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Ciência & Educação

Print version ISSN 1516-7313On-line version ISSN 1980-850X

Ciência educ. vol.28  Bauru  2022  Epub Oct 13, 2022

https://doi.org/10.1590/1516-731320220042 

Artigo Original

A literatura como motivação nas aulas de Ciências: uma análise a partir da categoria motivo de Leontiev

Literature as motivation in Science classes: an analysis based on Leontiev's motive category

1Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências, Bauru, SP, Brasil

2Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Departamento de Educação, Araraquara, SP, Brasil


Resumo

Alguns estudos da área de Educação em Ciências defendem a inserção de textos literários nas aulas de Ciências em função de uma suposta motivação que eles provocariam nos estudantes. Neste artigo, de natureza teórico-empírica, temos o objetivo de defender que a categoria de motivo supera por incorporação as preocupações com a motivação destacadas por algumas pesquisas em Educação em Ciências que tratam da relação entre Ciência e Literatura. Para tanto, partimos de uma revisão bibliográfica sistemática do materialismo histórico-dialético e da psicologia histórico-cultural para explicitar que a motivação é um processo psicopedagógico complexo e que tal complexidade não é levada em consideração por alguns estudos da área. Defendemos que a categoria de motivo supera por incorporação essa noção de motivação. Argumentamos que, para além de motivar o aluno por meio dos livros, como proposto pela área de pesquisa, é preciso criar motivos para migrar desse objeto para o conhecimento dos conteúdos científicos.

Palavras-chave Ensino de ciências; Motivação para aprendizagem; Ciência e literatura; Materialismo histórico-dialético; Psicologia histórico-cultural

Abstract

Studies in the area of Science Education argue for the inclusion of literary texts in science classes due to motivation that they would supposedly provoke in students. In this theoretical-empirical article, we aim to defend that the category of motive should prevail because it includes concerns about motivation highlighted by research in Science Education that deal with the relationship between science and literature. To do that, we first present a systematic bibliographic review of historical-dialectical materialism and historical-cultural psychology to explain that motivation is a complex psychopedagogical process, and that such complexity is not taken into account by some studies in the area. We argue that the category of motive works better by incorporating this notion of motivation. We argue that, in addition to motivating the student with books, as proposed by the research area, it is necessary to create motives to migrate from this object in order to get to know the scientific contents.

Keywords Science teaching; Motivation for learning; Science and literature; Dialectical historical materialism; Cultural historical psychology

Introdução

A literatura de Educação em Ciências discute diferentes formas de inserção de textos literários no ensino de Ciências, desde as discussões clássicas envolvendo as relações entre a cultura artística e a científica (SNOW, 1995), passando pela identificação de cientistas com veia literária e escritores com veia científica (ZANETIC, 2006), até a identificação de diversos gêneros literários que podem ser abordados em aulas de Ciências (ZILLI; MASSI, 2017). Entretanto, questionamentos sobre qual seria a vantagem dessa inserção em relação às outras formas e ferramentas de ensino ou sobre como um docente sem a formação literária e com pouca carga horária para o ensino de Ciências poderia inserir esses elementos são praticamente ausentes na área. Concordamos com a interpretação de Piassi (2015) de que a motivação é indicada como o principal argumento para essa inserção, embora o autor apresente pouco detalhamento do que entende por motivação, como ela poderia ser mensurada ou como os livros de Literatura promoveriam esse processo para o ensino de Ciências.

A importância da Literatura para a formação humana é inquestionável. Neste artigo, de natureza teórica e empírica, indagamos, contudo, se a motivação proporcionada pela Literatura é uma justificativa fundamentada teoricamente para sustentar sua inserção no ensino de Ciências. Dados sobre a prática de leitura no Brasil revelam um país com poucos leitores e que perdeu muitos deles nos últimos quatro anos (FAILLA, 2021). Esse cenário seria suficiente para questionarmos como uma prática de leitura tão distante dos estudantes seria capaz de motivá-los para outra prática científica também pouco presente no seu cotidiano. Porém concordamos com Piassi (2015) que a ausência de sustentação teórica do conceito de motivação dificulta ainda mais essa defesa. Será que a motivação que temos para atividades cotidianas é a mesma necessária para aprender um conceito científico? Se a Literatura adota recursos ficcionais, que nem sempre coincidem com as explicações científicas (PIASSI; PIETROCOLA, 2009), como, então, ela promoveria a motivação para a aprendizagem de Ciências?

Neste artigo adotamos uma concepção de mundo materialista, histórica e dialética para pensar os processos de ensino e aprendizagem de Ciências por meio da psicologia histórico-cultural. Esta investigação faz parte de um estudo mais amplo sobre as relações entre a Ciência e a Literatura na Educação em Ciências. Concentramo-nos nas relações entre a Ciência e a Literatura para analisar algumas produções da área sobre o tema, cujo enfoque é a motivação. Assim, partindo desse levantamento e dos nossos fundamentos teóricos, nosso objetivo é defender que a categoria de motivo de Leontiev supera, por incorporação, as preocupações com a motivação destacadas pelas pesquisas em Educação em Ciências.

