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Ciência & Educação

versão impressa ISSN 1516-7313versão On-line ISSN 1980-850X

Ciência educ. vol.28  Bauru  2022  Epub 01-Jun-2022

https://doi.org/10.1590/1516-731320220020 

Artigo Original

Percepções de licenciandos em Química a respeito do planejamento e execução de aulas experimentais no contexto do estágio supervisionado

Perceptions of Chemistry undergraduates about the planning and execution of experimental lessons in the context of the supervised internship

Andriele Coraiola de Souza1 
http://orcid.org/0000-0003-0216-4917

Fabiele Cristiane Dias Broietti2 
http://orcid.org/0000-0002-0638-3036

Natany Dayani de Souza Assai3 
http://orcid.org/0000-0002-0851-9187

1Universidade Estadual de Londrina (UEL), Programa de Pós-graduação em Ensino de Ciências e Educação Matemática, Londrina, PR, Brasil.

2Universidade Estadual de Londrina (UEL), Departamento de Química, Londrina, PR, Brasil.

3Universidade Federal Fluminens (UFF), Departamento de Química, Volta Redonda, RJ, Brasil.


Resumo

presente estudo busca investigar as percepções de licenciandos em Química acerca do planejamento e execução de aulas experimentais no contexto do Estágio Supervisionado. Os dados da pesquisa foram analisados à luz da Matriz do Professor M(P), instrumento que permite o estudo das relações epistêmicas, pessoais e sociais com o conteúdo, o ensino e a aprendizagem. Mediante o processo analítico, identificou-se a presença de unidades de análise em todos os setores da M(P) e as percepções das duplas foram semelhantes, focadas em uma perspectiva mais epistêmica e na gestão do ensino, com exceção da fase de execução da dupla D2. Observamos que as ações dos licenciandos no planejamento e na execução foram afetadas pelas relações com o professor formador, o contexto escolar e/ou com a atividade experimental. Entendemos que o estudo pode contribuir para as disciplinas de Estágio Supervisionado como uma possível forma de orientar na condução da prática de futuros professores.

Palavras-chave: Ensino de química; Aulas experimentais; Formação inicial do professor; Estágio supervisionado

Abstract

This study seeks to investigate the perceptions of Chemistry undergraduates about the planning and execution of experimental lessons in the context of their Supervised Internship. The research data were analyzed in light of the M(P) teacher's matrix, an instrument that allows for the study of epistemic, personal and social relationships with content, teaching and learning. Through the analytical process, the presence of analytical units was identified in all the sectors of M(P), and the perceptions of the pairs were similar, focused on a more epistemic perspective and on teaching management, with the exception of the execution phase of the D2 pair. We noted that the actions of the undergraduates in planning and execution were affected by the relationships with the teacher trainer, the school context and/or with the experimental activity. We understand that the study can contribute to the Supervised Internship as a possible way to guide the practice of future teachers.

Keywords: Chemistry teaching; Experimental classes; Teacher pre-service education; Supervised internship

Introdução

Estudos e pesquisas envolvendo aspectos das atividades experimentais têm sido, há algum tempo, objeto de investigação na área de Ensino de Ciências. Gonçalves (2009) relata que as discussões sobre a experimentação acabam, muitas vezes, focando na educação básica e poucas discussões têm ocorrido sobre estas atividades no Ensino Superior.

Ainda sobre tal constatação, Gonçalves e Marques (2016, p. 85) consideram que pesquisas sobre as atividades experimentais associadas a um contexto de formação inicial ou continuada de professores podem potencializar a "[...] emergência de novos resultados e problemas associados à temática da experimentação".

Consideramos, assim como Gonçalves (2009, p. 18), que pesquisas, nesta perspectiva, "[...] favorecem uma melhor abordagem didática dos formadores em torno das atividades experimentais no ensino de Ciências", auxiliando-os na compreensão das concepções/percepções de seus estudantes.

Em estudos recentes, Souza e Broietti (2017) observaram que poucas foram as pesquisas que discutiam aspectos didáticos, pedagógicos e teóricos das atividades experimentais envolvendo diretamente a formação de professores nos diferentes níveis de ensino. Nesse sentido, destacamos uma preferência de trabalhos que discutem o papel da experimentação como um recurso didático, mais do que suas implicações para a formação do professor, ou seja, em problematizá-la no contexto da atividade docente, investigando como futuros professores ou professores em exercício pensam e planejam suas aulas experimentais e como ocorre a execução destas aulas nesta configuração de ensino. De acordo com Arruda e Passos (2015), configuração de ensino serve para indicar todas as possibilidades e ambientes de ensino, sejam esses físicos ou virtuais, formais, informais ou não formais. A expressão configuração é uma extensão do significado da palavra venue, utilizada no National Research Council (2009, p. 47) dos Estados Unidos.

Compreendemos que a experimentação precisa estar presente na formação dos futuros docentes, de modo a "[...] discutir a experimentação como artefato pedagógico em cursos de Química" (GALIAZZI; GONÇALVES, 2004, p. 326), pelo fato de as atividades experimentais serem descritas na literatura como uma importante ferramenta didática no processo de ensino e aprendizagem, auxiliando os alunos na significação dos conceitos da Ciência como um todo (SANTOS; SCHNETZLER, 1996). Assim, apresentamos a questão norteadora deste estudo: quais as percepções de licenciandos em Química ao planejarem e executarem aulas experimentais no contexto do Estágio Supervisionado?

Neste cenário, este estudo objetiva investigar as percepções dos licenciandos acerca do planejamento e execução de aulas experimentais no contexto do Estágio Supervisionado. Para fundamentar a proposta, traçamos alguns caminhos para alcançar tal objetivo e responder ao nosso questionamento, descrito ao longo do artigo.

