SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.28The problem of group 3 in the Periodic Table: teaching it through argumentation and scientific explanation: part IIEvolution as the cornerstone of biology: a course for undergraduates and postgraduates in biological sciences author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Share


Ciência & Educação

Print version ISSN 1516-7313On-line version ISSN 1980-850X

Ciência educ. vol.28  Bauru  2022  Epub Apr 18, 2022

https://doi.org/10.1590/1516-731320220009 

Artigo Original

Significado atribuído aos números inteiros e suas operações por estudantes com deficiência visual: intervenções com material didático manipulável alicerçado em nexos conceituais

Meaning attributed to integer numbers and their operations by students with visual impairment: interventions with manipulable didactic material grounded in conceptual nexus

Natali Angela Felipe1 
http://orcid.org/0000-0001-5335-6017

Sani de Carvalho Rutz da Silva2 
http://orcid.org/0000-0002-1548-5739

Maria Ivete Basniak2 
http://orcid.org/0000-0001-5172-981X

1Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Ponta Grossa, PR, Brasil.

2Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR), Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras, União da Vitória, PR, Brasil.


Resumo:

Esta pesquisa investigou significados atribuídos aos números inteiros e suas operações nas intervenções com o material Soroban dos Inteiros. Metodologicamente, utilizou-se a pesquisa intervenção como abordagem de pesquisa e a análise qualitativa das intervenções, que ocorreram separadamente, ambas no Atendimento Educacional Especializado, com uma estudante cega e um estudante com baixa visão, alunos de escolas regulares. Os resultados indicaram que o Soroban dos Inteiros, tendo alicerces nos nexos conceituais da civilização chinesa, juntamente às tarefas para seu uso e manipulação, possibilitou a observação das transformações da natureza das quantidades nas operações em movimentos opostos. O estudo concluiu que os significados atribuídos pelos estudantes foram: compreensão de quantidades negativas como faltas, e significados operatórios de que adicionar um número negativo equivale a subtrair, e subtrair um número negativo equivale a adicionar e, por consequência desta compreensão, houve atribuição de sentido e validação da regra de sinais para a multiplicação de números inteiros.

Palavras-chave: Ensino de matemática; Nexos conceituais; Material didático manipulável; Deficiência visual

Abstract:

This research investigated meanings attributed to integers and their operations in interventions with the Soroban of Integers’ material. Methodologically, research-intervention was used as an approach as well as the qualitative analysis of interventions, which occurred separately, both in the Specialized Educational Service-SES, with a blind student and a student with low vision, both from ordinary schools. The results indicated that the Soroban of Integers grounded in the conceptual nexus of Chinese civilization, together with the tasks for their use and manipulation, allowed for observing the transformations of the nature of quantities in opposite movement operations. The study concluded that the meanings attributed by the students were: understanding negative quantities as absences; operational meanings, in which adding a negative number is equivalent to subtracting, and subtracting a negative number is equivalent to addition, and, as a result of understanding that consequence, there have been meaning attribution and validation of rule of signs for the multiplication of integers.

Keywords: Mathematics teaching; Conceptual nexus; Manipulable didactic material; Visual impairment

Introdução

A Política Nacional de Educação Especial, na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008), mostra a importância da interação entre alunos com e sem deficiências para que aprendam juntos, tendo acesso aos mesmos conhecimentos. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (BRASIL, 2017) salienta a importância de o planejamento de ensino considerar a equidade, os estudantes como sujeitos plurais, mas também singulares e como protagonistas de sua aprendizagem. Considerar as especificidades, dificuldades e habilidades de cada estudante no processo de ensino e aprendizagem pressupõe o uso de metodologias e recursos potenciais e diversificados, assim como professores capacitados.

Os estudos de Vygotsky (1997) problematizam a dificuldade de pessoas com deficiência para se apropriarem da cultura social expressa por uma linguagem centralizada na visão, precisando ocorrer por meio de um sistema compensatório que estimula o uso de outras vias de acesso, que não as acometidas pela deficiência, tornando o desenvolvimento possível, mas distinto e peculiar. Identificamos, assim, que o estudante cego poderá ter acesso a conceitos matemáticos abstratos e/ou de representações ilustrativas por meio da exploração tátil de recursos e materiais didáticos manipuláveis (ROSA; BARALDI, 2015). Nesse sentido, destacamos o uso de materiais didáticos manipuláveis em sala de aula como mais um instrumento pedagógico para ensinar e aprender, uma ponte para o desenvolvimento e a elaboração de significados para todos os estudantes, com ou sem deficiências específicas, visto que são facilitadores, formadores e transformadores de processos mentais (FERNANDES; HEALY, 2015; VYGOTSKY, 1991).

Na matemática, destacamos o uso desses materiais como possibilidade para promover e auxiliar o ensino e aprendizagem do estudante cego (FERNANDES; HEALY, 2010; KOEPSEL, 2016; KOEPSEL; SILVA, 2018; SILVA; CARVALHO; PESSOA, 2016; SILVA et al., 2019; ULIANA, 2013) por serem inclusivos, quando apresentam potencial para incluir o estudante nas práticas da sala de aula, de forma que, por meio do seu uso, ocorram interações entre os colegas e o professor (SHIMAZAKI; SILVA; VIGINHESKI, 2016). Assim, ao escolher, adaptar ou construir materiais didáticos manipuláveis, devemos optar por aqueles que apresentem fidelidade matemática em relação a representações e conceitos; que proporcionem e facilitem a abstração matemática; sejam lúdicos; flexíveis e úteis a uma gama de séries e níveis de escolarização; e sejam de manipulação fácil e segura (KALEFF, 2016; SÁ, 2007). Especificamente para o ensino de cegos,

[...] o material não deve provocar rejeição ao manuseio e ser resistente para que não se estrague com facilidade e resista à exploração tátil e ao manuseio constante. Deve ser simples e de manuseio fácil, proporcionando uma prática utilização e não deve oferecer perigo para os alunos. (SÁ; CAMPOS; SILVA, 2007, p. 27).

Nesse contexto, no ensino de matemática para estudantes cegos, identificamos o soroban como um dos materiais didáticos manipuláveis mais utilizados, sendo seu uso regulamentado e assegurado na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (BRASIL, 2015), em seu artigo 3º, inciso III. Nesse material, é possível realizar registros numéricos baseados no sistema posicional decimal e resolver operações. Os manuais e documentos que dissertam sobre seu uso apresentam explicações e técnicas para realização de operações com números naturais, números racionais, decimais e fracionários, potenciação, radiciação, fatoração e porcentagem (BRASIL, 2012; FERNANDES et al., 2006). Tal constatação evidenciou a ausência de orientações e técnicas para registros e operações com números negativos utilizando o soroban.