Entendemos que a Literatura e a Ciência são objetivações genéricas para si, ou seja, que no processo de trabalho e de transformação da natureza o homem se objetiva por meio de signos, práticas e objetos que são fruto do processo coletivo e histórico de desenvolvimento do gênero humano (DUARTE, 2013; MÁRKUS, 2015). Portanto são formas de conhecimento que ultrapassam os limites do imediatismo da vida cotidiana, sendo fundamentais para o desenvolvimento da concepção de mundo materialista, histórica e dialética que almejamos na pedagogia histórico-crítica. Levando em conta que essa pedagogia se fundamenta na psicologia histórico-cultural, neste artigo nos pautamos nos estudos de Leontiev (1984, 2017) e Vygotsky (2001) para defender que a categoria de motivo é mais coerente com as preocupações pedagógicas do ensino de Ciências do que a motivação.

Metodologia de coleta e análise de dados

Em outra pesquisa mais ampla sobre as relações entre a Ciência e a Literatura, realizamos uma revisão bibliográfica sistemática para identificar as principais temáticas exploradas pelos autores da área. Analisamos estudos da área de Educação em Ciências que foram publicados em periódicos nacionais e do exterior classificados como A1 e A2 segundo o Qualis da CAPES, quadriênio 2013-2016. Procuramos as seguintes palavras-chave, apenas no título dos trabalhos: Litera*; Romance; Ficção; Livro; Conto; Poesia; Obra e suas variações no plural. Nos casos de buscas em periódicos estrangeiros, pesquisamos as seguintes palavras-chave: Novel; Litera*; Book; Romance; Narrative; Story; Tale; Poetry e suas variações no plural. Encontramos e lemos integralmente 52 trabalhos, porém, nesse estudo mais amplo, nos aprofundamos em 38 deles. Esse conjunto de textos foi lido e analisado na íntegra, visando produzir um panorama temático das relações entre as Ciências e a Literatura. Os outros trabalhos foram excluídos de nosso corpus, pois entendemos que textos, como produções de alunos e biografias, eram Literatura ou analisavam a vida e obra de literatos, sem explicitar como contribuem para a educação em Ciências.

Esse panorama nos levou à identificação de três dimensões do tema abordadas pelos estudos (escolar, estética e epistemológica) e oito problemáticas derivadas da análise dos artigos, a partir do materialismo histórico-dialético. Tais problemáticas se referem a questões presentes na literatura da área sobre esse tema que julgamos importante serem discutidas com aprofundamento. Uma delas é a Literatura como recurso didático para motivar os estudantes, que aqui discutimos. Assim, procuramos interpretar as produções bibliográficas da área por meio das discussões da pedagogia histórico-crítica, da psicologia histórico-cultural e da teoria marxista, em um processo de superação por incorporação. O processo de superação por incorporação é fundamental no materialismo histórico-dialético, tendo sido mobilizado por Marx, por exemplo, na sua apropriação dos trabalhos do economista Ricardo, para pensar o capitalismo (LÖWY, 1987). Segundo Konder (1986), em alemão a palavra superação remete a três sentidos de difícil tradução direta para o português: (1) negar, anular, cancelar; (2) erguer e manter erguido para proteger; (3) elevar a qualidade, promover a passagem para um plano superior. O conceito envolve, portanto, a negação de um aspecto da realidade, a conservação de algo essencial e a elevação para um nível superior (KONDER, 1986). É exatamente isso que pretendemos desenvolver neste artigo, captando elementos da motivação que precisam ser negados e conservados por meio da defesa da categoria de motivo para superar o aparente imbricamento entre motivação, ensino de Ciências e Literatura.

Esses movimentos interpretativos nos levaram a identificar um conjunto de sete artigos nos quais a Literatura é tomada como um recurso didático para motivar os estudantes. Os artigos que analisamos, seus autores e objetivos estão organizados no quadro 1. Buscamos nas obras de Leontiev (1984, 2010, 2017), Vigotsky (2001) e Duarte (2013) subsídios para interpretar essas produções. Assim, este artigo apresenta os resultados parciais de nossa revisão bibliográfica mais ampla e a interpretação teórica desses dados. Entendemos que se trata de um estudo de natureza teórica e empírica, sendo empírico por adotarmos procedimentos de revisão bibliográfica sistemática que nos permitem captar o real sensível do que representa o entendimento de pesquisadores da área sobre a relação entre motivação, ensino de Ciências e Literatura; e teórico, pelo fato de este estudo estar voltado para as "abstrações do pensamento já sistematizadas" de teorias que "[...] operam como mediadoras na captação de [...] dado objeto ou fenômeno" com as quais "[...] o pesquisador estabelece uma relação indireta com o objeto sensível, ora representado conceitualmente" (MARTINS; LAVOURA, 2018, p. 235).

Quadro 1 Organização dos artigos analisados 

Autor(es) Título Objetivo
Groto e Martins (2015a) Monteiro Lobato em aulas de cências: aproximando ciência e literatura na educação científica Avaliar o uso da literatura de Monteiro Lobato no ensino de Ciências e investigar os limites e as possibilidades da utilização de obras específicas de Lobato em aulas de Ciências.
Groto e Martins (2015b) A literatura de Monteiro Lobato na discussão de questões acerca da natureza da ciência no ensino fundamental Analisar determinados aspectos das visões de Ciência presentes em três obras da literatura de Monteiro Lobato, visando à utilização desse material na discussão de questões acerca da natureza da Ciência em aulas de Ciências.
Borim e Rocha (2017) Análise do potencial didático do livro de ficção científica no ensino de ciências Analisar o potencial didático de uma obra literária de ficção científica no Ensino de Ciências, dando ênfase à Educação Ambiental.
Hasse (2014) The material co-construction of hard science fiction and physics Explorar a relação entre a ficção científica e a Física e sob uma perspectiva da cultura da Ciência de gênero.
Drigo Filho e Babini (2016) A gênese do Inferno e do purgatório na Divina comédia de Dante: uma ponte possível entre física e literatura Motivar a aprendizagem através de cálculos de grandezas físicas tendo como pano de fundo a cosmogonia da Idade Média.
Piassi (2015) A ficção científica como elemento de problematização na educação em ciências Fundamentar as razões para a presença da ficção científica nas diversas modalidades de educação em Ciências, em função de suas potencialidades problematizadoras.
Góes et al. (2018) A obra Admirável mundo novo no ensino interdisciplinar: fonte de reflexões sobre ciência, tecnologia e sociedade Discutir o impacto da utilização de uma obra de ficção científica em sala de aula, com o intuito de estimular a leitura crítica do mundo, conforme preconizado por Freire.

