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Ciência & Educação

versão impressa ISSN 1516-7313versão On-line ISSN 1980-850X

Ciência educ. vol.28  Bauru  2022  Epub 09-Mar-2022

https://doi.org/10.1590/1516-731320220004 

Artigo Original

Influências dos processos de socialização nas práticas com música de professoras de Matemática: reflexos na constituição identitária

The influence of socialization processes on Math teachers' practices involving music: effects on identity constitution

Flávia Helena Pereira1 
http://orcid.org/0000-0002-6438-6972

Váldina Gonçalves da Costa1 
http://orcid.org/0000-0002-8636-7764

1Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), Uberaba, MG, Brasil


Resumo:

A identidade profissional de um sujeito se constitui pelas vivências na socialização primária, perpassando pela trajetória profissional. Fundamentando-se em autores como Dubar, Bolívar, Berger e Luckmann, descrevem-se relatos de professoras de Matemática dos Anos Finais do Ensino Fundamental que utilizam música na sala de aula, com o objetivo de compreender de que maneira a música esteve ou está presente na formação da identidade dessas professoras. Utilizando a cartografia, apresenta-se um mapa cartográfico com os pontos de destaque dos relatos registrados. Verificou-se que as vivências das participantes influenciaram nas decisões para a utilização da música na sala de aula. Identificaram-se como práticas desenvolvidas: meditação, música no ambiente, utilização de paródias prontas para memorização de conteúdos e para a revisão de conteúdos.

Palavras-chave: Ensino de matemática; Ensino fundamental; Identidade docente; Socialização do indivíduo; Matemática e música

Abstract:

The professional identity of an individual is built up by the experiences in primary socialization, by going through professional path. Based on authors such as Dubar, Bolívar, Berger and Luckmann, we describe reports of mathematics teachers on the Final Years of Elementary School who use music in the classroom, with the objective of explaining how music was/is present in the formation of these teachers' identities. Using cartography, a cartographic map is presented with the highlights of the recorded reports. The experiences of the participants have been found to influence the decisions for the use of music in the classroom. Deployed practices have been identified such as: meditation; background music; the use of ready-made parodies for content memorization; production of parodies for content review.

Keywords: Mathematics teaching; Elementary school; Teacher identity; Socialization process; Mathematics and music

Introdução

O contexto em que vivemos tem atributos que podem ser interiorizados ou exteriorizados por quem se insere na sociedade, gerando processos de socialização que ocorrem desde o nascimento e contemplam todas as vivências do ser. Esse processo de socialização diz respeito às relações e aos valores sociais, ao ambiente de inserção do indivíduo, ao convívio com a sociedade, seja na família, trabalho, religião e/ou outros grupos.

Para Dubar (2005), os processos de socialização constituem a identidade de um indivíduo em uma relação de dualidade do 'eu' e do 'outro', articulados com fatores internos e externos ao sujeito. Das realidades, denominadas pelo autor como objetivas e subjetivas, que se efetuam nas relações entre as pessoas, emerge uma identidade

A divisão interna à identidade deve enfim e sobretudo ser esclarecida pela dualidade de sua própria definição: identidade para si e identidade para o outro são ao mesmo tempo inseparáveis e ligadas de maneira problemática. Inseparáveis, uma vez que a identidade para si é correlata ao Outro e a seu reconhecimento: nunca sei quem sou a não ser no olhar do Outro. (DUBAR, 2005, p. 135).

Assim, entendemos a identidade como a interiorização do objetivo e subjetivo nos mundos, pela relação do indivíduo na sociedade e a sociedade no indivíduo.

A identidade não é enrijecida, sendo assim constituída ao longo de toda a vida. Dessa forma, a partir de concepções e crenças anteriores, o indivíduo pode sair de sua zona de conforto com a quebra de paradigmas, incomodando quem está vivenciando a situação. Chamado de desterritorialização, este é um processo que pode ocorrer a qualquer instante, visto que passamos por sequentes processos de socialização. Dessa forma, somos acrescentados e movimentados a todo instante, a cada momento vivenciado, em constante processo de constituição.

Este artigo discute os processos de socialização no qual apresentaremos investigação sobre o processo de formação da identidade de docentes de matemática que atuam nos Anos Finais do Ensino Fundamental e utilizam música na sala de aula, com o objetivo de identificar de que maneira a música esteve presente nos processos de socialização dessas docentes. A pesquisa foi norteada pela seguinte pergunta: De que maneira a música esteve/está presente na formação da identidade profissional dos professores de matemática que fazem seu uso nas aulas? Evidenciaremos aspectos presentes na socialização de professoras participantes desta pesquisa para revelarmos marcas presentes na identidade dessas profissionais que podem ter influenciado em suas práticas em sala de aula.

Identidade e processos de socialização

Para o termo identidade, não encontramos definição consensual. Bolívar (2006) não define o termo de uma única maneira, sendo interpretado de maneiras distintas, gerando ambiguidade. Segundo Dubar (2005, p. 136), a identidade "[...] nada mais é que o resultado a um só tempo estável e provisório, individual e coletivo, subjetivo e objetivo, biográfico e estrutural, dos diversos processos de socialização que, conjuntamente, constroem os indivíduos e definem as instituições".

