disciplinas das ciências naturais.

A ACV possui um forte potencial gerador de discussão de assuntos de caráter ambiental relacionados à ideia de desenvolvimento sustentável no ensino de química, em particular, conforme enfatizam Juntunen e Aksela (2013, 2014). Essas autoras ressaltam que um ponto interessante é que a ACV de qualquer produto, normalmente, favorece uma abordagem sociocientífica de ensino, pois envolve aspectos interdisciplinares da ciência, questões contraditórias oriundas da prevalência das decisões técnicas sobre as de interesse político-sociais, entre as quais, como impactam negativamente o ambiente. Esse contexto é potencialmente formativo para a exploração de casos de ACV em sala de aula e se constituem como temas relevantes para a vida cotidiana dos alunos. Outro ponto importante da relação entre a ACV com as QSC, de acordo com as autoras, é a formação cidadã para a defesa da ideia de desenvolvimento sustentável. As autoras reforçam ser essencial que os cidadãos do futuro tenham habilidades para agir com responsabilidade e sustentabilidade como químicos, consumidores, pais, eleitores e tomadores de decisão. Assim defendem que a ACV viabiliza a possibilidade de incluir o conceito de sustentabilidade e ética com o conteúdo disciplinar de química (CDQ), além de estar diretamente relacionada com diversos conceitos da química verde.

Embora desde o início deste texto tenhamos utilizado o termo QSC, é necessário destacar os aspectos teóricos nele envolvidos que julgamos importantes para o desenvolvimento da pesquisa aqui tratada. As questões sociocientíficas (QSC) constituem um campo de pesquisa com total afinidade com a abordagem da perspectiva Ciência, Tecnologia, Sociedade e Ambiente e que se encontra bastante consolidado internacionalmente. Zeidler et al. (2005) e Ratcliffe e Grace (2003), que têm sido amplamente citados nesse campo de pesquisa, apresentam justificativas consistentes sobre a natureza do termo sociocientífico, a partir de considerações que envolvem a natureza da ciência e o papel da divulgação científica. Os autores exploram as implicações da atividade científico-tecnológica nos contextos sociais e ambientais, assim como para o exercício da cidadania e para a compreensão do conceito de sustentabilidade. Evidencia como as controvérsias e dilemas que daí decorrem envolvem aspectos éticos e morais, e como sugerem a necessidade do preparo para a atuação cidadã na educação em ciência.

Os aspectos teóricos tratados, até aqui, permitem apontar que a investigação que deu origem ao presente trabalho, e que foi desenvolvida junto aos licenciandos em química (estagiários), teve como foco a triangulação entre QSC, ACV e CDQ na formação e atuação de professores intelectuais transformadores.

Juntunen e Aksela (2012) discutem a potencialidade de trabalharem temáticas relacionada a ACV, por considerarem que refletem o mundo moral, social e físico, das quais se aproximam da essência das questões sociocientíficas como defendem Zeidler et al. (2005). Além disso, apontam que temáticas desse tipo oportunizam discussões e desencadeiam processos de tomada de decisão individuais, no contexto escolar. Importante enfatizar que essas definições se aproximam do conceito de QSC defendido por Ratcliffe e Grace (2003).

Juntunen e Aksela (2013) discutem sobre a importância de focar o ensino na formação para a cidadania, ou seja, que sejam consumidor, pai, mãe, eleitor, com a finalidade de se tornarem tomadores de decisão; além disso, apontam a importância do desenvolvimento de habilidades para agir de forma sustentável. Esses mesmos conceitos também são apontados por Ratcliffe e Grace (2005), quando caracterizam a natureza das QSC, pois, segundo eles, as questões sociocientíficas possuem em seu cerne assuntos que envolvem a ética e a moral, as quais são evidenciadas em questões contraditórias envoltas em temas polêmicos de médio ou grande impacto na sociedade.