Fonte: elaborado pelas autoras.

Esses procedimentos metodológicos e movimentos interpretativos nos levaram à produção de uma síntese, que está organizada neste artigo na seguinte ordem: primeiro, apresentamos de que modo os estudos da área justificam que a Literatura pode ser um elemento motivador nas aulas de Ciências; em seguida, expomos como a categoria da necessidade está relacionada com a categoria do trabalho, fundante do ser social para o materialismo histórico-dialético, e como essa categoria está relacionada com a categoria motivo; logo depois, discorremos sobre a necessidade de se conhecer a realidade; e, por fim, explicitamos como a categoria de motivo supera, por incorporação, essa noção de motivação que os estudos da área trazem. Optamos por esse modo de expor nossa análise - que destoa do estilo padrão referencial teórico/dado - para que, primeiro, fique explícito o problema de nossa investigação e, depois, o encaminhamento de sua superação.

Mesmo não analisando um grande número de produções na área, acreditamos que a discussão aqui desenvolvida é relevante porque traz uma perspectiva nova para debater sobre a motivação e a Literatura dentro de nossa área. Ainda assim, consideramos que esta análise está bem embasada teoricamente, o que garante avanços expressivos no que diz respeito à categoria da motivação e sua relação com a categoria motivo. Por fim, reiteramos que este estudo, de natureza teórica-empírica, não se sustenta apenas na revisão bibliográfica, o que justifica a possibilidade de avanço teórico a partir de poucos resultados empíricos.

A motivação na educação de ciências como justificativa para a presença da literatura

Uma das principais justificativas para o uso da Literatura na educação em Ciências é a motivação. Nosso levantamento apontou que os estudos se preocupam com a questão da motivação dos alunos para estudar Ciências Naturais. Eles mencionam e destacam essa função da Literatura em direção ao desenvolvimento de incentivo para os estudos dos conteúdos científicos (BORIM; ROCHA, 2017; DRIGO FILHO; BABINI, 2016; GROTO; MARTINS, 2015a, 2015b; HASSE, 2014). Neste artigo analisaremos os seguintes pontos dessa problemática destacados por esses estudos: o emprego do termo motivar sem referenciação teórica, a afirmativa de que a motivação despertada nos estudantes pode ser observada diretamente, e a defesa de que a Literatura pode ser motivadora para a educação em Ciências. Ao mesmo tempo, buscamos contrapor esses pontos com a interpretação materialista histórico-dialética de necessidade, que é mais abrangente e complexa do que a motivação apresentada pelos trabalhos. Também nos apoiamos na Teoria da Atividade de A. N. Leontiev para compreender e interpretar o processo que envolve a motivação dos estudantes, por meio da categoria motivo. Enfim, discutimos a afirmação de que a Literatura seria capaz de desencadear esses processos de motivação.

Reconhecemos que na área existem estudos preocupados com o problema da motivação escolar e que se pautam em referenciais teóricos para desenvolver suas defesas, como é o caso dos estudos que se esteiam na teoria da autodeterminação (FAITANINI; BRETONES, 2021; OLIVEIRA; GOIS, 2020), ou na psicologia histórico-cultural (MESSEDER NETO; MORADILLO, 2014, 2016). No entanto, nossa análise tem como foco os trabalhos que defendem que a Literatura seria um meio para motivar alunos a aprender Ciências, de forma que não exploramos essa literatura específica sobre motivação. Ainda assim, ressaltamos que o estudo de Carvalho, Stanzani e Passos (2017) evidencia a falta de referencial teórico em mais da metade dos trabalhos apresentados no Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências (ENPEC) que citam a questão da motivação.

Em sua análise do uso da ficção científica nas escolas Piassi (2015) explica que, assim como encontramos em nosso levantamento bibliográfico, uma das defesas para a presença da ficção científica na educação em Ciências seria a motivação que ela causaria no estudante. No entanto, ele esclarece que, "[...] embora quase todos os autores coloquem o despertar do interesse como uma das razões para o uso didático da ficção científica, [...]" não identificou "[...] nenhum trabalho que tenha se debruçado por confirmar ou sustentar de forma sólida tal afirmação [...]" (PIASSI, 2015, p. 785).

Assim como nesse estudo de Piassi, em nosso levantamento identificamos a palavra motivar recorrentemente, carecendo de explicações acerca de seu sentido e de sua precisão. Por outro lado, os resultados do estudo de Drigo Filho e Babini (2016, p. 1059) apontam para contribuições que a Literatura traz para o ensino de Física, entre elas a "motivação dos alunos para o aprendizado". De acordo com os autores, a partir do contato com o texto literário, os estudantes ficaram inclinados e propensos a aprenderem os conceitos de Física, porque eles fazem parte do conteúdo da narrativa literária. Eles ainda afirmam que:

De forma interativa, as discussões suscitadas pela relação entre física e as artes tiveram reflexos no Ensino de Física, gerando grande diversidade de sugestões e uma riqueza de propostas e ações voltadas a tornar o aprendizado dessa ciência mais atrativo e motivador, além de permitir ao educando desenvolver um conhecimento mais profundo [...] (DRIGO FILHO; BABINI, 2016, p. 1048).