Na investigação quanto à utilização de materiais didáticos manipuláveis para o ensino de matemática para estudantes cegos, encontramos materiais que abordam conteúdos de geometria com figuras e sólidos geométricos (FERNANDES; HEALY, 2010; FERNANDES; HEALY; SERINO, 2014; SILVA; CARVALHO; PESSOA, 2016; ULIANA, 2013), tratamento da informação (ALVARISTO, 2019), teorema de Pitágoras (KOEPSEL; SILVA, 2018), produtos notáveis (VIGINHESKI, 2013), probabilidade (VITA, 2012), gráficos no plano cartesiano (FERRONATO, 2002; MANRIQUE; FERREIRA, 2010) e matrizes e determinantes (BANDEIRA; GHEDIN; BEZERRA, 2019). No entanto, nenhuma pesquisa sobre o ensino de números inteiros a cegos foi identificada, e assim, encontramos aporte teórico no estudo de Rodrigues (2009) para desenvolver um material didático manipulável para esse fim, com potencial inclusivo para utilização por outros estudantes.

Segundo Rodrigues (2009), a perspectiva lógico-histórica possibilita compreender e explorar os aspectos essenciais lógicos e históricos do conceito de números inteiros e seus nexos conceituais para naturalmente significar a simbologia e a lógica formal utilizada e ensinada atualmente. Assim, concordando com Turrioni e Perez (2012, p. 61), que o material concreto, "[...] facilita a observação e a análise, desenvolve o raciocínio lógico, crítico e científico, é fundamental para o ensino experimental e é excelente para auxiliar o aluno na construção de seus conhecimentos", consideramos que, alicerçado aos nexos conceituais da civilização chinesa, pode auxiliar e facilitar a significação dos números inteiros e suas operações.

Diante desse cenário, no presente estudo, investigamos significados atribuídos aos números inteiros e suas operações por uma aluna cega e por um estudante com baixa visão nas intervenções com material didático manipulável, alicerçados teoricamente na perspectiva lógico-histórica e seus nexos conceituais. Para isto, comparamos os conhecimentos prévios dos estudantes por meio de um diagnóstico inicial com a intervenção utilizando o material, buscando identificar em que medida e de que maneira ocorreram avanços em relação aos significados atribuídos aos números inteiros e suas operações, como explicitamos na seção que segue.

Contexto e pressupostos metodológicos

Adotamos, nesta pesquisa, a abordagem metodológica de pesquisa-intervenção para a investigação dos significados atribuídos aos números inteiros e suas operações por uma estudante cega e por um estudante com baixa visão na utilização de material didático manipulável. Assim, realizamos uma análise qualitativa buscando evidenciar as implicações e conclusões da intervenção. A pesquisa foi desenvolvida com uma estudante cega, matriculada regularmente no oitavo ano do Ensino Fundamental; e com um estudante com baixa visão do sétimo ano do Ensino Fundamental. Ambos os estudantes frequentavam o Atendimento Educacional Especializado (AEE) de suas instituições de ensino no contraturno, espaço onde ocorreram as intervenções pedagógicas da pesquisa.

Para a coleta de dados utilizamos registros escritos e fotográficos, filmagens, gravações de áudio e anotações de observações em diário de bordo das cerca de quatorze horas de intervenção com cada estudante. O ambiente de intervenção foi organizado com o gravador de voz posicionado ao centro da mesa dos estudantes e a câmera filmadora ao seu lado, focando o posicionamento de suas mãos. Sobre suas mesas, os estudantes dispunham do material didático manipulável Soroban dos Inteiros, das tarefas para seu uso e de materiais para suas anotações, a máquina braile Perkins para a estudante cega, e lápis e borracha para o estudante com baixa visão. Para a estudante cega, as tarefas foram impressas em braile; e para o estudante com baixa visão, em fonte Arial tamanho 14.

O Soroban dos Inteiros (figura 1) foi construído com alicerces nos nexos conceituais da civilização chinesa, vinculados à manipulação de palitos pretos e vermelhos. Sua estrutura e design foram inspirados no Soroban tradicional e no ábaco dos inteiros. Difere destes materiais por garantir a organização e registro pelo cego; é diferente do ábaco dos inteiros, em que as contas ficam soltas; e do Soroban tradicional por possuir um conjunto duplo de hastes que permite o registro de valores positivos e negativos. O material é constituído por dois lados, um positivo e vermelho; e outro negativo e preto, diferenciados pela marcação central e pelas texturas das bolinhas validadas e nomeadas pela estudante cega, respectivamente, como bolinhas quebradas e bolinhas lisas. Cada lado do material é cortado por uma mesma régua de marcações que torna evidente a localização de cada classe de registro numérico e de resultados. O material possui quatro classes positivas do lado direito e quatro classes negativas do lado esquerdo. Cada classe possui três hastes verticais nas quais são registradas as unidades, dezenas e centenas na ordem da direita para a esquerda, respectivamente, como no sistema posicional (CDU). Em cada haste há cinco contas (bolinhas). Cada conta da parte superior da régua equivale a cinco unidades e cada uma das quatro contas da parte inferior equivale a uma unidade. Na parte inferior do material há uma haste horizontal dividida ao meio por uma marcação que simboliza o zero, com dez bolinhas em cada lado para remeter à reta numérica, sendo possível comparar quantidades.

Fonte: elaborada pelas autoras.

Figura 1 Características estruturais do Soroban dos Inteiros 

Na intervenção foram utilizadas as tarefas sintetizadas no quadro 1.