Diante do contexto apresentado, investimos na problematização do conteúdo de química articulado com a temática avaliação de ciclo de vida de produtos, em um viés sociocientífico como possibilidade de criação de um campo favorável para o desenvolvimento de reflexão e de ação de futuros professores, intelectuais transformadores.

O Caminho Metodológico da Pesquisa

A pesquisa foi desenvolvida no contexto do curso de licenciatura em Química da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), na cidade de Dourados, MS, no segundo semestre letivo de 2016. Os sujeitos da pesquisa foram 10 licenciandos que estavam regularmente matriculados no componente curricular de Estágio Curricular Supervisionado em Ensino III (Estágio III); um dos integrantes da pesquisa também era o professor da turma. Inicialmente, os alunos foram informados sobre a pesquisa, concordaram em participar e assinaram o Termo de Livre Consentimento e Esclarecido.

Os estudantes foram organizados em três grupos e identificados pelas siglas G1, G2 e G3; cada licenciando foi identificado com a sigla L1, L2, L3 [...] e L10. A partir de uma série de atividades formativas realizadas, cada grupo ficou responsável por explorar previamente uma temática escolhida por eles, como apresentado no quadro 1:

Quadro 1 Composição dos grupos de licenciandos 

Grupos Licenciandos Temática
G1 L1, L2 e L3 ACV de Combustíveis
G2 L4, L5 e L6 ACV de Celular
G3 L7, L8, L9 e L10 ACV de Pilhas

Fonte: elaborado pelos autores.

O caráter desta investigação corresponde às características da pesquisa qualitativa, visto que buscamos realizar uma abordagem interpretativa do mundo em que mergulhamos - o estágio no curso de licenciatura em química. O ambiente de pesquisa já faz parte do nosso contexto, pois, um dos pesquisadores é docente do curso de química da UFGD. Nesse caminho investigativo, buscamos entender os fenômenos e as interpretações que os licenciandos apresentaram, sendo elas importantes, conforme ressaltado por Gil (2008). Dessa forma, o ambiente natural de constituição dos dados está caracterizado pela atuação do pesquisador e professor da UFGD como regente de Estágio III, e os licenciandos estagiários como participantes do trajeto formativo desenvolvido nesta investigação.

Por ter essa característica exploratória e interpretativa, a pesquisa qualitativa abre possibilidades para investigar as aproximações entre os conceitos de ciclo de vida de produtos, questões sociocientíficas e formação intelectual transformadora. Para isso, atribuímos importância aos argumentos, à compreensão de atitudes, motivações, expectativas, valores, posicionamentos, ações dos licenciandos e os significados transmitidos por eles (LUDKE; ANDRE, 1986). Nesse contexto, este tipo de pesquisa valoriza a descrição e interpretação detalhada dos fenômenos e todos os elementos envolvidos.

As etapas do processo formativo e análise dos dados

As etapas formativas envolveram temáticas e ações previamente definidas que visaram estimular a argumentação dos licenciandos por meio de atividades de seminário, discussão em grupo, discussão de artigos científicos, reuniões de orientações, elaboração de sequência didática, regência (estágio) na educação básica, socialização das vivências/experiências e avaliação final da atividade. Sintetizamos as etapas formativas em discussão de textos, elaboração de uma sequência didática e socialização das atividades de estágio, apresentadas a seguir.

Discussão de textos: aconteceu com apresentação de seminários, com a duração de um mês, com encontros de sete horas semanais; foram estudados e discutidos textos referentes a capítulos específicos do livro Professor como intelectual transformador, de Giroux (1997) e sobre as QSC.

Elaboração de uma sequência didática: os licenciandos elaboraram sequências didáticas a partir do conteúdo de química presente no referencial curricular do Estado de Mato Grosso do Sul, articulando conteúdos disciplinares com ACV e QSC. Essa etapa teve a duração de um mês, com apresentação de seminários e orientações para cada grupo. Nesse momento, buscamos fundamentar as ações docentes nos conceitos da teoria de Giroux (1997). Cada grupo ficou responsável por uma temática sociocientífica - G1: combustíveis, G2: eletroeletrônicos, e G3: pilhas -, que discutia os princípios da ACV.