Destacamos que a palavra motivador está próxima da palavra atrativo, ambas adjetivando o aprendizado. Interpretamos que esse estudo entende que a Literatura atrai o aluno para aprender Ciência, faz com que nasça ou aumente o interesse pelo conteúdo a partir de um texto literário. Nesse caso, a Literatura foi um artifício, um recurso didático utilizado para que os alunos se interessassem pelo conteúdo de Física. Além disso, Drigo Filho e Babini (2016) indicam que, por meio da tarefa proposta, os estudantes foram capazes de se apropriarem profundamente do conteúdo. Contudo, o estudo não explicita o que entende por motivação.

Estudos analisados por Groto e Martins (2015a, p. 220) apontam que "[...] o uso da literatura motivaria os alunos, sobretudo aqueles que, normalmente, não se sentiriam atraídos pelas aulas tradicionais". Também eles apontam que a palavra motivação está vinculada à palavra atração. Segundo eles, os estudantes, antes sem motivação, entusiasmam-se, envolvem-se e sentem curiosidade para estudar determinado conteúdo porque as aulas apresentam um diferencial e não são tradicionais. Hasse (2014) afirma que, além de aproximar a Física da tecnologia, a ficção científica pode motivar estudantes, sem explicitar, contudo, o que entende por motivação. Percebemos que o termo é empregado para se referir a um processo que pode ser observado de maneira imediata: estudantes que não se dedicavam a uma determinada tarefa escolar, ao se depararem com uma proposta nova, diferente, demonstram interesse e atenção.

Despertar interesse e preocupar-se com o comprometimento dos estudantes para com as atividades escolares é um problema legítimo e deve estar presente nas discussões sobre educação. Todavia, acreditamos que as pesquisas precisam se ancorar em teorias que permitam afirmar que determinada estratégia ou ação de ensino realmente motivou os aprendizes. Afinal, a motivação é um fenômeno psicopedagógico de mensuração não direta, como pretendemos demonstrar. É importante ressaltar que a motivação não era o objetivo central das pesquisas citadas, o que pode justificar a ausência de fundamentação sobre ela.

Para além da motivação que remete à diversão ou curiosidade, Piassi (2015) defende a presença da ficção científica na educação em Ciências explicando que a Literatura incita o interesse e o engajamento dos alunos e permite que se estabeleça uma relação com as expectativas do indivíduo e com as do mundo ao seu redor. O engajamento, nesse caso, está relacionado com uma ligação daquele conteúdo com a trajetória de vida e com a história do indivíduo:

Motivar o estudante não significa simplesmente apresentar coisas agradáveis por meio de recursos lúdicos, que é o que usualmente se imagina como estratégia para interessar os alunos por ciência. Entendemos que o jovem, que deseja, sim, satisfação cultural, que almeja legitimamente ao prazer, também anseia engajar-se e dar sentido à sua trajetória de vida, de realizar grandes feitos, e que isso também integra o interesse e a motivação, talvez muito mais profundamente do que uma diversão casual (PIASSI, 2015, p. 789).

Nesse sentido, concordamos que o indivíduo precisa estar comprometido com as atividades escolares, estar envolvido e engajado, não somente porque determinada atividade é agradável, mas porque necessita daquele conhecimento científico. O entendimento de Piassi (2015) sobre o tema parece caminhar para uma compreensão mais completa e menos direta do que motiva o estudante a realizar determinada ação. Defendemos que o problema da motivação não pode ser entendido como algo imediato, como um processo em que o professor elabora uma atividade diferente na aula e isso provoca diretamente o aumento de interesse pelos conteúdos científicos. Portanto, julgamos que, para entender a motivação complexa e multideterminada como ela se apresenta na realidade, a compreensão das categorias de necessidade e de motivo é fundamental. A seguir explicitamos a categoria de necessidade para a teoria marxista e qual sua relação com a categoria de motivo. Essa exposição sobre a categoria da necessidade e sua relação com o motivo é importante para elucidarmos como essa categoria se apresenta concretamente e como ela se relaciona com nosso campo de estudo: a Educação em Ciências.

A necessidade, o trabalho e o motivo para o materialismo histórico-dialético

De acordo com Leontiev (1984), as categorias motivo e necessidade estão relacionadas. É por essa razão que consideramos importante começarmos nossa exposição tratando da necessidade. Para entender a necessidade é preciso considerar a categoria trabalho, central na teoria materialista, histórica e dialética de Marx, compreendida como categoria fundante do ser social (PAULO NETTO; BRAZ, 2006). Segundo essa teoria, o trabalho é entendido como a transformação da natureza. Mais ampla do que a noção de trabalho, comumente difundida na sociedade capitalista, na qual ele está mais próximo da noção de emprego e de meio para se obter dinheiro, para o marxismo o trabalho é uma atividade exclusivamente humana e que nos diferencia dos demais animais. Márkus (2015) explica que o trabalho é uma atividade na qual o homem, buscando satisfazer necessidades, transforma a natureza, objetivando-se nela e, ao mesmo tempo, apropriando-se dela, em um processo dialético. Para Marx (1986, p. 297),

Antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a Natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a Natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria natural como uma força natural. Ele põe em movimento as forças naturais pertencentes a sua corporalidade, braços e pernas, cabeça e mão, a fim de apropriar-se da matéria natural numa forma útil para sua própria vida. Ao atuar, por meio desse movimento, sobre a Natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza.

