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Ciência & Educação

versión impresa ISSN 1516-7313versión On-line ISSN 1980-850X

Ciência educ. vol.28  Bauru  2022  Epub 15-Sep-2022

https://doi.org/10.1590/1516-731320220032 

Artigo Original

A presença do contexto histórico sobre o entendimento do DNA como material hereditário nos livros didáticos de Biologia sob a ótica da epistemologia fleckiana

The role of historical context in understanding DNA as hereditary material in Biology textbooks, using Fleck’s epistemology

Vanessa Rezende Bevilaqua1 
http://orcid.org/0000-0002-7013-0463

Fernando Faria Franco2 
http://orcid.org/0000-0001-9597-5713

Antônio Fernando Gouvêa Silva3 
http://orcid.org/0000-0002-8915-9952

1Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), Faculdade de C. Médicas e da Saúde, Sorocaba, SP, Brasil

2Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Departamento de Biologia, Sorocaba, SP, Brasil

2Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Depto. de Ciências Humanas e Educação, Sorocaba, SP, Brasil


Resumo

Neste trabalho realizamos uma análise documental em livros didáticos usados no ensino médio brasileiro para avaliar como é apresentado o contexto histórico sobre a descrição da transformação bacteriana, que consiste em um episódio histórico importante para o reconhecimento do DNA como molécula hereditária. Além disso, utilizamos a epistemologia de Ludwik Fleck (1896-1961) para análise dessa contextualização. Apenas quatro dentre os dez livros analisados apresentaram o episódio de transformação bacteriana. Com relação à análise epistemológica, detectamos que a contextualização histórica apresentada nesses quatro livros algumas vezes está descrita de forma descontextualizada e linear, impossibilitando o aluno vislumbrar a ciência como uma produção humana e coletiva, bem como os aspectos sociais que caracterizam a forma de produção do conhecimento científico segundo o pensamento de Fleck, tais como: estilos de pensamento, circulação de ideias, complicações, transformações, e coerção do pensamento hegemônico da área.

Palavras-chave Ensino de biologia; Livro didático; Transformação bacteriana; Filosofia da ciência; Ludwik Fleck

Abstract

In this paper we analyze a set of textbooks used in Brazilian high school to evaluate how the historical context is presented when it comes to bacterial transformation, which is an important historical episode for DNA recognition as a hereditary molecule. In addition, we used the epistemology of Ludwik Fleck (1896-1961) to further analyze this historical context. Only four of the ten books presented the episode of bacterial transformation. As we turn to the epistemological analysis, we found that historical contextualization presented in these four books is sometimes described in a decontextualized and linear way, making it impossible for the student to assimilate not only science as a human and collective production, but the social aspects involved in producing scientific knowledge according to Fleck’s writings: thought style, exchange of ideas, complications and transformations, as well as coercion in terms of hegemonic thought in the area.

Keywords Biology teaching; Textbooks; Bacterial transformation; Philosophy of science; Ludwik Fleck

Introdução

Na Filosofia da Ciência, a incorporação do contexto histórico na teoria do conhecimento permitiu reconhecer a origem dos problemas investigados, bem como entender como os enunciados científicos são debatidos no contexto de diferentes estilos de pensamentos (FLECK, 2010). Nesse sentido, uma análise epistemológica de recortes históricos relacionados à proposição de enunciados científicos pode contribuir para o entendimento da gênese dos conceitos propostos. Dessa forma, a inserção da História e da Filosofia da Ciência no ensino tem sido defendida na literatura (CARNEIRO; GASTAL, 2005; CICILLINI, 1992; SANTOS; SILVA; FRANCO, 2015). De maneira geral, entende-se que essa abordagem permite descaracterizar a impressão arraigada de que o conhecimento científico é cumulativo, linear, individualista e socialmente neutro (DELIZOICOV; CARNEIRO; DELIZOICOV, 2004).

Uma forma de entender aspectos da produção e desenvolvimento do conhecimento científico é através da teoria de conhecimento de Ludwik Fleck (1896-1961), médico e pesquisador polonês, que procurou compreender a prática científica a partir de sua sociogênese. Para Fleck, só é possível compreender o desenvolvimento do conhecimento científico a partir de um “coletivo de pensamento” em determinado contexto histórico, social e cultural em que foi produzido (SCHÄFER; SCHNELLE, 2010). Recentemente, esses conceitos têm sido usados para investigar episódios relacionados à construção do conhecimento em Biologia (DELIZOICOV; CARNEIRO; DELIZOICOV, 2004), incluindo a disciplina Genética (LEITE; FERRARI; DELIZOICOV, 2001; SCHEID; FERRARI; DELIZOICOV, 2005).

Até o final do século XIX, diante da dificuldade de explicar sua atuação como uma mistura de cristalógrafo, biofísico, bioquímico e geneticista por Francis Crick, este cientista adotara o termo cunhado em 1938 por Warren Weaver (Fundação Rockfeller), evidenciando que as áreas da ciência que deram origem à Biologia Molecular progrediam de forma independente. De forma geral, duas escolas preponderantes de biólogos moleculares coexistiam, sendo elas reconhecidas atualmente como: (1) os "informacionistas", interessados em compreender o fluxo de informações do material genético para os processos fisiológicos e; (2) os "estruturistas", preocupados em entender a estruturas das moléculas e suas interações (MENEGHINI, 1993). Embora o conhecimento produzido pelos pesquisadores dessas diferentes linhas fosse correlacionado, não havia troca de informação substancial entre essas escolas, de modo que estudos de fisiologia celular eram conduzidos de forma independente daqueles interessados com o papel de partículas moleculares na hereditariedade.