Na infância se inicia a constituição da identidade dos indivíduos, desde o nascimento, passando pelas observações e internalização de características do grupo ao qual pertence. Berger e Luckmann (2004) denominam de "socialização primária" essa fase inicial e afirmam que, nessa etapa, são construídas aprendizagens e conscientização de ações que influenciam a identidade da criança, que interioriza as emoções de suas vivências quando se identifica com algo que passa a fazer parte de sua personalidade de maneira subjetiva.

Para Dubar (2005), as relações com a família e escola formam os saberes que orientam as condutas sociais, que são contínuas e inacabadas, pois nossas relações com o outro são constantes. Na vida adulta, quando ocorrem mudanças e adaptações a novos convívios sociais, acontece a socialização secundária, momento em que o indivíduo inicia no mercado de trabalho (BERGER; LUCKMANN, 2004). Nessa fase, surgem as especificidades de cada área de atuação. Para os autores, na socialização secundária, não há a necessidade de identificação e emoção em suas vivências, diferente do que ocorre na socialização primária, porém, as vivências nas instituições são interiorizadas.

Na transição da socialização primária para a secundária pode ocorrer estranhamento, quando há diferenças entre o que interiorizamos na infância e na vida adulta, relacionado a regras, valores e crenças, gerando choque de realidade. É possível que haja julgamentos quando aprendemos algo na infância e somos conflitados na vida adulta por nossas concepções.

Os valores de um grupo social são interiorizados pelo indivíduo por meio das vivências sociais que se refletem no processo de continuidade da constituição identitária, e, assim, possibilitam a compreensão de características do indivíduo diante do seu papel social perante o grupo a que pertence.

Dos processos de socialização emerge a identidade e, em sua constituição, surge a identidade profissional – identidade social específica, voltada para o que o indivíduo vivencia no ambiente de trabalho, com as pessoas e a cultura da empresa, gerando a sensação de pertencimento ao grupo.

A identidade profissional é constituída por vivências que ocorrem na socialização primária e secundária e é apresentada por Oliveira (2017) como uma identidade social advinda de processos de socialização do indivíduo com sua classe profissional. Assim, a autora diz ocorrer a identidade profissional, processo de socialização na profissão, quando o sujeito assume papéis, valores e normas de um grupo profissional.

Essa constituição da identidade profissional não está limitada ao ato de trabalhar, estendendo-se às vivências passadas e a perspectivas futuras, permanecendo em seu processo contínuo, passível de mudanças a qualquer instante, pois, os projetos focados no futuro direcionam as ações dos sujeitos que estão ligados diretamente com sua identidade.

As experiências são interiorizadas e exteriorizadas pelos processos de socialização de um indivíduo, que podem ser originadas em momentos e ambientes diferentes, desde o convívio com a família, o trabalho, a escola e as diversas outras relações dos seres em seus grupos. Dessa forma, na constituição da identidade profissional, há a apropriação das características do grupo, como a maneira de agir e de pensar.

Voltando o olhar para a constituição da identidade de professores de matemática, sujeitos de nossa pesquisa, necessário se faz conhecer a trajetória desses docentes, além de seus processos de socialização e formação, para que identifiquemos em seus depoimentos as influências de suas vivências com a música em suas práticas em sala de aula.

Identidade docente

Como tratamos da busca pela compreensão da identidade docente, verificaremos na literatura contribuições sobre a constituição da identidade de professores de Matemática. Para Bolívar (2006), a identidade docente começa a se constituir na formação inicial, perpassando pela inserção do professor na profissão, para, a partir dali, alcançar o status de professor. Para tanto, reafirmamos que o ambiente de trabalho e a cultura do local, a dinâmica da instituição, influenciam na identidade profissional e, da mesma forma, as vivências da prática docente e da formação continuada são outros fatores na constituição identitária que refletem na afirmação ou reformulação da identidade docente.

O autor acrescenta ainda que as experiências de vivências na escola e no mundo são essenciais para o processo de constituição identitária, e defende que devemos considerar esses elementos para que sejam amenizados os desafios dos futuros docentes. Ainda, segundo Bolívar (2006), os cursos acadêmicos são direcionados à aprendizagem de conteúdo e não há menção sobre o saber-fazer do professor, sobre o conhecimento pedagógico do conteúdo e a diversidade e a cultura. Dessa forma, os docentes devem utilizar seus saberes experienciais e profissionais em sala de aula para que não ocorra o choque na profissão pelo sentimento de despreparo. A sala de aula e o ambiente escolar são imprevisíveis e multiculturais (SANTOS, 2018), nos quais os professores devem colocar em prática seus saberes da prática e da experiência, para não se sentirem despreparados diante da diversidade cultural dos alunos.

A prática docente, o contato com a sociedade, família, escola, instituição de formação, constituem a identidade docente e, ressalta Bolívar (2006), o contexto escolar e a cultura do local onde trabalha pode gerar conflito no professor, e levá-lo a questionar seus valores, ideias e aprendizados anteriores. Assim, as vivências no exercício da profissão, que ocorrem após a formação inicial, agregam a constituição identitária do docente que, com o tempo, interioriza os hábitos do grupo e se torna reconhecido por seus pares.