Relacionadas com o trabalho estão as categorias de objetivação e apropriação. Duarte (2013) esclarece que a formação do homem como indivíduo que pertence ao gênero humano se dá pela dinâmica dos processos de objetivação e apropriação. Podemos entender a primeira como "[...] o processo por intermédio do qual a atividade do sujeito se transforma em propriedades do objeto. [...] O processo de objetivação resulta em produtos sociais, sejam eles materiais ou não" (DUARTE, 2013, p. 9). Já a apropriação refere-se "[...] à transferência, para o sujeito, da atividade que está contida no objeto. É a incorporação de atividade humana às características do sujeito" (DUARTE, 2013, p. 9). Como já mencionamos, a categoria trabalho - cara à nossa discussão - está intimamente ligada com a satisfação das necessidades dos homens.

No dinâmico processo de suprir as necessidades, à medida que umas são providas outras surgem, isto é, novas carências aparecem continuamente e essas podem ou não serem supridas a partir do processo de trabalho. Duarte (2013) explica o processo do surgimento de novas necessidades e sua relação com o movimento dialético entre a objetivação e a apropriação do seguinte modo: ao transformar a natureza (trabalho) o ser humano se apropria e se objetiva na natureza gerando, por um movimento de superação por incorporação, novas necessidades humanas e formas de ação. Márkus (2015) explica que o trabalho é uma atividade que tem como objetivo, por meio de mediações, a satisfação de necessidades:

[...] no processo contínuo de reprodução material se desenvolvem necessidades completamente novas, sociais por sua origem e por seu conteúdo. Devido ao caráter mediador do trabalho, no qual a atividade humana é dirigida a seu objeto através da mediação de outros objetos como instrumentos, emergem necessidades sociais por esses produtos que não podem ser consumidos por qualquer pessoa, mas são indispensáveis para a sociedade, já que só eles fazem a continuação do processo de produção em sua forma possivelmente determinada. Marx considera que a dinâmica dessas necessidades sociais nascidas da natureza da produção material constitui uma das principais forças impulsionadoras da evolução da sociedade (MÁRKUS, 2015, p. 39).

A necessidade está ligada aos processos psicológicos que explicam as ações dos indivíduos. Ao desenvolver a Teoria da Atividade no campo da Psicologia, o soviético A. N. Leontiev discute a categoria de necessidade e de sua relação com o motivo. Leontiev (1984) afirma que:

É verdade que o caminho geral seguido pelo desenvolvimento das necessidades humanas começa quando o homem age para satisfazer suas necessidades elementares, vitais; mas mais tarde essa relação se inverte e o homem satisfaz suas necessidades vitais para agir. Este é o caminho essencial do desenvolvimento das necessidades do homem. Mas esse caminho não pode ser inferido diretamente do movimento das próprias necessidades, porque nele está implícito o desenvolvimento de seu conteúdo objetivo, isto é, dos motivos concretos da atividade do homem. Desse modo, a análise psicológica das necessidades se transforma inevitavelmente na análise dos motivos. (LEONTIEV, 1984, p. 152-153, grifo nosso).

Nesse sentido, o motivo relaciona-se, por definição, à necessidade, uma vez que é entendido como "[...] aquilo que, refletindo-se no cérebro do homem, excita-o a agir e dirige a ação a satisfazer uma necessidade determinada" (LEONTIEV, 2017, p. 45).

Dentro desse contexto, trazemos a defesa de que a educação é uma necessidade. Segundo Assumpção (2014), desde os primórdios da história humana o conhecimento estava voltado à satisfação de necessidades. O ser humano se relaciona com a natureza por meio do trabalho e, a partir dele, conhece a natureza e a transforma, manipula e atua sobre ela. O conhecimento se torna necessidade para a realização do trabalho, como explica Duarte (2016), ao tratar da análise luckacsiana a esse respeito:

[...] essa gênese [da arte e da ciência] esteve relacionada à produção de instrumentos, que exigiu do ser humano o conhecimento dos objetos e fenômenos da natureza nas suas conexões e propriedades objetivas, ultrapassando assim a característica própria ao reflexo psíquico animal, que é a fusão entre o objeto sobre o qual age o animal e as necessidades que o levam a agir (DUARTE, 2016, p. 74).

Assim como o conhecimento, a educação é uma necessidade. Portanto, mais do que tornar o momento de estudo agradável e interessante, é preciso considerar que a educação é uma necessidade do gênero humano. Essa necessidade reside na realidade objetiva porque nasce e está ligada ao processo do trabalho. Saviani (2015) aproxima o processo educativo do trabalho, pois estão interligados em sua origem. Segundo o pedagogo, "[...] dizer, pois, que a educação é um fenômeno próprio dos seres humanos significa afirmar que ela é, ao mesmo tempo, uma exigência de e para o processo de trabalho, bem como é, ela própria, um processo de trabalho" (SAVIANI, 2015, p. 286).