No século XX, diversos estudos viriam a conciliar essas ideias, com troca de informações entre as diferentes áreas, culminando no estabelecimento da Biologia Molecular. Dentro desse contexto histórico, destaca-se a caracterização da “transformação bacteriana” (AVERY; MACLEOD; MCCARTY, 1944; GRIFFITH, 1928), consistindo em um episódio importante na trajetória de identificação do DNA como material hereditário. De forma geral, Griffith (1928) observou que linhagens atenuadas e não virulentas de bactérias pneumococos se convertiam em linhagens virulentas, dadas determinadas condições experimentais. Esses resultados fomentaram uma série de estudos que culminaram na

identificação da natureza do princípio transformante (o DNA) em 1944 (AVERY; MACLEOD; MCCARTY, 1944). Isso, por sua vez, influenciou diversos outros estudos que levariam à elucidação do DNA como molécula hereditária fundamental.

A pergunta investigativa desse trabalho é: em que medida a compreensão histórica da construção do conhecimento sobre a transformação bacteriana, sob a luz de Fleck, tem sido incorporada nos livros didáticos de Biologia? Para tanto, realizamos uma análise epistemológica sobre a conceituação da transformação bacteriana, bem como a descrição do princípio transformante. Salientamos a importância de Fleck (2010) e as contribuições de Batisteti, Araújo e Caluzi (2008, 2010), Rosa e Silva (2010) e Scheid, Ferrari e Delizoicov (2005) como referenciais teóricos na fundamentação do presente trabalho para a análise qualitativa dos livros didáticos selecionados.

A história e filosofia da ciência no ensino de ciências e biologia: contribuições epistemológicas a partir de Fleck

No Brasil, uma preocupação com a contextualização histórica dos conteúdos foi acentuada com a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) de orientações a respeito da História da Ciência no Ensino Fundamental e Médio (CARNEIRO; GASTAL, 2005; OKI; MORADILLO, 2008). Também na Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018), no tópico que apresenta as competências e habilidades para as Ciências da Natureza e suas Tecnologias para o Ensino Médio, destaca-se a relevância de se abordar os avanços e os limites da produção do conhecimento científico, bem como, explicita na competência 2, a necessidade de se contemplar a história e a filosofia da ciência no processo de ensino-aprendizagem quando são abordadas e analisadas as interpretações científicas nos diferentes campos de investigação da área de Ciências da Natureza.

Matthews (1995) observa que estudantes sem contato com a história da ciência estão propensos a entenderem a ciência como um produto acabado e não sujeita a mudanças, ao passo que o contato com o contexto histórico permite ao aluno perceber a dinâmica de produção do conhecimento científico. Sendo assim, a abordagem histórica no ensino de ciências permite perceber como os estudos foram debatidos no passado, apontando tanto os limites conceituais dos pesquisadores envolvidos, como as limitações metodológicas (CARNEIRO; GASTAL, 2005). Essa abordagem permite humanizar a imagem do cientista, muitas vezes extrapolado como uma figura excêntrica dentro da visão de senso comum (MARTINS, 1998). Diante de tantas possibilidades, a inclusão do contexto histórico no ensino tem sido defendida de forma recorrente na literatura, por permitir ao discente vislumbrar a gênese de produção do conhecimento, podendo desenvolver criticidade sobre a temática (CICILLINI, 1992; SANTOS; SILVA; FRANCO, 2015). Para tanto, é preciso ressaltar que a história da ciência não deve ser incluída como uma sequência linear de datas e nomes (MARTINS, 1998). Além disso, deve haver investimento na formação inicial e continuada de professores para que estes estejam aptos a realizar essa abordagem de forma efetiva, com materiais curriculares que os auxiliem trabalhar (CARNEIRO; GASTAL, 2005). De fato, nos materiais didáticos disponíveis aos professores, muitas vezes o conteúdo está apresentado de forma fragmentada e não contextualizado historicamente (SANTOS; SILVA; FRANCO, 2015) ou apresentam limites conceituais devido às omissões e/ou a perda de qualidade decorrentes da simplificação do histórico apresentado (MATTHEWS, 1995).

Portanto, unicamente a presença de História da Ciência no ensino não significa efetividade no processo de ensino-aprendizagem ou no desenvolvimento de pensamento crítico. Nesse sentido, Carneiro e Gastal (2005) defendem que a abordagem histórica no ensino deveria se pautar em rupturas epistemológicas. Contudo, a formação tecnicista baseada em uma orientação pedagógica positivista presente na formação da maioria dos professores de Ciências Biológicas pode comprometer a função problematizadora da história e filosofia da ciência. Dessa forma, a reflexão epistemológica sobre episódios históricos pode contribuir para subsidiar essa problematização (SCHEID; FERRARI; DELIZOICOV, 2005).

