SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.27Environmental education in municipal schools in the city of Campo Grande, Mato Grosso do SulA critical analysis of the digital culture in the Common National Curriculum Base author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Share


Ciência & Educação

Print version ISSN 1516-7313On-line version ISSN 1980-850X

Ciência educ. vol.27  Bauru  2021  Epub Aug 12, 2021

https://doi.org/10.1590/1516-731320210033 

Artigo Original

A pesquisa em ensino de ciências e a educação científica em tempos de pandemia: reflexões sobre natureza da ciência e interdisciplinaridade

Research on science teaching and scientific education during a pandemic: reflections on the nature of science and interdisciplinarity

Giselle Faur de Castro Catarino1 
http://orcid.org/0000-0002-0490-140X

José Cláudio de Oliveira Reis1 
http://orcid.org/0000-0001-6949-465X

1Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Instituto de Física, Departamento de Física Aplicada e Termodinâmica, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.


Resumo:

Este artigo retoma e repercute algumas indagações fundamentais para a pesquisa em Educação em Ciências, projetadas pelo atual contexto de pandemia que vem reforçando fragilidades, mas também revelando caminhos possíveis para superação de problemas. Baseamo-nos nas perspectivas socio-histórico-cultural e dialógica para apontar caminhos e descaminhos da construção do saber científico e de seu ensino. Partimos do diálogo com as atuais contribuições da área, reforçando a importância de um ensino baseado em aspectos da natureza da ciência, com foco em uma perspectiva interdisciplinar. Como reflexões, entendemos que a pandemia nos traz a possibilidade de repensar o papel da Educação em Ciências e do nosso papel na qualidade de educadores, indicando a necessidade de desenvolvimento de uma postura e de uma prática mais dialógicas, caminhando em direção à complexidade e à evolução histórica, cultural e social dos conceitos, e possibilitando propostas interdisciplinares inclusivas, essenciais para uma visão crítica do mundo.

Palavras-chave: Ensino de ciências; Pandemia; Natureza da ciência; Interdisciplinaridade

Abstract:

This article revisits and reverberates on key issues for research in Science Education, triggered by the current scenario of a pandemic that has been emphasizing weaknesses but also possible ways to overcome problems. Our study is based on the dialogical, socio-historical and cultural perspectives in order to highlight directions and non-directions for constructing scientific knowledge and teaching it. We begin by interacting with the current contributions in the field, stressing the importance of an education that is based on the natural aspects of Science, and focusing on an interdisciplinary perspective. As part of our reflections, we understand that the pandemic brings about the possibility of rethinking the role of Science Education and our role as educators. The approach also showcases the need to develop more dialogical stances and practices on the path towards the complexity and the historical, cultural and social evolution of concepts, thus allowing for inclusive interdisciplinary proposals that are essential for a critical view of the world.

Keywords: Science teaching; Pandemic; Nature of science; Interdisciplinarity

Introdução

A pesquisa em ensino de ciências vem consolidando-se nas últimas décadas e apresentando tendências e pontos convergentes, definidos a partir de diálogos entre os principais atores da área, como Almeida e Nardi (2020), Cachapuz et al. (2005), Gil-Pérez et al. (2001), Guerra, Braga e Reis (2013), Krasilchik (2000), Moreira (2004), Praia, Gil-Pérez e Vilches (2007). Tais tendências se configuram a partir das pesquisas e práticas desenvolvidas no diálogo entre Escola e Universidade e apresentam resultados relevantes sobre as possibilidades e desafios para os processos de ensino e aprendizagem de ciências.

Os processos de produção de conhecimento que se constituem a partir desses diálogos se caracterizam por eventos de interação sociocultural, de consciência socioideológica, atravessados por forças sociais (BAKHTIN, 2011). Essa ideia reforça a importância de uma postura dialógica que projete saberes e conhecimentos envolvidos no processo de construção de conhecimento, valorizando a perspectiva de que nós estamos em constante transformação e nos constituímos a partir do outro. Nesse sentido, as ideias aqui desenvolvidas se baseiam na perspectiva de que uma voz (BAKHTIN, 2011), ou seja, uma visão de mundo é constituída por outras vozes, algumas explícitas, e outras, implícitas. Assim, muitas vozes poderão ser identificadas ao longo da discussão aqui realizada.

No sentido de promover reflexões sobre a construção do saber científico e de seu ensino, apresentamos, neste ensaio, questões fundamentais acerca do Ensino de Ciências, tendo em vista nosso atual cenário pandêmico, que vem reforçar necessárias mudanças para a área. Buscamos aqui dialogar com as atuais perspectivas na área da pesquisa em Educação em Ciências, reforçando a importância de um ensino baseado na Natureza da Ciência com foco na perspectiva Interdisciplinar.

Assim, nesse breve ensaio, nosso olhar começa focalizando o atual cenário, no qual estamos imersos, permeado por fragilidades que exigem o desenvolvimento não apenas de espaços de reflexão sobre questões referentes à produção de conhecimento na área de Educação em Ciências, mas também, de tomada de responsabilidade e decisão quanto à promoção de um ensino mais comprometido com a socialização do que vem sendo consolidado.

Após a apresentação de uma visão sobre o atual cenário, principalmente no que se refere ao ensino de ciências, entendemos que, nem sempre, os resultados da produção de conhecimento da área estão presentes nas práticas de ensino, evidenciando a complexidade das tendências e propostas reveladas pelas pesquisas. Desta forma, buscamos apresentar possíveis caminhos, a partir das perspectivas sociocultural e dialógica, dentre as muitas possibilidades levantadas em termos de referenciais teórico-metodológicos, com vistas a uma educação que almeje uma formação científica de cidadãos críticos e preocupados com o desenvolvimento social sustentável.

Diante da perspectiva trilhada nesse ensaio, e partindo de uma questão mais geral já colocada por diversos autores da área - qual é o papel da Educação em Ciências? -, entendemos que nossa preocupação se encaminha no sentido de reforçar a urgência em efetivar mudanças necessárias. Nesse sentido, baseando-nos em resultados de diálogos promovidos na área, que vêm se mostrando cada vez mais urgentes, principalmente em relação à Natureza da Ciência e Alfabetização Científica, buscaremos apontar a necessidade de materializar tais resultados também em sala de aula.

O cenário atual

Antes de adentrar o tema da pesquisa em ensino de ciências, é preciso falar um pouco sobre o que vem acontecendo no Brasil e no mundo, com a atual pandemia devido ao coronavírus SARS-CoV-2, causador da doença COVID-19.