Algumas considerações sobre a experimentação e a matriz do professor

A experimentação ganhou espaço no Ensino de Ciências por volta da década de 1960, com a era dos projetos de ensino, e ao buscar por seu significado, Mori e Curvelo (2017) revelam três domínios que demonstram a estrutura histórica da palavra experimentação: domínio prático (conhecimento adquirido pela prática, vivência ou observação fornecida pela realidade); domínio filosófico (ideia de extrair a teoria ou o conhecimento que nos é adquirido pelos sentidos, empirismo); e o domínio da atividade científica (a experimentação como uma atividade de investigação científica). Tais domínios levam, muitas vezes, à polissemia do termo.

A palavra experimentação e suas derivações apresentaram diversos sentidos de acordo com a fase histórica em que estavam inseridas, sendo os dicionários incapazes de registrar tamanho contexto. Deste modo, sabe-se que por muito tempo as concepções empiristas indutivas (domínio filosófico), cujos ideais encontram-se em uma Ciência objetiva e neutra, que visa à comprovação e à verificação da teoria, dominaram as propostas da experimentação no Ensino de Ciências (MORI; CURVELO, 2017).

Pesquisas têm mostrado que uma possibilidade de superar as atividades experimentais como pura ilustração de conhecimentos teóricos está na abordagem dos chamados experimentos investigativos ou de resolução de problemas (SUART; MARCONDES, 2009).

Uma das potencialidades desse tipo de experimentação reside no fato de mobilizar nos alunos habilidades de alta ordem cognitiva, uma vez que os mesmos devem resolver um problema e, para tal, necessitam buscar informações, formular hipóteses, analisar ou propor procedimentos, elaborar suas conclusões, entre outras demandas (SUART; MARCONDES, 2009).

Para a elaboração de experimentos investigativos, Souza et al. (2013) descrevem alguns aspectos a serem pensados, como: objetivos pedagógicos que o professor atribui à atividade, em relação ao conteúdo a ser aprendido; elaboração de uma situação problema que possa despertar o interesse dos alunos; busca de informações pelos alunos; planejamento de questões que auxiliem o aluno a estabelecer relações e elaborar conclusões a partir dos dados; sistematização dos resultados e conclusões; aplicação a novas situações.

Em se tratando da formação de professores, Arruda, Lima e Passos (2011) elaboraram um instrumento que permite analisar a ação docente a partir de suas relações epistêmicas, pessoais e sociais com o conteúdo, o ensino e a aprendizagem do estudante, denominado Matriz do Professor - M(P) - (ARRUDA; PASSOS, 2015). Tal instrumento foi construído a partir dos estudos da relação com o saber e do triângulo didático-pedagógico (CHARLOT, 2000; CHEVALLARD, 2005; GAUTHIER et al., 2006).

A ação do professor é entendida como as relações com o saber que são estabelecidas em sala de aula em prol do ensino e da aprendizagem de todos os envolvidos. Deste modo, inspirados pelas ideias de Charlot (2000), os autores entendem que as relações com o saber podem ocorrer em três dimensões: epistêmicas, pessoais e sociais. A relação epistêmica diz respeito aos discursos de conhecimento intelectual/cognitivo; a relação pessoal engloba discursos de sentidos, sentimentos, emoções e interesses, e a relação social refere-se ao discurso de valor, crenças, preceitos, sendo que tais relações apresentam vinculação com o mundo escolar a respeito do conteúdo, do ensino e da aprendizagem (ARRUDA; PASSOS, 2017).

Dessa forma, Arruda, Lima e Passos (2011) compreendem que na sala de aula ocorrem tais relações e que há três sujeitos envolvidos: P (sujeito que ensina, professor, futuro professor no estágio), E (sujeito que aprende, alunos, licenciandos) e S (saber a ser ensinado, disciplinas, conteúdos). As relações que ocorrem entre eles são:

E-P/P-E (representa o ensino), E-S/S-E (representa a aprendizagem) e P-S/S-P (representa aprendizagem docente), como representado na figura 1.

Fonte: Arruda e Passos (2015).

Figura 1 Triângulo didático-pedagógico 

Partindo desta representação, foi elaborada a Matriz do Professor (quadro 1) e, atualmente, já foram elaboradas e testadas duas outras matrizes, a Matriz do Estudante - M(E) - e a Matriz do Saber - M(S).

Quadro 1 A Matriz do Professor - M(P) 

Relações do professor com o saber 1
Aprendizagem docente (segmento P-S)
2
Com o ensino
(segmento P-E)
3
Aprendizagem discente (segmento E-S)
A Epistêmica (conhecimento) Setor 1A : diz respeito à relação epistêmica do professor com o conteúdo. Setor 2A : diz respeito à relação epistêmica do professor com o ensino. Setor 3A : diz respeito à relação epistêmica do professor com a aprendizagem de seus alunos.
B Pessoal (sentido) Setor 1B : diz respeito à relação pessoal do professor com o conteúdo. Setor 2B : diz respeito à relação pessoal do professor com o ensino. Setor 3B : diz respeito à relação pessoal do professor com a aprendizagem de seus alunos.
C Social (valor) Setor 1C : diz respeito aos valores do professor em relação ao conteúdo que ensina. Setor 2C : diz respeito aos valores do professor em relação ao ensino que pratica. Setor 3C : diz respeito aos valores do professor em relação à aprendizagem de seus alunos.

Fonte: adaptado de Arruda e Passos (2015, 2017).