A identidade profissional do docente de matemática é constituída de forma símil à identidade profissional docente, direcionada aos saberes da disciplina. Cyrino (2017) cita que são fatores interventores da constituição da identidade profissional docente:

[...] a família, as experiências como aluno da educação básica, formação inicial, reflexões desencadeadas pelos formadores, experiências do início da docência, as relações com os pares, as políticas públicas e seus desdobramentos, a visão do outro sobre si e seu trabalho. (CYRINO, 2017, p. 701).

Ao longo da profissão, o conhecimento do docente de matemática sofre modificações, acordando com as interações do docente no ambiente de trabalho, envolvendo a cultura local e o ambiente escolar. Assim, Cyrino (2017) nos afirma que a ação do professor se relaciona a conhecimentos e crenças individuais, não somente a normas e valores ligados à educação. Acrescenta que, "[...] tornar-se PEM [professor que ensina matemática] representa assumir novas perspectivas sobre si e sobre os outros, bem como novos papéis" (CYRINO, 2017, p. 707). A autora finaliza afirmando ser de extrema relevância que os professores tenham momentos de reflexão e discussão sobre a constituição da identidade docente, para que se conheçam e se conscientizem de seus compromissos de professor.

Assim, examinaremos a constituição da identidade dos docentes, refletindo sobre as influências de seus processos de socialização em suas práticas com música em sala de aula, pois sabemos que o professor é integrante da sociedade participando da socialização de outros e vice-versa.

Música e Matemática na sala de aula

Serão apresentadas possibilidades de atividades que reúnem elementos da música com a matemática e permitem o aprendizado do estudante a partir de exercícios práticos e teóricos.

Uma das atividades práticas deve ser desenvolvida juntamente com a teoria, iniciando com a explanação da história da harmonia musical. Na contextualização da atividade, deve haver a explicação de que o filósofo e matemático Pitágoras (570-495 a.C.) contribuiu, essencialmente, para a criação dos acordes e alguns instrumentos musicais.

Na Antiguidade, a música era "[...] a música proporcional, isso quer dizer que o que constituía um som musical na Grécia antiga era a sua virtude de ser proporcional" (BROMBERG, 2019, p. 112).

Para o estudo da harmonia musical é essencial a verificação e o registro das distâncias das notas. Com a construção de um instrumento musical chamado monocórdio, há a possibilidade da audição dos sons harmônicos. “O monocórdio foi responsável por introduzir a geometria na ciência musical e, com ele, a preocupação da representação e da exatidão” (BROMBERG, 2019, p. 117). Esse instrumento pode ser confeccionado com uma corda de violão fixada em suas extremidades sobre uma superficie plana, contendo um dispositivo móvel que será posicionado nos locais em que a corda será tensionada para a exploração e o estudo dos sons.

Fonte: https://pt.slideshare.net/pherikit/intervalos-y-monocordio/27. Acesso em: 4 fev. 2022.

Figura 1 Representação de um monocórdio 

Para que os instrumentos sejam construídos, deve haver a orientação do professor, que conduzirá a atividade de exploração do instrumento antes e depois de construído. O dispositivo móvel deve ser movimentado, marcando distâncias na corda do monocórdio, possibilitando a audição das notas para a verificação de harmonia e dissonância1 entre os sons (GRANJA, 2019). Tomando o comprimento da corda do monocórdio como medida 1, as notas que se harmonizam entre si se encontram nas medidas dadas pelas frações, 1, 1/2, 2/3 e 3/4.

Para o desenvolvimento dessa atividade, no caso de os estudantes não terem familiaridade com música, é necessário que tenham a percepção musical sobre intervalos como oitava, quinta e quarta, as consonâncias perfeitas (ABDOUNUR, 2019).

Semelhante ao monocórdio, o duocórdio diferencia-se do primeiro pela quantidade de cordas, dessa vez, duas, e também pode ser construído pelos alunos com o auxílio do docente. Com esse instrumento há maior possibilidade de exploração dos sons, pois as tensões das cordas são diferentes; assim, poderão ser tocadas simultaneamente e a percepção da harmonia fica mais clara.

Essa atividade de marcação entre as distâncias, bem como a audição das notas e percepção da harmonia musical, permite-nos que sejam trabalhados os conteúdos de notas, intervalos musicais e escalas musicais, que se relacionam com os conteúdos de frações, medidas de comprimento e proporções.

Após esse primeiro momento, dependendo do ano escolar no qual o docente desenvolveu a atividade, pode haver continuidade com a explanação da continuação sobre os estudos da harmonia musical.

Partindo dessas primeiras notas que se harmonizam, Pitágoras identificou harmonização entre outras três notas que formaram o que se chamou de escala pitagórica. Uma escala é um conjunto de notas utilizadas para a composição musical. Como conhecemos nos dias de hoje, a escala pitagórica tem sete notas musicais – dó, ré, mi, fá, sol, lá, si. A oitava nota é a repetição da primeira, porém, com um som mais agudo. A frequência de vibração da oitava é dobrada, então, ouvimos o mesmo som uma oitava acima (GRANJA, 2019).

