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Ciência & Educação

Print version ISSN 1516-7313On-line version ISSN 1980-850X

Ciência educ. vol.27  Bauru  2021  Epub Oct 26, 2021

https://doi.org/10.1590/1516-731320210056 

Artigo Original

Natureza da Ciência no ensino: entre a pesquisa acadêmica e as orientações oficiais para a educação básica

Nature of Science in education: between academic research and official standards for basic education

José Antonio Ferreira Pinto1 
http://orcid.org/0000-0001-9169-9950

Cibelle Celestino Silva2 
http://orcid.org/0000-0003-3021-3915

1Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), Campina Grande, PB, Brasil.

2Universidade de São Paulo (USP), Instituto de Física de São Carlos, São Carlos, SP, Brasil.


Resumo:

A partir da constatação trazida pela pesquisa acadêmica sobre a importância da implementação de aspectos de natureza da ciência (NdC) em currículos de ciências, neste trabalho analisamos se há presença de elementos de NdC nos documentos oficiais que regem a educação básica. Foram analisados os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio, as Novas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica e a Base Nacional Comum Curricular. Isso foi feito a partir da análise de conteúdo e da construção de parâmetros de localidade e inclusão baseados na noção de ciência integral. Apesar de ser uma temática importante em eventos de pesquisa na área e com um número expressivo de publicações, os documentos oficiais não se referem explicitamente à natureza da ciência, fazendo menções superficiais a discussões sobre as ciências e suas características.

Palavras-chave: Natureza da ciência; Documentos oficiais; Educação básica

Abstract:

Based on the results brought about by academic research on the importance of implementing aspects of nature of science (NOS) in science curricula, in this paper, we analyze whether NOS elements are present in official documents that govern middle education. The National Curriculum Parameters for High School, the New National Curriculum Guidelines for Basic Education, and the Common National Curriculum Base were analyzed. The analysis was carried out using content analysis and the construction of location and inclusion parameters based on whole science. Despite being a relevant theme in scientific research events in the area with many publications, official documents do not explicitly refer to nature of science, making only superficial mentions to discussions about sciences and their characteristics.

Keywords: Nature of science; Official documents; Secondary school

Introdução

A pesquisa em ensino de ciências há muito vem se posicionando em defesa da natureza da ciência (NdC) como componente intrínseco às diversas disciplinas que compõem o currículo de ciências da natureza na educação básica (HODSON, 2014; MARTINS, 2007). Vale salientar que nem sempre o termo ‘natureza da ciência’ aparece de forma explícita, principalmente nos primeiros trabalhos que dele tratam, tornando-se mais recorrente, ou com contornos e significados mais definidos, à medida que vai se estabelecendo nas pesquisas da área. Pesquisas sobre filosofia da ciência no ensino já existiam na década de 1980 (como em HODSON, 1985; MARTINS; SILVA; PRESTES, 2014; MATTHEWS, 1989; ZANETIC, 1989), trazem um estudo detalhado sobre o estabelecimento da área de história e filosofia de ciência e ensino de ciências no país.

O significado e uso do termo ‘natureza da ciência’ é complexo, dinâmico, e tem uma história recente de uso na pesquisa em História e Filosofia da Ciência (HFC) no Brasil. Antes dos anos 2000, já havia pesquisas sobre o que hoje se chama ‘natureza da ciência’, mas o termo era pouco comum. Dada a complexidade do tema, existem importantes defesas de que ele seja evitado (MATTHEWS, 2012), e substituído por ‘discussões sobre as ciências’ ou ‘sobre as características da ciência’. No presente trabalho optamos por manter o uso do termo natureza da ciência, porém considerando e respeitando seu caráter polissêmico.

Há uma grande variedade de definições do termo ‘natureza da ciência’ nas quais subjazem diferentes ênfases e interpretações acerca de aspectos epistêmicos e não epistêmicos no processo de construção e validação do conhecimento científico (ABD-EL-KHALICK, 2012; ALLCHIN, 2013; IRZIK; NOLA, 2011; LEDERMAN, 2007; LEDERMAN; BARTOS; LEDERMAN, 2014; MCCOMAS; CLOUGH; ALMAZROA, 1998; MARTINS, 2015; MATTHEWS, 2012; RODRÍGUEZ; ADURÍZ-BRAVO, 2013; VÁZQUEZ-ALONSO et al., 2008).

A relevância da inserção e discussão sobre natureza da ciência é atestada pela constante presença do tema em pesquisas na área de ensino de ciências; por exemplo, em uma busca simples feita em março de 2019 na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD) encontramos 289 resultados para o termo ‘natureza da ciência’, sendo 208 trabalhos de dissertações e 81 teses de doutorado. Além disso, os principais eventos nacionais da área de ensino de ciências e física, como Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências (ENPEC), Encontro de Pesquisa em Ensino de Física (EPEF) e o Simpósio Nacional de Ensino de Física (SNEF), também possuem, pelo menos, uma linha temática voltada à História, Filosofia e Sociologia da Ciência, com a NdC como um dos principais pontos de discussão.

Autores da área advogam pelo fomento de concepções adequadas acerca da natureza da ciência utilizando diferentes argumentos (HEERDT, 2014; HODSON, 2014; MARTINS, 2007; MATTHEWS, 1994). Entre eles estão:

  • - A humanização da ciência e dos cientistas, aproximando-os dos estudantes;

  • - A desmistificação do trabalho dos cientistas, questionando os papéis da comunidade de cientistas, o mito de cientistas geniais alheios a seu contexto, questões de gênero e raça, entre outros;

  • - A promoção de uma maior compreensão sobre a ética e neutralidade da ciência, a confiabilidade, credibilidade, incertezas e imprecisões nos resultados científicos, etc.