Nesse sentido, a realidade impõe aos indivíduos a necessidade de conhecer o mundo natural e social, e a escola é um importante meio de acesso aos conhecimentos sistematizados acerca desse mundo. Portanto, a educação é um meio de satisfazer necessidades, mais especificamente a necessidade de apropriar-se de produções humanas, que nos permitam conhecer a realidade. Duarte (2013, p. 195) afirma que educadores alinhados à pedagogia histórico-crítica devem "[...] lutar para que se torne cada vez mais intensa em todos os indivíduos a necessidade de socialização dessa produção material e espiritual universal [dos homens]". Desse modo, a análise dos motivos que, segundo Leontiev (1984), é a análise psicológica das necessidades, mostra-se mais robusta, ampla e teoricamente embasada do que o termo motivação trazido pelos trabalhos que aqui analisamos.

É preciso compreender que apropriar-se das objetivações genéricas para si (DUARTE, 2013) - a Arte, a Ciência, a Filosofia - é imprescindível para o desenvolvimento do indivíduo como ser humano. Saviani (2012) explica que os pais de uma criança da camada popular entendem que aprender é importante e cobram isso da escola e dos professores porque sabem que esse conhecimento é uma carência de sua formação humana. Embora a necessidade imediata da criança não seja estudar, essa necessidade como membro de uma classe explorada existe, e isso deve ser levado em consideração por um educador embasado na pedagogia histórico-crítica e comprometido, portanto, com a transformação social.

Em vista disso, é claro que o aluno se interessará por atividades diferentes e prazerosas. No entanto, o trabalho educativo não deve se limitar a isso, mas, sim, fazer com que o estudante entenda que existem conhecimentos produzidos por indivíduos de sua espécie que foram sistematizados e tornam possível uma práxis transformadora de mundo. Nessa perspectiva, o motivo como o reflexo psíquico que leva a uma ação que satisfaz uma necessidade (LEONTIEV, 2017) supera a motivação com sentido de alegria e de diversão.

Góes et al. (2018) analisam a motivação dos alunos, a partir de um questionário. Apesar de não ser exemplo de análise sobre a motivação para estudar Ciência, é um caso em que se mensura a motivação dos estudantes para a leitura de livros, a partir de um questionário no qual pergunta-se diretamente ao indivíduo se ele está motivado ou não: "Entre os 33 alunos participantes da pesquisa somente um havia lido a obra Admirável mundo novo, e 27 disseram que se motivaram a ler o livro a partir da abordagem desta prática didática" (GÓES et al., 2018, p. 570). Consideramos que essa é uma forma direta de tentar captar um fenômeno psicopedagógico complexo que, de acordo com a psicologia histórico-cultural, não pode ser imediatamente mensurado. Os autores afirmam que os alunos estão motivados com base nas respostas dadas ao questionário. Consideramos que seria importante ponderar que os alunos podem ter respondido que estavam motivados para agradar ao professor ou aos pesquisadores. Nesse caso, a resposta direta do aluno que afirmou estar motivado é utilizada como dado que comprova a motivação. Isso culmina no entendimento que tanto o aluno, quanto o professor e o pesquisador, têm o mesmo entendimento sobre a motivação e que ela pode ser mensurada diretamente. Diante disso, defendemos ser importante apoiar-se em um referencial teórico que medeie os conceitos científicos na interpretação dessa situação escolar.

Destacamos ainda que no Brasil, assim como em outros países marginalizados, a leitura não é uma prática comum. Dados de uma pesquisa do Instituto Pró-Livro explicitam que em 2019 apenas 24% dos brasileiros poderiam ser considerados leitores, isto é, leram pelo menos um livro completo ou em partes nos últimos três meses (FAILLA, 2021). Acrescentamos que os educadores e pesquisadores do Ensino de Literatura dirigem esforços para que os alunos compreendam as obras literárias, uma vez que esse não é um processo simples (COSTA, 2014). Portanto, cabe levar em consideração que, se para os professores e pesquisadores de Literatura é um desafio incentivar a prática da leitura e ensinar esse conteúdo, será ainda mais custoso para o professor de Ciências trabalhar com Literatura.

O motivo como uma categoria para além da motivação do senso comum

Entendendo ser necessário compreender o processo que leva o ser humano à ação a partir da perspectiva psicopedagógica, voltamos nossa atenção para a Teoria da Atividade. A atividade se refere aos processos que, realizando as relações do homem com o mundo, satisfazem uma necessidade especial correspondente a ele (LEONTIEV, 2017). No entanto, como antes salientamos, o fato de a necessidade existir, não garante que a atividade que a satisfaça se realizará. Apesar de a necessidade estar posta em nível coletivo para o ser humano como uma espécie e como um ser social, ela não necessariamente será suprida em nível individual. Leontiev (2017) explica a relação existente entre atividade e motivo, relação essa que coloca o homem em ação. A noção de motivo para Leontiev (2017) difere daquela que os estudos analisados por nós trazem. O motivo não está relacionado ao interesse e à excitação em realizar uma atividade. O motivo da atividade é o reflexo psíquico que impulsiona o homem a agir. Na escola, isso significa que não basta dizer aos alunos que estudar é importante. É preciso que haja um objetivo que estimule a ação, criando assim um motivo para a atividade de estudo. Leontiev (2017, p. 45) argumenta que "[...] no homem os objetivos que lhe estimulam a atuar podem se refletir em forma de imagens ou representações, de pensamentos ou de conceitos e também na forma de ideias morais". O motivo é fundamental para que entendamos o que está levando os alunos àquela ação, qual a necessidade está sendo suprida por determinada atividade.