Nos últimos anos, o pensamento de Fleck tem se consolidado como uma referência epistemológica para a pesquisa sobre a abordagem da história e filosofia da ciência no ensino de ciências no Brasil, sobretudo por explicar o caráter sociológico da produção e a disseminação do conhecimento, estabelece melhor a relação entre teoria e prática na formação de professores e desenvolve alternativas para a inserção da história da ciência nos currículos escolares, entre outros (LORENZETTI; MUENCHEN; SLONGO, 2016). No livro Gênese e desenvolvimento de um fato científico (FLECK, 2010) podemos encontrar a compreensão sociológica que o autor possui da epistemologia que fundamenta a criação, o desenvolvimento, a disseminação e as transformações históricas que ocorrem na produção do conhecimento científico. Passemos a uma breve descrição das articulações entre os diferentes aspectos constituintes envolvidos na dinâmica de se fazer ciência.

A comunidade científica de uma determinada área do conhecimento pode ser entendida como um coletivo de pensamento que possui um interesse comum na investigação de determinada problemática específica, sendo a produção científica sempre social e não individual. Este coletivo é formado por um grupo central proponente das ideias que fundamentam as pesquisas - denominado por Fleck de esotérico - e por um grupo de indivíduos maior que são aprendizes das ideias desenvolvidas - grupo exotérico. Ao realizarem suas investigações, o coletivo produz determinadas formas de pensar sobre os fatos estudados, estilos de pensamento próprios do coletivo sociocultural e historicamente demarcado (FLECK, 2010).

Para Fleck (2010), todo estilo de pensamento tem sua origem em concepções e conceitos anteriores, historicamente condicionados. São as concepções passadas, protoideias, que se apresentam como base para o desenvolvimento de novos estilos de pensamento. Outro aspecto constituinte do processo de construção de um estilo de pensamento para o autor é a circulação (tráfego) de ideias. Essa circulação ocorre tanto de forma intracoletiva - envolvendo os círculos esotéricos e exotéricos de um mesmo coletivo -, quanto intercoletiva - quando se dá entre comunidade que possuem diferentes estilos de pensamento. A primeira baseia-se na divulgação dos conhecimentos produzidas pelo círculo esotérico de especialistas em busca do convencimento e reforçando as conexões internas entre os membros de um coletivo de pensamento. Tais conexões são consideradas ativas quando o círculo de especialistas busca influenciar, ou mesmo coagir, os outros membros no sentido de consolidar interpretações do real investigado, no estilo de pensamento compartilhado. A aceitação consensual desse estilo de pensamento pelos outros participantes é denominada de conexão passiva. Para Delizoicov, Carneiro e Delizoicov (2004), corresponde a uma formação interna dos

pares que compartilham um mesmo estilo de pensamento. Quando a capacidade coercitiva de um estilo se impõe ao coletivo, Fleck (2010) vai caracterizar como a tentativa de se manter a harmonia de ilusões.

A circulação intercoletiva de ideias envolve diferentes coletivos de pensamento e pode contribuir para a divulgação, popularização e vulgarização de um estilo de pensamento para outros coletivos (DELIZOICOV; CARNEIRO; DELIZOICOV, 2004). Fleck (2010) ressalta que quanto maior a diferença nos estilos de pensamento, menor será a circulação intercoletiva de ideias. Para o autor, a circulação intercoletiva pode causar complicações a um determinado estilo de pensamento, levando-o a transformações (mutações) conceituais que proporcionam a construção de novos conhecimentos, alterando, significativamente, as concepções de um coletivo de pensamento. Daí as modificações que os estilos de pensamento sofrem ao longo do tempo em função das influências socioculturais do seu contexto de produção. Portanto, a superação da harmonia de ilusões é fundamental para que renovações ou transformações ocorram nos estilos de pensamento em função de crise por acúmulo de anomalias à racionalidade do estilo vigente (FLECK, 2010).

Para a disseminação de ideias, tanto a circulação intracoletiva, quanto a intercoletiva utilizam-se de diferentes meios de comunicação. A primeira se dá a partir da ciência de periódicos, anais de congressos, revistas científicas e manuais formativos especializados para iniciados e aprendizes, produzidos pelo círculo esotérico. Já a circulação intercoletiva tem a perspectiva voltada ao círculo exotérico, está presente tanto em livros didáticos, quanto na ciência popular e pode, por exemplo, fazer uso de obras introdutórias da ciência destinados ao ambiente escolar, de obras de divulgação científica que atingem um público mais amplo, sempre procurando promover o fluxo de ideias, aspectos gerais de um estilo de pensamento. Entretanto, Fleck (2010, p. 166) destaca:

Ciência Popular, no sentido estrito, e ciência para não especialistas, ou seja, para círculos amplos de leigos adultos com formação geral. Por isso, não deve ser vista como ciência introdutória, sendo que, normalmente, não é um livro popular, mas um livro didático que cuida da introdução.