Além de razões de ordem acadêmica e pedagógica, grande parte dos trabalhos acadêmicos que versam sobre a utilização da NdC no ensino de ciências também se pautam em recomendações dos documentos oficiais para justificar sua importância. Do mesmo modo, a elaboração de diretrizes curriculares nas diversas instâncias com grande impacto na sala de aula, tais como currículos estaduais e municipais, exames de avaliação, formação de professores e políticas públicas na área educacional, deveria ser baseada em resultados da pesquisa em ensino. No entanto, parece haver um hiato entre o que é apontado pelas pesquisas em ensino de ciências e pelos documentos oficiais quanto às temáticas voltadas aos conteúdos metacientíficos. Höttecke e Silva (2011) apontam que o diálogo entre formuladores de políticas públicas e pesquisadores do tema é tênue. Para entender melhor o processo de elaboração de diretrizes oficiais para educação em ciências seria necessário pesquisar questões tais como quem redige os documentos oficiais? Quem são os representantes? Como ocorre a produção, divulgação e aceitação pela comunidade escolar dos documentos oficiais? No entanto, tais questões fogem do escopo deste trabalho.

Neste contexto, faz-se relevante analisar quais e como as concepções de NdC estão presentes em documentos oficiais, já que influenciam a ação docente de forma mais significativa do que resultados de pesquisas publicados em revistas e livros voltados a um público especializado.

Ciência integral: explorando a confiabilidade da ciência

Como aponta Martins (2015), o termo ‘natureza da ciência’ não é univocamente definido; seu significado considera questões internas e externas à ciência e varia dependendo dos posicionamentos epistemológicos, ontológicos, de origem e formação de quem fala e a quem se destina tal conhecimento.

Várias perspectivas acerca da natureza da ciência estão disponíveis na literatura, direcionando olhares para diferentes aspectos do processo de produção do conhecimento científico, atribuindo-lhe motivações, análises de contexto, sujeitos, relações internas e externas à ciência, processos de validação, estabelecimento e evolução, atributos éticos e sociais, etc. Dentre as diferentes visões sobre o que constitui a natureza da ciência, podemos citar a ‘visão consensual’ sobre a NdC, que aponta para uma lista de características básicas comuns sobre a construção das ciências (LEDERMAN, 2007; LEDERMAN; BARTOS; LEDERMAN, 2014; MCCOMAS; OLSON, 1998; PUMFREY, 1991). Ao longo da década de 2010, outras abordagens foram propostas; por exemplo, a ‘semelhança familiar’, (IRZIK; NOLA, 2014), os ‘campos teóricos estruturantes’ (ADÚRIZ-BRAVO; IZQUIERDO; ESTANY, 2002), a ‘ciência integral’ (ALLCHIN, 2013), e ‘temas e questões’ (MARTINS, 2015). Mesmo com um cuidadoso processo de delimitação do escopo de tais abordagens para que atendam ao maior número de reivindicações, o caráter polissêmico e não consensual do próprio objeto de estudo, não permite que qualquer uma delas seja considerada completa ou o retrato final do processo científico.

A ciência integral proposta por Allchin (2013) traz a perspectiva de que a natureza da ciência deve ser abordada considerando aspectos conceituais e observacionais; formas de construção, validação e comunicação do conhecimento; relações entre cientistas englobando condicionantes culturais, éticos e sociais envolvidos nas tomadas de decisão. Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, a ideia de ‘integral’ não significa que a abordagem pretenda explicar a ciência em sua completude, mas que não serão excluídos nenhum de seus elementos essenciais. Daí o termo integral que, neste caso, faz alusão aos alimentos integrais, que por não serem ultraprocessados, apresentam todos os seus ingredientes essenciais (LICIO, 2018, p. 37). A partir disso, Allchin (2013) propõe as dimensões de confiabilidade - observacional, conceitual e sociocultural - que utilizaremos para analisar a presença de ‘natureza da ciência’ nos documentos selecionados.

Na dimensão observacional estão presentes elementos que se relacionam com o processo prático da construção do conhecimento científico. Assim, levando-se em consideração questões que dizem respeito aos tipos de observação e medidas realizadas, aos diferentes arranjos experimentais e seus papéis para a validação dos dados resultantes. Além disso, observa-se se há presença e uso de diferentes instrumentos e modelos para desenvolvimento do estudo. Na perspectiva de análise de documentos oficiais, essa dimensão será considerada a partir da presença de conteúdos com indicações e proposições que tratam da importância de compreender, reconhecer e realizar atividades práticas e experimentais como elementos constitutivos do ensino de ciências.

Já a dimensão conceitual foca em como a construção do conhecimento se relaciona com as escolhas metodológicas e teóricas por parte dos cientistas. Desse modo, padrões de raciocínio podem apontar como foram tratados os dados e que tipo de olhar foi despendido para eles; qual o plano de fundo teórico, compreendido em sua dimensão histórica; ou ainda como as experiências em outros campos de conhecimento exerceram papel nas decisões e interpretações dos dados. Na presente análise, serão considerados como conteúdos que fazem parte dessa dimensão aqueles que indicam a relevância da compreensão do trabalho científico como parte de um processo carregado de conceitos prévios que não permitem um olhar neutro para o objeto de estudo. Outrossim, encontra-se permeado de perspectiva histórica, concepções filosóficas que formam sua visão de mundo e posicionamentos epistemológicos. Nessa perspectiva, a linguagem tem um papel estruturante como parte intrínseco do processo de comunicação e validação do conhecimento científico, e também será levada em consideração.