Quadro 1 Tarefas utilizadas na intervenção com o Soroban dos Inteiros 

Tarefa Objetivos
0. Diagnóstico inicial Representar sentenças matemáticas utilizando corretamente símbolos operatórios e predicativos;
Comparar e ordenar quantidades positivas e negativas;
Operar com quantidades positivas e negativas, aplicando a lógica ou equivalência operatória;
Utilizar a regra de sinais na multiplicação e divisão de inteiros; e,
Resolver situações interpretativas de significados concretos, como aumentar, diminuir, sobrar e faltar.
1. Representar números e realizar operações matemáticas Conhecer o material, reconhecendo seus elementos, seu funcionamento e as possibilidades de registro numérico;
Efetuar, por meio de orientações, registros e operações com números positivos; e,
Empregar diferentes estratégias para realizar operações usando o Soroban dos Inteiros, explicitando seu entendimento sobre a ação operatória com os números.
2. Que números são esses? Atribuir o significado de falta às quantidades negativas ao explorar e representar os resultados dos movimentos de subtrações;
Atribuir significado a quantidades negativas expressas pelo sinal predicativo de -; e,
Diferenciar e empregar corretamente os dois usos dos símbolos + e -
3. Qual é maior, qual é menor? Comparar números positivos e negativos analisando quantidades e estados;
Comparar números positivos e negativos em relação a seu posicionamento de zero; e,
Associar a distância de um número a zero com os conceitos de números simétricos e módulo.
4. O zero no material Representar distintos zeros a partir da ideia do cancelamento;
Compreender o papel do zero como origem dos números positivos e negativos; e,
Representar diferentes quantidades, tanto positivas quanto negativas, a partir de zeros ou uma quantidade estabelecida.
5. Adição com números inteiros Efetuar adições no material mediante a ação de acrescentar quantidades, sejam elas positivas ou negativas;
Realizar reduções mútuas entre positivos e negativos para obter resultados;
Compreender que adicionar um número negativo equivale a subtrair o número positivo com o mesmo valor absoluto; e,
Compreender que adicionar um número positivo equivale a adicionar o número positivo com o mesmo valor absoluto.
6. Subtração com números inteiros Efetuar subtrações no material mediante a ação de retirar quantidades, sejam elas positivas ou negativas;
Realizar reduções mútuas entre positivos e negativos para obter resultados;
Compreender que subtrair um número negativo equivale a adicionar o número positivo com o mesmo valor absoluto; e,
Compreender que subtrair um número positivo equivale a subtrair o número positivo com o mesmo valor absoluto.
7. Multiplicação com números inteiros Empregar o conceito de multiplicação como repetição de parcelas, adicionando ou retirando parcelas de números positivos ou negativos;
Associar as ações de adicionar e retirar às transformações de sentidos e à regra de sinais;
Identificar a relação entre a ação de retirar parcelas ao fato de ter que ter determinada quantidade;
Compreender que para retirar é necessário acrescentar quantidades mediante zeros; e,
Buscar regularidades (regra de sinais) analisando as transformações de sentido entre a multiplicação e seu resultado.
8. Dividindo números inteiros Compreender a divisão como operação inversa da multiplicação; e,
Utilizar as regularidades da tarefa 7 ao efetuar operações inversas.

Fonte: elaborado pelas autoras.

Salientamos que todos os participantes assinaram o Termo de Assentimento Livre e Esclarecido (TALE) para cooperação com a pesquisa, e seus responsáveis, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e Termo de Consentimento para Uso de Imagem e Som de Voz (TCUISV). A fim de preservar a identidade dos participantes e relatar os diálogos da intervenção, atribuímos à estudante cega o nome fictício de Verônica, e ao estudante com baixa visão, o nome Ricardo. Para realizar as análises, selecionamos episódios das duas intervenções que evidenciam, em comparativo com os diagnósticos iniciais, a atribuição de significados aos números inteiros e suas operações em algumas das tarefas do quadro 1.

As análises estão alicerçadas na perspectiva lógico-histórica e seus nexos conceituais, em que buscamos identificar como Verônica e Ricardo atribuíram significados aos números inteiros, ampliando suas ideias sobre conceitos e operações relacionados a esse conteúdo matemático. Segundo Vygotsky (1991), instrumentos e signos são, respectivamente, atividades externas e internas do indivíduo, que quando são desenvolvidos e manipulados, configuram-se como formas de adquirir significados e, consequentemente, elaborar conceitos. Para Moysés (2012, p. 39),

O sentido de uma palavra depende da forma com que está sendo empregada, isto é, do contexto que ela surge. O seu significado, no entanto, permanece relativamente estável. É formado por enlaces que foram sendo associados à palavra ao longo do tempo, o que faz com que se considere o significado como um sistema estável de generalizações, compartilhado por diferentes pessoas, embora com diferentes níveis de profundidade e amplitude diferente.

Nesse sentido, compreendemos que o significado é construído histórica e culturalmente, podendo ser adquirido na interação social e, no ensino, por meio de intervenções pedagógicas cuidadosamente planejadas, envolvendo alunos e professor. A análise em relação ao diagnóstico inicial e às tarefas propostas mostrou que os registros e manipulações realizados no material, e consequentemente as transformações de cálculos, números, símbolos e operações em ações de acrescentar ou retirar quantidades positivas ou negativas, tornaram-se maneiras de manipular instrumento e signos do conteúdo de números inteiros, o que auxiliou na compreensão de seus significados.

Resultados e análises

Os estudantes Verônica e Ricardo conseguiram atribuir um novo significado às quantidades negativas, quando foram propostos cálculos de subtração com resultantes negativos, por exemplo, 9-11. A primeira reação dos estudantes, com o Soroban dos Inteiros, foi movimentar as bolinhas quebradas, a fim de retirar onze a partir do registro de nove bolinhas da primeira parcela da subtração e, em decorrência desse episódio, obtivemos expressões como: "Não dá para fazer! Não vai dar! Dá zero", obstáculos previstos nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) (BRASIL, 1998), relacionados a reconhecer a existência e conferir significado às quantidades negativas. Buscando ultrapassar essa resistência e estranheza, utilizamos as indagações: mas, porque não dá para fazer? Como chegou no resultado zero? Você retirou toda a quantidade solicitada na operação? As respostas foram: "Não, é que não tem mais como (ou de onde) tirar! Faltou tirar duas." Foi a partir dessas explorações que introduzimos o significado das quantidades negativas representarem também faltas.

Para Mariano e Matos (2013, p. 6),

[...] muitos alunos não conseguem, em um primeiro momento, compreender como podem existir quantidades negativas ou, de outra forma, como as faltas podem ser representadas por números, assim como as quantidades, que já eram representadas pelos números naturais.