O surgimento da pandemia vem sendo associado ao modo de vida e ao processo de modernização e urbanização, sendo também consequência das intervenções do homem no meio ambiente, o que normalmente gera graves desequilíbrios ecológicos:

A epidemia em curso pelo SARS-COV-2 deve ser entendida no contexto atual do impacto dos fenômenos que envolvem as inter-relações do homem com a natureza, e a oportunidade para avaliar e compreender as necessidades para alcançar uma Saúde Única com abordagem da relevância das interações entre saúde ambiental, animal e humana como elemento chave para muitas doenças emergentes. (CHAVES; BELLEI, 2020, p. iii).

Dessa maneira, é preciso compreender como as modificações ambientais e as intervenções humanas afetam o aparecimento de doenças, e como as diferentes esferas sociais - economia, políticas públicas, saúde, educação etc. - estão inter-relacionadas para pensar alternativas que gerem qualidade de vida e, inclusive, nossa permanência nesse mundo.

É preciso apontar ainda que, com a pandemia, nossas fragilidades, como indivíduos, sociedade e projeto de humanidade, vêm sendo expostas, alcançando nossa concepção de Ciência e de trabalho científico. No caso do Brasil, especificamente, as desigualdades sociais estão escancaradas. O que temos é a constatação de um país com acentuadas desigualdades sociais, pouco investimento em pesquisa, saúde, educação, ciência e cultura, e um processo acelerado de desindustrialização. Para compreender esse quadro, partimos da ideia de que vivemos hoje a herança da modernidade, baseada em um enorme avanço científico e desenvolvimento tecnológico versus um absurdo caos social, com racismo, violência contra a mulher, pobreza extrema, aquecimento global e uma grave crise ambiental (BOFF, 2017).

Boaventura de Sousa Santos (SANTOS, 2017) aponta que muitos dos nossos problemas são consequência da dominação social, política e cultural, resultantes da distribuição desigual do poder. E os processos que envolvem essas formas de dominações se constituem, principalmente, devido ao capitalismo, ao colonialismo e ao patriarcado, que são os símbolos da modernidade.

Ao contrário do que vulgarmente se pensa, a independência política das antigas colônias europeias não significou o fim do colonialismo, significou apenas a substituição de um tipo de colonialismo (o colonialismo de ocupação territorial efetiva por uma potência estrangeira) por outros tipos (colonialismo interno, neocolonialismo, imperialismo, racismo, xenofobia, etc.). Vivemos hoje em sociedades capitalistas, colonialistas e patriarcais. (SANTOS, 2017).

Tais sociedades se desenvolvem, então, gerando acentuada concentração de riqueza, desigualdade social, e potencializando a destruição da vida do planeta. Essas consequências são vivenciadas pela maioria da população e sentidas com essa pandemia.

Os pontos levantados até aqui estão diretamente associados a uma perspectiva filosófico-político-pedagógica que vem conduzindo nossos pensamentos e ações, gerando, entre outras coisas, especialmente nos campos da pesquisa e da educação, uma enorme fragmentação disciplinar (JAPIASSU, 2006), que não consegue dar conta dos sérios problemas vivenciados e de nossa formação social.

Então, ao mesmo tempo em que vivemos em um mundo que nos obriga a dar conta de temas cada vez mais complexos, envolvendo variáveis e problemas que necessitam, por sua vez, do diálogo entre muitas áreas do conhecimento, somos formados e estamos formando pessoas cada vez mais segmentadas, indo na contramão das demandas impostas pela pandemia. Ou seja, a pandemia vem mostrar que a maior parte de nossos problemas só pode ser resolvida se formos capazes de transitar em diversas áreas de conhecimento.

Assim, não faz sentido falar em conhecimento descontextualizado e puramente abstrato. Diferentes áreas de conhecimento e os diferentes atores sociais envolvidos no contexto da pandemia apontam para a necessidade de uma visão integrada e interdisciplinar do conhecimento e das práticas, na área de humanidades e ciências.

É preciso, então, gerar um repertório coerente com as atuais e futuras demandas sociais, para a construção de práticas socioculturais no âmbito da educação em ciências. É preciso perguntar: qual é o papel da Educação em Ciências? Que conhecimentos são necessários para superar as controvérsias sociocientíficas e os problemas gerados pelo que chamamos de herança da modernidade?

Ensino de ciências e o cenário atual

Muitos estudos têm apresentado problemas e incoerências na área de Educação em Ciências, gerando uma imagem inadequada do que é a ciência e como se constrói o conhecimento científico (GIL-PÉREZ et al., 2001; MOREIRA, 2018). Ampliando nosso olhar, percebemos que o Movimento Antivacina e o Terraplanismo são, de alguma maneira, resultados e respostas à formação básica que estamos oferecendo, e colocam a necessidade de refletir sobre esses fenômenos sociais, seus significados e suas implicações para o trabalho de professores e para a sociedade. Esses movimentos têm sido classificados como pós-verdades, que são acentuadas pelas fake news. O objetivo deste artigo não é apontar, teoricamente, o que seja o controverso conceito de pós-verdade, mas é importante pensar quais são as causas já apontadas na literatura para o negacionismo da Ciência, tendo em vista as proporções alcançadas por tais movimentos, gerando impactos sociais, como visto em inúmeras situações na atual pandemia.

Como ressaltado, a falta de conhecimento sobre o que é a Ciência e de como ela é produzida pode levar a distorções e ao seu negacionismo. Chalmers (1993) já apontava que uma concepção popular de conhecimento científico, ou o que ele chamou de concepção amplamente aceita de senso comum da ciência, está associada a afirmações como:

Conhecimento científico é conhecimento provado. As teorias científicas são derivadas de maneira rigorosa da obtenção dos dados da experiência adquiridos por observação e experimento. A ciência é baseada no que podemos ver, ouvir, tocar etc. Opiniões ou preferências pessoais e suposições especulativas não têm lugar na ciência. A ciência é objetiva. O conhecimento científico é conhecimento confiável porque é conhecimento provado objetivamente. (CHALMERS, 1993, p. 24).