Por fim, a dimensão sociocultural está relacionada às diversas maneiras como sociedade e cultura podem influenciar os caminhos percorridos por estudos e pesquisas. As diversas interações existentes em instituições científicas, permeadas por disputas, parcerias, críticas, revisões por pares, são algumas das questões que podem ser consideradas. Ao empreendimento científico também pertencem questões de financiamentos, conflitos de interesses, influências de questões de gênero, raça, classe social, religião, e as diversas formas de comunicação dos resultados que são submetidos à análise de credibilidade por pares.

Neste trabalho, a análise dessa dimensão levou em conta conteúdos presentes nos documentos analisados que informam a necessidade de o ensino de ciências incentivar e proporcionar posturas críticas dos estudantes em relação ao reconhecimento das relações entre questões socioculturais e científicas para a compreensão de estudos de casos históricos ou atuais.

Metodologia

Definindo parâmetros

A tímida presença de referências explícitas e recomendações contundentes a favor da NdC em documentos oficiais e, consequentemente, o fato de professores negligenciarem seu ensino, focando em conteúdos e habilidades cobrados em exames oficiais, não são problemas exclusivamente brasileiros. Há vários trabalhos na literatura internacional sobre o tema sob diferentes perspectivas (BYBEE, 2014; HODSON, 2014; KAYA; ERDURAN, 2016; MCCOMAS; OLSON, 1998; OLSON, 2018; YEH; ERDURAN; HSU, 2019). Dentre eles, a pesquisadora Joanne Olson (OLSON, 2018) analisou documentos oficiais sobre ensino de ciências da Austrália, Canadá, Colômbia, Indonésia, Líbano, México, Tailândia, África do Sul e EUA para identificar que tipos de conteúdos são considerados representantes de aspectos relacionados a NdC. A autora considerou declarações relacionadas aos cientistas e ao empreendimento científico como mensagens filosóficas, históricas, sociológicas ou psicológicas, incluindo o que a ciência é e como funciona, como os cientistas atuam enquanto grupo social e como a própria sociedade direciona e reage aos esforços científicos. Além disso, observou que a localização dessas declarações nos documentos influencia a maneira como os destinatários as consideram, principalmente os professores.

Em sua análise, Olson (2018) construiu parâmetros de inclusão e localidade. Os primeiros dizem respeito às declarações que podem ser consideradas como afirmações de NdC. Já os parâmetros de localidade indicam a localização dessas declarações, podendo encontrar-se em três posições: (1) em listas demarcando claramente o que os estudantes devem aprender, chamadas de normas. Nesse caso, a atenção seria maior já que relacionam explicitamente NdC aos objetivos de ensino e aprendizagem; (2) presentes no corpo principal do texto, podendo passar despercebidas ou relegadas a um segundo plano por não aparecerem claramente como resultados de aprendizagem esperados. Também se incluem títulos de colunas, declarações à margem da página ou como informações suplementares, que classificaremos como suplementos; (3) as afirmações localizadas em introduções, descrições gerais de currículo, etc., serão chamadas de conteúdo introdutório (CI); e de conteúdo pós-textual (CP) as que aparecem em apêndices, leituras complementares etc.

No presente trabalho, adaptamos a metodologia empregada por Olson para analisar como elementos de natureza da ciência aparecem em documentos oficiais. Diferentemente da autora, não consideramos a presença de listas normativas explícitas sobre o que os estudantes devem aprender, visto que essa abordagem acumula críticas a favor e contra, discussão essa que foge ao escopo do presente trabalho, mas são abordadas, entre outros, por Bagdonas, Zanetic e Gurgel (2014), Irzik e Nola (2011), Matthews (2012), Martins (2015) e Moreira (2018).

Procedimentos de análise

Baseamos nossa análise no que é proposto por Bardin (2011) para análise de conteúdo, estabelecendo critérios em consonância com o referencial teórico adotado. Nesse sentido, apontamos se, como e onde estão postas as discussões e recomendações acerca da NdC nos documentos oficiais interpretando se tais ocorrências são epresentativas e significativas para a justificação e proposição de um ensino que implemente questões metacientíficas. Para isso, estabelecemos:

  1. As unidades de contexto são fragmentos dos documentos oficiais com relação implícita ou explícita com as unidades de registro. Os fragmentos foram particionados em trechos de, no máximo, duzentas e dez palavras, seguindo indicações de Osgood (1959) para análise de relações sem, no entanto, estipular limite mínimo de palavras. Foram analisadas apenas as partes dos documentos que tratam especificamente das ciências da natureza no ensino médio;

  2. O parâmetro de inclusão que evidencia os aspectos de NdC essenciais para avaliar a confiabilidade do discurso da ciência, o que Allchin (2013) chamou de dimensões de confiabilidade. As dimensões observacional, conceitual e sociocultural compõem as três unidades de registro desse parâmetro;

  3. O parâmetro de localidade permite observar onde estão localizadas as unidades de contexto que, após serem analisadas segundo as dimensões do parâmetro de inclusão, são classificadas de acordo com sua visibilidade no documento na forma de outras três unidades de registro1: normas, suplementos, conteúdos introdutórios e pós-textual.