As linhas da Matriz referem-se às relações com o saber (epistêmica, pessoal e social) e as colunas são as arestas do triângulo didático-pedagógico, representando as relações do professor com o conteúdo (P-S), as relações do professor com o ensino que pratica (P-E) e as relações do professor com a aprendizagem de seus alunos (E-S), sendo que cada uma dessas pode apresentar diferentes dimensões com o saber - epistêmica, pessoal e social (ARRUDA; LIMA; PASSOS, 2011). O setor é indicado por um número que diz respeito à coluna e por uma letra que corresponde à relação de cada segmento com a linha, formando ao todo nove categorias. Neste estudo, as percepções dos licenciandos ao planejarem e executarem aulas experimentais serão analisadas à luz da Matriz do Professor, considerando como categorias a priori os setores da M(P). Em Arruda, Lima e Passos (2011) encontra-se uma descrição detalhada de cada setor que compõe a M(P).

Procedimentos metodológicos

O contexto investigativo deste estudo foi a disciplina de Prática de Ensino e Estágio Supervisionado IV1, disciplina ofertada para o 4o ano do curso de licenciatura em Química de uma Universidade Pública do Norte do estado do Paraná. Tal disciplina contempla como conteúdo programático a discussão de textos diversos voltados à formação docente, à elaboração e à execução de sequências de ensino e aulas experimentais (AE) de caráter investigativo (foco desta investigação).

Os dados deste estudo referem-se ao acompanhamento do planejamento e à execução de aulas experimentais de quatro licenciandos que trabalharam em duplas2 durante todo o estágio, em escolas públicas de Ensino Médio e Técnico, no período matutino e noturno. Uma das duplas (D1) realizou suas atividades na disciplina de Química do Ensino Médio, com alunos do 3º ano, enquanto a outra dupla (D2) realizou as atividades experimentais em uma disciplina de Química Analítica ministrada para o 1° ano de um curso técnico subsequente em Química.

Para a constituição do acervo de dados estabelecemos uma sequência de etapas com o intuito de captar informações importantes antes, durante e após os licenciandos desenvolverem suas aulas experimentais. Assim, dividimos o processo de coleta e obtenção dos dados em três etapas.

A coleta de dados na etapa 1 - planejamento das aulas experimentais - ocorreu por meio do acompanhamento das conversas que eram trocadas entre os licenciandos e a professora-orientadora do estágio. Vários e-mails também foram acompanhados, nos quais eram enviados os planos de aulas e os roteiros experimentais elaborados, que, ao serem corrigidos pela professora-orientadora eram retornados aos estagiários com os comentários e sugestões de alterações. Nesse sentido, cada dupla elaborou várias versões de planos de aula e roteiros experimentais, até chegar a uma versão definitiva.

Segundo Haydt (2006, p. 103), o plano de aula é "[...] a sequência de tudo o que vai ser desenvolvido em um dia letivo […]. É a sistematização de todas as atividades que se desenvolvem no período de tempo em que o professor e o aluno interagem, numa dinâmica de ensino-aprendizagem".

Deste modo, a etapa 1 contou também com uma entrevista semiestruturada (LÜDKE; ANDRÉ, 2004) com cada dupla, de modo a entendermos o processo de planejamento dessas aulas experimentais. Para tal, elaboramos um roteiro norteador para realizar as entrevistas de modo que as questões propostas estimulassem os licenciandos a falarem sobre seus pensamentos e ações ao planejarem a aula. As discussões foram gravadas em áudio.

Na continuidade, adentramos na etapa 2 - execução das aulas experimentais - quando filmamos as aulas desenvolvidas nas escolas, focando somente os licenciandos. Com a filmagem buscamos, na etapa 3, possibilitar que os licenciandos assistissem à sua aula e ao longo do vídeo fomos fazendo alguns questionamentos com relação aos procedimentos adotados nas aulas, de modo que ao se auto-observarem, comentassem algumas situações ocorridas no decorrer da aula.

Com o acervo de dados coletados, mais especificamente as entrevistas realizadas nas etapas 1 e 3, estas foram transcritas e submetidas aos processos da Análise Textual Discursiva de Moraes e Galiazzi (2011), pois seus procedimentos colaboraram para uma acomodação que possibilitou articular os relatos e os setores da Matriz do Professor M(P).

Realizamos a interpretação dos dados, fragmentando os textos transcritos das entrevistas e construindo unidades de análise (UA), também denominadas unidades de significado ou de sentido, que surgem a partir do processo de desconstrução ou fragmentação do corpus e que serão construídas de acordo com a leitura, julgamento do pesquisador e objetivo do trabalho, por meio de critérios semânticos ou pragmáticos, de modo a destacar os elementos fundamentais do corpus (MORAES; GALIAZZI, 2011).

A partir desse movimento, fomos agrupando fragmentos semelhantes em sentido e categorizando os depoimentos, segundo os setores da M(P) estabelecidos como categorias a priori, com o intuito de investigar as percepções dos licenciandos acerca do planejamento e execução das aulas experimentais.

Resultados e discussão: apresentação e análise dos dados

Considerando o objetivo deste estudo - investigar as percepções dos licenciandos acerca do planejamento e execução de aulas experimentais no contexto do Estágio Supervisionado, utilizando como referencial teórico a Matriz do Professor M(P), organizamos o movimento analítico e interpretativo em três tópicos: (i) breve descrição do planejamento e execução das aulas experimentais; (ii) apresentação do processo de organização das unidades de análise; e, (iii) compreensão geral dos resultados.

Breve descrição do planejamento e da execução das aulas experimentais

De forma resumida, o processo de planejamento e execução da aula da dupla D1 versava sobre o conteúdo de Equilíbrio Químico, em que os estagiários propuseram experimentos acerca de alguns fatores que alteram tal equilíbrio. A aula experimental foi planejada para ser realizada em duas aulas consecutivas, totalizando 100 minutos.

