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Ciência & Educação
versión impresa ISSN 1516-7313versión On-line ISSN 1980-850X
Ciência educ. vol.27 Bauru 2021 Epub 21-Sep-2021
https://doi.org/10.1590/1516-731320210048
ARTIGO ORIGINAL
Pensar e agir ‘fora da caixa’: jogo digital e produção de afetações pedagógicas na formação inicial de professores
1Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), Departamento de Ciências da Educação, São João del-Rei, MG, Brasil.
2Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Faculdade de Educação, Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino, Belo Horizonte, MG, Brasil.
Neste artigo rastreamos efeitos da incorporação de jogos digitais na formação inicial de licenciandos em Física durante uma unidade curricular em uma universidade pública brasileira. Para tanto, valemo-nos da produção de dados empíricos a partir de observações de campo e da elaboração de relatórios pelos licenciandos durante nossa Pesquisa-Ação. Sistematizamos nossas fontes de informações a partir de uma codificação aberta no software ATLAS.ti. Esse resultado foi discutido sob os aportes da Teoria Ator-Rede, de Bruno Latour e colaboradores. Em nossa análise, identificamos a afetação das significações pedagógicas dos licenciandos relacionadas aos jogos digitais e de sua incorporação em uma proposta de ensino de Física.
Palavras-chave: Ensino de física; Ensino superior; Jogos digitais; Formação inicial de professores; Pesquisa-ação; Teoria ator-rede
In this article we track the effects of incorporating digital games to the initial teachers training in Physics during a course at a Brazilian public university. To this purpose, we used the production of empirical data from field observations and the preparation of reports by students during our Research-Action. We systematized our sources of information using open coding in the ATLAS.ti software and this result was discussed under the contributions of the Actor-Network Theory of Bruno Latour and collaborators. In our analysis, we identified the affectation of the pedagogical meanings of future teachers related to digital games and their incorporation into a proposal for teaching Physics.
Keywords: Physics teaching; Higher education; Digital games; Initial teacher training; Action research; Actor-network theory
Introdução
Este artigo é um recorte de uma pesquisa de pós-doutorado1, que associou a incorporação pedagógica de jogos digitais à formação inicial de professores em uma universidade pública brasileira. A Física foi a área de conhecimento e de formação de nove licenciandos (três moças e seis rapazes), que colaboraram com nossa investigação. Nessa perspectiva, durante nossa intervenção empírica, estabelecemos relações entre a vertente curricular daquela licenciatura, a prática dos futuros docentes e a cultura contemporânea.
No formato de uma Pesquisa-Ação (THIOLLENT, 1996), este estudo articulou práticas e elementos típicos de uma cultura digital (HEINSFELD; PISCHETOLA, 2017; LEMOS, 2020; LIMA; MENDES; LIMA, 2020; REIS; SCHNELL; SARTORI, 2020; SANTAELLA, 2015) ao conteúdo disciplinar da licenciatura em Física, transcendendo proposições prescritivas e fomentando ressignificações da construção de saberes e competências pedagógicas com/em mídias digitais, sobretudo a partir de jogos digitais e de seus elementos conceituais e de design.
Embora não seja uma questão totalizada e homogênea, quando voltamos nossa atenção para o cotidiano, é forçoso reconhecer a existência de múltiplas formas de comunicação, acesso e produção de informações a partir de redes telemáticas. Essas diferentes vias de ação no mundo contemporâneo nos indiciam uma expansão dos modos de atuação na sociedade e, fundamentalmente, de nossas relações com os saberes. Desse modo, podemos admitir que vivenciamos um processo contínuo de reconfiguração da atividade humana a partir da gradativa apropriação social das Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC) (LIMA, 2015). Entendendo que essa constatação vai muito além da posse de artefatos eletrônicos e sinaliza mudanças de hábitos e formas de ser e estar no mundo, confluímos para um novo modus vivendi que expressa uma cultura digital.
Da mesma maneira, é importante registrarmos que a propagação dessa cultura interpõe adversidades que remetem às demandas de inclusão digital, aos riscos associados à vigilância no ciberespaço, segurança de dados pessoais, previsão e modulação de comportamentos em/a partir de plataformas digitais etc. Mesmo assim, o cenário sociotécnico contemporâneo notabiliza a relevância que as TDIC assumem como mediadoras de nossas atividades. Isso se perpetua "[...] não só na vida cotidiana, mas, também, no que se refere às formas e possibilidades de aprendizagem acadêmica" (MORAES; LIMA, 2018, p. 300), exigindo novas formas de se pensarem a educação e seus processos formativos diante dessa ecologia digital. Portanto, é substancial
[...] articular o contexto social aos processos educacionais, não negligenciando as linguagens típicas da cultura digital. Desse modo, encaramos o campo educacional como espaço de problematização frente às demandas dessa cultura, buscando compreender reconfigurações inerentes e empreender novas formas de educar. (CRUZ; LIMA; NASCIMENTO, 2020, p. 119).
Com isso em mente, reconhecemos que os jogos digitais se destacam entre os produtos mais populares e expressivos da cultura digital (NEWZOO, 2020) e assumimos a proposição de que esses artefatos podem favorecer a criação de novos ambientes de ensino e aprendizagem, potencializando novas vias de construção de conhecimentos. Dessa forma, fundamentados nos aportes da Teoria Ator-Rede, de Bruno Latour e outros colaboradores, o objetivo deste trabalho foi rastrear efeitos da incorporação pedagógica de jogos digitais2 em uma proposta de ensino durante uma disciplina de estágio curricular de uma licenciatura em Física.