O estudo de Pitágoras avançou ainda mais quando o matemático se objetivou a encontrar a distância entre as notas possíveis de serem identificadas pelos ouvidos humanos e constatou que seria necessário utilizar a distância de 2/3 partindo da nota inicial até a oitava seguinte. Considerando a distância entre a primeira nota da escala e a última sendo 1, pode-se calcular as notas que emitem sons de todas as próximas.

Após a descoberta da escala pitagórica, estudiosos da época criaram a escala temperada, que tem como principal característica igual espaçamento entre as notas; dessa forma, o intervalo entre duas notas consecutivas é o mesmo. Portanto, a escala temperada permite que façamos a transposição2 de quaisquer tonalidades sem haver preocupação com as distâncias das notas, pois não são necessários cálculos entre as distâncias das notas. Por ser assertiva, essa escala se tornou padrão, utilizada até os dias de hoje.

Estudando as progressões aritmética e geométrica, conclui-se que, para o cálculo entre as distâncias das notas da escala temperada, utilizam-se os conceitos de progressão matemática:

  1. Progressão Aritmética: uma sequência numérica em que cada termo, a partir do segundo, é igual ao anterior somado a uma razão constante r.

  2. Progressão Geométrica: sequência numérica em que cada termo, a partir do segundo, é igual ao anterior multiplicado por uma razão constante q.

Dessa forma, é possível determinar a relação numérica entre os sons, ou seja, é uma progressão geométrica.

A escala temperada tem 12 notas, assim, a primeira nota da escala sequente é o 13o termo da progressão geométrica, pois seria o 13o som na escala musical. Portanto, ao definirmos a progressão geométrica de 13 termos, a razão é calculada a partir da fórmula do termo geral.

an=a1qn1

Ao substituirmos os números na fórmula teremos que, para obter a frequência dos sons sucessivos da escala, devemos multiplicar a frequência partindo do som fundamental por 212 . Esse é um dos exemplos que podemos utilizar relacionando música e matemática. Observam-se os conceitos matemáticos relacionados às escalas musicais que permitem aos professores de matemática explorar com os alunos a relação entre os dois assuntos, podendo o conhecimento de um dos conceitos auxiliar no aprendizado do outro.

Em relação às atividades unicamente teóricas, fazem-se necessárias a apresentação e a discussão de conceitos básicos da teoria musical. Uma das propostas é facilitar a compreensão da relação entre música e matemática relacionando figuras musicais a frações.

Cada uma das figuras musicais tem um valor fracionário que compõe o que na música chamamos de compasso musical3. É possível trabalhar com operações de adição e subtração de frações e, assim, além de trabalhar com as operações matemáticas, o estudante pode desenvolver noções musicais ao perceber as diferenças existentes entre cada um dos compassos, além de fazer associação entre um símbolo e um valor atribuído a ele.

Abordagem metodológica

Esta pesquisa foi realizada com professoras de matemática dos anos finais do Ensino Fundamental que utilizam música em suas aulas na cidade de Sacramento, no estado de Minas Gerais. Atribuímos a escolha de tal município pelo motivo de a pesquisadora ter nascido, vivido e trabalhado na cidade.

Participaram das entrevistas nove professoras que tiveram a identidade preservada, por isso utilizamos pseudônimos: Júlia, Maria, Silvânia, Isadora, Samira, Adelaide, Joana, Vanessa e Idalides.

Utilizamos na pesquisa a entrevista semiestruturada que, segundo Lüdke e André (1986, p. 34): "[...] se desenrola a partir de um esquema básico, porém não aplicado rigidamente, permitindo que o entrevistador faça as necessárias intervenções" Elaboramos o roteiro da entrevista baseando-nos no referencial teórico utilizado nesta pesquisa.

Utilizamos a cartografia na descrição dos fenômenos que, segundo Kastrup (2009, p. 32), "[...] visa acompanhar um processo, e não representar um objeto." Por se tratar de investigação no processo de constituição da identidade das professoras, contínuo e inacabado, ela é a considerada uma

[...] estratégia metodológica que insurge justamente da necessidade de métodos que não apresentem somente os resultados finais da pesquisa desconsiderando os processos pelos quais a mesma passou até chegar à sua instância final, mas que acompanhem seu percurso construtivo sempre em movimento e o percebam como algo incompleto, transitório e que multiplica as possibilidades ao invés de restringi-las. (OLIVEIRA; MOSSI, 2014, p. 7).

Utilizamos a cartografia, que é uma ferramenta utilizada no mapeamento de informações obtidas por meio de registros de documentos. O material registrado será analisado valendo-se do processo de constituição da identidade das docentes participantes, uma vez que, segundo Alvarez e Passos (2009), uma das funções da cartografia é utilizar informações de um campo pesquisado para representar a realidade.

Ao cartografarmos, formamos um mapa, que é uma rede envolvendo fios para a identificação de informações que convergem e divergem nos discursos das docentes. O mapa é conectável em todas as dimensões, podendo ser modificado a qualquer momento, adaptado, pois se refere a pessoas, a um grupo (DELEUZE; GUATTARI, 1995).

Expusemos aspectos relacionados à constituição da identidade das professoras participantes para aproximarmos a compreensão da experiência das docentes, considerando suas internalizações, conflitos e contradições ressurgentes. Essas contradições podem gerar as linhas de fuga, definidas por Passos e Barros (2009, p. 162) como "[...] uma linha de criação para outro território existencial possível".