Após todo o processo de planejamento, a dupla definiu que os objetivos da aula se centrariam em: (a) investigar experimentalmente o ponto de equilíbrio, ou seja, que quando as velocidades das reações direta e inversa se igualam e as concentrações dos reagentes e dos produtos não variam com o tempo, atinge-se o equilíbrio químico; (b) compreender os fatores que afetam o estado de equilíbrio das reações reversíveis e o que ocorre em um sistema em equilíbrio, no nível atômico molecular.

Na execução da aula experimental, os licenciandos contaram com o auxílio da professora regente. De início, eles se apresentaram e fizeram o seguinte questionamento para iniciar uma discussão com os alunos: como o Equilíbrio Químico altera as nossas funções biológicas em altas altitudes? Depois, realizaram o sorteio dos experimentos3 e, em seguida, foram distribuídas nos grupos de alunos funções para cada integrante, baseadas no método Jigsaw: porta-voz (tira dúvidas com o professor), redator (redige as respostas do grupo) e relator (expõe os resultados da discussão) (FATARELI et al., 2010). Concluída a organização da turma, iniciou-se a realização dos experimentos por parte dos alunos. Ocorreram alguns imprevistos que foram resolvidos pelos estagiários e pela professora regente e, após 40 minutos de aula, passou-se para a etapa de apresentação dos resultados por parte dos alunos. Os relatores de cada grupo expuseram os resultados e o que puderam observar e compreender a partir do experimento realizado. A cada apresentação, os licenciandos retomavam as explicações, mencionando as reações e quais fatores afetavam o equilíbrio químico. Por último, foi entregue um questionário aos alunos que deveria ser respondido e devolvido, na próxima aula, à professora da turma.

No que diz respeito ao planejamento e à execução das atividades da dupla D2, o conteúdo abordado relacionava-se com a determinação qualitativa de íons cálcio e ferro em alguns alimentos, e foi planejada para ser realizada em duas aulas de 50 minutos cada. Após todo o processo de planejamento, a dupla D2 chegou a uma versão final de plano de aula e do roteiro experimental, abordando como conteúdo básico o reconhecimento dos íons cálcio e ferro em amostras de leite, delimitando os seguintes objetivos: (a) abordar a relação do leite enriquecido ao combate à desnutrição e à deficiência do íon ferro e (b) permitir ao aluno, por meio da atividade experimental, observar a presença desses íons no leite enriquecido.

A execução da aula experimental teve início com a divisão dos alunos em grupos, nas bancadas, nas quais já estavam os materiais separados para o experimento e o roteiro impresso. Em seguida, a D2 fez uma breve introdução do tema da aula, mencionando a importância do leite. Os estudantes foram questionados sobre como podemos identificar a presença dos íons (Ca+2 e Fe+3) em alguns alimentos, bem como foram discutidas informações contidas nos rótulos dos alimentos.

Os estagiários auxiliaram os alunos durante toda a execução do experimento, principalmente quanto à manipulação e ao uso dos materiais de laboratório, pois estes demonstravam dificuldades em aferir o menisco, usar o pipetador e dobrar um papel-filtro, por exemplo. Depois de 60 minutos de aula, foram explicados os processos de identificação do Ferro e do Cálcio nos alimentos. Por fim, os alunos resolveram um questionário com perguntas referentes à aula experimental.

Apresentação do processo de organização das unidades de análise e interpretação sobre as percepções de cada dupla

A partir das transcrições das entrevistas realizadas nas etapas de planejamento, e após a execução da aula - etapas 1 e 3 - as falas dos estagiários foram fragmentadas e codificadas. Na sequência foram acomodadas em Quadros e analisadas segundo as descrições que caracterizam os setores da Matriz do Professor M(P). Os Quadros foram constituídos por quatro colunas: a primeira contém a pergunta que foi realizada na entrevista; a segunda, as falas dos sujeitos referentes aos questionamentos realizados; a terceira, os setores da M(P) correspondentes à unidade de análise (UA); e na quarta coluna encontram-se as justificativas da alocação nos setores da Matriz, considerando nossas interpretações.

Para exemplificar este movimento analítico, que foi realizado tanto na entrevista da etapa 1 quanto na entrevista da etapa 3, apresentamos o quadro 2. Ressaltamos que tomamos o cuidado de agrupar previamente todas as frases de um mesmo setor para checar a semelhança de sentido e que trazemos apenas um exemplo, devido ao pouco espaço para apresentar todo os demais quadros elaborados.

Quadro 2 Caracterização das frases da entrevista de D1 nos setores da M(P) - Planejamento 

Pergunta Unidade de Análise Matriz Justificativa
1. Como foi o processo de elaborar uma aula de caráter investigativo? [1] Foi difícil porque não é uma temática fácil de elaborar. 1B Sentido atribuído ao conteúdo.
[2] Temos maior dificuldade em pensar o que o aluno pode pensar. 3A Reflexão sobre as relações dos alunos com o conteúdo.
[3] Damos o experimento e pedimos para eles investigar, mas o que eles podem pensar, ficamos pensando também, o que pode sair disso. 3A. Reflexão sobre as relações dos alunos com o conteúdo.
[4] Ficávamos pensando também, o que pode sair disso, será que eles vão conseguir prosseguir, as ideias vão conseguir se encaminhar e vão conseguir pensar e raciocinar, foi a maior dificuldade. 3A Busca por compreender como os alunos aprendem.
[5] Tinha que pensar em algum experimento que entretece, que trouxesse eles para participar da aula e não ser só aquele experimento bobo. 3B Preocupação com o envolvimento dos alunos na atividade.
[6] Ao mesmo tempo gerasse uma discussão, para poder evoluir a aula, a partir disso aí. 3B Preocupação com o envolvimento dos alunos na atividade.
[7] Conciliar os dois, foi o x da questão que tivemos uma certa dificuldade. 2B Autoavaliação do processo de ensino.
[8] Tinha que ser algo bem visual, para causar curiosidade neles. 3C Manutenção de um ambiente propício às interações e à aprendizagem.