Fundamentando nosso caminho de investigação: alguns conceitos da teoria ator-rede
De acordo com Lemos (2013), a Teoria Ator-Rede (TAR) foi articulada a partir dos Estudos de Ciência e Tecnologia, na década de 1980, tendo como principais expoentes Bruno Latour, Michel Callon, Madeleine Akrich, Michel Serres, John Law e Wiebe Bijker entre outros. Para caracterizar sua abordagem sociológica, Latour (2012, p. 24) nos alerta quanto à etimologia da palavra 'social' e assinala que o latim socius remete a um 'associado', afirmando que: "[...] nas diferentes línguas, a genealogia histórica da palavra 'social' designa primeiro 'seguir alguém' e depois 'alistar' e 'aliar-se a' para finalmente exprimir 'alguma coisa em comum'". Assim, o enfoque latouriano de ‘social’ envolve um cuidadoso processo de observações de uma cena de interesse, o que embasa um mapeamento de entidades em associação, a fim de se identificarem agências e transformações emergentes.
Decorrente disso, Latour (2004, p. 397, grifo nosso) também assume a TAR como uma 'sociologia de associações', cujo campo analítico objetiva "[...] seguir as coisas através das redes em que elas se transportam, descrevê-las em seus enredos [...] e estudá-las [...] simetricamente [...]". Mas, afinal, o que são essas coisas? Como compreender rede? O que significa descrever e estudar as coisas simetricamente? O entendimento das respostas a essas indagações é o que justifica nossa adesão às proposições latourianas como base analítica deste estudo.
É preciso reconhecer certo estranhamento quanto à proposição de se 'seguir[em] as coisas'. Afinal, algo que pode ser seguido é aquilo que percorre uma trilha e, ao fazê-lo, deixa rastros. Portanto, as tais 'coisas' dizem respeito àquilo que é capaz de empreender e, por vezes, promover transformações em seu caminho. Na verdade, ao propor 'seguir as coisas' Bruno Latour (LATOUR, 2004) faz menção àquilo que assume forma e produz significados em uma relação associativa, evocando o conceito de actantes, que remete ao termo 'ator' da expressão 'ator-rede'. Entretanto, Latour (2001) nos explica que 'ator' tem sentido restrito a humanos, sendo preferível a utilização de actantes3.
Desse modo, um actante é aquele que gera ações e produz movimento e diferença, podendo ser humano ou não humano (LEMOS, 2013). Indispensável indicarmos que, na TAR, os actantes são definidos por seu campo de ação (LATOUR, 2001) e, portanto, de afetação das associações em que se encontram. Para ser coerente com esse ponto de vista, não se pode definir um actante a priori, o que remeteria a uma essência. Ao contrário, um actante se configura na relação e ao alterar uma dada circunstância, fazendo-se perceptível/rastreável ao produzir alguma diferença, afetando e sendo afetado.
É a partir disso que passamos a reconhecer um actante ora como mediador, ora como intermediário. Um actante é dito mediador quando modifica um estado de coisas em que está envolvido; ou seja, "[...] mediadores transformam, traduzem, distorcem e modificam o significado ou os elementos que supostamente veiculam" (LATOUR, 2012, p. 65). Já um actante intermediário compõe associações de maneira quase invisível, não alterando substancialmente a rede à qual está vinculado. Entretanto, um intermediário pode vir a se tornar um mediador, e vice-versa4.
Para buscar o entendimento do conceito de rede, que também integra a expressão que define a Teoria, é imprescindível elucidar que
[...] rede não é a estrutura, infraestrutura ou a sociabilidade, não é o local por onde as coisas passam, deslocam-se ou são depositadas, mas o local onde as relações se estabelecem e se transformam. A rede é o próprio movimento das associações que formam o social [...]. (OLIVEIRA; PORTO, 2016, p. 64).
Dessa forma, o social é consequência de agenciamentos dos actantes, que formam redes dinâmicas: "[...] Mais que explicar os fenômenos tendo como causa a sociedade ou o social, a teoria [Ator-Rede] vai colocá-los como consequência de circulação em redes sociotécnicas complexas não deixando nenhum campo estanque ou separado como uma categoria" (LEMOS, 2013, p. 3). Em outras palavras, a ideia de rede tem a ver com movimentos de associações que "[...] remetem a fluxos, circulações e alianças, nas quais os atores envolvidos interferem e sofrem interferências constantes" (FREIRE, 2006, p. 55).
É exatamente nisso que se notabiliza o que Latour (2001, p. 356) qualificou como translação, isto é, "[...] o trabalho graças ao qual os atores modificam, deslocam e transladam seus vários e contraditórios interesses". Portanto, na análise de redes sob a ótica da TAR, os efeitos das translações assumem especial interesse. É delas que emergem os jogos de força entre os actantes que, ao trabalharem em conjunto, produzem transformações (SISMONDO, 2010) e evidenciam um social em latência. Tudo isso reforça que um actante é definido por sua atuação em rede, ou seja, por sua performance, o que, segundo Latour (2012), é o foco de um estudo TAR. Esse posicionamento vai ao encontro do que Sørensen (2009) - ao levar em conta as indicações de Law (2002) - assume como performance: efeitos que reverberam das inter-relações estabelecidas em uma assembleia sociomaterial.
Em seu princípio de simetria, a TAR é assumida por Latour (2012) como uma ontologia plana que rompe com a separação entre sujeito e objeto. Nessa configuração, a TAR se afasta da sociologia estruturalista e seus enquadramentos teóricos explicativos do social. Alternativamente, assume que humanos, animais, vegetais, objetos, instituições, leis etc. estabelecem conexões vivas e, em rede, produzem trabalho.