Para o autor, tal concepção é formalizada pela explicação indutivista ingênua da ciência. Segundo Gil-Pérez et al. (2001), várias pesquisas mostram que o ensino de ciências transmite visões empírico-indutivistas da Ciência, gerando incoerências e desconhecimento sobre como se constrói o conhecimento científico. Atribuem às limitações da educação científica "[...] concepções epistemológicas inadequadas e mesmo incorretas como um dos principais obstáculos aos movimentos de renovação da Educação em Ciência/Didática das Ciências" (GIL-PÉREZ et al., 2001, p. 126). Nesse sentido, o papel da educação em ciências e suas consequências são fundamentais para refletir sobre o negacionismo da Ciência, e sobre as tomadas de decisões por parte dos indivíduos, das organizações e nações, incoerentes com as demandas sociais e ambientais por uma vida de qualidade e de igualdade para todos.

A compreensão de alguns conceitos torna-se fundamental para enfrentarmos esses movimentos anticiência que acabam por reforçar uma visão ingênua e deformada do conhecimento científico. Gil-Pérez et al. (2001) apontam sete deformações que indicam uma imagem ingênua, "[...] profundamente afastada do que é a construção do conhecimento científico, mas que se foi consolidando até tornar-se um estereótipo socialmente aceito que, insistimos, a própria educação científica reforça ativa ou passivamente" (Gil-Pérez, 2001, p. 128-129). São elas: concepção empírico-indutivista e ateórica; visão rígida (algorítmica, exata, infalível); visão aproblemática e a-histórica; visão exclusivamente analítica; visão acumulativa de crescimento linear; visão individualista e elitista; e visão socialmente neutra da ciência.

Associada a essa visão ingênua e deformada do conhecimento científico, há também a existência de um discurso científico de caráter monológico, que reforça uma falsa ideia de separação entre Ciência e Sociedade. Segundo Mikhail Bakhtin:

Por mais monológico que seja o enunciado (por exemplo, uma obra científica ou filosófica), por mais concentrado que esteja no seu objeto, não pode deixar de ser em certa medida também uma resposta àquilo que já foi dito sobre dado objeto, sobre dada questão. (BAKHTIN, 2011, p. 298).

Assim, apesar da existência de níveis monológicos (AMORIM, 2004) na construção do conhecimento científico, ele não é separado da sociedade e precisa ser compreendido como parte dela:

A produção do conhecimento científico se processa, obviamente, num contexto de relações sociais. Portanto, o discurso científico é construído nos encontros e confrontos de escritores, leitores, textos, teorias, formando um tecido de vozes, marcado pelo dialogismo e pela alteridade. (CORTES, 2009, p. 8-9).

Defende-se, assim, uma postura mais dialógica dos atores que constituem o campo científico, não só em relação à sociedade, mas também em relação a outras formas de conhecimento, evidenciando a produção social do conhecimento científico e as relações existentes nesse processo.

Vale ressaltar que não nos parece razoável acreditar que a mera oposição de um discurso provido de autoridade científica resolverá o problema do negacionismo da Ciência, uma vez que o discurso negacionista parte também de uma autoridade. A Educação em Ciências tem, então, de gerar estudantes críticos e não subservientes a uma Ciência autoritária, dona de toda a verdade sobre o mundo, que exclui a diversidade, e que acaba não identificando a maioria dos estudantes com a possibilidade de vir a ser cientista no futuro, pois são negros, mulheres, indígenas, latinos e tantos outros integrantes da sociedade que não se identificam com a ciência eurocêntrica e machista (COSTA, 2006; FRANCISCO JUNIOR, 2008; MORTARI; WITTMANN, 2018).

É possível apontar, ainda, para possíveis crises epistemológicas do próprio conhecimento, como exemplo temos a incompatibilidade entre a Teoria da Relatividade Geral e a Mecânica Quântica e a busca por uma teoria unificadora. Tal incompatibilidade pode levar à ideia de que a Ciência é frágil e nem sempre coerente.

Uma pesquisa recente de Lima et al. (2019) aponta como causas para a criação de pós-verdades, a visão reduzida da Natureza da Ciência e o apagamento da rede que sustenta proposições científicas. Ou seja, o desconhecimento do que é e como funciona a Ciência, associado ao apagamento de uma rede que sustenta as proposições científicas, levaria ao surgimento de pós-verdades. Segundo os autores:

Pensadores contemporâneos responsabilizam o pensamento pós-moderno por dar suporte teórico para a formação de pós-verdades (Mcintyre, 2018). No presente artigo, entretanto, trilhamos um caminho alternativo e defendemos a tese de que tanto o discurso cientificista (moderno) quanto as principais críticas a ele (incluindo o pós-modernismo) possuem bases metafísicas que são responsáveis por subsidiar a produção e proliferação de 'cenários de pós-verdades'. Propomos que a maneira como a realidade é apresentada por todos esses discursos inviabiliza a opinião pública de se posicionar frente às controvérsias sociotécnicas através de dois mecanismos distintos, a dizer, a apresentação de uma visão reduzida da natureza da ciência e o apagamento da rede que sustenta proposições científicas. (LIMA et al., 2019, p. 157).

Nesse sentido, a partir das reflexões filosóficas apresentadas, os autores oferecem uma nova visão para o conceito de pós-verdade, indicando que sua propagação é corroborada por diversos discursos.

Como, então, enfrentar o negacionismo da Ciência e gerar situações em sala de aula que contribuam para a formação de sujeitos capazes de se posicionar e compreender a rede que sustenta o discurso científico?

No atual cenário, que envolve as diversas controvérsias acerca do processo das pesquisas para conter a pandemia, nota-se uma preocupação em torno do que se apresenta como Ciência, uma vez que há relativização dos resultados científicos, indicação indiscriminada de medicação, discordância por parte de autoridades sobre as medidas de saúde pública, como isolamento social. Assim, ao mesmo tempo em que vemos a projeção da Ciência como melhor possibilidade para enfrentarmos a pandemia, há o aparecimento de discursos anticiência, aumentando as controvérsias científicas (REIS; GALVÃO, 2005).

Nesse sentido, reforçamos que só uma educação científica que promova também um melhor entendimento de como a pesquisa científica funciona pode nos levar a formar cidadãos conscientes e críticos em relação ao mundo e como nos colocamos nele. Vamos trazer perspectivas que nos ajudem a pensar a educação científica em coerência com a visão até aqui apresentada.

Perspectivas sociocultural e diálogica

Muitas possibilidades vêm se apresentando na tentativa de oferecer uma educação considerada de qualidade para a formação científica de cidadãos críticos e preocupados com o desenvolvimento social sustentável. Entre elas estão a Educação em Direitos Humanos (CANDAU, 2008; OLIVEIRA; QUEIROZ, 2013), a Perspectiva Intercultural Crítica (CANDAU, 2020), a Perspectiva Decolonial (MOURA; JAGER; GUERRA, 2020), a Perspectiva Sociocultural (LEMKE, 2001), a Perspectiva Dialógica (CATARINO, 2017). Não é possível detalhar cada uma delas neste trabalho, por isso, vamos trazer breves reflexões sobre a perspectiva sociocultural e a dialógica.