Os parâmetros e suas respectivas unidades de registro estão sumarizadas no quadro 1.

Quadro 1 - Descrição dos parâmetros e unidades de registro 

Parâmetros Unidades de registro
Parâmetro de inclusão Dimensão observacional
Dimensão conceitual
Dimensão sociocultural
Parâmetro de localidade Normas
Suplementos
Conteúdos introdutórios e pós-textual CI/CP

Fonte: elaborado pelos autores.

Os quantificadores propostos para a análise dos dados são:

  1. A Presença do Parâmetro de Inclusão (PPI): esse quantificador indica o número de vezes que cada unidade de registro do parâmetro de inclusão aparece no documento, assinalando quais aspectos da NdC são priorizados. Portanto, afere a ênfase atribuída às dimensões de confiabilidade da NdC no documento como um todo. Valores semelhantes de PPI para as três unidades de registro num mesmo documento são interpretados como indicativo de uma visão ampla sobre NdC. Para a comparação entre diferentes documentos, utilizamos a porcentagem entre o número de vezes que uma unidade de registro aparece em relação ao total de unidades de contexto dos documentos em questão.

  2. O índice de integralidade (Ii) representa o grau de associação entre as unidades de contexto e as diferentes dimensões do parâmetro de inclusão, variando de 1 (a unidade de contexto tem correspondência mínima e não contempla todas as dimensões de confiabilidade) a 3 (a unidade contempla integralmente as dimensões de confiabilidade). O índice de integralidade avalia a ênfase nas dimensões de confiabilidade em cada unidade de contexto extraída do documento. Assim, uma unidade de contexto será mais integral quando contemplar mais dimensões de confiabilidade e maior será o potencial do documento para proposição e justificação do ensino pautado em discussões metacientíficas.

  3. O índice de localidade (IL) indica a ênfase em aspectos da natureza da ciência de acordo com a localização das unidades de contexto no documento, com valores variando entre 1 (conteúdo introdutório/pós-textual), 2 (suplementos) e 3 (normas). Caso as unidades de contexto se repitam em localidades diferentes, são analisadas como unidades diferentes.

  4. O índice de relevância (IR) indica como os elementos de NdC estão presentes nos documentos analisados e o potencial que uma unidade de contexto pode ter para ser explícita e integralmente significativa, relacionando a localidade e abrangência das dimensões de confiabilidade do parâmetro de inclusão. O IR é calculado como a média aritmética entre os valores atribuídos aos índices de integralidade e de relevância para cada unidade de contexto.

    IR=(Ii)+(IL)2

Como o maior valor que cada parâmetro pode assumir é 3, o índice de relevância pode assumir valores entre 1 e 3. Quanto maior o índice de integralidade, maior a possibilidade de que o leitor depreenda e valorize aspectos de NdC em seu planejamento e, eventualmente em sua prática em sala de aula.

Analisando e discutindo os documentos oficiais

As pesquisas no Brasil que tratam de discussões acerca de questões relacionadas à natureza da ciência aparecem de forma mais frequente a partir na primeira década de 2000 (por exemplo, em AUTH, 2002; KÖHNLEIN, 2003; LEE, 2002; MASSONI, 2005; MEGLHIORATTI, 2004; OKI, 2006; PAULA, 2004; PAGLIARINI, 2007; VIEIRA, 2007). Portanto a análise dos documentos é apresentada cronologicamente, considerando as últimas versões publicadas oficialmente, após esse ano2.

Analisamos os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM) (BRASIL, 2000), as Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNEM+) (BRASIL, 2002), as Novas Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio (DCNEM) (BRASIL, 2013) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (BRASIL, 2018). Consideramos as partes introdutórias dos documentos com caráter geral e as áreas de ciências da natureza e suas tecnologias do ensino médio. Apresentaremos a seguir alguns exemplos de trechos selecionados como unidades de contexto, explicitando sua relevância em relação aos parâmetros de inclusão e localidade. Na sequência serão apresentadas tabelas contendo resultados de tratamento de dados de acordo com os índices definidos acima, seguidas de discussões.

Análises e discussões dos documentos

Partindo da caracterização da área de ciências, matemática e suas tecnologias, o texto dos PCNEM afirma:

Ao se denominar a área como sendo não só de Ciências e Matemática, mas também de suas Tecnologias, sinaliza-se claramente que, em cada uma de suas disciplinas, pretende-se promover competências e habilidades que sirvam para o exercício de intervenções e julgamentos práticos. Isto significa, por exemplo, o entendimento de equipamentos e de procedimentos técnicos, a obtenção e análise de informações, a avaliação de riscos e benefícios em processos tecnológicos, de um significado amplo para a cidadania e também para a vida profissional. (BRASIL, 2000, p. 6).

A unidade de contexto acima aponta para o caráter utilitário e prático das discussões que devem estar presentes na área, objetivando a compreensão de procedimentos investigativos e o trabalho de reflexão crítica sobre os resultados desses conhecimentos para a sociedade. Essa unidade de contexto contempla as dimensões observacional e sociocultural do parâmetro de inclusão, logo, seu índice de integralidade é 2. Por estar presente na parte introdutória do documento foi associada ao parâmetro de localidade conteúdo introdutório e pós-textual (CI/CP), o que lhe confere um índice de localidade 1. Portanto, o valor do índice de relevância para essa unidade de contexto é 1,5, um valor mediano na escala desse índice, o que representa baixo potencial para ser percebido como importante pelo leitor. Uma análise contextual corrobora os resultados, pois a unidade de contexto está diluída em uma parte do texto que trata de questões mais gerais que podem não ser identificadas como objetivos claros para o ensino de ciências, passando despercebidas pelo leitor.