Em vez de examinar apenas os atores humanos, suas habilidades individuais e suas inter-relações sociais, uma visão sociotécnica trata os elementos sociais e materiais das práticas do conhecimento como enredados e mutuamente constitutivos. A materialidade é particularmente destacada, revelando maneiras que corpos, substâncias, objetos se combinam para realmente incorporar e mobilizar o conhecimento, materializar o aprendizado e exercer a capacidade política. (FENWICK, 2014, p. 265, tradução nossa).
Percebemos, então, que a TAR assume que humanos e não humanos retêm potência agencial em associações. Essa proposição reforça a prerrogativa de simetria nas redes de actantes, mas pode levar ao inevitável questionamento: como um objeto (não humano) pode ser dotado de agência se é desprovido de vontade? É o próprio Bruno Latour (LATOUR, 2012, p. 108, grifo nosso) que nos leva a refletir e encaminha um posicionamento:
Se a ação se limita ao que os humanos fazem maneira de 'intencional' ou 'significativa', não se concebe como um martelo, um cesto, uma fechadura, um gato, um tapete, uma caneca, um horário ou uma etiqueta possam agir. [...] nossas perguntas em relação a um agente são simplesmente estas: ele faz diferença no curso da ação de outro agente ou não? Haverá alguma prova mediante a qual possamos detectar essa diferença?
A resposta de senso comum seria um 'sim' sonoro. Se você puder, com a maior tranquilidade, sustentar que pregar um prego com ou sem um martelo, ferver água com ou sem uma panela, transportar comida com ou sem um cesto, andar na rua com ou sem roupas, zapear a televisão com ou sem o controle remoto, parar um carro com ou sem o freio, fazer um inventário com ou sem uma lista, administrar uma empresa com ou sem a contabilidade são exatamente as mesmas atividades, que a introdução desses implementos comuns não muda nada 'de importante' na realização de tarefas, então você está pronto para visitar a Terra Longínqua do Social e desaparecer daqui. Para todos os outros membros da sociedade esses implementos fazem muita diferença e são [...] partícipes no curso da ação [...].
Dessa forma, nossa compreensão é que - em simetria - humanos e não humanos atuam entre si, expressando-se em rede. Todavia, é fundamental considerarmos que essa "[...] simetria não é ética ([as] coisas valem o mesmo que humanos), mas analítica (coisas nos fazem fazer coisas e têm implicações importantes)" (LEMOS, 2014, p. 6, grifo nosso). Essa mesma percepção pode ser identificada em Coutinho e Viana (2019), que, ao comentarem o trabalho de Knappett (2005), explicam que a simetria estabelecida entre humanos e não humanos em um trabalho pautado na TAR é uma opção analítica de registrar as características estabelecidas entre esses actantes sem atribuir um peso maior a um ou outro polo.
Nessa visão, a TAR rejeita um separatismo entre actantes e uma hierarquia que os coloque em diferentes planos analíticos. Portanto, consideramos essencial admitir o ser humano como um ser híbrido e que, desde sempre, transita culturalmente com objetos técnicos.
O humano, como podemos compreender agora, só pode ser captado e preservado se devolvermos a ele esta outra metade de si mesmo, a parte das coisas. Enquanto o humanismo for feito por contraste com o objeto abandonado à epistemologia, não compreenderemos nem o humano, nem o não humano. (LATOUR, 1994, p. 134).
Com a mesma concepção, Lemos (2013, p. 130) nos indica que "[...] o humano é [...] formado por processos históricos de mediação [...]. Ele é justamente a rede (e não indivíduo) formada por tudo que se associa, associou ou associará". Ou ainda, "[...] nós (seres humanos) somos um coletivo híbrido que não existe sem as coisas" (COUTINHO; VIANA, 2019, p. 24). Assim, compreendemos que é a partir de nossas vinculações com não humanos que formamos nossa subjetividade e nossa compreensão de mundo, o que acaba por revelar que as redes são estabelecidas a partir de relações heterogêneas e que é daí que emerge o social.
Uma vez apresentados alguns dos conceitos da TAR, cabe ainda explorar seu tratamento metodológico às questões de interesse. A orientação parte de
[...] 'seguir os próprios atores', ou seja, tentar entender suas inovações [...], a fim de descobrir o que a existência coletiva se tornou em suas mãos, que métodos elaboraram para sua adequação, quais definições esclareceriam melhor as novas associações que eles se viram forçados a estabelecer. (LATOUR, 2012, p. 31).
Esses procedimentos investigativos estão ligados a uma imersão no campo de pesquisa tendo em mente: (1) o reconhecimento de actantes - quem/o que integra a situação estudada?; (2) o mapeamento das associações entre os actantes - o que passa a circular na situação estudada?; e, (3) a identificação das mediações - quais translações ocorreram na rede estudada? Dessa forma, um estudo TAR assume a configuração de um relato analítico-descritivo, o qual explicita o social que compôs a cena de interesse investigada. Nas palavras de Latour (2012, p. 180), alimentados de incertezas que cercam as ações dos actantes, "[...] a ideia é simplesmente trazer para o primeiro plano o próprio ato de compor relatos". Nessa perspectiva, o autor adverte que "[...] nenhum pesquisador deve achar humilhante a tarefa de descrever" (LATOUR, 2012, p. 199).
Ainda que a TAR tenha sido concebida em um campo distinto da Educação, reiteramos que seus conceitos e proposições teórico-metodológicas são aderentes e oportunos aos interesses à pesquisa dessa área de conhecimento. Afinal, os processos educativos são híbridos e sua materialidade - leis, salas e laboratórios, currículos, avaliações, equipamentos, materiais didáticos, pessoas etc. - se faz imprescindível à tarefa de educar. Ou seja, a TAR faz visível "[...] grande diversidade de coisas que estão em jogo nos ambientes educacionais, propicia a identificação das agências dos não humanos [as] associações entre diferentes entidades e os efeitos dessas interações" (VENANCIO; VIANA; SILVA, 2020, p. 5). Longe de defendermos um determinismo tecnológico, preferimos reconhecer que, se os objetos não educam por si só, sem eles não produzimos Educação.