Leontiev (2010) faz uso de um exemplo que deixa clara essa relação entre motivo, necessidade e atividade, explicitando que, embora uma atividade aparentemente seja igual à outra, a depender do motivo ela é essencialmente diferente. No exemplo, um estudante está se preparando para um exame, lendo um livro de história. Ao ser informado por um colega que aquele livro não é necessário para o exame, o estudante pode: (1) deixar o livro de lado; (2) continuar a leitura; ou (3) desistir da leitura com relutância. Nesses dois últimos casos o motivo que dirigia a leitura era o conteúdo do livro. No primeiro caso, o motivo que o levou a ler o livro era a necessidade de ser aprovado no exame (LEONTIEV, 2010).

Esse exemplo deixa evidente que, para quem observa, aparentemente, o jovem está estudando, pois lê, concentrado, o livro de história. No entanto, só podemos afirmar qual é a atividade sendo realizada, qual motivo mobiliza aquela ação e qual necessidade está sendo satisfeita, depois de uma análise psicológica. Apenas em situações semelhantes à colocada pelo psicólogo soviético podemos avaliar qual o verdadeiro motivo que levou o estudante àquela ação e qual necessidade estava sendo suprida: a necessidade de conhecer aquele conteúdo escolar ou a necessidade de ser aprovado no exame.

Parece-nos ser uma tarefa difícil, e não imediata, identificar o motivo da atividade. Como já dissemos é necessário embasamento teórico para afirmar que os alunos estão motivados para aprender determinado conteúdo. Outro psicólogo que contribui para essa questão do aparente entusiasmo é Vigotsky (2001), quando trata dos interesses infantis. De acordo com ele, o interesse é como uma inclinação particular do aparelho psíquico da criança para esse ou aquele objeto, e indica que a atividade da criança coincide com suas necessidades orgânicas. Vigotsky (2001) argumenta com o exemplo de uma professora que leva um modelo de vulcão para a sala de aula e desperta nas crianças curiosidade pelo experimento e não pelo conhecimento científico. Isso mostra que, a depender da estratégia utilizada pelo professor, o interesse despertado pode até existir, mas não é aquele que nós, como educadores, objetivamos.

O professor pode despertar interesse nas crianças, fazer com que se entusiasmem e dirijam a atenção para ele. No entanto, o interesse pode estar ou não, genuinamente, no aprender o conteúdo, pois o show, a distração e o diferente são atrativos. Como destaca Vigotsky (2001), isso é prejudicial, porque não estamos suscitando interesse nos conteúdos escolares. Nesse caso, o motivo pode ser a diversão, o entretenimento, e não a apropriação de conhecimento.

Essa exposição sobre a teoria da atividade e sobre a motivação defendida por Vigotski nos revela que o processo que motiva o ser humano não é simples de ser mensurado, que ele está ligado às necessidades e que, portanto, os trabalhos por nós analisados que discutem essa problemática fazem uma simplificação desse processo. Ainda que aparentemente os estudantes mostrem interesse pelo conteúdo científico, a motivação pode estar direcionada para as histórias e para a narrativa literária. É preciso que o educador esteja atento a essa diferença e reconheça que a motivação deve estar direcionada para o conteúdo científico. Não afirmamos que é errado despertar interesse pela Literatura, mas que as aulas de Ciências naturais não podem se limitar a isso, uma vez que o conteúdo a ser ensinado naquele contexto deve ser o científico.

Isso nos leva ao último ponto dessa problemática, que é discutir a pertinência da Literatura motivar o aluno para a aprendizagem de conteúdos científicos. Nesse sentido, ressaltamos que os trabalhos listados no quadro 1 apontam para resultados positivos, ainda que baseados em uma motivação identificada sem embasamento teórico.

Leontiev (2017) afirma que existem diferentes tipos de motivos e, entre eles, podemos observar os motivos eficazes e ineficazes. No âmbito escolar, os motivos da atividade de estudo podem ser gerais e amplos (como apropriar-se do conhecimento sistematizado pelo homem ao longo da história) ou particulares e estreitos (obter uma boa nota no exame), e ambos são importantes dentro do sistema de atividades de estudos. De acordo com Leontiev (2017, p. 50):

[...] a existência de motivos gerais e muito constantes não exclui a necessidade de criarem-se motivos suplementares que estimulem a ação. Por sua vez, os motivos que estimulam diretamente não são suficientes para que a atividade realize-se plenamente. A atividade que não tem um motivo geral e amplo carece de sentido para o indivíduo que a realiza.

Pensando nisso, acreditamos que a Literatura pode ter função que motive os alunos à ação, não para motivos gerais e amplos, mas para motivos particulares que geram atividade de estudo.

O estudo de Messeder Neto e Moradillo (2016) sobre o lúdico no ensino de Ciências contribui com essa discussão. Para os autores, o jogo não tem um papel central nas aulas, mas deve ser entendido como um amparo, um coadjuvante no processo da atividade de estudo, no qual o conhecimento científico é o protagonista. Caso o professor entenda que a Literatura pode ser útil, assim como o jogo, ela deve ser uma linha auxiliar, subordinada ao objetivo principal, que é a apropriação dos conhecimentos científicos. A aula não poderá deixar de ser de Ciências. Messeder Neto e Moradillo (2016) argumentam que o conteúdo científico não deve apenas estar no jogo, mas ser central para resolver a atividade. De modo similar, afirmamos que a Ciência não deve ser apenas um elemento presente no livro de forma direta e rasa. Além disso, o interesse do aluno não deve permanecer no livro, mas, sim, migrar do livro para o conteúdo científico, assim como afirmam Messeder Neto e Moradillo (2016, p. 367) em relação ao jogo: "[...] o fato do estudante estar interessado no jogo não é suficiente para o objetivo que temos como educadores. É preciso que o estudante migre seu interesse pelo jogo [...] para o estudo do conteúdo [...]". Nesse sentido, acreditamos que é função da escola desenvolver esses motivos nos alunos. O objetivo não é só suscitar interesse, mas que o interesse seja devidamente orientado, como afirma Vigotski (2001).