Nos PCNEM+ (BRASIL, 2002), por exemplo, há um tópico composto por caracterizações das competências do ensino de física:

Assim, há competências relacionadas principalmente com a investigação e compreensão dos fenômenos físicos, enquanto há outras que dizem respeito à utilização da linguagem física e de sua comunicação, ou, finalmente, que tenham a ver com sua contextualização histórica e social. (BRASIL, 2002, p. 62).

Essa unidade de contexto contempla as três unidades de registro (dimensões observacional, conceitual e sociocultural) do parâmetro de inclusão, portanto seu índice de integralidade é 3. Apesar de não estar em uma lista, esse trecho aparece com destaque em negrito em um tópico cujo título Competências em física já chama a atenção para sua importância no documento, por isso associamos essa unidade de contexto ao parâmetro de localidade normas, atribuindo um índice de localidade igual a 3. Além de contemplar todas as dimensões, aponta para objetivos claros para o ensino, atribuindo-lhe uma posição de destaque. Seu índice de relevância, obtido pela média entre os índices de integralidade e localidade, é igualao valor máximo 3.

Nesta pesquisa, foram identificadas 125 unidades de contexto nos PCNEM (BRASIL, 2000) e 112 nos PCNEM+ (BRASIL, 2002), cujas análises estão sumarizadas na tabela 1. Vale salientar que para cada unidade de contexto é calculado um índice de integralidade e um índice de relevância, portanto, o que a tabela 1 apresenta é a média desses valores em relação ao conjunto de unidades de contexto de cada documento.

Tabela 1 - Análise quantitativa dos PCN para o Ensino Médio e Orientações Educacionais Complementares aos PCN, segundo parâmetros de inclusão e de localidade 

Total de unidades de contexto Parâmetros de inclusão Parâmetros de localidade Iɩ¯ Ir¯
Dimensão observacional Dimensão conceitual Dimensão sociocultural Normas (x3) Suplementos (x2) CI/CP(x1) (1-3) (1-3)
PCNEM = 125 59 52 57 162 98 12 1,5 1,9
PCNEM+= 112 46 55 51 261 38 4 1,5 1,9

Fonte: elaborado pelos autores.

Iɩ¯ Média dos índices de integralidade de cada documento; Ir¯ Média dos índices de relevância de cada documento.

Pode-se observar que nos PCNEM (BRASIL, 2000) há uma maior concentração em torno da dimensão observacional com uma diferença relativamente pequena em relação à dimensão sociocultural. De fato, ao analisar as unidades de contexto é possível observar que existem muitas indicações de atividades práticas e experimentais, com forte incentivo às atividades investigativas, em grande parte associadas à necessidade de reflexão crítica para formação de posicionamentos frente às questões que permeiam a sociedade. A dimensão conceitual, no entanto, é um pouco menos discutida; mas quando aparece o é de forma explícita. Há, portanto, um equilíbrio na presença das três dimensões do parâmetro de inclusão no documento.

Ao todo, no PCNEM (BRASIL, 2000), 54 das unidades de contexto foram relacionadas ao parâmetro de localidade normas, totalizando um índice de localidade de 162; 49 unidades de contexto para o parâmetro de localidade suplementos, correspondente a um índice de localidade de 98; e apenas 12 para o parâmetro de localidade introdutório e pós-textual. Por se tratar de um documento que define parâmetros para o currículo, há uma grande presença de listas, com competências e habilidades como objetivos de ensino, seguidas de algumas discussões acerca dos pontos tratados na tabela 1, o que explica o valor elevado para o índice de localidade normas. Entretanto, poucas unidades de contexto contemplam as 3 dimensões do parâmetro de inclusão, o que se reflete nos valores dos quantificadores índice de integralidade e do índice de relevância que obtiveram médias iguais a 1,5 e 1,9, respectivamente.

Já nos PCNEM+ (BRASIL, 2002) há uma pequena inversão em relação aos PCNEM (BRASIL, 2000), sendo a dimensão conceitual um pouco mais presente com presença de parâmetro de inclusão (PPI) de 55 e a dimensão observacional apresentando PPI menor, de 46. Como os valores para os índices de inclusão permanecem baixos, o valor relativamente maior do índice de localidade normas não é suficiente para dar uma diferença significativa no quantificador índice de relevância que permanece com valor médio 2,0, muito próximo ao dos PCNEM (BRASIL, 2000). Observamos a tentativa dos PCNEM+ (BRASIL, 2002) de apresentar uma estrutura com uma maior quantidade de orientações explícitas e na forma de tabelas, com forte presença de verbos de ação indicando objetivos a serem desenvolvidos. Porém, o documento não enfatiza a importância de discussões de aspectos de NdC, como mostrado pelo baixo valor de 1,4 para a média dos índices de integralidade.