Durante a intervenção percebemos que, antes de reconhecer os números negativos como faltas, os estudantes atribuíam às quantidades negativas o significado de perda e dívida, ou seja, seus significados estavam relacionados somente com o contexto e abordagem comercial de números inteiros. A partir do item dois da tarefa dois, ao atribuir e explicar o significado matemático para -2, -11, 6 e +3, conseguimos identificar que os alunos fizeram menção às faltas para explicar o significado de -2 e -11, ampliando seu conceito de negatividade. Ao final da intervenção, Verônica afirmou: "Eu aprendi o significado dos negativos, que são as faltas [...]".

Segundo Rodrigues (2009), os estudantes, ao compreenderem a existência de quantidades menores que zero e de contrários, conectam-se com as ideias de fluência e contradição, nexos conceituais de números inteiros. Estas ideias se correlacionam, também, com o nexo conceitual de simultaneidade de opostos no conjunto dos números inteiros, que foi explorado nas intervenções, não só por meio da contagem e operações em dois sentidos, envolvendo quantidades positivas e negativas e os dois lados do material, mas também na construção da reta numérica, na tarefa três. Construir a reta numérica e associá-la à haste horizontal do Soroban dos Inteiros auxiliou na aceitação e identificação de números menores que zero, visto que os estudantes criaram uma representação ordenada, contemplando os números negativos. A figura 2 e a figura 3 mostram, respectivamente, as retas numéricas de Ricardo e Verônica.

Fonte: elaborada pelas autoras.

Figura 2 Reta numérica construída por Ricardo 

Fonte: elaborada pelas autoras.

Figura 3 Reta numérica construída por Verônica na máquina Perkins 

Na figura 3 observamos a dificuldade de Verônica em organizar uma reta numérica na máquina Perkins, relacionando ponto e numeral. Ao perceber isso, adaptou-se uma reta numérica em E.V.A. (figura 4), construída a partir de uma faixa com 21 círculos do mesmo material, posicionados e colados sobre ela a cada cinco centímetros. Sobre os círculos foram colados os números inteiros de -10 a 10 em braile, e abaixo dos círculos foram anotados, a caneta, os números indo-arábicos correspondentes.

Fonte: elaborada pelas autoras.

Figura 4 Reta numérica em E.V.A com números em braile 

Concluímos que, a partir da reta numérica e da haste horizontal, foi possível discutir com os estudantes a comparação entre números inteiros e introduzir os conceitos de números simétricos ou opostos, e a noção de módulo. Por meio da construção da reta numérica, ao problematizar a ordenação dos números na reta, abordamos ideias relacionadas a distâncias e posicionamento dos números a partir do zero. Tal encaminhamento favoreceu que os estudantes observassem a existência da simultaneidade entre quantidades positivas e negativas a partir de zero, analisando uma a uma as unidades e as distâncias iguais em relação a zero. Identificamos, nas intervenções, a compreensão do nexo conceitual de simultaneidade de opostos, quando os estudantes conseguiram, na tarefa três, responder que opostos são dois números distintos que estão a uma mesma distância unitária de zero, sendo exemplificado por Ricardo por: "1 e -1 e 2 e -2", e por Verônica como: "-2 e +2 e -4 e +4, [...] o que muda é o sinal". Ao representarem, por exemplo, 1 e -1 e -2 e 2 na haste horizontal, os estudantes lidaram com a contradição e simultaneidade de opostos entre positivo e negativo, representados em lados distintos do material, empregando os sinais predicativos de - e + em suas respostas.

Sobre isto, Teixeira (1993, p. 63), afirma que

A compreensão do que seja número negativo avança paulatinamente, por abstrações e generalizações, na medida em que a criança descobre que se negativo é menor do que positivo, há um ponto de onde positivo e negativo se originam. Isso leva, por sua vez, à necessidade de nova ampliação, porque, nos naturais, a assimilação do zero foi feita com base no significado da ausência de quantidade. Agora, é preciso ampliar este significado, ou seja, diferenciá-lo da concepção de zero origem.

Mediante a reta numérica e a haste horizontal do material Soroban dos Inteiros, conseguimos evidenciar os diferentes papéis para o zero. Segundo o PCN (BRASIL, 1998), uma das dificuldades dos estudantes em relação aos números inteiros é atribuir o significado de origem ou ponto de início, como respondeu Ricardo, ao zero. A intervenção ampliou a compreensão do zero como ausência, nada ou valor absoluto, para origem ou centro de simetria e equilíbrio. Ao propor a tarefa quatro, exploramos o nexo conceitual e a significação do zero como anulação de opostos, por meio de várias representações de zero no material, a partir da ideia de que uma bolinha quebrada com uma bolinha lisa se anulam, pudemos explorar o princípio de simetria ou equivalência, em que (+1) + (-1) = 0. A significação de Verônica quanto a esse nexo conceitual é evidenciada pelo trecho apresentado na figura 5, em que ela reconhece as diferentes possibilidades de representar o zero registrando números opostos no Soroban dos Inteiros.

Fonte: elaborada pelas autoras.

Figura 5 Conceito de equivalência por Verônica 

A anulação de opostos também foi utilizada nas tarefas de operações com inteiros, como forma de obter resultados ao relacionar quantidades positivas e negativas no processo de destruições mútuas e equivalência no material. O registro e o movimento das quantidades positivas e negativas, em sentidos opostos, corroboraram para a observação das transformações de lugares (lado positivo ou negativo) do resultado. Para pontuar os significados atribuídos por Verônica e Ricardo em relação às operações com números inteiros, apresentamos, na sequência, primeiramente, seus desempenhos no diagnóstico inicial; e depois, excertos que revelam atribuições de significados relacionados às operações de adição, subtração e multiplicação com números inteiros.

Analisando o diagnóstico de Ricardo (figura 6), percebemos sua dificuldade em realizar adições e subtrações de números negativos, pois errou os itens a, b e g. Ao relatar seus raciocínios, ele explicou que aplicou a regra de sinais para a multiplicação nas adições e subtrações, fazendo jogo de sinais entre as parcelas.

Fonte: elaborada pelas autoras.

Figura 6 Operações do diagnóstico de Ricardo 

Ao analisar o diagnóstico de Verônica (figura 7), percebemos uma variação maior de erros nas operações. No item a, Verônica apresenta um resultado positivo, parecendo desconsiderar a natureza das quantidades; as respostas aos itens e e g evidenciam que

Verônica desconhece os significados de subtrair e adicionar um número negativo. Isto porque, no item e, somente acrescenta as quantidades de mesma natureza e no item g, acrescenta-as, desprezando a natureza da segunda parcela; e nos itens f e h não aplica a regra de sinais para a multiplicação e divisão de inteiros. Em contrapartida, Verônica acerta o item i. A partir do resultado dissociado dos sinais predicativos e operatórios e dos valores do divisor e dividendo apresentado no item j, acreditamos que Verônica, ao ler, não compreendeu ou confundiu os números ou a operação.