Para Deleuze e Guatarri (1997, p. 105), "[...] há território a partir do momento em que há expressividade do ritmo". Alvarez e Passos (2009, p. 133) completam dizendo que: "O território é uma assinatura expressiva que faz emergir ritmos como qualidades próprias que, não sendo indicações de uma identidade, garantem a formação de certo domínio". Nesta pesquisa, os territórios explorados são a cidade de Sacramento e as escolas em que as professoras trabalham. Os territórios do mapa são criados por linhas que compõem a estrutura de um rizoma. O rizoma não tem início nem fim, encontrando no meio das coisas (DELEUZE; GUATARRI, 1995).

Na cartografia, descrevemos a subjetividade do sujeito que, para Romagnoli (2009, p. 170):

A subjetividade é constituída por múltiplas linhas e planos de forças que atuam ao mesmo tempo: linhas duras, que detêm a divisão binária de sexo, profissão, camada social, e que sempre classificam, sobrecodificam os sujeitos; e linhas flexíveis, que possibilitam o afetamento da subjetividade e criam zonas de indeterminação, permitindo-lhe agenciar.

As linhas duras são as linhas molares e as linhas flexíveis são as linhas moleculares, e elas mesmas fazem ligações no mapa da cartografia. As informações em comum são ligadas pelas linhas molares e as linhas moleculares levam o mapa a um novo rizoma quando algo não é comum.

Na cartografia, temos a possibilidade de enxergar de diversas formas a mesma situação, como um caleidoscópio que nos permite ver a mesma imagem em diversos ângulos. Assim, evidenciaremos a realidade que é suscetível a mudanças e rumos inesperados.

Ao cartografar, o pesquisador deve estar disposto a se desacomodar, deparar-se com o inusitado, abrir-se ao encontro de algo que o tira do seu território. Com esses encontros, pesquisador e pesquisado se deslocam, ou seja, são desterritorializados. "A desterritorialização desmarca o conhecimento-controlado do território e aparece um plano informe que assusta pelo que este porta de impessoal" (KASTRUP; BARROS, 2009, p. 82).

Ao ocorrer a desterritorialização, o sujeito pode se reinserir, após ser transformado, reterritorializando-se, até que este ir e vir se repita. "A reterritorialização como operação original não exprime um retorno ao território, mas essas relações diferenciais interiores à própria D [Desterritorialização], essa multiplicidade interior à linha de fuga" (DELEUZE; GUATARRI, 1997, p. 198). Dessa forma, cartografaremos descrevendo os processos de constituição da identidade das docentes participantes.

Apresenta-se, na figura 2, o mapa elaborado a partir dos relatos das docentes participantes da pesquisa.

Fonte: elaborado pelas autoras.

Figura 2 Mapa da cartografia da constituição da identidade das professoras participantes 

Em seguida, encontra-se a interpretação do mapa apresentado na figura 2, destacando as linhas interligadas que dão forma ao rizoma, sendo as linhas molares em preto e as linhas moleculares em vermelho, de acordo com os depoimentos das professoras entrevistadas.

Socialização primária

Em relação às vivências com música na socialização primária, temos o relato de três professoras que explicitaram suas lembranças da socialização primária. Maria nos disse que: "A família da gente, a mãe, o pai, ligava o rádio e a gente ouvia. Na minha época de infância, mesmo na adolescência também era o que a gente curtia, essas músicas." E assim como Maria, a professora Joana destacou a presença da família em suas lembranças quando relatou: "Minha mãe tinha o hábito de cantar, minha avó tinha o hábito de cantar. Desde pequenininha comecei a ter o convívio com a música. Minha mãe participa de igreja, gosto muito das músicas religiosas. Rádio sempre esteve ligado lá em casa." Reforçando as falas expostas, Isadora relatou a presença da família na socialização primária quando nos disse que: "A música apareceu na infância através dos meus pais. Ouvia rádio."

Com esses depoimentos, formamos um dos pontos fortes do mapa, uma linha molar: a presença da família nos momentos de socialização primária das entrevistadas. Assim, destacamos a consonância do que traz Berger e Luckman (2004) com o que disseram as professoras. Os autores afirmam ser "[...] imediatamente evidente que a socialização primária tem em geral para o indivíduo o valor mais importante e que a estrutura básica de toda socialização secundária deve assemelhar-se à da socialização primária" (BERGER; LUCKMAN, 2004, p. 175). No momento da realização das entrevistas, pudemos perceber evidências quanto às emoções e expressões das entrevistadas, elas reviveram suas memórias de afeto durante os relatos, algumas até lacrimejando os olhos.

Uma linha molecular que apontamos no mapa é a presença das brincadeiras de criança na fase da infância, exposta pela professora Adelaide: "Quando criança, a gente brincava muito e sempre tinha as músicas infantis nas brincadeiras." Essa linha molecular poderia levar à formação de um rizoma sobre de que maneira as brincadeiras de criança deixam marcas na memória de professores. Conforme nos apresentam Berger e Luckmann (2004), os processos de socialização de um indivíduo iniciam-se no ambiente familiar e em outros grupos próximos, o que confirma a professora, indicando as brincadeiras que ocorreram, em grande parte, no ambiente escolar, um dos grupos de inserção do indivíduo na socialização primária.