Melzer (2011) apresenta uma sistematização esclarecedora sobre concepção de ciência popular fleckiana. Para o autor:

[...] Fleck faz a distinção entre o que é veiculado da ciência pela sociedade, e ao mesmo tempo faz a distinção entre material de mera divulgação científica e material de iniciação ao estudo da ciência que é dado pelo livro didático, através de uma transformação do conteúdo da Ciência Especializada. [...] A Ciência Popular é aquela que é diariamente veiculada pela mídia, altamente ilustrativa, evidenciando os resultados, os produtos e escondendo o método de obtenção dos mesmos. Essa categoria de Ciência Popular exerce uma forte influência sobre a população que é leiga, que desconhece os métodos e as formas de obtenção desse produto final apresentado. (MELZER, 2011, p. 6.784).

No âmbito educacional da formação docente, Lorenzetti, Muenchen e Slongo (2016) destacam a relevância do referencial fleckiano para se contemplar a história e filosofia da ciência no contexto da formação de professores. Em relação às contribuições de Fleck para a sistematização de materiais pedagógicos de apoio, como se caracterizam os livros didáticos, podemos salientar que se trata de um texto de introdução à ciência e,

portanto, deve possuir um comprometimento diferente daqueles dedicados à divulgação no contexto da ciência popular. Sendo assim, a sociogênese dos processos de produção do conhecimento especializado das diferentes áreas da ciência precisa ser contemplada (FLECK, 2010).

Para tanto, podemos inferir que um material didático não deve pretender, exclusivamente, garantir o acesso a produtos da construção científica, mas também propiciar a compreensão dos aspectos socioculturais e históricos que condicionaram os seus processos de produção, ou seja, o contexto da sociogênese da ciência. Portanto, a delimitação espaço-temporal dos coletivos de pensamento e as influências sofridas para a construção de um determinado estilo de pensamento precisam ser, necessariamente, contempladas. Caso contrário, corremos o risco de não possibilitar as dimensões efetivas que interferem e contribuem para o desenvolvimento científico. Esse posicionamento didático-pedagógico demanda resgatar a circulação intra e intercoletiva de ideias - entre círculos eso e exotéricos - que influenciaram as complementações, ampliações e transformações históricas das teorias científicas. Explicitar protoideias e complicações para a construção histórica de um estilo de pensamento são exigências para a apreensão da gênese concreta do conhecimento científico; compreender o que é ciência passa pelo acesso a uma história e filosofia da ciência rigorosa.

Contexto histórico sobre a conceituação da transformação bacteriana: uma síntese à luz da epistemologia fleckiana

O entendimento do DNA como fonte de informação hereditária pode ser entendido como um trabalho coletivo, com contribuições provindas de diferentes estudos. Dentre esses, destaca-se a contribuição do médico inglês Frederick Griffith (1877-1941) que, entre os anos de 1920 a 1927, dedicou-se a pesquisar bactérias pneumococos (Streptococcus pneumoniae), relacionadas ao desenvolvimento de pneumonia (GRIFFITH, 1928). Este médico trabalhou com diferentes sorotipos dessa bactéria identificados previamente (EICHMANN; KRAUSE, 2013), baseado na composição de mucopolissacarídeos nas paredes celulares. A partir de experimentos in vivo, ele notou e descreveu um fenômeno que denominou de transformação, quando identificou que, sob dadas condições experimentais, bactérias do tipo R (linhagem de aspecto rugoso, sem cápsula e não patogênico) transformavam-se no tipo S (linhagem de aspecto liso, com cápsula e patogênica); ambos termos criados por Arkwright, em 1921, para designar as duas variantes da mesma espécie de bactérias (DAWSON, 1928). Naquele momento, para Griffith, a palavra 'transformação' significava capacidade de alterar a forma, possuindo caráter descritivo. Atualmente, o conceito de transformação bacteriana está associado a incorporação de DNA exógeno ao material genético das células bacterianas, podendo ser passada aos seus descendentes.

Esses resultados fomentaram diversos estudos posteriores como, por exemplo, a repetição com sucesso dos experimentos de transformação bacteriana in vitro (DAWSON; SIA, 1931) e extração do "princípio transformante" em solução (ALLOWAY, 1933). Esses e outros estudos foram fundamentais para a fundamentação teórica e experimental dos trabalhos posteriores de Oswald Theodore Avery e seus colaboradores MacLeod e McCarty (BATISTETI; ARAÚJO; CALUZI, 2008). Brevemente, Avery, Macleod e Mccarty (1944) realizaram experimentos de diversas naturezas, discorrendo sobre o método para o isolamento do princípio transformante. Além disso, eles foram capazes

de refutar a origem proteica ou ribonucleica desse princípio, através de diferentes ensaios com tratamentos enzimáticos. Por outro lado, eles observaram que a atividade transformante era impedida somente nos ensaios contendo despolimerase (enzima atualmente denominada DNAse) para ácido desoxirribonucléico. Também notaram que a despolimerase era inativada em altas temperaturas altas e inibidas pelo fluoreto. Esses fatores forneciam evidências para a crença de que o princípio transformante poderia ser o DNA (AVERY; MACLEOD; MCCARTY, 1944). Uma revisão detalhada dos estudos relacionados ao episódio de transformação bacteriana pode ser encontrada nos trabalhos de Batisteti et al. (2008) e Batisteti, Araújo e Caluzi (2010).