Fonte: elaborada pelas autoras.

Figura 7 Respostas das operações do diagnóstico de Verônica 

As manipulações e representações realizadas no Soroban dos Inteiros para efetuar cálculos aproximam os estudantes da compreensão e manipulação da negatividade pelos chineses, a partir do instrumento e nexo conceitual, palitos pretos e vermelhos. As ações relacionadas aos conceitos de equivalência, simetria, inverso, e o processo de destruições mútuas ao representar e operar a partir do zero, convergem para o método fang cheng de resoluções de equações lineares, enquanto as ações de reduzir ou acrescentar bolinhas lisas ou quebradas está relacionada às regras zheng/fu. Zheng é referente a palitos de cor vermelha; e fu, à cor preta, os quais são usados para a adição e subtração. A possibilidade de representar e manipular em via de mão dupla os números inteiros (LIMA; MOISÉS, 1998) nos lados do material significou promover a percepção sobre manter ou inverter a posição daquilo que se opera.

Ao final da resolução de um bloco de adições de números positivos na tarefa cinco, em que os estudantes associaram as resoluções à contagem de bolinhas quebradas a partir da primeira parcela, questionamos Verônica: "Até agora estávamos trabalhando com que tipo de operação e que tipo de número? O que significa adicionar um número positivo?" A estudante respondeu: "Somar um número positivo com um número que já tem ali". Evidenciamos que a percepção de Verônica, quanto à adição entre positivos, aproxima-se da regra zheng/fu, pois ao adicionar bolinhas iguais, basta acrescentá-las mutualmente. Dessa forma, sua resposta remete à regularidade de que adicionar um número positivo é equivalente a adicionar este número com valor absoluto.

O excerto a seguir ilustra as indagações provocadas para Ricardo refletir sobre o resultado que obteve na adição de negativos, 8 + (-3), na tarefa cinco.

  • Pesquisadora: Quando nós fizemos 8 + (-3), na verdade, o que a gente fez, então?

  • Ricardo: A gente fez exatamente. A gente, ao invés de fazer uma conta de mais, acabou transformando numa conta de menos, porque, positivo com negativo dá negativo.

  • Pesquisadora: Onde?

  • Ricardo: Jogo de sinais. Esse 8, ele é positivo, mas não precisa estar com o símbolo para representar que ele é positivo, e aqui está representando o número negativo [mostrando o -3]. Mas por algum motivo ou circunstância, deu 5. [...]

  • Pesquisadora: O que significa, então, eu adicionar um negativo? É a mesma coisa que eu fazer o que? [Mostrando na tarefa].

  • Ricardo: Retirar.

  • Pesquisadora: Muito bom! Retirar esse [apontando o 3] desse [apontando o 8].

Observamos, na resposta de Ricardo, ao refletir sobre o movimento realizado no material, que o estudante percebe a equivalência de adicionar três unidades negativas com retirar (subtrair) três unidades. No diálogo, identificamos a compreensão conceitual e a significação da operação de adição de um número negativo, visto que sua explicação converge para a definição formal de Caraça (1963, p. 101), que "[...] somar um número negativo equivale a subtrair o número positivo com o mesmo módulo". Entretanto, como mostra o excerto, Ricardo, ainda acreditando erroneamente que a regra de sinais é válida para a adição de números inteiros, duvida do resultado obtido. A partir desse e dos demais cálculos, comparando o sinal predicativo do resultado obtido no material e pela regra de sinais, buscamos mostrar a ele que a regra não se aplica à adição e à subtração com números inteiros.

Concluímos que Verônica também compreendeu a transformação da adição de números negativos para a subtração, pois analisando seus registros em braile das adições de negativos da tarefa cinco, afirmou, quanto às suas ações no material: "a gente foi reduzindo". Quando questionada sobre o sinal predicativo do resultado das adições em comparativo com o sinal das parcelas, ela constata que o sinal positivo ou negativo do resultado será igual a maior dentre as parcelas (em módulo), como lemos a seguir:

  • Pesquisadora: O que você aprendeu hoje?

  • Verônica: A soma de números positivos e negativos.

  • Pesquisadora: Você já chegou a alguma conclusão de que tipo de resultado elas vão ter?

  • Verônica: Elas vão ter, dependendo do número que for maior, se o número positivo for maior, o resultado vai ser positivo. E se o negativo for maior, o resultado vai ser negativo.

  • Pesquisadora: Mas isso você já sabia antes?

  • Verônica: Não, descobri isso hoje.

Verificamos, a partir desse excerto e da multiplicação de 3× (-4), na tarefa sete, que Verônica compreende que as adições no conjunto dos inteiros podem resultar em acréscimos e decréscimos (CARAÇA, 1963). Na multiplicação, converte a operação de multiplicação para uma adição de número negativo, a qual resolve registrando, no material, os múltiplos de-4, ou seja, materializou no Soroban dos Inteiros o cálculo (-4) + (-4) + (-4) = -12. O excerto a seguir mostra a compreensão da estudante em relação a acrescentar, um número de vezes, um número negativo, obtendo um resultado menor, isso porque, quanto mais parcelas negativas são acrescentadas, mais negativo se torna o resultado.

  • Pesquisadora: Lembra lá, o que significa adicionar um negativo?

  • Verônica: Aumentar um positivo.

  • Pesquisadora: Será?

  • Verônica: Não. Diminuir um positivo. […]

  • Pesquisadora: De menos quatro para menos oito, aumenta?

  • Verônica: Não, na verdade diminuiu. Ah, somar é igual a diminuir os negativos.

Percebemos, nas intervenções, que as análises dos estudantes, baseadas nos registros, ações e resultados, permitiram romper com a limitação de aprendizagem apontada por Pommer (2010, p. 2), de que a "[...] falsa concepção onde o par adição/multiplicação é considerado como aumento, assim como o par subtração/divisão é erroneamente visto como diminuição".