Fonte: elaborado pelos autores.

Então, partindo das interpretações realizadas, estabelecemos várias tabelas para determinar a quantidade de frases alocadas em cada setor da M(P). As tabelas agrupam dados referentes às análises completas das entrevistas realizadas com as duplas D1 e D2 para o planejamento e execução das aulas experimentais (TABELAS..., 2021).

De posse das tabelas com as porcentagens de unidades de análise acomodadas em cada setor da M(P), organizamos tais informações em uma única tabela, de modo a interpretar, analisar e tecer comentários sobre as percepções dos licenciandos ao planejar e executar uma aula experimental. Procuramos também comparar as percepções dos estagiários, buscando por aspectos convergentes e divergentes no que diz respeito ao planejamento e à execução das aulas.

Compreensão geral dos resultados

A tabela 1 refere-se ao planejamento e à execução das aulas experimentais das duplas analisadas. Ela mostra a quantidade de fragmentos alocados em cada setor da M(P) para cada dupla, bem como as porcentagens. Analisaremos, primeiramente, a fase do planejamento e, em seguida, a execução das aulas experimentais.

Tabela 1 Tabela geral das percepções do planejamento e execução da aula experimental - D1 e D2 

Todas as falas 1
Aprendizagem docente
segmento P-S
2
Com o ensino
segmento P-E
3
Aprendizagem discente
segmento E-S
Planejamento Execução Planejamento Execução Planejamento Execução
D1 D2 D1 D2 D1 D2 D1 D2 D1 D2 D1 D2
A
Epistêmica
11
6,40%
10
6,90%
03
1,08%
- 55
31,98%
52
35,86%
104
37,28%
32
21,92%
27
15,70%
20
13,79%
25
8,96%
39
26,71%
B
Pessoal
15
8,72%
09
6,21%
06
2,15%
06
4,11%
10
5,81%
14
9,65%
51
18,28%
31
21,23%
19
11,05%
19
13,10%
25
8,96%
20
13,70%
C
Social
03
1,74%
04
2,76%
02
0,72%
- 16
9,30%
12
8,28%
43
15,41%
09
6,16%
16
9,30%
05
3,45%
20
7,17%
09
6,16%

Fonte: elaborado pelos autores.

Ao analisarmos a tabela acima, na fase do planejamento podemos observar que as percepções das duplas foram semelhantes, focadas em uma perspectiva mais epistêmica (linha A, com mais de 50%) e com grande incidência de unidades de análise no segmento da gestão do ensino (coluna 2, totalizando 47% de UA para D1 e 54% para D2), expressando-se, em geral, como realizar, apropriar, adaptar, melhorar, relacionar, compreender, avaliar e refletir sobre o que sabe, valoriza e sente, principalmente em relação ao ensino que praticam e ao seu desenvolvimento como professor. Também vemos incidência de falas em todos os setores da Matriz e com destaque em 2A, 3A e 3B, envolvendo a relação epistêmica com o ensinar e aprender, e pessoal com o aprender.

Em concordância, algumas outras pesquisas como as de Arruda, Lima e Passos (2011), Largo (2013), Passos, Maistro e Arruda (2016), também observaram que os licenciandos ficam mais preocupados com a gestão do ensino, pelo fato de eles estarem em desenvolvimento e aperfeiçoamento de seus saberes para o exercício da docência, o que justifica a linha A, coluna 2, e o setor 2A, com maior incidência de frases (mais de 30% para as duplas).

Acreditamos que isto se deu devido à ação planejar ou seja, elaborar um plano para alcançar o objetivo de desenvolver uma aula experimental investigativa, de acordo com o contexto da escola e do Estágio Supervisionado, seguindo as orientações da disciplina, da orientadora e do professor regente da escola. O planejamento requer organização, estruturação e preparo, sendo um processo mental que supõe três etapas: análise, reflexão e previsão, as quais têm como função prever ações, racionalizar o tempo e o meio, fugir do improviso e da rotina, assegurar unidade, coerência, continuidade e dar sentido ao trabalho (HAYDT, 2006).

Ao considerarmos o planejamento como um ato de prever as situações do professor em sala de aula, programar atividades, pesquisar, refletir e avaliar, justificamos o fato da incidência de tais setores, já que o planejamento de aula é uma das etapas mais importantes do ensino (setor 2A), por meio do qual o professor busca diferentes formas para direcionar os alunos no desenvolvimento de competências, habilidades e valores (Setores 3A e 3B).

Assim, em alguns momentos as duplas relataram as dificuldades que tiveram ao elaborar os planos de aulas e os roteiros experimentais, por ser a primeira vez que realizavam o planejamento de uma aula experimental, apresentando dificuldades em problematizar o conteúdo, encontrar experimentos que fossem interessantes e que provocassem a curiosidade nos alunos e estruturar a aula em uma perspectiva investigativa.

Podemos verificar tais dificuldades nas versões do plano de aula e dos roteiros experimentais, que apresentam grande diferença entre a primeira versão realizada pelos licenciandos e a versão final, sendo que o plano de aula é o resultado do processo mental do planejamento.

Consideramos habitual, na fase do planejamento, uma maior preocupação com aspectos relacionados ao ensino (coluna 2) ou com o conteúdo (coluna 1), entretanto, observamos que as duplas também pensaram na aprendizagem dos estudantes (coluna 3), no sentido de gerenciar e intervir para promover o conhecimento, envolvimento, motivação e reflexões com o conteúdo, por meio das aulas experimentais. Contudo, a maior incidência de frases ainda recaiu na coluna 2, e com menor porcentagem na coluna 1, no que diz respeito ao conteúdo, o que mostra que essa não foi a maior preocupação das duplas.