As atividades de intervenção em sala de aula na escola envolveram apresentação e discussão: do conteúdo de química, do conceito de avaliação de ciclo de vida, de temáticas e problemas sociais relacionados com os três temas (combustíveis, eletroeletrônicos e pilhas), rodas de discussão por meio de reportagens, que envolveram a discussão do papel do cientista na sociedade, sustentabilidade, permeando os campos da ética, moral e formação para a cidadania.

Socialização das atividades de estágio: nessa etapa, após executar a atividade na educação básica, ocorreu a reunião de estágio, com duração de oitos aulas de 50 minutos, na qual os licenciandos socializaram as dificuldades, limitações e condicionamentos da atuação docente no contexto escolar.

A Análise de Conteúdo discutida a partir dos princípios apresentados por Bardin (2006) é definida como um conjunto de técnicas que visam analisar comunicações, a partir de sequências procedimentais específicas com a intenção de desvelar os conteúdos das mensagens, nesse caso, dos relatórios dos acadêmicos que foram utilizados como corpus para análise e constituição dos dados. As etapas envolvidas foram: (a) pré-análise; (b) exploração do material; e (c) o tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação, descritas por Bardin (2006).

As categorias finais desse processo foram os enfrentamentos no contexto escolar como meio de refletir a respeito da formação docente, o papel do professor como transformador e ressignificador da avaliação, e conteúdo de química, que serão discutidas a seguir. É importante relatar que a visão do pesquisador foi registrada em um diário de campo que serviu para fundamentar as discussões das categorias elencadas.

Resultados e Discussão

Por meio do diário de campo do pesquisador, como um instrumento investigativo auxiliar, foi possível descrever as compreensões iniciais dos licenciandos, principalmente, durante as etapas formativas. Assim, temos que tais compreensões são: (1) os licenciandos tinham, inicialmente, como compreensão que o currículo não deveria ser questionado, mas cumprido integralmente; (2) o trabalho da coordenação da escola era o de solicitar que os professores ministrem as aulas visando a índices mais elevados de aprovação; (3) o professor precisa de metodologias diferentes para ensinar o mesmo conteúdo curricular; (4) a função do professor é ensinar para que o aluno passe no vestibular, como isso terá êxito na vida e será um cidadão; (5) o currículo do jeito que está posto é o principal meio para formar cidadão. A parte formativa do nosso trabalho constantemente buscava tencionar essas compreensões iniciais à luz dos referenciais teóricos trabalhados com eles.

Os resultados apresentados nesse artigo não possuem a pretensão de apresentar os conceitos e técnicas utilizados pelos grupos de licenciandos, mas sim, de mostrar os processos de formação docente que ocorreram durante a intervenção em sala de aula proporcionada por um processo formativo maior, ocorrido nas aulas de estágio.

Os enfrentamentos no contexto escolar como meio de refletir a respeito da formação docente

Os resultados expressados por essa categoria reúnem enfrentamentos, dificuldades, reflexões e ações dos licenciandos, que possibilitaram um caminho para ressignificar a compreensão sobre a prática docente e a escola a partir das tentativas de articulação das questões QSC e da ACV.

As reflexões possibilitaram constituir a práxis envolvida nas aulas de regências e, coletivamente, aconteceram nas orientações de estágio durante as chamadas etapas formativas, que envolveram a análise dos licenciandos sobre suas próprias práticas, desafios e enfrentamentos ocorridos na escola, e as dificuldades relacionadas à compreensão sobre formação para a cidadania descrita no referencial curricular do Estado de Mato Grosso do Sul.