O trabalho de Avery, Macleod e Mccarty (1944) influenciou outros estudos que viriam a contribuir para a identificação do papel central do DNA na hereditariedade. Dentre esses, destacam-se: (1) a observação de que o núcleo de células germinativas continha metade do DNA das células somáticas, em paralelo à redução do número cromossômico na meiose, evidenciando o papel do DNA na herança (LEUCHTENBERGER; VENDRELY; VENDRELY, 1951); (2) a determinação de que o DNA apresentava proporções fixas de Adenina-Timina e Citosina-Guanina (CHARGAFF, 1950); (3) a contraprova de que o DNA seria de fato o material genético pela proposição de que o DNA de fagos virais adentram a célula bacteriana durante a infecção, mas não suas proteínas (HERSHEY; CHASE, 1952); (4) a proposição da forma helicoidal do DNA através do uso de dados de difração de raios X (FRANKLIN; GOSLING, 1953; WILKINS; STOKES; WILSON, 1953); (5) descrição do modelo dupla-hélice do DNA (WATSON; CRICK, 1953). Todos esses estudos culminam na proposição, em 1957, do 'dogma central' da Biologia Molecular: a ideia de que o DNA é transcrito em RNA, que por sua vez é traduzido em proteínas, explicando o fluxo de informações hereditárias (CRICK, 1970).

Novos estudos indicaram alterações nesse enunciado, como, por exemplo, a descrição da transcrição reversa nos retrovírus, o papel catalítico e sinalizador de moléculas de RNA, e o melhor entendimento do funcionamento gênico. No entanto, nenhum desses estudos contestou o papel central do DNA como material hereditário da grande maioria dos organismos vigentes.

Metodologia

Essa pesquisa desenvolveu-se a partir de uma perspectiva qualitativa (CHIZZOTTI, 1995) por meio de análise documental da história da ciência, presente nos livros didáticos, no que se refere à identificação do DNA como material genético, envolvendo o episódio da transformação bacteriana efetuado por Griffith (1928), bem como os trabalhos subsequentes, referentes à mesma temática, realizados por Avery, MacLeod e McCarthy (1944).

Segundo Gomes (1967 apud TANUS; RENAULT; ARAÚJO, 2012, p. 6), por documento compreende-se: "[...] peça escrita ou impressa que oferece prova ou informação sobre um assunto ou matéria qualquer". Infere-se, portanto, que o documento é constituído de materiais físicos que são registrados de algum modo. Chizzotti (1995, p. 109), por sua vez, conceitua documento de uma forma mais ampla: "[...] é qualquer informação sob a forma de textos, imagens, sons, sinais etc., contida em um suporte material (papel, madeira, tecido, pedra), fixados por técnicas especiais como impressão, gravação, pintura, incrustação etc...". Assim sendo, o livro didático é um tipo de documento e pode ser utilizado para se extrair informações.

São variadas as formas de se avaliar um documento e existem muitas técnicas para essas análises; os objetivos de estudo e a escolha do investigador são determinantes nesse processo (CHIZZOTTI, 1995). Levando-se em consideração que a pesquisa qualitativa objetiva a compreensão dos fenômenos que investiga a partir de uma análise criteriosa da informação na análise dos livros didáticos, é fundamental a escolha de categorias para atingir os objetivos (CHIZZOTTI, 2006). As categorias de Fleck abordadas que merecem destaque são: coletivo de pensamento, estilo de pensamento, círculos esotérico e exotérico, circulação de ideias, complicações e transformações. As categorias desse pensador, apresentadas nos outros dois períodos, servem como contextualização de antecedentes e subsequentes ao objeto de estudo destacado.

A escolha dos materiais analisados priorizou livros comumente utilizados pelos professores, bem como aqueles mais difundidos no território brasileiro e de fácil acesso, muitos recomendados, desde 2007, pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLEM) do Ministério da Educação. Incluímos, também, exemplares dos anos 1990 no estudo, para ter uma dimensão de amplitude temporal maior na problemática investigada. No total, foram dez os livros de Ensino Médio analisados, sendo eles: Amabis e Martho (2004, 2006), Favaretto e Mercadante (1999), Fonseca (1992), Laurence (2007), Lopes (2001, 2005), Sadava et al. (2009), Silva Júnior e Sasson (1999) - conhecido pelos docentes como César e Sezar -, Soares (1997). Além disso, para fins comparativos, usamos um livro de ensino superior, Pierce (2011), que busca detalhar o processo histórico que foi tomado como referência para a análise do livro.

Para análise do material didático, foram estabelecidos três parâmetros de investigação: (i) Presença ou ausência do episódio da transformação; (ii) Presença de contextualização histórica; (iii) Presença de inconsistências históricas sob a luz da sociogênese do conhecimento (FLECK, 2010). Com relação à abordagem epistemológica, definimos as categorias de análise fleckianas de acordo com as que identificamos na fundamentação teórica do recorte histórico objeto de análise: desde a publicação de Griffth (1928) até a publicação de Avery, Macleod e Mccarty (1944), estando principalmente contempladas às categorias coletivos de pensamento, estilos de pensamento, circulação de ideias e complicações. Brevemente, para a identificação dessas categorias, definimos três períodos com base no recorte histórico realizado, sendo eles: 1900-1928: da redescoberta dos trabalhos de Mendel até os experimentos de Griffith; 1928-1944: dos experimentos de Griffth até o desenvolvimento dos trabalhos de Avery, MacLeod e McCarthy; 1944-1957: da discussão dos experimentos de Avery, MacLeod e McCarthy até a proposição do dogma central da Biologia Molecular.