Assumir uma perspectiva sociocultural na área da Educação em Ciências significa compreender a Ciência e a pesquisa em ensino de ciências como atividades sociais humanas, realizadas a partir da realidade cultural, além de compreender o papel da interação social no processo de ensino e aprendizagem da ciência (LEMKE, 2001). A valorização dessa ligação com a sociedade e com outras áreas da cultura, a partir de uma perspectiva sociocultural, na área de ensino de ciências, já contava com autores como Jay Lemke (LEMKE, 2006), que defende um currículo de ciências voltado para questões sociais e para o enfrentamento de problemas, como a injustiça social e a crise ambiental (como a que estamos vivendo nessa pandemia).

Ainda sobre a perspectiva sociocultural, podemos entender o conceito do dialogismo de Mikhail Bakhtin como sendo a base do processo de construção do sujeito e do conhecimento, uma vez que a interação sociocultural, de consciência socioideológica, é atravessada por forças sociais. Nesse sentido, é a partir do dialogismo que se constitui o sujeito dentro da sociedade, sujeito que só existe na presença de elementos históricos, culturais, sociais e outros, que fazem parte de um contexto complexo interativo (BAKHTIN, 2011). A grande diferença do pensamento bakhtiniano, que reúne sujeito, tempo e espaço através do princípio dialógico, é a revelação da constituição histórica, social e cultural do sujeito, da linguagem e do discurso.

Mas como viver a perspectiva sociocultural na educação em ciência? Para que ensinar Ciência? Para quem ensinar Ciência? Como ensinar Ciência? Enfatizando que as questões não colocam um viés utilitarista, é urgente repensar o papel da educação científica, a partir da constatação de movimentos anticiência e de ações que agravam a crise ambiental, gerando epidemias e pandemias.

Como fazer diferente, se pensamos que há chances de transformações que caminhem contra o processo da reprodução social, realizando mudanças sociais na escola e contribuindo para a emancipação de indivíduos/comunidades em prol de um coletivo mais justo para todos? Como fazer diferente, se esperamos uma Educação realmente problematizadora e crítica?

A partir dessas questões podemos analisar a perspectiva filosófico-político-pedagógica apontada no início desse artigo, enfatizando que ela envolve três dimensões inter-relacionadas ao ensino de ciências, de maneira particular: a filosófica, a política e a pedagógica. Essas dimensões podem ser assim entendidas: filosófica: a crítica ao reducionismo mecanicista e uma compreensão dialética da relação do simples com o complexo como ponto de partida para o conhecimento inter e transdisciplinar; política: o vínculo entre o reducionismo mecanicista e nossa maneira de nos relacionar com o mundo e com o outro; pedagógica: ensino baseado no dialogismo e na perspectiva sociocultural (CATARINO, 2017).

Partimos da ideia de que a posição filosófica está implícita na autonomia excessiva das disciplinas, o que gerou a fragmentação dos saberes cada vez mais especializados e desligados entre si. Esse isolamento é refletido, inclusive, na linguagem própria das áreas de conhecimento (POMBO, 1993), a física, a química, a biologia e as ciências de maneira geral, ensinadas na escola, e são um exemplo claro. Essa relação com o conhecimento (ramos do saber) tem seus reflexos na Escola (disciplinas escolares).

Para reconstrução do modo como compreendemos o mundo, apontamos a interdisciplinaridade, que surge em resposta à necessidade de:

[...] superar a fragmentação e o caráter de especialização do conhecimento, causados por uma epistemologia de tendência positivista em cujas raízes estão o empirismo, o naturalismo e o mecanicismo científico do início da modernidade. (THIESEN, 2008, p. 546).

Na visão de Olga Pombo (POMBO, 1993, p. 8), a interdisciplinaridade não é mais uma nova proposta pedagógica tendo em vista que ela surge como uma "[...] aspiração emergente no seio dos próprios professores". Segundo a autora, o sentido da palavra interdisciplinaridade é vago e impreciso, apresentando-se para o professor como um significante flutuante e ambíguo. Nesse sentido, uma aspiração para superar barreiras disciplinares em uma instituição marcada pela disciplinaridade excessiva pode acabar ficando no nível da superficialidade e da motivação, muitas vezes de forma contraditória.

Cabe, aqui, diferenciar a inter, a pluri (ou multi) e a transdisciplinaridade. Tendo em vista a quantidade de definições na literatura, utilizaremos a proposta terminológica de Pombo (1993), chamando atenção para o fato de que as sínteses a serem explicitadas são limitadas e provisórias. Para a autora, a pluri, a inter e a transdisciplinaridade têm em comum o fato de articularem diferentes modos de relação entre disciplinas. A pluridisciplinaridade significa uma associação mínima entre duas ou mais disciplinas, não exigindo necessariamente alterações na forma e organização do ensino.

Quando uma estratégia de ensino ultrapassa essa associação mínima, entramos no campo da interdisciplinaridade. Ou seja, é uma combinação entre duas ou mais disciplinas para a compreensão de um fenômeno, objetivando a elaboração de uma síntese do objeto comum. Assim, é preciso reorganizar o processo de ensino e aprendizagem e a ação conjunta dos docentes.

Por fim, a transdisciplinaridade seria o nível máximo de integração disciplinar, resultando na construção de uma linguagem comum, de estruturas e mecanismos comuns, gerando a formulação de uma visão unitária e sistemática. Segundo Pombo (1993, p. 13), a transdisciplinaridade é impossível nas circunstâncias atuais da nossa prática docente: "[...] rompendo as fronteiras entre as disciplinas envolvidas, ela implicaria profundas alterações no regime de ensino e na organização da escola e suporia uma prévia integração dos programas curriculares, tanto a nível horizontal como vertical".

Pombo (1993) ressalta que, ao mesmo tempo em que todo professor pode exercer algum nível de interdisciplinaridade, pode também reforçar as rupturas existentes entre os saberes, gerando mais afastamentos do que interseções, tanto pelos conteúdos que seleciona, como pelas estratégias das atividades. Nesse sentido, é necessário que o professor trabalhe no caminho de convergência de áreas de conhecimento e construa pontes entre essas diferentes áreas, a partir de uma atitude crítica em relação a sua própria disciplina, mantendo-se aberto a outras formas de conhecimento. Assim, é preciso ultrapassar o conhecimento fragmentado: "[...] sem as partes, a totalidade seria vazia e, por outro lado, as partes adquirem o significado que têm devido às relações que se estabelecem dentro da totalidade". (POMBO, 1993, p. 26).