L4 e L7 expressaram preocupação com a responsabilidade de formar um cidadão crítico, pois entendiam que isso não fosse possível dada as limitações de tempo e currículo que encontravam na sua realidade de estagiárias: duas aulas de química de cinquenta minutos cada por semana, além do conteúdo programado exigido pela escola.

A construção do cidadão crítico exige discussões mais detalhadas e aprofundadas sobre determinados assuntos, porém tem-se um tempo limitado e também um currículo a seguir. [L4].

Algo que me preocupa é como seguir o currículo e formar cidadão. Acredito que nossa preocupação deveria ser mais a segunda opção do que a primeira. [L7].

As reflexões e discussões ocorridas durante as etapas do processo formativo e de orientação também levaram a considerar o papel das estratégias didáticas no enfrentamento dos obstáculos.

Por mais que eu perceba que a sala tem muito mais participação e produção, com discussões sociais, isso não é a única coisa que será trabalhada em sala de aula, e é preciso pensar de que forma tornar o ensino da química propriamente dita de modo que a torne mais interessante para os alunos. [L1].

Nós precisamos de mais tempo ou um novo conteúdo como uma forma de atuar na escola para poder formar um cidadão. [L4].

Comumente, ouvimos dizer, no contexto escolar, que o professor precisa de mais tempo para cumprir o conteúdo de química. A licencianda ao apontar "não é a única coisa que será trabalhada em sala de aula" argumenta que o fato de ter trabalhado as temáticas ACV e QSC em sala de aula, provavelmente, seriam cobradas pelo conteúdo curricular previsto pela professora supervisora que, consequentemente, seria cobrada pela administração escolar. Isso evidencia o discurso de administração e controle denunciado por Giroux (1992), como forma de controlar e facilitar o processo hegemônico de administração e redução do aprendizado a números e futuras decisões de distorcem da necessidade escolar.

O novo conteúdo citado pelo licenciando aponta que o atual currículo não cumpre a sua função em auxiliar na formação para a cidadania. Reflexões acerca do conteúdo disciplinar surgiram a partir dessa situação, os licenciandos começaram a questionar o currículo escolar e a contradição existente entre os documentos norteadores da educação e as avaliações de largas escalas.

Qual o objetivo do currículo? As avaliações em largas escalas cobram do aluno situações para a formação do cidadão? Os documentos norteadores apontam tal tendência, mas as práticas dos professores têm colaborado para isso? [Grupo ACV Celular].

O currículo em questão se refere ao conteúdo disciplinar de química, previsto pelos documentos norteadores da educação. As licenciandas questionaram o currículo da escola e a prática dos professores realizadas por meio de metodologias de ensino que visavam ensinar um determinado conteúdo do currículo, mas que "[...] não colabora para a criatividade e o discernimento do professor", conforme enfatizou Giroux (1997).

Na trajetória formativa e investigativa envolvidas neste trabalho, as reflexões a respeito da importância da valorização do capital cultural dos alunos na concretização do currículo eram essenciais, pois sustentavam teoricamente a pretensão de articular a ACV, QSC e conteúdos disciplinares nas aulas de química na escola. Mas esta articulação na escola nunca foi considerada uma tarefa trivial, pois era sabido que os licenciandos enfrentariam dificuldades de várias ordens, dado que, de antemão, se sabia sobre a expectativa dos alunos do ensino médio sobre aulas de química, sobre as dificuldades de ampliar os tópicos tratados, dificuldades com o tempo para o cumprimento do que se esperava deles como estagiários, entre outras.

Entretanto, pelo modo como L4 descreve o trabalho realizado em sala de aula sobre o tema, nota-se o rompimento com aquilo que Giroux (1992) chama de reprodução curricular que o professor realiza na escola por conta das forças das pedagogias de gerenciamento. Nesse sentido o licenciando não explorou somente a discussão do conteúdo didático de química.