Resultados e discussão

Os livros analisados possuem em comum o fato de considerarem as Leis de Mendel e os cálculos de probabilidade, além de apresentar tópicos de composição do núcleo e divisões celulares, nos capítulos de biologia celular. Porém, com relação ao parâmetro seletivo, (i) apenas quatro dentre dez livros analisados apresentaram o episódio de transformação bacteriana, sendo eles: Amabis e Martho (2004), Favaretto e Mercadante (1999), Sadava et al. (2009) e Silva Júnior e Sasson (1999). É importante ressaltar que alguns dos livros possuem uma proposta mais concisa, o que poderia justificar a ausência de uma contextualização histórica aprofundada. Nesses casos consideramos que a história da ciência não deixou de ser negligenciada. Por exemplo, seria suficiente

apresentar apenas a estrutura do modelo de dupla-hélice ao se tratar da molécula de DNA? É provável que não, considerando o histórico bastante interessante desde a descrição da nucleína, em 1860, por Friedrich Meischer, que pode evidenciar o processo de produção do conhecimento científico.

Segundo Martins (1993), umas das possíveis justificativas para se ignorar a História da Ciência é a preocupação em ensinar os conhecimentos atuais e não a forma como eles foram produzidos. Nesse sentido, é possível observar que os livros de Amabis e Martho (2006) e Lopes (2005), que não apresentam o episódio histórico da transformação, separam um capítulo para Biotecnologia onde discorrem sobre enzimas de restrição e clonagem de genes. Se a proposta do livro é atualizar os alunos em relação à tecnologia do DNA recombinante, apresentar o episódio da transformação é relevante, considerado o uso desse conhecimento nessa tecnologia através do uso das chamadas células ‘competentes’, ou seja, aquelas capazes de receber DNA exógeno (serem transformadas).

Com relação aos quatro livros que apresentaram o tema de interesse, Favaretto e Mercadante (1999) abordam o episódio da transformação no subitem síntese de proteínas. Porém, não consideramos a contextualização suficiente para atender nosso parâmetro seletivo (ii). Este livro apresenta o tema dissociado do contexto geral, o que dificulta a interpretação histórica e crítica em nossa avaliação. Brevemente, os autores apresentam a existência de duas formas de pneumococos, comentam sobre o experimento de Avery, MacLeod e McCarthy - conforme citação -, e finalizam com o dogma central da Biologia Molecular.

Em 1944 Avery, Mac Leod e Mc Carty mostraram que uma solução contendo DNA extraído de bactérias capsuladas mortas, misturada com bactérias vivas não capsuladas, também (grifo nosso) provocava a morte de camundongos, que tinham igualmente, em seu sangue, bactérias capsuladas vivas. Assim, o DNA era o ‘fator de transformação’, responsável pela mudança de comportamento das bactérias (FAVARETTO; MERCADANTE, 1999. p. 111).

É possível notar que, ao não mencionarem o trabalho preliminar de Griffith na contextualização histórica, faltam elementos ao leitor para o entendimento a contento do trecho supracitado. Isso fica explicitado pela palavra também, que só pode ser entendida nesse contexto, com o conhecimento do experimento preliminar de Griffith. Para Fleck (2010), a apreensão do processo de produção do conhecimento exige que os conhecimentos anteriormente produzidos (protoideias), as complicações oriundas de circulações de ideias entre estilos de pensamento, e as complicações delas decorrentes, sejam apresentadas, sendo fundamentais para a compreensão histórica da inovação no pensamento científico, considerando a circulação de ideias na ciência popular. Sem mencionar que, com tais dinâmicas, não permitimos que o aprendiz tenha acesso aos procedimentos sociológicos e culturais que são responsáveis pelas transformações que ocorrem nos estilos de pensamento no contexto coletivo da comunidade científica.

Outro aspecto que vale ressaltar na análise de Favaretto e Mercadante (1999) é a alocação do tema de interesse no subitem de síntese proteica, sem a contextualização de que as proteínas foram consideradas por muito tempo as prováveis responsáveis pela hereditariedade, tendo em vista a complexidade estrutural por elas apresentadas.

Ao negar a importância dos limites de um estilo de pensamento - complicações - para a busca coletiva da comunidade pela superação e transformação dos estilos anteriores, Fleck denomina de períodos históricos de harmonia das ilusões.

Três livros apresentaram contextualização histórica sobre o tema, portanto, atendendo nosso parâmetro seletivo (ii); no entanto, foi possível identificar algumas inconsistências históricas (parâmetro iii), conforme detalhado em seguida.