No capítulo dois das Novas Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio são listados cinco pontos, dos quais dois são particularmente interessantes, pois referem-se ao papel da escola que, ao se incumbir de cuidar e educar, entre outras coisas, deve:

II. adotar estratégias para que seja possível, ao longo da Educação Básica, desenvolver o letramento emocional, social e ecológico; o conhecimento científico pertinente aos diferentes tempos, espaços e sentidos; a compreensão do significado das ciências, das letras, das artes, do esporte e do lazer;

III. ensinar a compreender o que é ciência, qual a sua história e a quem ela se destina; (BRASIL, 2013, p. 33).

As considerações do item II apontam implicitamente para a importância da natureza da ciência nos objetivos curriculares da educação básica. Ao relacionar a construção do conhecimento científico à sua localidade no tempo e espaço, apontando para o objetivo de compreender essa dimensão epistemológica, podemos situar o item II no parâmetro de inclusão dimensão conceitual. Em relação à sua localidade, são unidades presentes no capítulo que trazem aspectos gerais para a educação básica, mas que não fazem parte do documento principal relativo ao ensino médio, mas que têm caráter normativo, fazendo parte de uma lista de objetivos a serem cumpridos pela escola e contemplados nos currículos de ciências. Nesse caso, marcamos positivamente apenas o parâmetro de localidade para normas. Com isso, temos valores 1 para o índice de integralidade, 3 para o índice de localidade e índice de relevância 2.

No item III, a unidade de contexto é bastante genérica. Nesse caso e em outros semelhantes, utilizamos como critério o valor de maior significatividade, ou seja, consideramos a possibilidade mais completa de significância para os termos associados, alocando-os no máximo de dimensões possível. Com isso, marcamos as três dimensões de confiabilidade (observacional, conceitual e sociocultural) como positivas para os elementos que compõem a unidade de contexto. Novamente, pelo fato de a unidade de contexto fazer parte de uma lista e estar em uma parte complementar ao texto principal, foi a ela atribuído o parâmetro de localidade normas. Os índices de integralidade, localidade e relevância, para essa unidade de contexto, assumem o mesmo valor 3, ou seja, o maior valor possível, indicando ser uma unidade que apresenta as discussões de NdC relativas às três dimensões do parâmetro de localidade e encontra-se em destaque no texto.

Análises como essas foram realizadas em todo o documento Novas Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio (BRASIL, 2013), resultando em 16 unidades de contexto, cuja análise geral é apresentada na tabela 2.

Tabela 2 - Análise das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio e Base Nacional Comum Curricular, segundo parâmetros de inclusão e localidade 

Total de unidades de contexto Parâmetros de inclusão Parâmetros de localidade Iɩ¯ Ir¯
Dimensão observacional Dimensão conceitual Dimensão sociocultural Normas (x3) Suplementos (x2) CI/CP(x1) (1-3) (1-3)
DCNEM = 16 7 11 10 24 16 0 1,8 2,1
BNCC = 63 34 21 37 87 62 3 1,5 1,9

Fonte: elaborado pelos autores.

Iɩ¯ Média dos índices de integralidade de cada documento; Ir¯ Média dos índices de relevância de cada documento.

A tabela 2 mostra que as dimensões conceitual e sociocultural do parâmetro de inclusão são mais frequentes com presença de parâmetros de inclusão (PPI) iguais a 11 e 10, respectivamente. As unidades de contexto aparecem em locais com boa visibilidade, com índices de localidade total 24 para o parâmetro normas e 16 para suplementos. O valor de 1,8 para a média dos índices de integralidade se deve ao fato de que as unidades de contexto, em sua maioria, contemplam apenas 1 ou 2 das dimensões do parâmetro de inclusão, resultando em um índice de relevância médio de 2,1.

Como último exemplo, a parte introdutória da Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018), onde estão descritas as competências gerais da educação básica, aborda questões relativas às ciências:

Exercitar a curiosidade intelectual e recorrer à abordagem própria das ciências, incluindo a investigação, a reflexão, a análise crítica, a imaginação e a criatividade, para investigar causas, elaborar e testar hipóteses, formular e resolver problemas e criar soluções (inclusive tecnológicas) com base nos conhecimentos das diferentes áreas. (BRASIL, 2018, p. 9).

A abordagem associada às ciências descrita nesse exemplo de unidade de contexto está intimamente ligada à dimensão observacional ao tratar de processos de investigação, análise, testes, etc. O destaque dado ao papel da criatividade e imaginação na construção do conhecimento científico pode ser associado à unidade de registro dimensão conceitual. Portanto, para essa unidade de contexto são atribuídas as unidades de registro dimensão observacional e conceitual do parâmetro de inclusão, o que resulta em um índice de integralidade igual a 2. Por ser parte de uma lista de competências, elencando objetivos para a educação básica, a unidade de contexto citada acima foi alocada no parâmetro de localidade normas, cujo índice de localidade é 3. Dessa maneira, temos um índice de relevância 2,5.

Ao tratar especificamente da área de ciências da natureza e suas tecnologias, o documento aponta que:

Na área de Ciências da Natureza, os conhecimentos conceituais são sistematizados em leis, teorias e modelos. A elaboração, a interpretação e a aplicação de modelos explicativos para fenômenos naturais e sistemas tecnológicos são aspectos fundamentais do fazer científico, bem como a identificação de regularidades, invariantes e transformações. Os conhecimentos conceituais associados a essas temáticas constituem uma base que permite aos estudantes investigar, analisar e discutir situações-problema que emerjam de diferentes contextos socioculturais, além de compreender e interpretar leis, teorias e modelos, aplicando-os na resolução de problemas individuais, sociais e ambientais. (BRASIL, 2018, p. 548).