O papel do professor como transformador

Pelos argumentos de L6, L4 e L2 é possível perceber a compreensão que tiveram sobre a responsabilidade e a função social do papel do professor:

[...] porque além de alunos serem cidadãos, onde parte de sua estruturação como pessoa é na escola e o professor tem papel fundamental e de grande influência, pois pode dar subsídios para a construção dessa consciência social do aluno. [L6].

Como futura professora, percebo que existe uma dificuldade muito grande para levar isso para a sala de aula, mas agora percebo o quanto isso é essencial para a formação do cidadão, pois de nada adianta o aluno conhecer diversos conceitos químicos se ele não entender o papel dele na sociedade, ele precisa ser incentivado e orientado para essa mudança de olhar e como professora que propõe uma mudança na construção desse cidadão é muito importante que essas discussões sejam levadas para a escola. [L4].

Acredito que a formação do cidadão pode iniciar na escola e o professor tem um importante papel nesse processo de ensino e aprendizagem da cidadania.[L2].

Nos trechos dos relatos de L6, L4 e L2 existe o reconhecimento do papel do professor e da escola no processo formativo para a cidadania; e a compreensão da importância de proporcionar ao aluno reconhecimento de seu papel na sociedade, ou seja, o papel incentivador e motivador do professor. Nossa visão é que, dessa forma, os licenciandos estão procurando "tornar o conhecimento curricular significativo, crítico e emancipatório" (GIROUX, 1997, p. 163).

Ao relatar que o professor pode dar subsídios ao aluno para a construção dessa consciência social, percebemos que o foco principal não é somente o ensino de conceitos químicos em si, mas o ensino para a formação cidadã. Ao reconhecer as limitações do currículo, os licenciandos demonstraram criticidade ao denunciar o que antes era o principal para eles: o atendimento da lista de conceitos apresentados pelo referencial curricular do Estado.

Os licenciandos reconheceram as dificuldades e enfrentamentos necessários de levar tais discussões para a escola, "como proporcionar tal discussão no âmbito da escola? O aluno vai enxergar tal articulação com a sociedade somente em uma ou outra disciplina?". Ao analisar o argumento de L5 percebemos que seu posicionamento é de que "tal articulação com a sociedade" poderá ser potencializada se as disciplinas romperem com o caráter meramente disciplinar, deixando de contribuir com a "[...] fragmentação do ensino, objetivando a formação integral do aluno, a fim de que possa exercer criticamente a cidadania" (LÜCK, 1995, p. 64).

No que se refere à reflexão ocorrida durante o planejamento, ocasionado perante as intervenções em sala de aula, o grupo demonstrou que a compreensão do que é ensinado e como deve ser ensinado é um movimento essencial para a análise de sua própria atuação no contexto escolar. Além disso, as licenciandas fizeram uma reflexão sobre a atividade: "Na minha opinião é mais importante a qualidade do conteúdo que se dá e não a quantidade, pois de nada adianta passar inúmeros conceitos de qualquer jeito e não se preocupar como o aluno está aprendendo e a qualidade dessas aulas". [L6].

O relato se refere ao tempo que os licenciandos tiveram para oportunizar as discussões em sala de aula, e o aprendizado apontado é referente à relação que sua sequência didática abordou em sala de aula. Ao promoverem essas discussões, nas aulas de orientações, foi possível perceber o compromisso com a sua futura profissão, pois estavam insatisfeitos com a apresentação do sistema escolar de Mato Grosso do Sul.

A formação para a cidadania foi outro ponto permitido pelo processo formativo utilizado em estágio III. O reconhecimento da escola como espaço de formação para a cidadania foi um aspecto compreendido pelos licenciandos:

O papel da escola na formação do cidadão é muito importante, a escola é o lugar onde o estudante deverá encontrar os meios de se preparar para realizar seus projetos de vida, condição necessária tanto na sua formação intelectual quanto moral. Para isso, os professores e toda comunidade escolar fazem parte dessa formação dos alunos, formando assim cidadãos críticos, e uma das formas de conseguir alcançar esse objetivo é trabalhando as QSC em sala de aula. [L9].