De modo geral, na fase do planejamento observamos certa semelhança na distribuição das UA das duplas, fato que pode ter relação com as orientações fornecidas pela professora de Estágio, uma vez que o planejamento das aulas foi construído em conjunto, possibilitando aos licenciandos que pensassem em todos os setores da Matriz (P). Como já dito, eles estão em processo de desenvolvimento dos saberes e o auxílio do professor formador, neste momento, foi vital ao estimular que refletissem acerca da sua formação e da atividade docente.

Ao se referir à formação inicial de professores de Química, Santos et al. (2006, p. 29) relatam que ao aproximar o futuro professor daqueles que já atuam no Ensino de Química, "[...] permite-nos esperar sempre uma melhor formação do professor de Química".

Assim, por meio das orientações e apontamentos que questionavam o fazer e o conhecer, a problematização das ações, o conhecimento teórico, valores e atitudes que os levaram ao entendimento dos diferentes tipos de conhecimentos que envolvem a docência, os licenciandos chegaram a uma última versão do plano de aula e dos roteiros experimentais, como relatado.

[161] O plano de aula e roteiro foi melhorado, as correções realizadas foram todas compatíveis com o que precisava ser feito, tivemos muita confusão na hora de escrever. [591] tivemos dificuldade em elaborar um plano de aula, porque você tem que ter uma ideia, ir montando, testando até conseguir ter uma estrutura legal da aula.

Por isso, muitos dos relatos mencionam como pensaram em planejar a aula experimental mediante as indicações do professor da escola e da orientadora do estágio no que diz respeito aos conteúdos, ao ensino e à aprendizagem, dando maior ênfase nas gestões do ensino e da aprendizagem dos alunos. Relatos como: [26] O tema da aula foi ideia da professora da escola porque tinha um texto no livro didático que ela utilizava. [477] Porque foi assim que a professora orientadora sugeriu. [602] Pensamos nessa atividade experimental com a ajuda da professora orientadora.

Fica evidente a importância de aprender em um ambiente de colaboração e interação social, pois é desse modo que comungamos experiências e que se tem uma compreensão compartilhada sobre as tarefas profissionais e meios para melhorá-las, em busca de ações educativas significativas (IMBERNÓN, 2000).

Quanto à expressiva porcentagem de unidades de análise no segmento ensino e em especial no setor 2A (mais de 30%), podemos dizer que os licenciados estavam preocupados com sua atuação docente, uma vez que para a maioria deles foi a primeira vez que elaboraram e ministraram uma aula no contexto escolar. Eles mencionaram que suas dificuldades estavam centradas em estruturar a aula a partir de uma perspectiva investigativa, articulando conteúdo e contexto. Para Fuller (1969 apud BEJARANO; CARVALHO, 2013, p. 3), tal situação caracteriza-se como uma fase de preocupação centrada no professor, preocupações consigo mesmo e com o ensino, devido aos primeiros contatos com a prática docente.

Na fase da execução, evidenciamos, de modo geral, que as percepções ainda se apresentaram relacionadas a uma linha epistêmica (totalizando 47% UA para D1e 49% para D2) com o conteúdo, com o ensino e com a aprendizagem dos alunos, mas com alguns segmentos diferentes.

A dupla D1 aparece com incidências de falas em todos os setores, centrando seus picos na coluna do ensino (com 71%), 2A, 2B e 2C; já a dupla D2 apresenta picos nos setores 3A, 2A e 2B, sem incidências de frases em alguns setores. Isto pode ser explicado pelas dificuldades inerentes a cada dupla, que surgiram em contato com o contexto da sala de aula/laboratório, interferindo na atuação como professores.

A dupla D1, ao executar a aula experimental, enfrentou algumas dificuldades em relação à gestão do ensino, pois aconteceram imprevistos durante a aula: os experimentos não deram certo, os alunos estarem agrupados de forma diferente da que haviam planejado, a execução do método Jigsaw não ocorrer como estruturado: [417] Sim, no caso dos experimentos que tínhamos planejado, chegou na aula não deu certo. [418] Outra coisa foi a divisão da aula, tínhamos planejado uma maneira de realizá-la.

Tais fatores, a nosso ver, justificam a grande porcentagem (71%) de falas na coluna do ensino, incidindo principalmente no setor 2A (relação epistêmica com o ensino (com 37%); uma vez que no decorrer da aula tiveram que tomar novas decisões, realizar novos planejamentos frente aos acontecimentos, como afirma Libâneo (1994, p. 225): "[...] o planejamento não assegura, por si só, o andamento do processo de ensino".

Deste modo, a dupla D1, ao assistir à execução da aula, expressa suas percepções sobre a atividade docente, a formação do professor e sobre o seu próprio desenvolvimento; também se autoavaliou, falando sobre suas dificuldades e inseguranças produzidas em decorrência da execução da aula experimental e da interação com os alunos.

Desta maneira, dentre todos os saberes necessários para a prática de ensino do professor, o momento da reflexão sobre sua prática é, sem dúvida, um aspecto crucial para a construção da sua identidade e seu desenvolvimento profissional, pois permite consolidar e reorganizar sua atuação em sala e também refletir sobre novas maneiras de compreender, agir, pensar e buscar soluções para sua prática (ALARCÃO, 2003).