Seguimos, cronologicamente, com a socialização primária, na fase da adolescência e da juventude. Cinco professoras falaram sobre esses períodos, trazendo as vivências com amigos em momentos de diversão e de lazer. Adelaide ressalta que as músicas eram presentes em sua adolescência e se compara com os adolescentes de hoje, que, segundo ela, ouvem muita música, como acontecia anos atrás: "[...] Quando adolescente, a gente curtia as músicas do momento, igual à mocidade hoje mesmo." A afirmação de Vanessa: "Era uma época em que a música falava muito alto...", acrescenta a fala de Adelaide reforçando a presença forte da música na adolescência.

Seguindo, as professoras que relataram a presença de amigos na adolescência deixaram claro onde ocorriam essas vivências. Samira gostava de produzir eventos: "Na minha juventude, muito participei [de grupos com música], quando a gente tinha, assim, algum festival, alguma coisa, que participei de vários, eu sempre estava na produção... Era constante a presença da música, muito forte", e Vanessa depõe que a música estava presente em: "ensaio de carnaval, brincadeiras, festinhas...". Conclui Silvânia lembrando: "A gente fazia muitas festinhas. Tinham umas músicas, eu participava de muitos, aqueles bailes de juventude...".

Na adolescência e na juventude, a convivência com amigos e em festas foi algo marcante na identidade das professoras e, pelos depoimentos, foi possível identificar outra linha molar no mapa, mostrando-nos a convergência dos relatos em relação à socialização primária. Assim como a questão da amizade, outro aspecto de destaque na socialização primária foi o grupo religioso, com a presença da música na igreja. Isadora e Idalides se emocionaram ao falar sobre as vivências da época. Isadora falou tanto dos momentos religiosos quanto dos amigos quando lembrou que: "Frequentava os grupos de jovens, encontro de jovens que tinha da igreja... e nas baladas... tínhamos amigos também que a gente reunia na Praça da Matriz ou na casa de algum colega. Tocava música, cantava alguma... Era gostoso, era tranqüilo". E assim reforçou Idalides com a afirmação: "A gente ouvia música de manhã, ligava o rádio, ouvia as músicas do local. Música de igreja... eu sempre participava da coroação, coroar Nossa Senhora."

De acordo com o referencial teórico discutido, o indivíduo pertencente a um grupo interioriza suas características, o que influencia de forma determinante suas atitudes. Por isso, defendemos que as vivências relatadas pelas docentes geraram sentimentos e sensações que foram interiorizadas por elas, uma vez que relataram os momentos com evidente emoção.

Outra linha molecular foi identificada no relato da professora Júlia, que nos afirmou: "Eu sempre gostei de piano e fiz aula um bom tempo". Júlia foi a única professora que nos disse ter estudado algum instrumento, porém não afirmou ter conhecimento dos elementos da teoria musical. Essa linha molecular poderia gerar um rizoma sobre as vivênvias em aulas instrumentais influenciando na identidade docente.

Assim, damos continuidade nos relatos, agora na socialização secundária, momento em que as professoras iniciaram suas práticas docentes e puderam levar a música para a sala de aula.

Socialização secundária

Na socialização secundária, observamos que as docentes destacaram vivências com a música, em que não aparece a presença de outras pessoas. Tivemos relatos de quatro professoras que declararam recorrer à música para proporcionar a si mesmas momentos de relaxamento. Isadora declarou utilizar a música ouvindo: "Na forma de tranquilizar ou relembrar algumas passagens da vida." E em consonância com a fala de Isadora, a docente Vanessa nos disse que: "A música é um refúgio, mesmo só dentro da minha cabeça. Então, ouço muita música, dentro do carro sempre tem um pendrive com algum tipo de música. Às vezes quando eu estou com algum problema muito sério, aí eu coloco uma música, assim, bem alto prá eu ouvir... prá ver se a música abafa este problema alguns minutos prá eu ter um descanso prá depois eu procurar uma solução."

A professora Adelaide gosta de sentir e de proporcionar prazer com a música. Disse: "... eu vejo a música como uma coisa prazerosa pra gente e pro aluno, também." E, dessa forma, Silvânia também ouve música por gostar e se sentir melhor. Afirmou ter muito contato com a música durante o seu dia: "Eu estou dirigindo, estou sempre ouvindo música. Aqui em casa, eu chego, a primeira coisa que eu faço é ligar o rádio, que eu gosto de ouvir música..." Por essas declarações, identificamos mais uma linha molar que reforça a utilização da música para entretenimento.

Outra linha molecular aparece com a fala de Júlia, que nos disse ter contato com a música, hoje em dia, na prática de Yoga: "Eu comecei o yoga e aprendi muito a gostar mesmo do estilo clássico... comecei a ficar mais ligada a esta parte de meditação." Assim, essa linha levaria à geração de um novo rizoma sobre o uso da meditação em sala de aula.