Um dos objetivos principais dos professores da educação básica é a formação de cidadãos. Mas como isso pode ser alcançado? Uma das maneiras é trabalhando as QSC em sala de aula. Um verdadeiro cidadão sabe mais do que os seus direitos e deveres, ele também sabe se posicionar diante de qualquer assunto, seja da esfera política, social, econômica, ambiental, tecnológica e etc. Para que isso ocorra, ele deve saber argumentar, analisar criteriosamente as hipóteses antes de defender uma ideia, investigar quais interesses podem estar por trás de uma notícia divulgada na mídia. [L10].

As licenciandas L9 e L10 reconheceram que a escola é um local de formação cidadã, mas para isso, em sua visão, é essencial que professores tenham noção de seu importante papel no processo de formação cidadã. Vale ressaltar que defendemos nesse trabalho a premissa de que a articulação entre QSC e ACV auxilia no processo de atuação docente, para o reconhecimento da escola como espaço de formação.

Um fator que possibilitou o reconhecimento da escola como espaço de construção da cidadania foi o trabalho com as questões sociocientíficas, pois, até então, não estavam acostumados com esse tipo de atividade nos componentes curriculares do curso de química. "Discutir ética e moral no ensino médio? Essa também será minha função? Como posso promover tal articulação?" [L5]. Tiveram outras inquietações nos primeiros dias de orientação das atividades, que foram superadas ao final das mesmas, pois trabalharam os conceitos de ética e moral.

A abordagem dos conceitos de ética e moral apresentada pelos licenciandos enfatizou valores universais que são essenciais para a convivência individual e coletiva; tal interpretação se deu pelo fato de terem sido discutidas na sequência didática situações que colocaram os alunos em uma postura de reflexão sobre como suas atitudes podem impactar na vida individual e coletiva, como no caso da preocupação em relacionar os impactos ambientais de produtos com a vida cotidiana dos alunos.

Discutir nas aulas de química o conceito de justiça baseado na necessidade de uma sociedade justa, a partir de atitudes de respeito pelas diferenças entre as pessoas, é necessário ao convívio numa sociedade democrática e pluralista. Nos trechos apresentados até o momento - "qual a função perante a sociedade" [L4]; "qual a responsabilidade das empresas" [L5]; e, "a sociedade tem que questionar e buscar melhorias pra todos" [L8] -, denota-se o valor do questionamento diante de cidadãos que podem ser questionadores, e que se aproximam dos princípios democráticos e do pensamento pluralista.

Interpretamos que uma das características da ACV, quando associada a uma temática sociocientífica, está no fato de proporcionar discussões sobre moralidade e ética na educação básica, visto que esses dois conceitos possuem um caráter interdisciplinar que proporcionam a interação com as demais disciplinas do currículo da educação básica.

Thompson (1995) revela que o processo de passivação do professor ocorre quando ele entende que o dever de mudança é da própria instituição, ou mesmo o sistema hegemônico; dessa forma, não toma posicionamento ativo no processo e não contribui para que a escola tenha reconhecimento na esfera pública. Nesse sentido, há uma transferência de responsabilidade, na qual o professor a desloca de seu sujeito e a transfere para o responsável pelo poder, deixando, nesse processo, de ser um sujeito ativo. A atuação do professor contra o sistema hegemônico no qual a escola está inserida foi outro ponto sobre o qual a maioria dos licenciandos se posicionou, de forma a questionar o pedagógico e o político dentro e fora da escola.

Ressignificando a avaliação e conteúdo de química

A avaliação das atividades dos alunos das escolas foi um assunto que gerou discussões nas aulas de orientação. Ao refletirem sobre esse assunto, os licenciandos demonstraram preocupações, pois consideravam que, ao avaliar os alunos, estariam também avaliando o seu próprio domínio conceitual e o desempenho que tiveram em sala de aula. Dessas discussões surgiu um questionamento que, para eles, foi fundamental: como avaliar se o aluno entendeu ou não o conteúdo?