Tais visões podem ser observadas em falas como:

[377] Faltou um fechamento melhor entre o problema da aula, o experimento e o conceito de Equilíbrio Químico. [379] Ficou vago e muito atrapalhado a atividade experimental. [381] Não estávamos preparados para esse acontecimento [experimentos não darem certo]. [398] Também a atividade experimental é mais difícil do que uma aula teórica. [440] Em outra oportunidade, não trabalharíamos os 4 experimentos de uma só vez, ficaríamos com dois, apenas.

Com relação à dupla D2, observamos nas porcentagens das percepções da execução um segmento diferente: o setor 3A (com 27% de UA) e uma maior incidência de falas na coluna da aprendizagem (coluna 3,47%) e, consequentemente, uma diminuição de falas acomodadas na coluna do conteúdo, apresentando falas apenas no setor 1B (relação pessoal com o conteúdo), não evidenciando frases que se encaixaram nos setores 1A e 1C. Deste modo, as colunas 2 (com 49%) e 3 (com 47%) aparecem quase que equivalentes na M(P) da execução da dupla D2.

As UA do setor 3A, da dupla D2, dizem respeito às relações epistêmicas que o professor estabelece com a aprendizagem dos alunos e podem ser explicadas a partir da interação que a dupla teve com os alunos, pois ao realizarem os experimentos, perceberam as dificuldades que eles apresentaram em executar os procedimentos experimentais, pois acreditavam que os alunos do Ensino Técnico em Química saberiam manipular os materiais e reagentes do laboratório.

Então, frente às dificuldades que os alunos apresentaram em relação aos procedimentos, a dupla D2 centrou suas preocupações em relações epistêmicas com a aprendizagem, falando sobre suas percepções e reflexões sobre as relações dos alunos com o conteúdo e com os experimentos e suas dificuldades de aprendizagem. Relataram que tiveram que focar em auxiliar os alunos na realização dos experimentos, ensinando-os a manusear os materiais e a manipular os reagentes e vidrarias na capela. Alguns relatos: [649] Eles tinham dificuldade para tudo. [699] Então tivemos que focar nessa parte [auxiliar os alunos na capela], teve até uma hora que eu tive que assumir para fazer andar o experimento porque não ia dar tempo. [742] Percebemos em algumas outras aulas de laboratório que eles não preparavam as soluções.

A grande incidência de frases da dupla D2, na coluna 3, aproxima-se dos resultados encontrados por Arruda, Passos e Elias (2017) e de Passos, Passos e Arruda (2017), quando ficou claro que os professores em serviço possuem mais experiência e segurança referentes à sua prática, o que possibilita que eles se preocupem com o ensino e com a aprendizagem dos estudantes.

Assim, acreditamos que a preocupação com a aprendizagem se deu pelo fato da segurança que sentiram em relação à estruturação do planejamento da aula experimental, que elaboraram com o auxílio da professora orientadora, pois foi a primeira aula experimental executada pela dupla:

[676] Acho que a gente teve o resultado que queríamos que era surpreender os alunos [com a problematização]. [686] Eu gostei, porque eu tinha bastante medo no começo de dar aula, achava que não daria conta, mas me surpreendi. [689] Foi uma aula que a gente se preparou muito. [692] Esse experimento foi muito bem elaborado e testado.

Identificamos, nas falas dos licenciandos, que houve uma transição da fase de preocupação centralizada no ensino para a aprendizagem dos alunos, que segundo Fuller (1969 apud BEJARANO; CARVALHO, 2003, p. 3) seria o terceiro grau de desenvolvimento profissional.

Nesta etapa de execução, ficou evidente que o contexto vivenciado na escola, frente à interação com os alunos e os experimentos influenciou as percepções das duplas, apresentando certas diferenças entre elas. Também, ao colocarmos os licenciandos para se sentirem atuando como docentes, podemos tê-los instigados a apresentarem mais falas de reflexões e autoavaliação, o que pode justificar a incidência de falas na coluna 2, segmento ensino.

Segundo Bejarano e Carvalho (2003), os licenciandos que estão iniciando a prática profissional como professores desenvolvem conflitos em suas primeiras experiências ao ensinar e tais conflitos podem ter origens multicausais devido à complexidade da atividade de ensino. Assim, os conflitos podem surgir de diversas fontes, pois, segundo Beach e Pearson (1998 apud BEJARANO; CARVALHO, 2003), a inexperiência faz com que os problemas sejam encarados de forma pessoal, o que leva alguns a simplesmente evitá-los ou ignorá-los, ou a assumirem que os mesmos existem, mas buscando rápidas soluções de modo a abrandar o conflito, sem modificar suas crenças sobre o ensino e a aprendizagem, ou a lidar com os conflitos de modo a reexaminar suas crenças pessoais, levando a mudanças em suas ações.

Deste modo, diante dos conflitos vemos aspectos em relação à aprendizagem que aparecem de forma secundária entre as percepções das duplas, principalmente pensando no gerenciamento da relação dos alunos com o conteúdo e das atividades da aula no envolvimento, motivação e interesse dos alunos, e na busca em compreender a aprendizagem. Tal fato revela a pouca experiência em sala de aula das duplas e as dificuldades em dividirem seu tempo entre o planejamento, a realização e a avaliação da aprendizagem dos alunos e do ensino, demostrando preocupações corriqueiras entre professores novatos, as chamadas preocupações consigo mesmo, atreladas às preocupações com o desenvolvimento dos alunos (FULLER, 1969 apud BEJARANO; CARVALHO, 2003, p. 3).