Os aspectos presentes nessa unidade de contexto contemplam as três dimensões do parâmetro de inclusão, estabelecendo entendimentos acerca dos conhecimentos conceituais, do fazer científico e sua relação com os aspectos socioculturais, resultando em um índice de integralidade igual a 3. Além disso, encontra-se presente na contextualização da área, o que leva a ser alocada dentro do parâmetro de localidade suplementos, com valor para o índice de localidade 2. Com isso, temos um índice de relevância igual a 2,5.

Pelos valores da tabela 2, podemos observar que a presença do parâmetro de inclusão (PPI) da dimensão conceitual está bem abaixo dos valores para as dimensões observacional e sociocultural. Nesse sentido, a BNCC se diferencia dos outros dois documentos que mantiveram um bom equilíbrio entre as dimensões do parâmetro de inclusão.

Uma alteração significativa na BNCC em relação aos outros três documentos analisados é que não há mais apresentação de competências por disciplinas e, talvez por isso, a importância atribuída às questões conceituais foi atenuada em relação às competências relacionadas à prática e investigação, além da necessidade de maior contextualização.

Com relação ao parâmetro de localidade, a unidade de registro normas alcançou valor 87, o que significa que 29 unidades de contexto estavam presentes em listas ou com algum tipo de destaque. O texto principal que trata da área de ciências da natureza, considerada aqui como suplementos, teve um total de 31 unidades de contexto, o que resulta em um índice de localidade igual a 62. Há um equilíbrio na localidade das unidades de contexto, o que é positivo se entendermos que as listas normativas são corroboradas na continuidade do texto com discussões que tratam do mesmo objeto, reforçando o discurso sobre NdC. Por outro lado, as unidades de contexto não contemplam simultaneamente diferentes dimensões do parâmetro de integralidade, o que revela falta de coesão acerca dos parâmetros estabelecidos no próprio documento, ou seja, questões relevantes deveriam compor o contexto, os objetivos e as justificativas tanto em aspectos gerais quanto específicos.

Conclusões

Partimos do pressuposto de que a natureza da ciência é um tema recorrente em pesquisas na área de ensino de ciências, particularmente na linha de história, filosofia e sociologia da ciência e suas variantes e que sua inserção no ensino é muito importante e enriquecedora para a formação integral dos estudantes, por favorecer a compreensão das ciências, sobre ciências e dos princípios e relações em que se baseia a produção e validação do conhecimento científico. Para além disso, conhecer sobre como a ciência funciona, seus condicionantes, procedimentos e limites pode promover uma postura ativa e crítica dos estudantes na sociedade em que vivem acerca de temas envolvendo questões científicas. Portanto, a análise realizada buscou identificar se alguns dos documentos que regem ou regeram a educação básica brasileira estão em consonância com reivindicações advindas das pesquisas acadêmicas, cujo intuito é a inserção e estruturação de um currículo que atenda às demandas da sociedade em que vivemos.

Tendo em vista a pluralidade de significados e usos do termo ‘natureza da ciência’, nossa análise levou em consideração não apenas a presença explícita do termo, mas também discussões sobre as ciências e suas características.

Para tal, utilizamos na construção de parâmetros de análise dos aspectos da natureza da ciência o referencial da ciência integral proposto por Allchin (2013) e o trabalho de Olson (2018) que traz parâmetros de análise de documentos quanto à localidade das informações e sua relevância. Construímos quantificadores específicos para auxiliar a análise segundo a presença e recorrência das unidades de registros que compõem cada parâmetro. Além disso, ao estabelecer critérios que associavam qualitativamente os valores resultantes em cada quantificador, foi possível ampliar as discussões inicialmente presentes no instrumento proposto por Olson. Com isso, realizamos a análise dos documentos separadamente para, em seguida, comparar os dados resultantes dos documentos entre si.

Esperávamos que por serem documentos que desempenham papel legal na construção dos currículos da educação básica, no caso das ciências da natureza, e tendo em vista a importância atribuída às questões de NdC presentes nas pesquisas da área, houvesse uma maior clareza e orientação aos professores e outros sujeitos destinatários dos referidos documentos.

A análise comparativa entre os PCNEM (BRASIL, 2000), PCNEM+ (BRASIL, 2002), DCNEM (BRASIL, 2013) e BNCC (BRASIL, 2018), feita pelo cotejo das porcentagens do número de vezes que uma unidade de registro aparece em relação ao total de unidades de contexto em cada um dos documentos, mostra que poucas unidades de registro conseguem ultrapassar um percentual de 50%, conforme mostra a tabela 3. Isso indica que a presença de conteúdos contemplando natureza da ciência nesses documentos ainda é incipiente.

Tabela 3 - Comparativo entre os percentuais de unidades de registro em relação ao total de unidades de contexto em cada documento analisado 

Documentos Dimensão observacional Dimensão conceitual Dimensão sociocultural Normas Suplementos CI/CP
PCNEM 47,2% 41,6% 45,6% 43,2% 39,2% 9,6%
PCNEM+ 41,1% 49,1% 45,5% 77,7% 17,0% 3,6%
DCNEM 43,8% 68,8% 62,5% 50,0% 50,0% 0,0%
BNCC 54,0% 33,3% 58,7% 46,0% 49,2% 4,8%

Fonte: elaborado pelos autores.