Pudemos constatar que, entre os licenciandos, o conceito de avaliação estava estreita e significativamente restrito à ideia de se medir a correspondência entre aquilo que os alunos falavam e as verdades conceituais da química, ligadas a uma ideia tradicional de conteúdo. As contextualizações possibilitadas nas sequências didáticas, por meio das interações entre ACV, QSC e CDQ, e implementadas nas aulas nas escolas, criaram um novo conceito de conteúdo de ensino. L4 provocou um interessante momento de reflexão do grupo ao evidenciar a sua indignação com o sentido dado à avaliação por estagiários e professores da escola:

Não estou dizendo que a participação daqueles poucos alunos não foi válida, sim foram, mas não posso olhar para isso e dizer que alcancei meu objetivo proposto. Pensar dessa forma é agir como a maioria dos políticos, que olham para a situação de um único pobre, que conseguiu passar em um curso de medicina e usam isso para dizer que temos uma boa educação e que tudo é uma questão de querer e de esforço, não, não é, precisamos de recursos, de infraestrutura, de capacitação, e isso não cai do céu, não é apenas uma questão de esforço, isso é necessário, é claro, mas somente com isso, uma boa educação não é possível. O governo olha para aquele 1% que consegue, mas não para pra pensar e avaliar aqueles 99% que não conseguem.[L4].

O licenciando demonstrou insatisfação com o fato de os colegas de turma ou os professores afirmarem que os “alunos aprenderam o conteúdo” porque, no seu entendimento, somente um ou outro conseguiu aprender. Essa indignação foi exposta em uma reunião de orientação, quando lembrou que em estágios anteriores diziam que o aluno aprendeu, mas que somente um ou outro havia aprendido. Ou seja, denunciava algo que parecia fazer parte da cultura escolar e que os estagiários acabaram assimilando.

Giroux (1997, p. 27) destaca o discurso da administração e controle muito presentes nas escolas, "[...] no qual toda a experiência que o estudante traz para dentro da escola é reduzida ao seu desempenho", no sentido de medir algo existente, como algo a ser medido, administrado, registrado, controlado e expresso em números, por exemplo. Embora o grupo de licenciandos ainda estivesse atrelado a essa concepção, a indignação evidenciada por um deles tem um significado positivo, pois demonstra preocupação sobre o ato de avaliar.

O fato de o grupo de licenciandos levar a discussão para o âmbito das atitudes de governos revela a percepção e o incômodo com uma concepção hegemônica de educação, e contesta os discursos oficiais que, invariavelmente, generalizam poucos e certos tipos de resultados obtidos como forma de abrandar os efeitos de insistentes políticas que se configuram como mecanismos dissimulados de perpetuação da exclusão.

A L3 apresenta uma crítica ao ensino dito conteudista, isto é, aquele que se preocupa apenas em cumprir o conteúdo curricular pré-formatado exigido pelo referencial curricular do Estado. O questionamento segue a mesma crítica que Giroux (1997), quando rejeita a ideia de que o "bom professor" é aquele que cumpre o objetivo de ensino; e "bom aluno" é aquele que é "quieto" em sala de aula. A fala do licenciando traz elementos que constituem uma visão a respeito da atuação de um professor intelectual, pois questiona imposições colocadas no meio escolar, no qual, os professores seguem naturalmente, como um discurso a ser seguido e não questionado, como uma verdade superior.