É preciso superar a visão tradicional positivista, que entende a evolução dos conceitos científicos como linear e cumulativa ao longo da história, e alcançar uma leitura complexa da história dos conceitos científicos, revelando a enorme dificuldade e riqueza dessas construções conceituais. Tal perspectiva indica que a visão fragmentada, linear e cumulativa do progresso da ciência é equivocada. Em outras palavras, é preciso desconstruir o caráter a-histórico do conhecimento, que gera implicações profundas nas dimensões política e pedagógica.

Nesse sentido, uma abordagem interdisciplinar, que se utilize da riqueza dos conceitos científicos para se chegar a um novo entendimento do mundo complexo, que não pode ser contido em fronteiras disciplinares rígidas, permite ultrapassar a concepção do mundo como um conjunto de propriedades simples e isoladas, e conduz naturalmente ao conceito de propriedades emergentes, com frequência invocado por críticos do reducionismo mecanicista (BASTOS FILHO; MASSONI, 2011; SCHWEBER, 1993).

Caminhos possíveis

Conforme apontado anteriormente, o desconhecimento do que é a Ciência e de como ela é produzida pode levar a distorções e ao que se aponta como pós-verdades e movimentos anticiência. É preciso reforçar temas importantes, já apresentados na literatura, para que professores conheçam melhor seu objeto de estudo e seu trabalho, e promovam, em sala de aula e nas pesquisas realizadas, a formação de seus alunos a partir da construção de uma visão mais coerente do que seja Ciência e de sua natureza, além dos conceitos que a constituem. Ressaltaremos aqui alguns pontos considerados por nós importantes.

A Ciência é uma construção humana e, por isso, faz parte da nossa cultura (ZANETIC, 1989). Já vem sendo discutida na literatura, há algum tempo, a importância de ultrapassar a visão de que a Ciência é alguma coisa pronta que precisa ser descoberta ou desvelada. A Ciência não está na natureza e nem é a própria natureza, mas se constitui em uma tentativa de compreender o mundo e o que acontece nele. Assim, a Ciência não é a verdade absoluta, mas representa um processo de busca e de construção de modelos que tentam explicar os fenômenos.

Como segundo ponto, destacamos a não neutralidade na Ciência (GIL-PÉREZ et al., 2001), não sendo, portanto, livre de valores, mas sim permeada por dúvidas e controvérsias.

Neste sentido, a reflexão epistemológica contemporânea superou a concepção de neutralidade do conhecimento científico. No entanto, a compreensão de uma Ciência neutra ainda permanece fortemente presente em vários âmbitos da sociedade, em instituições como a academia, laboratórios de pesquisa e, também, na educação científica básica, conforme detectado por Gil Perez et al. (2001), dentre outros, após quase meio século do impacto ocasionado pela publicação do livro A estrutura das revoluções científicas de Kuhn (1995) referente às discussões sobre a natureza do conhecimento científico (LAKATOS e MUSGRAVE, 1979). (DELIZOICOV; AULER, 2011, p. 248).

Nesse sentido, a Ciência é uma construção humana que carrega os valores dos atores que a produzem. Vale destacar que a não neutralidade da Ciência não significa relativismo, e esse ponto é importante. Há objetividade na produção de conhecimento científico que também passa pelo seu caráter social. Hoje, vemos o surgimento de movimentos caracterizados como pós-verdade e isso tem colocado a necessidade de diferenciar os termos conhecimento e opinião, reconhecendo o valor do conhecimento científico e seus critérios de produção e validação.

Cabe, ainda, ressaltar que a valorização do conhecimento científico não significa a deslegitimação de outras formas de compreender e conhecer o mundo, sendo importante marcar que há outras formas de conhecimento que devem ser validadas de acordo com critérios próprios.

Outro ponto já bastante debatido na literatura, mas ainda presente enquanto concepção empírico-indutivista na formação dos cientistas e professores, é a visão de que a Ciência se constrói através do Método Científico, único método infalível, que parte da observação neutra, constituído por um conjunto de etapas a serem seguidas para alcançar a verdade absoluta (GIL-PÉREZ et al., 2001). A não existência desse método único não significa que não há rigor científico e critérios específicos para a produção do conhecimento. Já apontamos como exemplo, o processo das pesquisas para conter a atual pandemia - que envolve conceitos e etapas necessárias para a produção de vacinas, e testes para liberação ou não de medicamentos.

Com relação ao ensino, entendemos que as perspectivas filosóficas, políticas e pedagógicas guiam o fazer docente. Nossa atual situação apresenta demandas de atitudes e práticas para as quais não fomos formados. Hoje, com os desdobramentos das revoluções científicas, os avanços teóricos, os conhecidos progressos tecnológicos e as mudanças culturais globais que estão criando uma rápida mudança social (HALL, 1997), surge um novo mundo, um mundo de sistemas complexos. Segundo Casanova (2006), o impacto do que chama de "nova Revolução Científica" tem alterado profundamente o trabalho intelectual das ciências, das humanidades, das técnicas e das artes, exigindo:

[...] uma nova cultura geral e novas formas de cultura especializadas com interseções e campos limitados, que rompem com as fronteiras tradicionais do sistema educativo e da pesquisa científica e humanística, assim como do pensar e do fazer na arte e na política. (CASANOVA, 2006, p. 9).

O que fazer? Precisamos repensar não só a formação de professores, ainda fragmentada e superficial para as demandas sociais atuais, mas também os conteúdos curriculares. O movimento de pensar o currículo e elaborar alternativas faz parte da agenda dos pesquisadores em Educação em Ciências.

Diante das colocações feitas até aqui, o que fazer e como fazer? Que atitudes devemos desenvolver, e que práticas devemos implementar para mudar o que está posto? Que temas e perspectivas precisam ser tratados em sala de aula, tendo em vista o que apontamos até aqui? Vamos indicar alguns pontos para reflexão.