A pesquisa em ação: orientação metodológica e delineamento do corpus
Esta investigação foi idealizada a partir de uma Pesquisa-Ação (THIOLLENT, 1996), caracterizando-se como um estudo realizado em colaboração com membros de uma comunidade educacional. Nessa perspectiva, nossa estratégia de intervenção empírica visou a fomentar mudanças na rede de actantes estudada. Ela foi elaborada e implementada em parceria com a supervisora de pós-doutoramento, com um professor supervisor de estágio curricular e com nove alunos do curso de licenciatura em Física de uma universidade pública brasileira. Nessa linha, integramo-nos à rede estudada e nos associamos aos demais actantes colocando em circulação questões de interesse (LATOUR, 2012) para a investigação. Entendemos que essa pesquisa incentivou a valorização das agências dos actantes permitindo captar nuanças da experiência pedagógica produzida.
Considerando o recorte de pesquisa deste artigo, a composição do nosso corpus analítico integrou duas fontes geradoras de dados: os registros das observações de discussões sincrônicas mediadas por TDIC e, fundamentalmente, o conteúdo dos relatórios individuais que compuseram a avaliação final do estágio curricular dos licenciandos. Em seu conjunto, essas fontes primárias formaram a base de nossa discussão fundamentada na TAR (LATOUR, 2012).
Com o objetivo de rastrear os efeitos produzidos pela incorporação pedagógica de jogos digitais em uma proposta de ensino durante uma disciplina de estágio curricular de uma licenciatura em Física, empregamos estratégias de codificação aberta de dados mediadas no software ATLAS.ti. Nesse sentido, a partir das orientações de Strauss e Corbin (2008), nossa codificação dos dados priorizou questões de interesse (LATOUR, 2012), as quais emergiram do corpus a partir de uma visão compartilhada pelos licenciandos: "[...] É como se disséssemos aos actantes: 'Não vamos tentar disciplinar vocês, enquadrá-los em nossas categorias; deixaremos que se atenham a seus próprios mundos [...]'" (LATOUR, 2012, p. 44).
Assim, durante as leituras e exploração do corpus, estivemos atentos ao mapeamento de actantes, às associações estabelecidas entre eles e aos efeitos produzidos na rede. Nesse procedimento, foram construídas duas categorias analíticas: significado inicial e significado transladado dos/pelos licenciandos acerca de jogos digitais e sua incorporação em uma proposta de ensino.
Na próxima seção, voltamos nossa atenção para a expressão daquilo que Latour (2012) nos incentivou a fazer como resultado de um estudo Ator-Rede: o relato do social estudado. Para tanto, partimos de um resgate de detalhes da intervenção realizada e apresentamos os resultados do mapeamento dos actantes e sua rede de associações bem como a discussão dos efeitos produzidos tendo como base os indicadores de nossas categorias empíricas.
Resultados e discussão: espaço-tempo de intervenção e seus efeitos
Em virtude da pandemia de Corona Virus Disease (COVID-19) e da implantação do regime de Ensino Remoto Emergencial (ERE) na universidade onde desenvolvemos nosso estudo, a etapa de intervenção empírica foi realizada entre os dias 04/08/2020 e 27/10/2020. A última semana do semestre foi dedicada às funções de registro de desempenho acadêmico e fechamento de diários no dia 07/11/2020.
A construção de uma estratégia de intervenção em campo pode ser considerada como a base de uma Pesquisa-Ação. Assim, nosso foco inicial foi o seu planejamento5 em termos de formato, conteúdo, objetivos, práticas e avaliação. Entre as alternativas legalmente cabíveis ao regime de ERE, optamos por desenvolver nossas atividades de forma sincrônica e assincrônica, de maneira interdependente e complementar e por intermédio da plataforma digital institucional (Moodle) da universidade.
No período, foi colocado em ação um plano de ERE, que totalizou 14 encontros sincrônicos com os acadêmicos. A estratégia de intervenção contemplou a apresentação formal de conteúdos relacionados à temática de jogos digitais e processos de ensino como também uma prática de estágio mediada por um jogo digital desenvolvido pelos licenciandos.
A estrutura das aulas do ERE foi pensada a fim de que todos os alunos pudessem manifestar livremente seus anseios, dúvidas e desejos de composição de uma prática de ensino para o estágio. Registramos ainda que as sugestões e decisões dos acadêmicos foram discutidas e acolhidas, consolidando um trabalho construído com abertura e em regime de parceria. Com o devido acompanhamento e suporte dos professores-pesquisadores, o agrupamento de licenciandos foi estimulado durante todo o semestre visando à composição de frentes de ação no estágio que integrava a unidade curricular (UC). Nessa configuração, como interagíamos com turma relativamente pequena, a comunicação foi favorecida pelas TDIC e isso não constituiu um agravador das dificuldades inerentes ao ERE.
Como o semestre foi condensado em três meses, a carga horária da UC foi distribuída em encontros sincrônicos semanais, atividades assincrônicas de avaliação relativa aos eixos teóricos que compuseram o planejamento e prática de estágio. Todas as atividades propostas tiveram adesão dos nove licenciandos, os quais lograram êxito na UC. O arranjo didático remoto foi facilitado: (1) pela posse e apropriação das TDIC pelos envolvidos; (2) pelas constantes presença e atuação dos professores-pesquisadores junto aos licenciandos; (3) pela vinculação de um professor supervisor de estágio que acompanhou e colaborou com o desenvolvimento da parte prática da UC; (4) pelo respaldo legal dos ordenamentos do ERE; e (5) pelo engajamento de todos os envolvidos.