Segundo Beach e Pearson (1998 apud BEJARANO; CARVALHO, 2003, p. 4), conforme os futuros professores intensificam suas experiências, seus níveis de estratégias para enfrentar os conflitos que surgiram vão aumentando. Ao alcançarem o nível III, eles se tornam mais abertos a autoanalisar suas crenças, percepções, teorias e ações, levando a uma maior reflexão sobre sua prática e ao sentimento de mudança, o que pode ser visto pela vivência apresentada neste estudo em que mesmo sendo a primeira vez que elaboraram e ministraram uma aula no contexto escolar, as duplas apresentaram tal nível de estratégia, levando a incidências de falas nos setores 2A, 2B e até 3A ao serem analisadas suas ações, mostrando aquisição de experiência e a consideração de mudanças, em razão dos conflitos vividos.

De modo geral, é possível observar que as relações com o conteúdo não foram uma preocupação fulcral para as duplas tanto no planejar quanto na execução das aulas, pois poucos comentários foram feitos a esse respeito, porque em geral ambos os licenciandos possuíam certo domínio dos conteúdos a serem abordados, não sendo esse um grande problema para eles, e sim como conduzir o ensino e gerenciar a aprendizagem.

Considerações finais

A fim de compreendermos as percepções acerca do planejamento e execução de aulas experimentais, acompanhamos duas duplas de licenciandos em Química na elaboração e execução de aulas experimentais investigativas no estágio supervisionado, pautadas no instrumento Matriz do Professor M(P).

Nossa intenção, neste estudo, foi investigar as reflexões e percepções dos licenciados sobre o momento do planejamento e execução de uma aula de caráter experimental, como uma possível forma de tentarmos compreender a prática de futuros professores.

Considerando como instrumento analítico a Matriz do Professor, constatamos incidências de unidades de análise em todas as colunas (1, 2 e 3) que relacionam o conteúdo, o ensino e a aprendizagem, e nas linhas (A, B e C) referentes às dimensões epistêmicas, pessoais e sociais com o saber, com exceção da fase de execução de D2.

De um modo geral, observamos que as ações dos licenciandos tanto no processo de planejamento quanto de execução foram afetadas pelas relações, seja com o professor formador, com o contexto escolar e/ou com a atividade experimental. Assim, o conteúdo de Química não foi o foco das preocupações e a aprendizagem dos estudantes aparece de forma secundária.

Vale ressaltar que a experiência aqui relatada foi importante para o processo formativo dos licenciandos, ficando perceptível em suas falas o aperfeiçoamento e a mobilização de saberes docentes por meio das trocas sociais, além de proporcionar validação, legitimação e novos conhecimentos sobre a experimentação no Ensino de Química, levando-os a refletirem que ensinar não envolve apenas saber o conteúdo químico. A partir de tal evidência, fica claro que a ação do professor é uma atividade social permeada pelas relações com o saber que são desenvolvidas em sala de aula, visando ao ensinar e ao aprender (ARRUDA; LIMA; PASSOS, 2011).

Seguramente, o Estágio Supervisionado é um importante componente curricular para a formação inicial de professores, pois nele o licenciando tem a oportunidade de relacionar a teoria com a prática, desenvolver habilidades e competências e adquirir saberes experienciais, que são o alicerce da prática docente e possibilitam a produção de sua própria prática profissional (TARDIF, 2002), além de propiciar o estabelecimento de relações sociais, epistêmicas e pessoais com o saber, o ensinar e o aprender.

Acreditamos no potencial desenvolvimento profissional docente possibilitado pelos Estágios Supervisionados, numa relação direta entre os professores formadores, licenciandos e professores da escola, conforme relatado no contexto desta pesquisa, pois este espaço formativo auxilia o futuro professor a não decidir sozinho os encaminhamentos de suas aulas, a interpretar e dar sentido aos dilemas do dia a dia da escola e a estimular a aquisição, o aperfeiçoamento e a mobilização de saberes docentes por meio das trocas sociais com outros professores. Esta relação pode ser permeada pelo instrumento analítico a Matriz do Professor, auxiliando na estruturação das ações dos professores e futuros professores, pois permite pensarmos em todas as dimensões didático-pedagógicas.

Assim, no que diz respeito à experimentação, finalizamos pontuando que a característica e formato das atividades experimentais foram fundamentais para a presença de excertos em todas as células da matriz, atribuindo ainda mais importância às potencialidades dessa abordagem para a formação inicial e continuada de professores de Química. Nessa visão, defende-se a atividade experimental como um conteúdo que necessita estar presente na formação dos docentes, de modo a “[...] discutir a experimentação como artefato pedagógico em cursos de Química” (GALIAZZI; GONÇALVES, 2004, p. 326).

Deste modo, compartilhamos da compreensão de Gonçalves (2005, p. 37) de que "[...] precisamos reconhecer as visões discentes sobre ensino, aprendizagem e natureza da ciência e que influenciam na maneira como se aprende", por meio de uma educação pela pesquisa.

1A escolha por este campo de pesquisa se deu pela forma como a disciplina está organizada, com atividades que privilegiam o uso de atividades experimentais de caráter investigativo e pelo fácil contato com a professora da disciplina, também docente e orientadora no Programa de Pós-Graduação, com larga experiência na disciplina de estágio, que permitiu a realização da coleta de dados em suas aulas.

2

A dupla D1 apresentou certa experiência em ministrar aulas, pois participou do Programa Institucional de Bolsa de

Iniciação à Docência (PIBID) ao longo de três anos. Já a D2 nunca havia ministrado aulas, sendo o Estágio de regência a primeira experiência na docência.

3

Os experimentos realizados pelos grupos foram: Garrafa Azul, Cobre e Ácido Nítrico (HNO3), Sangue do Diabo e Sopro

Mágico. No total havia oito grupos, sendo que os experimentos foram repetidos a cada dois grupos.

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Recebido: 11 de Abril de 2021; Aceito: 04 de Novembro de 2021

Autora Correspondente: andrielecoraiola@gmail.com

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