Como primeiro ponto, a Natureza da Ciência e seu ensino tem se mostrado, como já apontamos, aspecto fundamental para a compreensão da Ciência e para a formação de sujeitos críticos e alfabetizados cientificamente. Entendemos, portanto, ser fundamental compreender que a Ciência não é a verdade absoluta, enfatizando que não há um único Método Científico como uma receita de bolo, ou conjunto de regras perfeitamente definidas que, bem aplicadas e sequenciadas, levem à Verdade. No mesmo sentido, não há observação neutra, ou seja, toda observação está carregada de alguma teoria. Vale destacar ainda a busca de coerência global, como aponta Chalmers (1993), e o carácter social do desenvolvimento científico (MOURA, 2014).

O enfoque histórico-filosófico é também caminho necessário para possibilitar uma visão de Ciência como conhecimento não cumulativo e não linear, enfatizando a evolução histórica dos conceitos e permitindo compreender a Ciência como uma atividade humana, diretamente influenciada por fatores sociais, culturais, políticos e éticos (GUERRA; BRAGA; REIS, 2013).

Entendendo a Ciência como construção humana, influenciada por diversas dimensões, não podemos deixar de apontar o Movimento CTS (Ciência, Tecnologia e Sociedade), que levou à reflexão sobre a necessidade de repensar a educação científica e tecnológica para a construção de conceitos, conteúdos atitudinais e valores, envolvendo tomada de decisões responsáveis sobre questões que envolvam esse tema (SANTOS; AULER, 2019). Além disso, valoriza uma perspectiva crítica, no sentido de desmistificar a visão ingênua da Ciência.

Por fim, mas não esgotando todas as possibilidades, é fundamental a promoção do diálogo entre diferentes formas de conhecimento, focando em suas bases epistemológicas. Nesse ponto, é crucial entender que o ensinado na escola está, de alguma maneira, ainda ligado historicamente a um modelo hegemônico, embasado na Ciência Ocidental como única forma de conhecimento válida.

Dessa maneira, é preciso desconstruir essa visão de único conhecimento válido e apresentar aos alunos novas formas de entender o mundo. Como revela Schenberg (2001), a evolução das ideias científicas é fundamental para compreender a natureza da Ciência. Além disso, indica que o curso da História da Ciência possibilita perceber como muitas coisas são antigas e desempenham um importante papel:

Mais curioso ainda é saber que começaram a surgir num momento em que no Ocidente começou-se a conhecer melhor a filosofia oriental. Nota-se que há uma relação entre Ciência Ocidental e Filosofia Oriental. São problemas básicos, levantados milhares de anos atrás. Isto mostra que as coisas são muito diferentes daquela ideia que se tinha de Ciência, onde as coisas são sempre muito claras. Na verdade, as coisas mais fundamentais da Ciência não são muito acessíveis, pois se o fossem não seriam fundamentais. (SCHENBERG, 2001, p. 36).

Essa perspectiva exige, de algum modo, a criação de um espaço de debate e argumentação, levando o aluno a refletir sobre como, de fato, se constrói e desconstrói a verdade científica, uma verdade não pertencente historicamente a um único grupo, mas que se realiza no encontro das diversas culturas, através do diálogo, quando entendemos que todos estão presentes, mesmo com os apagamentos históricos, ainda marcados nas aulas e nos livros didáticos (ALVES-BRITO et al., 2020).

Reflexões e considerações para o ensino de ciências pós pandemia

Este ensaio pretendeu retomar importantes contribuições da área de Educação em Ciências, a partir de resultados consolidados que vêm se mostrando cada vez mais necessários, tendo em vista o cenário atual caracterizado aqui. Nesse sentido, é urgente promover diálogos para efetivar soluções a partir de caminhos já apontados pelos pesquisadores da área.

Baseados nas perspectivas sociocultural e dialógica, e nas dimensões filosófica, política e pedagógica apresentadas, entendemos ser fundamental a necessidade de práticas interdisciplinares para a educação, a partir de temas transversais, o que já vem sendo reforçado pela legislação e documentos oficiais (BRASIL, 2019; RIO DE JANEIRO, 2012).

Para isso, voltemos a um ponto já discutido: as questões que nos levaram a esta pandemia. Assim como outros vírus, o novo coronavírus se espalhou devido a vários pontos, entre elas os desequilíbrios ecológicos e sociais. A relação entre desequilíbrio ecológico e a epidemia deixa claro que o ensino interdisciplinar é essencial não só para entender a COVID-19, mas para entender como surgem as epidemias e como é possível evitá-las.

Já vimos que o conhecimento fragmentado não possibilita compreender a complexidade do mundo em que vivemos. É, portanto, urgente pensar, a partir dos temas específicos de cada disciplina, uma educação interdisciplinar que promova uma formação mais ampla e crítica.

No contexto da pandemia, as pesquisas científicas voltadas para o entendimento da doença, e os caminhos para tratamento e imunização ganharam projeção, indicando que é preciso refletir sobre o que está sendo ensinado na escola e como ir além do que já está sendo feito. Perguntas como: o que é modelo matemático? Como fazer a leitura e interpretações de gráficos para compreender o significado de termos como pico, achatamento, crescimento exponencial? Como as vacinas são produzidas e qual é sua importância? O que é um sistema dinâmico? O que é Genoma? São questões que nos levam a perceber que caminhos só serão traçados se entendermos que as várias áreas de conhecimento estão em permanente diálogo, indicando a complexidade, não só do conhecimento, mas da própria natureza. Assim, ao mesmo tempo em que fragmentamos cada vez mais o conhecimento, surgem demandas cada vez mais complexas a serem resolvidas.

A pandemia nos traz a necessidade de resgatar reflexões já postas na área, sobre o papel da Educação em Ciências e do nosso papel como educadores, indicando a urgência em desenvolver postura e prática dialógicas, caminhando em direção à complexidade e à evolução histórica, cultural e social dos conceitos e possibilitando propostas interdisciplinares inclusivas, essenciais para uma visão crítica do mundo. Reforçamos, ainda, que somente uma prática atenta à possibilidade de resistência dará voz ao outro, permitindo o aparecimento de tensões a partir de uma crítica leitura de mundo (FREIRE, 1989).

Há, portanto, muitas maneiras de repensar o ensino de ciências diante das demandas sociais, dando sentido ao que se ensina na escola, possibilitando a construção de conhecimentos fundamentais para a formação de sujeitos capazes de compreender o mundo, e intervir nele. Para isso, torna-se fundamental buscar o entendimento do que é a Ciência e como ela é construída.