Nos PCNEM+, o percentual da unidade de registro normas é de 77,7%, significando que a maior parte de suas unidades de contexto estão em posição de destaque com indicações claras para a discussão de aspectos de NdC no ensino, valor bem superior se comparado com a mesma categoria nos outros documentos, que não superaram os 50%.

Em relação às unidades de registro que representam os conteúdos de NdC presentes nos documentos, as DCNEM (BRASIL, 2013) se destacaram com valores superiores a 60% nas dimensões conceitual e sociocultural, sendo aproximado apenas pela dimensão sociocultural na BNCC (BRASIL, 2018).

Apesar de os quatro documentos analisados apresentarem elementos de todas as dimensões do parâmetro de inclusão, as discussões neles presentes são superficiais, não contemplando as múltiplas possibilidades de tratamento de aspectos de NdC consideradas importantes para uma melhor compreensão de e sobre ciências. Isso ocorreria se as unidades de registro do parâmetro de inclusão atingissem percentual próximo de 100% com valores semelhantes entre as três dimensões.

Outro aspecto que este estudo traz à luz é que o termo ‘natureza da ciência’ não está presente em nenhum dos documentos analisados. Apesar de ser uma temática importante em eventos de pesquisa na área de ensino de ciências e com um número expressivo de publicações a seu respeito, os documentos ainda não se referem explicitamente a ela. Vale ressaltar que os PCNEM e PCNEM+ são de 2000 e 2002, respectivamente, e os primeiros trabalhos que trazem discussões em que aparecem o termo natureza da ciência, que tivemos acesso, datam também de 2002, sendo plausível que esse termo não esteja presente nesses documentos. Todavia, tanto as DCNEM quanto a BNCC foram publicadas em um cenário no qual as discussões que tratam de natureza da ciência já estavam maduras e se constituíam como um tema consolidado, com constante presença em eventos e revistas da área de ensino de ciências. Desse modo, duas coisas chamam a atenção: se por um lado as discussões acadêmicas amadureceram e já trazem resultados, por outro lado tais questões perdem a força nos documentos mais atuais.

A formação dos professores que atuam na educação básica ainda enfrenta desafios para lidar com currículos interdisciplinares, contextualizados, que trazem questões metacientíficas e que almejam uma formação crítica dos estudantes da educação básica (CARVALHO, 2018; MACEDO; SILVA, 2016). Por isso, a tímida presença de aspectos de natureza da ciência, associada à falta de indicações claras que orientem o professor a introduzi-los em sua prática, apontam para a manutenção de um cenário crítico em que os resultados das pesquisas no ensino de ciências ainda não são amplamente considerados na construção de documentos normativos oficiais.

Os documentos analisados demarcam ou demarcaram diretrizes para auxiliar o planejamento pedagógico, curricular e de estruturação do ensino médio. Por isso, ao não abordarem a natureza da ciência explicitamente e como parte de seus objetivos principais, limitam a compreensão do que seja o conhecimento científico, como ele é construído, validado e estabelecido, seu alcance e limitações, impactando no entendimento e desenvolvimentos das competências e habilidades necessárias à formação integral dos estudantes da educação básica, principalmente se um dos objetivos é a formação crítica bem fundamentada.

Caso os resultados de pesquisa acadêmica na área de ensino de ciências tivessem sido plenamente considerados na elaboração desses documentos, particularmente os estudos que derivam da linha temática História, Filosofia e Sociologia da Ciência, tais discussões deveriam encontrar-se mais destacadas. O que concorda com nossa defesa de que haja um maior diálogo entre formuladores de políticas públicas e pesquisadores no sentido de contemplar questões metacientíficas de forma mais explícita e enfática nos documentos oficiais.

Faz-se necessário um esforço e uma cobrança cada vez maiores para que as reivindicações resultantes das pesquisas em ensino sejam ouvidas, implementadas e estruturadas na educação básica. Para isso, é essencial que a mudança seja conjuntural, perpassando a formação de professores, os documentos oficiais e os sistemas de avaliação como, por exemplo, o ENEM. Portanto o fortalecimento dos programas de formação inicial e continuada de professores são essenciais na construção de um cenário no qual mais atores (pesquisadores, professores, gestores, políticos, etc.) contribuam para que os resultados de estudos envolvendo a compreensão de ciências e sobre ciências não permaneçam apenas como um slogan atrativo na pesquisa em ensino, e uma utopia nos currículos e na prática da educação básica.

1Um terceiro pesquisador analisou os documentos considerando as unidades de registro para garantir consenso nas escolhas e na análise a partir de olhares diferentes. Pontos discordantes foram discutidos e reavaliados quando necessário.

2

Vale salientar que alguns dos pontos que aparecem num dado documento também podem estar presentes em outros.

Assim, apesar de possivelmente alguns desses pontos se repetirem nas tabelas, cada documento é visto de maneira individualizada e, portanto, todas as informações neles contidas são tomadas como uma fonte independente e integral.

Agradecimentos

Agradecemos a Dra. Rilavia Almeida de Oliveira pela revisão da codificação das unidades de contexto e aos pareceristas pelos valiosos comentários e correções.

A autora Cibelle Celestino Silva agradece ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), processo nº 432491/2018-0 pela Bolsa de Produtividade em Pesquisa.

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Recebido: 05 de Abril de 2021; Aceito: 23 de Julho de 2021

Autor correspondente: antoniopinto@servidor.uepb.edu.br

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