É importante registrarmos que o plano de ensino foi integralmente efetivado, mas de forma distinta da linearidade típica de um semestre de presencialidade física em espaços acadêmicos. Com o ERE, a dedicação à disciplina e às atividades de prática do estágio curricular assumiu um contorno que não permite fronteiras rígidas de uma cronologia linear e exclusivamente constituída em atividades sincrônicas. No desenrolar das atividades desenhadas, diferentes campos de atuação foram assumidos pelos licenciandos junto aos professores-pesquisadores e supervisor do estágio curricular, emergindo autonomia, compromisso e protagonismo como elementos essenciais para o sucesso da proposta mediada com TDIC.
Especificamente, o período de orientações e supervisão de estágio foi intensificado em seu regime de proposições, definições, superação de inseguranças e trabalho coletivo. Inúmeras frentes compuseram esse momento de transformação dos estudantes, que, como nós, experienciaram uma situação inédita em sua trajetória acadêmica: um semestre totalmente intermediado com TDIC e com atividades de campo de estágio igualmente remotas. Nossa avaliação, como professores-pesquisadores e em conjunto com o supervisor externo do estágio, foi que o agrupamento de alunos foi exitoso nas atividades empreendidas.
A figura 1 é o resultado de um mapeamento de actantes (destacados em itálico neste parágrafo) e de seus rastros de associações ao longo de um semestre letivo em uma universidade. O cotidiano acadêmico foi excepcionalmente afetado pela presença do SARS-CoV-2 (Severe Acute Respiratory Syndrome, Coronavirus 2), o que obrigou a instauração de um regime de distanciamento social, uma vez que esse actante tem alto potencial de infecção e letalidade. Em particular, o SARS-CoV-2 agenciou reconfigurações na esfera administrativa da universidade e provocou adequações na legislação educacional, a qual estabeleceu um regime de ERE devido à pandemia de COVID-19. Consequentemente, essas modificações exigiram a reelaboração de nosso plano de ensino e reconfiguraram o formato das interações entre licenciandos, professores-pesquisadores (autores deste artigo), professor-supervisor e seus alunos do ensino médio durante as práticas de campo de estágio. Respeitando a legislação educacional e as recomendações sanitárias, o trabalho entre esses últimos actantes foi mediado por TDIC. Nesse contexto, nós - os professores-pesquisadores - empreendemos juntos aos licenciandos em Física momentos de discussão sobre referencial teórico de jogos digitais e sua possível associação com a prática de ensino no campo de estágio. Assim, nosso trabalho na UC compreendeu: planejamento e construção de um jogo digital pelos licenciandos; orientações pertinentes ao projeto e implementação desse jogo, e avaliação de uma prática de ensino no campo de estágio. Tal prática foi acompanhada por um professor supervisor do estágio curricular, que escolheu a temática da eletrostática como conteúdo referencial da Física a ser explorado pelos licenciandos junto dos alunos do ensino médio. A temática escolhida pelo professor-supervisor do estágio curricular guiou a narrativa materializada no jogo digital.
Os passos subsequentes ao mapeamento dos actantes e de suas associações foram dedicados às translações (LATOUR, 2001) efetivadas na rede. Atentos aos rastros das ações ligadas à produção de um jogo digital pelos licenciandos e sua integração à proposta de ensino do estágio curricular, foi possível fazermos visíveis efeitos produzidos na rede, o que caracterizou a performance (LATOUR, 2012; SØRENSEN, 2009) da transição de significações pedagógicas dos licenciandos relacionadas aos jogos digitais e sua associação ao ensino de Física.
Com base em nossa primeira categoria empírica - significado inicial -, pudemos perceber, entre a maioria dos licenciandos, um posicionamento de ceticismo quanto à associação de jogos digitais a uma proposta de ensino. Entre os nove licenciandos que cursaram a UC, apenas dois (Bia e Ari) declararam possuir alguma experiência com tal associação. Ambos os casos tiveram, no ambiente Kahoot6, sua forma de desenvolvimento, e essas ações de ensino foram avaliadas positivamente por aqueles licenciandos. De nossos registros de observações de campo, identificamos que Eva e Gil expressaram desconfiança e incipiência para promoverem uma integração jogo-ensino. No mesmo sentido, outros rastros foram identificados em diferentes momentos dos relatórios de estágio dos demais licenciandos:
Eu era um cético ferrenho de propostas que envolviam games e sala de aula. Reconheço que esse meu ceticismo se devia em boa parte da minha ignorância e desconhecimento do tema [...]. [Licenciando Max, grifo nosso].
Durante a minha experiência de estágio, antes do planejamento da proposta de intervenção, muitas questões surgiram a respeito da possibilidade de [...] incorporação de jogos eletrônicos no ensino [...]. [Licencianda Ema, grifo nosso].
Achava muito difícil [...] conseguir fazer as conexões entre o jogo e uma estratégia de ensino e também com um plano de aula. Pensava que não fosse possível [...]. [Licenciando Tom, grifo nosso].
O uso de jogos no ensino [...] era impensável para mim [...]. [Licenciando Rui, grifo nosso].
Apesar de [jogar] frequentemente e há muitos anos, nunca tinha pensado no seu papel no ensino. [Licenciando Eli, grifo nosso].
Todos esses posicionamentos e excertos foram referenciados em nossa categoria empírica significado inicial e essas ocorrências indicam inseguranças por parte dos licenciandos quanto ao potencial pedagógico de jogos digitais. O licenciando Max, por exemplo, explicita uma justificativa para o seu ceticismo: o desconhecimento da temática. Assim sendo, o conteúdo de referência de nossa UC precisaria se configurar como um actante mediador, a fim de que, a partir de sua circulação na rede, pudesse emergir uma nova representação em relação à temática (COUTINHO et al., 2014).