O movimento de repensar o ensino de ciências não é novo. Já apontamos aqui que, há 15 anos, Lemke (2006) defendia um currículo de ciências que problematizasse questões sociais, voltado para o enfrentamento de problemas, como a injustiça social e a crise ambiental. No atual contexto, percebemos que tais problemas, como desigualdades sociais, racismo, violência contra a mulher, pobreza extrema, aquecimento global e uma grave crise ambiental (BOFF, 2017), que extrapolam o conhecimento científico, mas, de alguma maneira, estão ligados a ele, ainda são pujantes, e requerem medidas urgentes. Vivemos tempos em que movimentos anticiência requerem enfrentamentos também em sala de aula, promovendo, para além da reflexão, a materialização de diversos resultados de pesquisas.

É importante também trazermos para o centro da discussão uma reflexão sobre a produção científica brasileira, discutindo a destinação de verbas, as lutas políticas sobre os destinos da pesquisa e o envolvimento dos diferentes setores da sociedade nesse cenário (CARDINOT, 2020). Dessa forma, será possível concretizar toda a discussão sobre a não neutralidade da Ciência e marcar sua produção cultural. Isso permitirá problematizar práticas pedagógicas, levando os estudantes a refletir sobre a produção de conhecimento fora dos centros economicamente dominantes, gerando, inclusive, maior identificação dos estudantes com a ciência estudada na escola.

Para tanto, é fundamental o investimento em pesquisa e educação, e lutar contra sistemas de educação que mantenham valores e propostas no sentido de sustentar relações coloniais, racistas e sexistas (SANTOS, 2017). É preciso gerar condições de:

[...] formas alternativas de organizar a economia, conceber a democracia ou organizar o Estado, praticar a dignidade humana e dignificar a natureza, promover formas de sentir e de ser solidárias, substituir quantidades e gostos infinitos pela proporcionalidade, deixar de lado euforias desenvolvimentistas em benefício de limites justos e fruições comedidas, promover a diferença e a diversidade com a mesma intensidade com que se promove a horizontalidade. (SANTOS, 2017).

Finalizamos ressaltando que o ensino de ciências é também responsável pela luta por uma sociedade mais democrática e mais justa, uma vez que oferece caminhos que podem contribuir para a construção e para o acesso ao conhecimento, gerando novas formas de compreender o mundo e colocar-se nele.

Agradecimentos

É um prazer agradecer ao amigo Roberto Moreira Xavier de Araújo pelas constantes discussões sobre os Fundamentos da Física e o Ensino de Ciências.

Referências

ALMEIDA, M. J. P.; NARDI, R. Science education research in Brazil: historical aspects, researchers' representations, and the state of the art. In: EL-HANI, C. N.; PIETROCOLA, M.; MORTIMER, E. F.; OTERO, M. R. (ed.). Science education research in Latin America. Leiden: Brill, 2020. p. 3-19. [ Links ]

ALVES-BRITO, A.; MASSONI, N. T.; GUERRA, A.; MACEDO, J. R. Histórias (in)visíveis nas ciências I. Cheikh Anta Diop: um corpo negro na física. Revista da ABPN, v. 12, n. 31, p. 292-318, 2020. Disponível em: https://cutt.ly/FmxLmgH. Acesso em: 1 jul. 2021. [ Links ]

AMORIM, M. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas ciências humanas. São Paulo: Musa, 2004. [ Links ]

BAKHTIN, M. V. Estética da criação verbal. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. [ Links ]

BASTOS FILHO, J. B.; MASSONI, N. T. Physics first movement: a positivist inheritance? In: CONVEGNO INTERNAZIONALE SCIENZA E DEMOCRAZIA, 5., 2011, Napoli. Actes [...]. Napoli: Istituto Italiano per gli Studi Filosofici, 2011. [ Links ]

BOFF, L. Sustentabilidade: o que é o: que não é. Petrópolis: Vozes, 2017. [ Links ]

BRASIL. Ministério da Educação. Temas contemporâneos transversais na BNCC: contexto histórico e pressupostos pedagógicos. Brasília: MEC, 2019. Disponível em: https://cutt.ly/amxLTqd. Acesso em: 17 nov. 2020. [ Links ]

CACHAPUZ, A.; GIL-PÉREZ, D.; CARVALHO, A. M.; PRAIA, J,; VILCHES. (org.). A necessária renovação do ensino de ciências. São Paulo: Cortez, 2005. [ Links ]

CANDAU, V. M. Didática, interculturalidade e formação de professores: desafios atuais. Revista Cocar, Belém, n. 8, p. 28-44, 2020. (Edição especial). Disponível em: https://cutt.ly/tmxLIpt. Acesso em: 1 jul. 2021. [ Links ]

CANDAU, V. M. Direitos humanos, educação e interculturalidade: as tensões entre igualdade e diferença. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 13, n. 37, p. 45-56, 2008. DOI: https://doi.org/fwhcd7. [ Links ]

CARDINOT, D. Relações socioculturais e práticas científicas nos processos de institucionalização e profissionalização da ciência no Brasil durante a segunda metade do século XX. 2020. Dissertação (Mestrado em Ciência, Tecnologia e Educação) - Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, Rio de Janeiro, 2020. [ Links ]

CASANOVA, P. G. As novas ciências e as humanidades: da academia à política. São Paulo: Boitempo, 2006. [ Links ]

CATARINO, G. F. C. Encontros e diálogos: novos sentidos para o ensino de física a partir do dialogismo e do ato responsável bakhtinianos. In: CARUSO, F. (org.). Roberto, o amigo: Roberto Moreira e a história e filosofia da ciência. São Paulo: Livraria da Física, 2017. p. 147-167. [ Links ]

CHALMERS, A. F. O que é ciência afinal? 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1993. [ Links ]

CHAVES, T.; BELLEI, N. SARS-COV-2, o novo coronavírus: uma reflexão sobre a saúde única (one health) e a importância da medicina de viagem na emergência de novos patógenos. Revista de Medicina, São Paulo, v. 99, n. 1, p. i-iv, 2020. DOI: https://doi.org/gpq5. [ Links ]

CORTES, G. R. O. Dialogismo e alteridade no discurso científico. Eutomia, Recife, v. 1, n. 4, p. 1-11, 2009. Disponível em: https://cutt.ly/xmxvOA9. Acesso em: 1 jul. 2021. [ Links ]

COSTA, M. C. Ainda somos poucas: exclusão e invisibilidade na ciência. Cadernos Pagu, Campinas, n. 27, p. 455-459, 2006. Disponível em: https://cutt.ly/9mxvBPQ. Acesso em: 1 jul. 2021. [ Links ]