Para Teixeira (1993, p. 65), "[...] quando o operador multiplicativo é negativo não é possível simplesmente imaginar números que se multiplicam na mesma região, mas além disso, que o operador transforma o resultado obtido, mudando-o de região". As transformações e mudanças nos lados do material e, consequentemente, nos sinais predicativos do resultado, tornaram-se perceptíveis aos estudantes por meio das ações: registro padrão dos fatores na terceira e quarta classe do material; representação de zero para obter quantidades suficientes para retirar, mediante a ideia de equivalência; realização da operação com a retirada de quantidades; se preciso, realizar reduções mútuas até uma das primeiras classes zerar em quantidade para, então, fazer a leitura da operação e do resultado obtido. A resolução de Ricardo para a operação (-2) × (-2), conforme o excerto a seguir, exemplifica essas ações e justifica o resultado positivo. A figura 8 ilustra a transformação do resultado para a região positiva do material.

  • Pesquisadora: Quanto você precisa tirar?

  • Ricardo: Duas vezes o dois.

  • Pesquisadora: Quantas vezes o dois tem aqui? [Mostrando o registro de -2 na 1ª classe, que o estudante tinha feito].

  • Ricardo: Uma.

  • Pesquisadora: Então, vai dar só para tirar uma. Quantas você quer tirar?

  • Ricardo: Duas. Então, vai mais uma.

  • Pesquisadora: Ah, então aqui, no mínimo, tem que ter? [Mostrando o registro da 1a classe dos negativos].

  • Ricardo: Quatro.

  • Pesquisadora: Mas não temos que iniciar com zero? O que tem que fazer?

  • Ricardo: [O estudante registra 4 positivo no material]. […]

  • Pesquisadora: Para retirar duas vezes o menos dois, o que tem que fazer?

  • Ricardo: Tirar. Tiro uma, dois. Quatro positivo.

  • Pesquisadora: Mas o que, na verdade, está fazendo no material, ao retirar duas vezes o negativo dois?

  • Ricardo: Adicionando.

Fonte: elaborada pelas autoras.

Figura 8 - Operador multiplicativo (-2) e o resultado que muda para a região positiva 

Ambos os estudantes conseguiram associar a multiplicação (-2) × (-2) com a subtração de um número negativo e perceber sua equivalência com a adição, já que retirar o negativo é equivalente a adicionar o positivo desse número, ou ainda, "[...] subtrair um número negativo equivale a somar o número positivo com o mesmo módulo" (CARAÇA, 1963, p. 101). Este significado foi percebido e aplicado pelos estudantes na tarefa 6, de subtração, e na tarefa sete, de multiplicação com números inteiros. Vejamos, a seguir, a explicação de Verônica para justificar o resultado positivo da operação (-2) × (-2).

  • Verônica: Eu pensei menos com menos, mais. Mas, achei que estava errado.

  • Pesquisadora: Que ação você fez no material para resolver? Use a que você fez para explicar. Pode refazer, se quiser.

  • Verônica: Porque a gente foi diminuindo e deu um número positivo.

  • Pesquisadora: Diminuindo o que?

  • Verônica: O dois. Não! O negativo.

  • Pesquisadora: E o que dá quando diminuímos um negativo?

  • Verônica: Vai dar um número positivo. Porque vai aumentando. […]

  • Pesquisadora: Se eu estou retirando quantidades negativas, na verdade, eu estou fazendo o que?

  • Verônica: Acrescentando quantidades positivas.

O excerto acima mostra que Verônica, assim como Ricardo, compreendeu a transformação do resultado da multiplicação entre dois números negativos, já que o resultado é obtido no acréscimo das quantidades positivas, visto que as negativas deixam de ser registradas após a retirada de quantidades, segundo o operador negativo. Para Nunes e Bryant (1997, p. 190), "[...] se nos concentrarmos em instrução matemática como ensino de técnicas e prestarmos pouca atenção à relação entre o modelo e a situação que ele matematiza, criamos um divórcio entre o conhecimento de técnicas e a percepção do sentido". As respostas de Verônica e Ricardo justificam a funcionalidade da regra de sinais para a multiplicação de números inteiros, atribuindo sentido matemático às transformações de sinais, observando as mudanças de registros nos lados do Soroban dos Inteiros.

Ao final das intervenções, Verônica afirma: "Eu aprendi o sentido da regra de sinais". Dessa forma, concluímos que, tornar os conceitos e regras lógico-formais vinculados aos números inteiros perceptíveis aos olhos e ao tato dos estudantes na intervenção foi essencial para abrir caminhos para a investigação e significação de números inteiros e suas operações. Para Rodrigues (2009, p. 93), "[...] fazer cálculos matemáticos, usando palitos sobre um tabuleiro ou tapete, traduz uma álgebra que distingue os lugares por uma carga simbólica que cada um incorpora, própria de uma álgebra simbólica, em que o lugar representa algo, [...]". Nesse sentido, na intervenção com o Soroban dos Inteiros, os estudantes, ao realizarem as operações com bolinhas lisas e quebradas, lidam com o pensamento chinês e utilizam um simbolismo algébrico implícito nos registros e manipulações do material, manipulando a álgebra sem perceber.

Considerações finais

Destacamos a importância da construção de processos de ensino e aprendizagem que considerem as dificuldades, habilidades e especificidades de cada estudante, compreendendo a escola como um ambiente integrador emergido na diversidade.

Promover o acesso a informações e ao conhecimento a todos os estudantes pressupõe a elaboração de aulas, uso de materiais, métodos e metodologias diversificadas e interativas. Acreditamos que ensinar matemática, nesse contexto, envolve a criação de oportunidades para compreender e lidar com a atividade matemática, promovendo situações matemáticas para que o estudante problematize, sendo curioso, crítico e lógico, levante hipóteses, experimente, argumente, valide e abstraia.

No ensino de números inteiros com o Soroban dos Inteiros, exploramos o pensamento, a representação e a comunicação matemática, ao possibilitar que a aluna cega e o estudante com baixa visão agissem sobre o material e as tarefas, estabelecendo relações entre quantidades positivas, negativas e as operações de adição, subtração e multiplicação. Ao usarem o Soroban dos Inteiros, os alunos utilizaram, de maneira despercebida, as ideias matemáticas da civilização chinesa, presentes intricadamente no emprego dos nexos conceituais nas formas de registro e manipulação do instrumento conceitual, o Soroban dos Inteiros, o que evidencia a apresentação do conhecimento matemático como histórico e culturalmente construído, em constante evolução.