Já a licencianda Ema colocou em evidência um processo reflexivo envolvendo a temática da UC, o que é altamente desejável em ações formativas. Fica caracterizado que a intervenção de nossa pesquisa evocou uma formação de significados em torno daquilo que se aprendia e, assim, fomentou uma dinâmica que refutou assumir os licenciandos como entidades estanques/estabilizadas. Ao contrário, nosso empenho era mesmo provocar quebra de inércia, incitando movimento e trabalho que repercutem como performance (LATOUR, 2012; SØRENSEN, 2009) a partir de associações entre humanos e não humanos (VENANCIO; VIANA; SILVA, 2020).
No agrupamento formado pelos licenciandos Tom, Rui e Eli, a questão da incorporação pedagógica de jogos digitais encontra-se no campo do impossível (Tom) ou, em sentido similar, do impensável (Rui e Eli). Além disso, ao voltarmos novamente nossa atenção para as observações de campo e para as cinco enunciações apresentadas, é notável que os verbos utilizados pelos licenciandos foram flexionados no passado. Isso nos coloca diante de um rastro que evidencia os relatos como representações de uma realidade construída (COUTINHO et al., 2017) a partir de associações pregressas.
Entretanto, a TAR (LATOUR, 2012) nos incentiva a encarar redes de maneira fluida, mutável e com associações impermanentes. Dessa forma, as relações entre os actantes durante o semestre letivo estiveram sujeitas a relações de influência mútuas, o que acarretou afetações e acabou por provocar translações (LATOUR, 2001). Então, voltando ao nosso corpus, questionamos: quais translações se produziram na rede de modo a fazer emergir uma nova performance das significações pedagógicas dos licenciandos relacionadas aos jogos digitais e sua associação ao ensino de Física?
Uma das expectativas da intervenção da Pesquisa-Ação, além da afetação de sentidos pedagógicos acerca dos jogos digitais por parte dos licenciandos, dizia respeito à prática de estágio de ensino de Física. Como professores-pesquisadores, estávamos cientes de todas as limitações de tempo e, também, daquelas inerentes ao ERE, inclusive envolvendo o campo de estágio. Ainda assim, incentivamos o agrupamento a valorizar a oportunidade de poder colocar em circulação alguns dos elementos do campo teórico, que havíamos discutido e amadurecido na disciplina, priorizando o envolvimento de um jogo digital como um mediador do ensino no estágio curricular.
Neste ponto, é primordial resgatar as indicações de Egenfeldt-Nielsen (2011), que nos explica que é possível aprender fazendo jogos, o que envolve um projeto e implementação de um game (com ou sem finalidade educacional), o qual sistematiza um determinado conhecimento, explorando-o no formato de um jogo. Essa última perspectiva foi a via de ação escolhida pelo agrupamento de licenciandos com que trabalhávamos.
Para iniciar o projeto do jogo digital, era preciso partir de um conteúdo de referência do currículo do ensino médio da disciplina Física. A indicação do tema 'Eletrostática' surgiu de uma negociação com o professor supervisor do estágio curricular, que alegou necessidade de se trabalhar a temática em suas aulas. Reiteramos que a exiguidade de tempo marcou essa etapa de nossa intervenção e interpôs limitações, uma vez que foi imperioso compatibilizar os calendários da licenciatura na universidade e das aulas na instituição de educação básica onde a prática com o jogo digital iria acontecer sob supervisão.
Definida a temática, os licenciandos iniciaram um trabalho coletivo e colaborativo no projeto e desenvolvimento do jogo digital. Essa foi outra particularidade que emergiu do ERE: um estágio realizado em grupo e baseado em um projeto coletivo. Para tanto, os licenciandos assumiram diferentes papéis: gerente de projeto, programador, investigador de conteúdo, editor de conteúdo e designer. Nesse aspecto, Coutinho (2018, p. 5) alerta que o mais importante dessa dinâmica está relacionado "[...] às competências, conhecimentos e habilidades adquiridas ao longo do desenvolvimento do projeto", o que pudemos constatar durante o estágio curricular.
Foi nessa configuração que os acadêmicos iniciaram discussões e múltiplas frentes de implementação. Obviamente, iniciara-se um processo de negociações e definições, o que não aconteceu linear e homogeneamente, surgindo tensões e a necessidade de revisões, flexibilizações e adequações. Ou seja, "[...] os fenômenos coletivos emergem por meio do trabalho dos participantes, e se estendem tanto quanto os atores os levam adiante, e duram tanto quanto eles o aguentam" (LATOUR; VENTURINI, 2019, p. 40).
Uma das controvérsias que nos foi revelada pelos licenciandos envolveu a indispensável definição da narrativa do jogo, a qual envolveria a temática Eletrostática. A partir de uma experiência prévia, a licencianda Bia aventou trabalhar tal tema a partir da eletricidade nos seres vivos. Em colaboração, o licenciando Max sugeriu uma adaptação utilizando a ideia de metamorfose ao estilo do personagem Ben 10 (2020) 7, na qual o jogador poderia se transformar em um ser vivo assumindo poderes para salvar o mundo que corria perigo. Desse movimento, o agrupamento chegou à definição de uma linha para uma primeira versão da narrativa do game.