Na socialização secundária, as docentes podem confrontar o que aprenderam na infância com o que aprendem agora, enquanto adultas. Berger e Luckmann (2004, p. 227) afirmam que:

O indivíduo pode interiorizar diferentes realidades sem se identificar com elas. Por conseguinte, se um mundo diferente aparece na socialização secundária o indivíduo pode preferi-lo em forma de manobra. [...]. O indivíduo interioriza a nova realidade, mas em vez de fazer dela a sua realidade utiliza-a como realidade para ser usada com especiais finalidades.

Por isso, percebe-se, nos relatos das docentes, que elas utilizam a música com finalidades especiais na sala de aula. Por fim, destaca-se mais uma linha molecular advinda dos relatos da socialização secundária. A professora Idalides declara que: "A música não é muito presente na minha vida." Essa linha geraria um rizoma sobre a prática de professoras que não mantêm contato regularmente com música, mas a utilizam em sala de aula, dando continuidade ao mapa que é inacabado e sempre contínuo. Por tratarmos da constituição da identidade, sabemos que a cada instante surge o novo, modificando, assim, saberes, crenças e cultura dos sujeitos.

Práticas em sala de aula

Quanto às práticas com a utilização da música, as docentes relataram de que maneira levaram a música para a sala de aula, e assim, posteriormente, indicamos as ligações das práticas docentes com as vivências nos processos de socialização das professoras.

Dentre as práticas relatadas pelas professoras, podemos dividir da seguinte forma: utilização de música no ambiente na resolução de atividades em sala de aula; produção de paródias pelos alunos para revisão de conteúdos; utilização de paródias prontas para memorização de conteúdos; meditação em sala de aula.

Das docentes que declararam fazer utilização de música no ambiente durante a resolução de atividades em sala de aula, destacam-se Joana, Isadora, Maria, Júlia, Samira e Idalides, ou seja, seis das nove docentes entrevistadas. De forma semelhante, relataram utilizar a música por acreditarem que os alunos sentem-se mais tranquilos e engajados na realização de atividades. A professora Vanessa ressaltou "usar a música pra relaxar, pra acalmar, prá gente voltar à calma, para os alunos voltarem à calma [...] a música acabou se tornando pra mim sim, um consolo, um refúgio". Destacamos o depoimento apenas de uma docente, pois as demais relataram de forma análoga.

Porém, Maria declarou não ter obtido bons resultados com sua prática quando nos disse: "A moçada queria que colocasse música da atualidade deles e não dava certo pôr a música que eles queriam". E nessa fala foi possível identificar que a docente foi desterritorializada pelo motivo de os alunos não acatarem a sugestão da professora de ouvir as músicas sugeridas por ela.

Após a desterritorialização, Maria não se reterritorializou, fazendo surgir uma linha de fuga, pois, nessa situação, ela optou por não desenvolver mais a prática de levar a música para a sala de aula. De qualquer forma, observamos que essa prática se assemelha ao que as professoras vivem com a música em sua socialização secundária.

Podemos inferir que, pelo fato de as docentes terem vivido, em seus processos de socialização, momentos em que lhes foram proporcionados tranquilidade, calmaria, relaxamento, elas acreditaram que, levando a música para a sala de aula, elas proporcionariam os mesmos sentimentos e sensações aos alunos. Assim, concluímos que as docentes que fazem uso da música dessa maneira utilizam a mesma forma de suas vivências na socialização secundária, conforme já relatado por elas.

Essa primeira prática citada forma uma linha molar, uma vez que, a maior parte das docentes declarou utilizar a música da mesma maneira. Assim, esse ponto forte do mapa pode ser um gerador de questões a respeito da prática em sala de aula voltada às memórias de lembranças consideradas positivas e satisfatórias pelas docentes.

Outra prática identificada nas entrevistas foi a produção de paródias pelos alunos para revisão de conteúdos, que cinco das nove professoras declararam desenvolver com os alunos. As docentes acreditam que os alunos podem reforçar os conteúdos ao desenvolverem e cantarem as paródias, e defendem também que os alunos se sentem animados e dedicados no desenvolvimento da atividade.

As professoras Júlia, Joana, Adelaide, Vanessa e Silvânia são as profissionais que propõem aos alunos as atividades de paródias e apresentação do trabalho logo após a composição. Elas disseram que, quando as paródias estão prontas, as turmas que fazem as paródias são divididas em grupos e apresentam, para a sala de aula ou para toda a escola, o resultado do trabalho.

Os depoimentos de Júlia e Silvânia estão em consonância e explicam parte do desenvolvimento da atividade da seguinte forma: (a) Silvânia declarou: "Divido a sala em grupos e eles escolhem uma música e criam paródias em cima do conteúdo apresentado"; (b) e completou Júlia: "Eu jogo o conteúdo, ensino pra eles e em cima do conteúdo eles desenvolvem a letra. E depois de desenvolverem a letra eles me passam pra ver se está tudo de acordo." De forma semelhante a esses depoimentos, as outras professoras falaram sobre as atividades com paródias.

Tais depoimentos geram linha molar, pelo fato de mais da metade das docentes desenvolverem essa prática e acreditarem nos bons resultados obtidos pelo desenvolvimento que, segundo elas, gera, além da memorização do conteúdo, trabalho em grupo, liderança, negociação entre os alunos.