Identificamos, analisando a intervenção, que três pontos foram essenciais para que os estudantes investigassem o significado dos números inteiros e suas operações, observando padrões e criando generalizações, aproximando-se de conceitos abstratos desse conteúdo. O primeiro e o segundo ponto referem-se ao material alicerçado nos nexos da civilização chinesa e as tarefas para seu uso sem contextualizações, que permitiram que os estudantes percebessem as transformações e mudanças que ocorriam nos dois lados do material, e que possibilitaram uma abordagem dos números inteiros por meio de um modelo Físico/Geométrico (POMMER, 2010), traduzindo uma álgebra de lugares simbólicos, que colaborou para a significação da lógica operatória dos números inteiros para os estudantes. O terceiro ponto trata-se da mediação da professora pesquisadora, com a criação de diálogos, provocações e questionamentos, que foi essencial para que os alunos refletissem sobre seus registros, manipulações e respostas. Ao fazer com que os alunos verbalizassem seus pensamentos e conclusões, abríamos caminhos para que identificassem padrões e generalizações mais próximas de conceitos abstratos.

Concluímos que as situações criadas em ambas as intervenções permitiram que os alunos ampliassem os significados quanto às quantidades negativas, compreendendo-as como faltas, um sentido para além do contexto comercial de dívidas e perdas. Nas atividades envolvendo a reta numérica, eles tomaram conhecimento sobre a fluência e contradição dos números inteiros, percebendo a existência do zero como origem, como centro de simetria e equilíbrio. A necessidade de operar a partir de um zero vivo e móvel possibilitou a compreensão quanto à simultaneidade entre as quantidades e o conceito de opostos e equivalência. Analisando as quantidades, operações e as manipulações no Soroban dos Inteiros, evidenciamos que os estudantes atribuíram e validaram os seguintes significados para as operações de adição e subtração de inteiros: adicionar um número positivo equivale a adicionar o número positivo com o mesmo valor absoluto; adicionar um número negativo equivale a subtrair o número positivo com o mesmo valor absoluto; ao adicionarmos um número positivo a um negativo, o resultado levará o sinal predicativo (de natureza) do maior número de valor absoluto; a adição de inteiros pode representar decréscimos, assim como a subtração de inteiros pode representar acréscimos; e subtrair um número negativo equivale a adicionar o número positivo com o mesmo valor absoluto. Estes significados mostraram-se presentes nas operações de multiplicação com resoluções utilizando repetições de quantidades positivas ou negativas, que por consequência, auxiliaram na compreensão da regra de sinais, pois os estudantes associavam a natureza dos fatores e do resultado com a movimentação realizada no material.

Por fim, salientamos a importância de discutir e propor atividades, situações, materiais didáticos manipuláveis e metodologias potenciais para a inclusão e acessibilidade ao conhecimento matemático nas áreas de Ensino de Matemática e Educação Especial. Assim, identificando o Soroban dos Inteiros como um material potencialmente inclusivo, pretendemos ampliar nossas pesquisas para investigar seu uso associado a problemas matemáticos e em classes regulares com cegos inclusos, com estudantes cegos e videntes de idades variadas.

Referências

ALVARISTO, E. F. Uma ferramenta para elaboração de conceitos matemáticos para estudantes com deficiência visual: gráfico em pizza adaptado. 2019. Dissertação (Mestrado em Ensino em Ciência e Tecnologia) - Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Ponta Grossa, 2019. [ Links ]

BANDEIRA, S. M. C.; GHEDIN, E. L.; BEZERRA, S. M. C. B. Conexões entre formação docente, neurociência e inclusão de estudantes cegos em escolas do ensino médio em Rio Branco - Acre. Educação Matemática em Revista, Brasília, v. 24, n. 65, p. 224-240, 2019. Disponível em: https://cutt.ly/eSNyVGV Acesso em: 24 mar. 2022. [ Links ]

BRASIL. Ministério da Educação. Base nacional comum curricular: educação infantil e ensino fundamental. Brasília: Secretaria de Educação Básica, 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/abase/ Acesso em: 30 ago. 2020. [ Links ]

BRASIL. Lei no 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a lei brasileira de inclusão da pessoa com deficiência (estatuto da pessoa com deficiência). Brasília, Presidência da República, 2015. Disponível em: https://cutt.ly/5AS8joT Acesso em: 2 dez. 2020. [ Links ]

BRASIL. Ministério da Educação. Soroban: manual de técnicas operatórias para pessoas com deficiência visual. 2. ed. Brasília: Secretaria de Educação Especial, 2012. [ Links ]

BBRASIL. Ministério da Educação. Política nacional de educação especial na perspectiva da educação inclusiva. Brasília: MEC, 2008. Disponível em: https://cutt.ly/iAS8Y3L Acesso em: 5 set. 2020. [ Links ]

BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros curriculares nacionais: adaptações curriculares. Brasília: Secretaria de Educação Especial, 1998. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro03.pdf Acesso em: 03 set. 2020. [ Links ]

CARAÇA, B. J. Conceitos fundamentais da matemática. Lisboa: Bertrand, 1963. [ Links ]

FERNANDES, C. T.; BORGES, E. V. A.; SOUZA, M. S. B.; MOTA, M. G. B.; RESENDE, T. R. M.; LIMA, W. A construção do conceito do número e o pré-soroban. Brasília: Ministério da Educação, 2006. [ Links ]

FERNANDES, S. H. A. A.; HEALY, L. Cenários multimodais para uma matemática escolar inclusiva: dois exemplos da nossa pesquisa. In: CONFERÊNCIA INTERAMERICANA DE EDUCACIÓN MATEMÁTICA, 14., 2015, Tuxtla Gutiérrez. Anais [...]. Chiapas: Editora do CIAEM, 2015. v. 1, p. 1-12. [ Links ]

FERNANDES, S. H. A.; HEALY, L. A inclusão de alunos cegos nas aulas de matemática: explorando área, perímetro e volume através do tato. Bolema, Rio Claro: v. 23, n. 37, p. 1111-1135, 2010. Disponível em: https://cutt.ly/UAS8VTZ Acesso em: 28 ago. 2020. [ Links ]

FERNANDES, S. H. A. A.; HEALY, L.; SERINO, A. P. A. Desconstruindo hierarquias epistemológicas no contexto das interações de alunos cegos com homotetia. JIEEM: jornal internacional de estudos em educação matemática, Londrina, v. 7, n. 2, p. 89-116, 2014. [ Links ]