Ainda assim, em um tempo bastante curto, o agrupamento se posicionou e nos apresentou um protótipo inacabado utilizando uma plataforma pouco convencional: um PowerPoint interativo. Em um dos encontros sincrônicos, os licenciandos expuseram dúvidas, mostraram-se descontentes com a plataforma utilizada para compor a ideia inicial e apresentaram conflitos inerentes a um trabalho coletivo. Provocados pelos professores-pesquisadores quanto à necessidade de estarem atentos a elementos fundamentais envolvendo jogabilidade e, principalmente, a narrativa do jogo, o agrupamento retomou o debate e a revisão de seu plano de ação. Como orientadores, propusemos que a narrativa poderia considerar a composição de um inventário, o qual poderia ser formado a partir dos êxitos do jogador ao longo de sua interação no ambiente. Isso foi acolhido pelos licenciandos.
Naquele momento, duas das licenciandas (Eva e Ema) se dispuseram a investir na migração da plataforma de desenvolvimento para o Scratch8 ou Construct9, além de reverem a narrativa a partir das novas ideias. Os demais membros do agrupamento se voltaram para readequar os conteúdos de referência a serem incorporados no jogo digital. A plataforma escolhida foi o Construct, e uma versão preliminar foi estruturada e apresentada coletivamente em um encontro sincrônico posterior.
O projeto havia evoluído bastante e ganhado em jogabilidade e elementos estéticos. Após uma análise coletiva do jogo em uma nova interação sincrônica, deliberamos que o projeto seguiria naquele formato. A sequência de ações assumidas pelos licenciandos foi de refinamentos no controle do jogo, aprimoramentos audiovisuais, revisão de conteúdos e sua acomodação no ambiente de interação com o usuário. O formato final da proposta assumiu a materialidade de um jogo digital - Ampets10 -, que considera a coleta de itens com base em acertos de questões tematizadas na eletricidade nos seres vivos. Para consolidar seu inventário, o jogador precisa se informar no ambiente do jogo digital quanto às propriedades elétricas de alguns seres vivos e, posteriormente, analisar situações envolvendo os conteúdos estudados como também fazer associações corretamente nas questões propostas.
Voltando ao nosso corpus, os indicadores de nossa categoria analítica significado transladado nos permitiram identificar que, a partir das interações estabelecidas entre os actantes, emergiu uma translação das significações acerca da incorporação pedagógica de jogos digitais em uma prática de ensino. Constatamos que aquele posicionamento inicial de 'ceticismo' (entre outros) fora afetado e outra realidade produzida levando em consideração as novas associações estabelecidas na rede tal como nos indicam os licenciandos:
[...] eu sabia que os jogos digitais poderiam ser implementados no ensino, mas não tinha conhecimento de como isso era possível [...]. Com as aulas, leitura de artigos e a produção do game me aprofundei em relação a essas questões e pude entender melhor os aspectos que compõem esse recurso [jogo digital] e como ele é importante também na promoção da cultura digital. [Licencianda Bia].
[já] conhecia a importância de jogos no desenvolvimento intelectual e físico [...], porém [a experiência na UC] me fez ter outra perspectiva do assunto, principalmente sobre o ensino [...] acho justo e muito válida a proposta [...], porém esse é um processo complicado que demanda bastante tempo e criatividade, principalmente do professor que pretende implementá-lo [...] de modo a conseguir [...] completar [...] seu objetivo [de ensino]. [Licenciando Ari].
A utilização pedagógica de jogos […] pode ser muito benéfica no processo de ensino e aprendizagem, são várias as habilidades que podem ser trabalhadas e desenvolvidas […]. A experiência de planejar e aplicar uma proposta de estágio com [um jogo digital] foi bastante inusitada e significativa para mim. Esse tipo de atividade [...] demanda tempo, pesquisa, criatividade e reflexão sobre seu sentido. [Licencianda Bia].
A mim fez compreender a necessidade de buscar outras formas de significar o que estou estudando de modo que minhas associações não se limitem, mas se expandam. [...] O método deve ser pensado com muito rigor e, a priori, é bastante complexo unir ensino de conceitos-chave de ciências básicas, por exemplo, a um jogo. [Licenciando Gil].
[Tudo que fora vivenciado na UC] ajudou muito a abrir meus olhos com relação aos games [incorporados à] prática pedagógica. [...] estudar esse tema [...] mudou a minha forma de enxergar o mundo. [Licenciando Max].
[o jogo digital incorpora] recursos visuais, auditivos e narrativos e [viabiliza o desenvolvimento de] habilidades […] incluindo coordenação motora, raciocínio lógico, [tomada de decisões], entre outros. [Licencianda Ema].
Fiquei surpreso [e] a implementação do jogo me deu acesso a aprender ferramentas que [me proporcionaram] autonomia para desenvolver outras intervenções semelhantes. [Licenciando Tom].
[...] foi uma experiência muito rica de colaboração e troca de ideias, tivemos pouco tempo para construção [e] várias dificuldades [...]. O uso de jogos no ensino […] é algo viável quando se há um direcionamento e bom planejamento. [Licenciando Rui].
[...] o estágio III foi o mais importante na minha formação como professor. Além do fator prático, o conteúdo teórico do estágio foi o que mais me interessou [...]. Com as aulas [...] pude ter contato com o trabalho de vários pesquisadores [...] que me mostraram que [o jogo digital pode ser incorporado] em sala de aula com muito sucesso. [Licenciando Eli].
Considerando essa (nova) visão partilhada pelos licenciandos, encontramos em Coutinho et al. (2017) a explicação de que, mediante a composição de novos vínculos, outros actantes são mobilizados e um novo estado de mundo passa a existir. Essa proposição assumiu força com o relato da licencianda Bia, que afirmou: "Muitos colegas, no início do curso, eram descrentes em relação aos recursos e jogos digitais e pude perceber a mudança de opinião ao longo das aulas, o que foi muito interessante". A figura 2 representa as realidades produzidas pelos licenciandos no início (significado inicial) e ao final do semestre (significado transladado).