Nesse contexto, a utilização da problematização do conteúdo de química do referencial curricular proporcionou, na visão da licencianda L3, uma reflexão crítica dos licenciandos, e também do espaço escolar como formativo para ações cidadãs. Não foi possível averiguarmos se essa reflexão crítica ocorreu por parte dos alunos, pois, para que isso fosse possível teríamos que verificar se houve tomada de decisão fundamentada nas discussões que os licenciandos proporcionaram em sala de aula:

O exercício de realizar a problematização de conceitos em sala de aula, visando à reflexão crítica desses conceitos pelos educandos, foi experiência nova, até então eu como professora não havia pensado na transmissão de conceitos químicos visando uma ação reflexiva. Percebi a diferença dessa postura nas atitudes dos alunos, que participaram da aula de maneira muito mais significativa, que em aulas onde os conceitos eram trabalhados visando à mera transmissão dos conteúdos programáticos. [L3].

Ao argumentar a respeito do "ensino problematizado", reflete sobre sua própria prática, pois compara duas situações. Revela que, em sua compreensão, o ensino da maneira que é "dado" obedece ao referencial curricular e não desperta o interesse do aluno; além disso, não proporciona reflexão crítica, ou seja, a atuação docente nesse foco não promove um ambiente que possibilite a reflexão crítica.

Essa nova compreensão do conteúdo ao ser ensinado, partiu de um processo de reflexão da prática docente, isto é, quando os licenciandos foram colocados em uma posição de questionamentos pelos professores que conduziram as atividades de estágio. Antes, era dada importância para o conteúdo disciplinar de química, mas ao final da atividade, o conteúdo foi ressignificado. Sob essa ótica, a ressignificação contribui para a desconstrução de concepções e compreensões trazidas pelos próprios licenciandos a respeito do que ensinar.

Considerações Finais

O tema avaliação de ciclo de vida de produtos se configura como uma temática sociocientífica emergente no cenário da educação em ciências no país, pois promove a articulação com aspectos científicos e tecnológicos, que permitem a discussão desse contexto na escola.

O campo de reflexão proporcionado pela atividade e os conceitos discutidos fizeram despertar questionamentos dos licenciandos a respeito da sua própria formação, o que vai além do ensino de conceitos de química e dos enfrentamentos do contexto escolar, tal como a meta estabelecida pela escola de cumprir o conteúdo programado, o que facilita o controle administrativo da situação, mas dificulta a autonomia docente.

Foi possível perceber que o grupo de licenciando refletiu sobre suas atitudes em sala de aula, pois, até então, a preocupação era focada no ensino do conceito de química, estabelecido pelo referencial curricular do Estado, e depois passou a ser focada na formação para a cidadania.

A relação estabelecida entre o conteúdo de química, avaliação de ciclo de vida de produtos e as questões sociocientíficas apontaram um campo fértil para discussões em sala de aula, permitindo transitar entre o conteúdo de química e as discussões que fomentam a formação para a cidadania. Esse contexto abriu espaço para o debate de problemas da sociedade, o que facilitou o processo argumentativo em torno de questões éticas, morais e de formação de opinião.

Sustentamos a necessária ação de explorar o conceito de avaliação de ciclo de vida de produtos como uma temática sociocientífica, a fim de formar e transcender o predomínio da racionalidade técnica, tradicionalmente presente no tratamento dos conteúdos disciplinares de química. As relações entre ciclo de vida de produtos e questões sociocientíficas permitem a busca de contextos em que a racionalidade informal entra em cena, e onde emergem questões sobre responsabilidade social e ambiental, custo-benefício, interesses políticos, entre outras.

Nessa visão, a elaboração e o desenvolvimento de estratégias de intervenções didáticas pautadas na abordagem de temáticas, implicam no estabelecimento de parâmetros que sustentam a seleção de temáticas articuladoras para o conteúdo de ciências/química na educação básica. Assim, a ACV foi uma temática articuladora no ensino, pois promoveu a abordagem sociocientífica de modo a relacionar-se com o conteúdo de química, tanto no ensino médio, quanto em cursos de formação de professores.

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Recebido: 26 de Fevereiro de 2020; Aceito: 27 de Setembro de 2020

Autor Correspondente: ademirpereira@ufgd.edu.br

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