DELIZOICOV, D.; AULER, D. Ciência, tecnologia e formação social do espaço: questões sobre a não-neutralidade. Alexandria, Florianópolis, v. 4, n. 2, p. 247-273, 2011. Disponível em: https://cutt.ly/Ymxbe13. Acesso em: 1 jul. 2021. [ Links ]

FRANCISCO JUNIOR, W. E. Educação anti-racista: reflexões e contribuições possíveis do ensino de ciências e de alguns pensadores. Ciência & Educação, Bauru, v. 14, n. 3, 2008. DOI: https://doi.org/c434c9. [ Links ]

FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1989. [ Links ]

GIL-PÉREZ, D.; FERNÁNDEZ MONTORO, I.; CARRASCOSA ALÍS, J.; CACHAPUZ, A.; PRAIA, J. Por uma imagem não deformada do trabalho científico. Ciência & Educação, Bauru, v. 7, n. 2, p.125-153, 2001. DOI: https://doi.org/gpq6. [ Links ]

GUERRA, A.; BRAGA, M.; REIS, J. C. O. History, philosophy, and science in a social perspective: a pedagogical project. Science & Education, Dordrecht, v. 22, n. 6, p. 1485-1503, 2013. DOI: https://doi.org/10.1007/s11191-012-9501-5. [ Links ]

HALL, S. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 22, n. 2, p. 15-46, jul./dez. 1997. Disponível em: https://cutt.ly/5mxnoxN. Acesso em: 1 jul. 2021. [ Links ]

JAPIASSU, H. O sonho transdisciplinar e as razões da filosofia. Rio de Janeiro: Imago, 2006. [ Links ]

KRASILCHIK, M. Reformas e realidade: o caso do ensino de ciências. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, n. 14, v. 1, p. 85-93, 2000. DOI: https://doi.org/fqwr6d. [ Links ]

LEMKE, J. L. Articulating communities: sociocultural perspectives on science education. Journal of Research in Science Teaching, Hoboken, v. 38, n. 3, p. 296-316, 2001. Disponível em: https://cutt.ly/kmxRRxW. Acesso em: 1 jul. 2021. [ Links ]

LEMKE, J. L. Investigar para el futuro de la educación científica: nuevas formas de aprender, nuevas formas de vivir. Enseñanza de las Ciencias, Barcelona, v. 24, n. 1, p. 5-12, 2006. Disponível em: https://cutt.ly/GmxE3ob. Acesso em: 1 jul. 2021. [ Links ]

LIMA, N. W.; VAZATA, P. A. V.; OSTERMANN, F.; CAVALCANTI, C. J. H.; GUERRA, A. M. Educação em ciências nos tempos de pós-verdade: reflexões metafísicas a partir dos estudos das ciências de Bruno Latour. Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v. 19, p. 155-189, 2019. DOI: https://doi.org/gpq7. [ Links ]

MOREIRA, M. A. Uma análise crítica do ensino de física. Estudos Avançados, São Paulo, v. 32, n. 94, p. 73-80, 2018. DOI: https://doi.org/gpq8. [ Links ]

MOREIRA, M. A. Pesquisa básica em educação em ciências: uma visão pessoal. Revista Chilena de Educación Científica, Chile, v. 3, n. 1, p. 10-17, 2004. [ Links ]

MORTARI, C.; WITTMANN, L. T. Histórias compartilhadas: propostas universitárias de construção de conhecimentos decolonizados. PerCursos, Florianópolis, v. 19, n. 39, p. 154-176, 2018. DOI: https://doi.org/gpq9. [ Links ]

MOURA, B. A. O que é natureza da ciência e qual sua relação com a história e filosofia da ciência? Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 32-46, 2014. Disponível em: https://cutt.ly/fmxUCis. Acesso em: 1 jul. 2021. [ Links ]

MOURA, C.; JAGER, I.; GUERRA, A. Teaching about sciences in/for the global south: lessons from a case study in a Brazilian classroom. In: YACOUBIAN, H. A.; HANSSON, L. (ed.). Nature of science for social justice. Cham: Springer, 2020. p. 137-155. [ Links ]

OLIVEIRA, R. D. V. L.; QUEIROZ, G. R. P. Educação em ciências e direitos humanos: reflexão-ação em/para uma sociedade plural. Rio de Janeiro: Multifoco, 2013. [ Links ]

POMBO, O. Interdisciplinaridade: conceito, problemas e perspectivas. In: POMBO, O; GUIMARÃES, H. M.; LEVY, T. Interdisciplinaridade: reflexão e experiência. Lisboa: Texto Editora, 1993. p. 8-14. [ Links ]

PRAIA, J.; GIL-PÉREZ, D.; VILCHES, A. O papel da natureza da ciência na educação para a cidadania. Ciência & Educação, Bauru, v. 13, n. 2, p. 141-156, 2007. DOI: https://doi.org/d76g57. [ Links ]

REIS, P.; GALVÃO, C. Controvérsias sócio-científicas e prática pedagógica de jovens professores. Investigações em Ensino de Ciências, Porto Alegre, v. 10, n. 2, p. 131-160, 2005. [ Links ]

RIO DE JANEIRO (Estado). Secretaria de Estado de Educação. Currículo mínimo 2012: física. Rio de Janeiro: SEEDUC, 2012. [ Links ]

SANTOS, B. S. Contra a dominação. Jornal de Letras, Coimbra, 23 ago. 2017. Disponível em: https://cutt.ly/AmxPICf. Acesso em: 3 set. 2020. [ Links ]

SANTOS, R. A.; AULER, D. Práticas educativas CTS: aprofundando a compreensão de participação social no contexto educacional brasileiro. Indagatio Didactica, Aveiro, v. 11, n. 2, p. 413-429, 2019. DOI: https://doi.org/10.34624/id.v11i2.6196. [ Links ]

SCHENBERG, M. Pensando a física. 5. ed. São Paulo: Landy, 2001. [ Links ]

SCHWEBER, S. S. Physics, community and the crisis in physical theory. Physics Today, New York, v. 46, n. 11, p. 34-40, 1993. DOI: https://doi.org/10.1063/1.881368. [ Links ]

THIESEN, J. S. A interdisciplinaridade como um movimento articulador no processo ensino-aprendizagem. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 13, n. 39, p. 545-554, 2008. DOI: https://doi.org/czzhj8. [ Links ]

ZANETIC, J. Física também é cultura. 1989. 160 f. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1989. [ Links ]

Recebido: 05 de Setembro de 2020; Aceito: 30 de Janeiro de 2021

Autora correspondente: giselle.catarino@uerj.br

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.