A mobilização dos licenciandos em torno dos conteúdos, das propostas do plano de ensino da UC e das exigências do estágio supervisionado provocou deslocamentos e induziu instabilidades na rede de actantes. Os posicionamentos dos licenciandos foram desestabilizados à medida que aconteciam as leituras, atividades, debates e, especialmente, a produção do jogo digital na UC. Ao circularem na rede, essas experiências foram partilhadas pelos actantes, o que colocou em curso um processo de reconfiguração, o qual favoreceu o estabelecimento de novos significados pedagógicos, propiciou o rompimento com as representações pregressas e fez emergir um novo modus vivendi.
Considerações finais
Este estudo teve como objetivo principal rastrear efeitos da incorporação de jogos digitais em uma proposta de ensino durante uma disciplina de estágio curricular da licenciatura em Física de uma universidade pública brasileira. Para tanto, o transcurso de nossa Pesquisa-Ação promoveu uma incursão empírica, que privilegiou debates em torno da literatura especializada, orientações sobre a prática de ensino e a construção de um produto pedagógico em formato de jogo digital pelos licenciandos.
Aprendemos que a Teoria Ator-Rede renova o sentido atribuído ao termo ‘social’ assumindo-o como associação de actantes, que, como coletivo híbrido, promove um fluxo de transformações, as quais evidenciam questões de interesse. Assim, em nossa intervenção no campo de pesquisa, empenhamo-nos em rastrear as translações estabelecidas na rede mapeada e nos nutrimos das incertezas que o momento vivenciado nos oportunizou. Com essa visão, em nosso relato, procuramos tecer uma rede que evidenciou um espaço-tempo de reflexões e afetações. Impossível não reconhecermos a importância da materialidade no coletivo estudado, pois, sem ela, as transformações observadas não se produziriam. Também, não conferimos uma ilusória estabilidade à realidade que elaboramos junto aos outros actantes de nossa rede e, em outro sentido, preferimos assumir a impermanência e a típica fluidez, que marcam qualquer agrupamento.
A partir disso, foi possível compreendermos que a materialidade do jogo digital produzido pelos licenciandos abarcou um processo de translação de significações pedagógicas dos licenciandos relacionadas aos jogos digitais e sua incorporação ao ensino de Física. As afetações mapeadas partiram de um lugar de ceticismo, incipiência, desconfiança ou mesmo impossibilidade de aproximação ‘jogo-prática pedagógica’ para um status, que passou a incluir: (1) jogo como um produto cultural; (2) design de jogos como um processo complexo e que envolve tempo, criatividade, referenciais teóricos, agências etc.; (3) desenvolvimento de um jogo digital como forma de trabalho coletivo e colaborativo; (4) jogo digital como via de inclusão da cultura digital no espaço escolar; e, (5) jogo digital como espaço de ensino e de promoção de aprendizagens e habilidades.
Igualmente, reconhecemos limitações que permearam todo o período de ERE e que acabaram por interferir na produção do jogo digital. Ainda assim, fazemos justiça ao empenho dos licenciandos em construir um produto audiovisual, que, embora de mecânica simplificada, agregou conteúdos de referência da Física de maneira planejada e aderente a uma proposta de ensino escolhida pelo professor-supervisor de estágio. Se o traço de um artefato, que ainda carece de maturação, está presente no jogo digital elaborado, a proposta - como um todo -, também, revela uma translação da tradição pedagógica e, igualmente, da forma de se pensar a atuação discente durante um estágio supervisionado da licenciatura.
Por fim, registramos que nossa intenção não foi/é promover uma substituição de métodos ou, ainda, tratar os jogos digitais como uma panaceia para os (muitos) problemas educacionais. Para nós, é importante incentivarmos a aproximação dos produtos da cultura digital das práticas pedagógicas dos professores e professoras, substanciando-as. Além disso, ao introduzirmos essa temática na formação inicial, pudemos constatar o quanto mobilizador e enriquecedor pode ser um processo de autoria envolvendo a articulação de conteúdos curriculares, design de jogos digitais e prática de ensino. Assim, alternativamente à lógica da substituição, assumimos uma lógica da atualização e expansão das formas de ensinar e de aprender com jogos digitais e, não menos, de seu projeto e concepção.
1A pesquisa possui Certificado de Apresentação para Apreciação Ética, protocolado e aprovado na Plataforma Brasil sob
2O uso da expressão jogos digitais, no plural, faz referência à temática que embasou conceitualmente a intervenção de campo. Um dos desdobramentos das ações empíricas foi o desenvolvimento de um jogo digital pelos licenciandos conforme indicado ao longo deste texto.
3Em um exercício de compreensão do conceito 'actantes', pensemos em um professor e seu planejamento de aula. Em associação, esses dois actantes evocam muitos outros, tais como: escola, sala de aula, diretrizes curriculares, projeto político-pedagógico, computadores, materiais didáticos, alunos e gestores escolares.
4Um exemplo: em uma videoconferência, um computador em perfeito estado de funcionamento se configura como intermediário, mas, se em um momento qualquer travar, assume condição de mediador. Essa mudança de status do actante (computador) é devida à desestabilização que este provocou no fluxo de ações em que estava filiado, produzindo reações e mobilizações.
5Esse planejamento acolheu e respeitou as sugestões dos licenciandos e do professor supervisor do estágio curricular.
7Ben 10 é o personagem de um garoto que usa um dispositivo tipo relógio de pulso, o qual lhe permite se transformar em criaturas alienígenas.
10O nome Ampets sugere um trocadilho com 'Amperes' e 'Pets' e foi escolhido pelos licenciandos. O jogo pode ser acessado em: https://cutt.ly/tWC0yg6.
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Recebido: 21 de Janeiro de 2021; Aceito: 24 de Abril de 2021