A professora Silvânia foi desterritorializada ao desenvolver sua prática quando nos declarou que: "Infelizmente, é muito criticado pela direção da escola. Eu já ouvi várias vezes que... eu estou enrolando aula, que estou matando aula e que não é para ter mais este projeto na sala de aula" e por isso saiu de sua zona de conforto, repensou sua prática, e: "ano passado eu nem fiz... mas vou trabalhar assim, só dentro da sala de aula. Nada de expôr lá de fora" e foi assim que, em seu processo de desterritorialização, começou a ser reterritorializada, pois os alunos insistiram que as atividades voltassem a ser desenvolvidas. Silvânia continuou: "os alunos me pedem insistentemente. Eles ficam com maior prazer com os conteúdos apresentados. A evolução foi grande e eles passaram a gostar mais das aulas de matemática, sentir prazer."

Assim, notou-se que, após o processo de desterritorialização, Silvânia pôde optar por outras estratégias, e se reterritorializou quando insistiu e defendeu ainda mais suas crenças sobre as melhorias para seus alunos com o desenvolvimento de suas práticas.

A terceira prática identificada foi a utilização de paródias prontas para memorização de conteúdos. Idalides e Adelaide são as professoras que declararam recorrer a paródias prontas para os alunos memorizarem os conteúdos. Adelaide disse que "já recorri a músicas da internet prontas e trouxe pra ensinar conteúdos." As docentes não explicaram o motivo de recorrerem às paródias prontas, e acreditam que essa opção auxilia os alunos a memorizarem conteúdos.

A linha molar gerada por esses depoimentos é menos saliente que as outras, porém ainda é firme, já que a prática se repete com mais de uma docente e as profissionais acreditam e defendem seu trabalho com a música dessa maneira.

Dentre as práticas desenvolvidas em sala de aula, uma delas é geradora de linha molecular, desenvolvida pela professora Júlia, que nos declarou: "Eu faço uma meditação com eles, coloco umas músicas suaves..." Essa linha geraria um rizoma sobre a prática de meditação com turmas nos Anos Finais do Ensino Fundamental. Ressaltamos que Júlia pratica meditação há anos e, por ter para si benefícios obtidos pela meditação, acreditou que os alunos gostassem da prática, fazendo-a levar a música com a meditação para os alunos.

Conhecendo a característica da cartografia sobre o envolvimento do pesquisador com o objeto estudado, percebeu-se a desterritorialização da pesquisadora quando, ao se deparar com o fato de nenhuma das professoras entrevistadas usar a música para o ensino de matemática, foi desacomodada. O inusitado apareceu, pois esperava-se que, ao menos uma das docentes participantes da pesquisa, trabalhasse com a música como ferramenta para o ensino de matemática.

O processo de reterritorialização ocorreu após a ruptura das crenças da pesquisadora, que passou a olhar de forma mais convicta as potencialidades em trabalhar a música nas aulas de matemática que não fosse para o ensino, mas focando em outros aspectos. Por isso, este artigo focou em destacar as conquistas e os desafios descritos pelas participantes, fazendo um paralelo com as possibilidades de práticas a serem desenvolvidas trabalhando com a música no ensino de matemática.

Considerações finais

Para o entendimento da identidade de professoras de matemática que fazem uso da música na sala de aula, o foco do estudo foram os processos de socialização de cada uma delas. Verificamos que as docentes fazem uso da música na sala de aula da maneira com que a utilizam na socialização secundária, buscando proporcionar engajamento, participação, relaxamento e prazer aos alunos. Da mesma forma, inferimos que as vivências da socialização primária proporcionaram emoção nas professoras, que tiveram a intenção de provocar sentimentos nos alunos, por isso defenderam o uso de música como incentivo da turma.

Pudemos verificar que nenhuma das entrevistadas utilizou a música para o ensino de matemática, e acreditamos que o fato de as docentes não ter saberes da teoria musical, não utilizaram os elementos musicais para esse fim, mas para as finalidades citadas anteriormente neste artigo. Essa constatação movimentou a pesquisadora, que foi desterritorializada ao se encontrar com o inesperado; dessa forma, houve a reconstrução de sua convicção em relação à utilização da música em aulas de matemática.

Pelo ocorrido, acredita-se que fazer a junção entre o uso da música para o ensino e para o desenvolvimento de outras habilidades seja uma alternativa de trabalho em busca de diferentes resultados.

Percebemos que as docentes acreditam no que fazem, tendo destacado que somente uma das nove participantes optou por não voltar a exercer a prática ao ser desterritorializada, e outra retomou o processo após de reterritorializar. Tendo em vista que as outras professoras não relataram seus processos de desterritorialização, acreditamos que a identidade de cada uma delas recebeu influências de suas vivências com música durante toda a trajetória de vida delas.

1Reunião de sons que causam impressão desagradável ao ouvido.

2Mudança de tonalidade de uma música para mais aguda ou mais grave.

3É uma forma de dividir quantitativamente os sons de uma composição musical em grupos, com base em batidas e pausas.

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Recebido: 22 de Outubro de 2020; Aceito: 04 de Novembro de 2021

Autora correspondente: flaviahelenapereira1@gmail.com

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