FERRONATO, R. A construção de instrumento de inclusão no ensino da matemática. 2002. Dissertação (Mestrado em Engenharia de Produção) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2002. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/82939 Acesso em: 30 ago. 2020. [ Links ]

KALEFF, A. M. M. R. (org.). Vendo com as mãos, olhos e mente: recursos didáticos para laboratório e museu de educação matemática inclusiva do aluno com deficiência visual. Niterói: UFF: CEAD, 2016. [ Links ]

KOEPSEL, A. P. F. Materiais didáticos no ensino de matemática para estudantes com deficiência visual. In: ENCONTRO BRASILEIRO DE ESTUDANTES DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MATEMÁTICA, 20., 2016, Curitiba. Anais [...]. Disponível em: https://cutt.ly/MAS4tT1 Acesso em: 23 fev, 2022. [ Links ]

KOEPSEL, A. P. P.; SILVA, V. C. S. Uso de materiais didáticos instrucionais para inclusão e aprendizagem matemática de alunos cegos. Boletim Online de Educação Matemática, Joinville, v. 6, n. 11, p. 413-431, 2018. Disponível em: https://cutt.ly/nAS4bWe Acesso em: 4 out. 2020. [ Links ]

LIMA, L. C; MOISÉS, R. P. O número inteiro: numerando movimentos contrários. São Paulo: CETEAC, 1998. [ Links ]

MANRIQUE, L. A.; FERREIRA, L. G. Mediadores e mediação: a inclusão em aulas de matemática. Revista Contrapontos, Porto Alegre, v. 10, n. 1, p. 7-13, jan./abr. 2010. [ Links ]

MARIANO, A. C. S.; MATOS, F. A. O ensino de números inteiros no ensino fundamental. 2013. Trabalho de Conclusão de Curso (Mestrado Profissional em Matemática) - Universidade Federal de São João Del-Rei, São João Del-Rei, 2013. [ Links ]

MOYSÉS, L. Aplicações de Vygotsky à educação matemática. 11. ed. Campinas: Papirus, 2012. [ Links ]

NUNES, T.; BRYANT, P. Crianças fazendo matemática. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. [ Links ]

POMMER, W. M. Diversas abordagens das regras de sinais nas operações elementares em Z. In: SEMINÁRIOS DE ENSINO DE MATEMÁTICA, 2010. [São Paulo: Universidade de São Paulo], 2010. Disponível em: https://cutt.ly/6AS0LMT Acesso em: 22 nov. 2020. [ Links ]

RODRIGUES, R. V. R. A construção e utilização de um objeto de aprendizagem através da perspectiva lógico-histórica na formação do conceito números inteiros. 2009. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Estadual Paulista, Presidente Prudente, 2009. [ Links ]

ROSA, C. M. F.; BARALDI, M. I. O uso de narrativas (auto) biográficas como uma possibilidade de pesquisa da prática de professores acerca da educação (matemática) inclusiva. Bolema, Rio Claro, v. 29, n. 53, p. 936-954, 2015. Disponível em: https://doi.org/hkgz Acesso em: 5 set. 2020. [ Links ]

SÁ, E. D. Informática para as pessoas cegas e com baixa visão. In: SÁ, E. D.; CAMPOS, I. M.; SILVA, M. B. C. Atendimento educacional especializado: deficiência visual. Brasília: MEC, 2007. p. 49-53. [ Links ]

SÁ, E. D.; CAMPOS, I. M.; SILVA, M. B. C. Atendimento educacional especializado: deficiência visual. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Especial, 2007. [ Links ]

SHIMAZAKI, E. M.; SILVA, S. C. R.; VIGINHESKI, L. V. M. O ensino de matemática e a diversidade: o caso de uma estudante com deficiência visual. Interfaces da Educação, Paranaíba, v. 6, n. 18, p.148-164, set./dez. 2016. Disponível em: https://cutt.ly/6AS212g Acesso em: 12 set. 2020. [ Links ]

SILVA, D. M.; CARVALHO, L. T. M. L.; PESSOA, S. A. C. Material manipulável de geometria para estudantes cegos: reflexões de professores brailistas. Revista Paranaense de Educação Matemática, Campo Mourão, v. 5, n. 9, p. 176-202, 2016. Disponível em: https://cutt.ly/MAS9jfB Acesso em: 21 set. 2020. [ Links ]

SILVA, V. C.; POSSAMAI, J. P.; REIS, D. S.; WINDISCH, T. D. Superando os obstáculos no desenvolvimento da inclusão em sala de aula com o auxílio de um projeto de extensão. Educação Matemática em Revista, Brasília, v. 24, n. 64, p. 183-194, set./dez. 2019. [ Links ]

TEIXEIRA, L. R. M. Aprendizagem operatória de números inteiros: obstáculos e dificuldades. Pró-Posição, Campinas, v. 4, n. 1, p. 60-72, mar. 1993. Disponível em: https://cutt.ly/PAS3tCn Acesso em: 2 ago. 2020. [ Links ]

TURRIONI, A. M. S.; PEREZ, G. Implementando um laboratório de educação matemática para apoio na formação de professores. In: LORENZATO, S. (org.). O laboratório de ensino de matemática na formação de professores. 3. ed. Campinas: Autores Associados, 2012. p. 57-75. [ Links ]

ULIANA, R. M. Inclusão de estudantes cegos nas aulas de matemática: a construção de um kit pedagógico. Bolema, Rio claro, v. 27, n. 46, p. 597-612, ago. 2013. Disponível em: https://doi.org/hkgx Acesso em: 18 set. 2020. [ Links ]

VIGINHESKI, L. V. M. Uma abordagem para o ensino de produtos notáveis em uma classe inclusiva: o caso de uma aluna com deficiência visual. 2013. Dissertação (Mestrado em Ensino de Ciência e Tecnologia) - Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Ponta Grossa, 2013. [ Links ]

VITA, A. C. Análise instrumental de uma maquete tátil para aprendizagem de probabilidade por alunos cegos. 2012. Tese (Doutorado em Educação Matemática) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2012. [ Links ]

VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1991. [ Links ]

VYGOTSKY, L. S. Obras escogidas V: fundamentos de defectologia. Madrid: Visor, 1997. [ Links ]

Recebido: 26 de Janeiro de 2021; Aceito: 04 de Novembro de 2021

Autora Correspondente: natthali.felipe@gmail.com

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.