No livro Silva Júnior e Sasson (1999) é possível encontrar contextualização histórica ao final de alguns capítulos, como o sobre proteínas e ácidos nucleicos. Em relação ao nosso tema de interesse, os autores apresentam, em nossa avaliação, uma abordagem histórica consistente. Por exemplo, os autores relatam que as proteínas já foram consideradas as moléculas responsáveis pela herança, mencionando a presença de algumas proteínas na estrutura cromossômica. No entanto, o motivo principal para a defesa das proteínas como moléculas de herança residia no grau de especificidade apresentado pelo material hereditário, o que supostamente só poderia residir nas proteínas que apresentavam complexidade estrutural bem maior que o ácido nucleico (STURTEVANT, 1965, p. 105). Nesse sentido, consideramos a argumentação apresentada no livro para esse tema como uma inconsistência histórica (parâmetro iii), uma vez que mesmo que a associação de proteínas aos cromossomos possa ter sido relatada como um fator explicativo para defesa das proteínas como molécula hereditária, a complexidade estrutural das diferentes moléculas era central dentro do debate. Ou seja, negligenciou-se a complicação principal no estilo de pensamento vigente que, a partir de circulações exotéricas, foi fundamental para a busca de novas explicações e transformar o estilo de pensamento.

Outra inconsistência histórica observada nesse livro é a condução do leitor ao entendimento de que Griffith realizou experimentos que não são de sua autoria, como a repetição dos experimentos em meio de cultura. No entanto, conforme apresentado na fundamentação teórica deste trabalho, apenas no ano de 1931, Dawson e Sia executaram experimentos de transformação in vitro correspondentes aos que Griffith havia realizado in vivo. Obviamente, essa não foi a intenção dos autores, mas, na forma como está escrito, leva à indução de que Griffith foi o autor dos experimentos. Ao negligenciar protoideias, omite a relevância da circulação intercoletiva.

Os autores apresentam como finalizado, após os experimentos de Avery, MacLeod e McCarthy (1944), o debate em relação à molécula responsável pela transmissão hereditária: o DNA ou as proteínas. Embora enfatizando esse importante debate em seu livro, evidências adicionais ao trabalho de Avery, MacLeod e McCarthy (1944) foram necessárias para que o DNA fosse aceito como o responsável pela hereditariedade. Essa inconsistência histórica ainda é mais acentuada considerando-se que os três autores citados foram extremamente cautelosos ao reportar seus resultados, conforme destacado em nossa fundamentação teórica. Outro fato relevante é que a recepção de uma ideia contra hegemônica passa por uma questão social de aceitação e defesa. De acordo com Zinder (2007), Avery, MacLeod e McCarthy (1944) não contavam com o apoio de um grupo de pesquisadores de elite para difundir suas ideias. Dessa forma, uma possibilidade é que a cautela de Avery, MacLeod e McCarthy (1944) tenha relação com uma possível coerção do pensamento hegemônico da área. Para Fleck, a proposição de novos estilos de pensamento no sentido de superar complicações é um movimento persuasivo que exige um convencimento coletivo a partir de conexões ativas.

Em nossa avaliação, os livros Amabis e Martho (2004) e Sadava et al. (2009) apresentaram uma contextualização histórica mais consistente, embora algumas limitações tenham sido observadas. Por exemplo, nos dois livros está relatada a existência de apenas duas linhagens bacterianas de pneumococos, mas se sabia mesmo antes do trabalho de Griffith, que essa bactéria apresentava um número diverso de tipos (NEUFELD; HÄNDEL, 1909 apud EICHMANN; KRAUSE, 2013). O que ocorreu no trabalho de Griffith (1928) foi a seleção de variantes (caracterizada fenotipicamente pela presença ou ausência de cápsula) que foram obtidas de diferentes linhagens. Por mais que Fleck (2010) destaque a relevância de materiais didáticos na disseminação de ideias a partir da circulação intercoletiva, também apresenta a relevância de não se confundir textos introdutórios ao procedimento científico àqueles de ampla divulgação popular. Assim, um reducionismo ou aligeiramento dos eventos históricos corre o risco de comprometer um acesso mais consistente à sociogênese da ciência.

Outra inconsistência observada em Amabis e Martho (2004), relacionada a nosso parâmetro seletivo (iii), é a menção apenas de Alloway (1933) como o responsável por experimentos in vitro, negligenciando Dawson e Sia (1931), que também realizaram ensaios desse tipo, que foram importantes para esse contexto histórico. Sadava et al. (2009), por sua vez, minimizam essa pluralidade de autores no experimento utilizando-se do termo "grupo de cientistas", explicitando a dimensão comunitária da produção do conhecimento científico. Mas será que é adequado caracterizar um coletivo de pensamento como um grupo de cientistas? Essa simplificação pode comprometer uma compreensão mais profunda dos aspectos socioculturais que caracterizam a forma de produção do conhecimento científico, tais como: estilos de pensamento, circulação de ideias, transformações etc.

Amabis e Martho (2004) são cuidadosos ao comentarem sobre a interpretação de Avery, MacLeod e McCarthy (1944), indicando de forma coerente com o ocorrido que os cientistas não afirmaram que o DNA era o material genético das bactérias. Contudo, não explicitam os fatores determinantes desse posicionamento cauteloso. Ou seja, não situam o momento histórico em que os cientistas viviam, suas harmonias e coerções, a resistência em aceitar os limites e as complicações epistemológicas que seus estilos de pensamento apresentavam. Em contrapartida, Sadava et al. (2009) relatam esse momento de forma mais consistente, apresentando as influências externas, circulações exotéricas de ideias, às quais os cientistas estavam submetidos:

O trabalho de Avery, MacLeod e McCarty marcou o estabelecimento de que o DNA é o material genético das células. Entretanto, quando foi primeiramente publicado (em 1944), teve impacto muito pequeno na época, por duas razões. Primeiro, a maioria dos cientistas não acreditava que o DNA fosse quimicamente complexo o suficiente para ser o material genético, especialmente quando comparado com a grande complexidade química das proteínas. Segundo, e talvez mais importante, a genética bacteriana era um campo novo de estudo, ainda não estava claro mesmo se as bactérias possuíam genes. (SADAVA et al., 2009. p. 235).

A citação mostra que existiriam duas razões para explicar o não reconhecimento do DNA como molécula responsável pela hereditariedade, responsáveis pela harmonia das ilusões do coletivo de pensamento. Porém, as razões foram mais amplas, envolvendo também, por exemplo, uma sociogênese científica em um contexto histórico de guerra em que se deu o estudo (WYATT, 1972), o veículo de publicação dos dados, e o limite

para a disseminação das ideias (LEDERBERG, 1994), traços de personalidade de Avery (ACOT, 2003), falta de apoio de pesquisadores de elite na discussão de suas ideias (ZINDER, 2007), bem como as possíveis coerções do pensamento hegemônico da área, conforme conjecturado acima.

Conclusões

No presente estudo constatamos que o episódio sobre a contextualização histórica da transformação bacteriana está ausente na maior parte dos livros didáticos analisados, a despeito de sua importância na identificação do DNA como material hereditário. Um dos fatores que podem explicar esse resultado é a negligência recorrente da História da Ciência no material didático brasileiro (MARTINS, 1993; SANTOS; SILVA; FRANCO, 2015). Nos materiais que apresentaram a contextualização histórica da transformação bacteriana foi possível identificar algumas inconsistências históricas que podem comprometer o entendimento. Muitos professores apresentam limitações para essas inconsistências ou limites conceituais, pois, na maioria das vezes, eles próprios estudaram os conteúdos nessas fontes que apresentam a ciência de forma distorcida. Conforme Matthews (1995), se os professores de Ciências fossem ‘instruídos’ em História e Filosofia da Ciência, possivelmente identificariam potenciais equívocos conceituais, pois as releituras das obras e da evolução dos conhecimentos da área demandam uma revisão dos próprios conteúdos abordados no ensino. Entretanto, é necessário estudo que corrobore que alguns erros conceituais podem decorrer da deficiência de contextualização histórica e filosófica da produção científica em relação à abordagem de conceitos no ensino.

No caso analisado, nenhum texto mencionou o contexto histórico em que Griffith estava inserido, em que a busca por uma vacina para a pneumonia era uma demanda da sociedade pós primeira Guerra, o que certamente influenciou na escolha do modelo experimental. Ou seja, Griffith não iniciou seu experimento almejando 'descobrir' qual seria a molécula responsável pela herança, como pode parecer em um ensino descontextualizado. Fazendo um paralelo com outro exemplar do ensino de Genética, é comumente retratado em materiais didáticos e/ou divulgação científica que Gregor Mendel realizou seus experimentos com ervilhas para 'descobrir as leis da herança'. No entanto, Mendel trabalhava em um programa de pesquisa que, assim como outros pesquisadores, buscava entender como criar variedades a partir do cruzamento de variedades distintas (híbridas), que consistia em uma questão importante no século XIX. Esses exemplos ilustram o pesquisador de uma forma individualista, como um ser iluminado (MARTINS, 1998). Portanto, é importante considerar que os movimentos políticos, filosóficos, sociais e econômicos influenciam, cada um em sua época, as visões de mundo e todas as atividades humanas, dentre elas a ciência. Inserir o momento histórico em que viviam esses cientistas ressalta a face não neutra da ciência (DELIZOICOV; CARNEIRO; DELIZOICOV, 2004).

Portanto, muitas vezes o histórico da produção científica é apresentado de forma descontextualizada e linear, impossibilitando o aluno vislumbrar a ciência como uma produção humana e coletiva. Dessa forma, os resultados encontrados indicam que a sociogênese do conhecimento científico ressaltada por Fleck (2010), como por exemplo, coletivos de pensamento, estilos de pensamento, circulação de ideias e complicações, não tem sido contemplada no material didático de Biologia. Ressalta-se que incorporar

a complexidade da construção do conhecimento científico no contexto da ciência popular pode favorecer o entendimento do público geral acerca do conhecimento científico, mitigando concepções de realidade que minimizam o papel crítico da ciência. Cabe, ainda, destacar que trabalhar contextos históricos e filosóficos da ciência, além de humanizá-la, estimula o senso crítico e reflexivo dos alunos, de forma a que se sintam parte da construção da ciência, questionando, formulando respostas e evidências válidas para as perguntas que lhe serão apresentadas no futuro (MATTHEWS, 1995), além de tornar os mecanismos da ciência mais familiares e compreensivos, capazes de aproximar o processo de ensino-aprendizagem da realidade da produção do conhecimento sistematizado.

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Recebido: 22 de Julho de 2021; Aceito: 24 de Março de 2022

Autor Correspondente: gouvea@ufscar.br

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