A respeito da relação entre a Ciência e a Arte, Lukács (1970, p. 151) defende que a Ciência pode influenciar o trabalho do artista de modo a enriquecer a obra, pautando-se em compreensões verdadeiras e profundas da realidade:

Naturalmente, em muitos artistas importantes, desempenha um grande papel a ajuda que eles recebem da filosofia ou da ciência. Mas tal ajuda só é verdadeiramente fecunda quando aparece não como teoria pronta e acabada, pronta para ser usada, mas como instrumento para compreender com maior profundidade, riqueza e amplitude os fenômenos da vida.

Analogamente, podemos afirmar que na educação o estabelecimento de relações entre os conteúdos artísticos e científicos podem ampliar a compreensão dos estudantes em relação à realidade, desde que se conserve as especificidades desses conteúdos.

Conclusões e implicações

Com o presente artigo objetivamos defender que a categoria de motivo supera por incorporação as preocupações com a motivação destacadas pelas pesquisas em Educação em Ciências. Inspiradas pela crítica de Piassi (2015), percebemos que a justificativa de que a presença da Literatura no ensino de Ciências pode aumentar a motivação dos conteúdos carecia de aprofundamento teórico. A concepção de motivação presente nos estudos mencionados neste artigo está baseada no senso comum e no entendimento muito direto do processo de motivação.

Os estudos da área que aqui analisamos defendem o aumento de motivação, entendendo-a como entusiasmo que pode se observar imediatamente quando se propõe uma tarefa ou uma aula diferente daquelas que os estudantes estão rotineiramente acostumados (GÓES et al., 2018). Dessa forma, a aula de Ciência que conta com a Literatura é entendida como aquela que se opõe ao tradicional (GROTO; MARTINS, 2015a). Interpretamos que nesse contexto o tradicional não compreende só aquilo que é costumeiro. Ressaltamos que o termo tem relação com a pedagogia tradicional, que é criticada pela pedagogia nova, que a classifica de ultrapassada, opressiva e contrária à criatividade (SAVIANI, 2015). Entendendo que a motivação é mais complexa do que essa relação direta estabelecida pelos estudos, partimos da categoria de motivo de Leontiev para nos apoiar em estudos que revelam como se dá o processo de ação que leva o indivíduo a desenvolver determinada atividade.

Parece-nos claro que conhecer a realidade objetiva é uma necessidade do ser social. Daí surge a necessidade do conhecimento sistematizado, as Ciências sociais e naturais, e da socialização do conhecimento, que ocorre na escola. Ainda que colocada em nível do gênero humano, a necessidade pode não se desenvolver em cada indivíduo. É um dos papéis do professor, portanto, criar e direcionar corretamente a necessidade para conhecer os conteúdos científicos. A Teoria da Atividade e a ideia de criar motivos no indivíduo nos parecem mais adequadas para entender esses processos que se dão psicopedagogicamente.

Entendendo a motivação dentro da Teoria da Atividade e a sua relação com a categoria da necessidade, consideramos a afirmação de que a Literatura motivaria os alunos para o estudo dos conteúdos científicos do seguinte modo: dado que a realidade é uma totalidade, podemos dizer que os conteúdos científicos e artísticos podem ser considerados também uma totalidade. Mesmo com suas especificidades, ambas, Ciência e Arte, refletem e se referem ao mesmo conteúdo da realidade objetiva (LUKÁCS, 1970).

Abrantes (2015) afirma que uma formação mais completa, isto é, multilateral, e a socialização dos conhecimentos são de interesse da classe trabalhadora. Além disso, em relação a cada um dos conteúdos (artístico, científico, filosófico) ele faz as seguintes considerações:

Interessa conhecer científica e metodicamente a realidade, visto que essa forma de vínculo com o real demonstra precisamente o movimento e tendências de vir-a-ser dos objetos e fenômenos do real. Interessa à classe trabalhadora ter acesso às produções artísticas para que lhe seja possível, a partir do acúmulo de fruições artísticas, desenvolver a autoconsciência do humano de modo a esclarecer-lhe dores e sentimentos, além de vislumbrar novas realidades sociais ainda impossíveis. Interessa à classe trabalhadora acesso ao conhecimento filosófico para que se possa conhecer e questionar a realidade formulando perguntas abrangentes que lidem com problemas objetivos do ser humano, politizando a existência das pessoas no mundo e permitindo a tomada de consciência da participação na produção coletiva da realidade (ABRANTES, 2015, p. 134, grifo nosso).

Cada qual com suas especificidades, os conteúdos artísticos, científicos e filosóficos contribuem para que o indivíduo entenda a realidade em sua complexidade e em suas múltiplas determinações. Dessa forma, a ausência ou a presença aligeirada desses conteúdos concorrem para uma educação unilateral. Como afirma Lukács (1970), Ciência e Arte colaboram entre si no sentido de fazer enriquecer nosso entendimento sobre a realidade. Desse modo, entendemos que os conteúdos artísticos, entre eles os da Literatura, têm

importante papel na formação dos indivíduos e, à medida que essa formação acontece, isso pode colaborar na formação de novos motivos, inclusive em relação aos conhecimentos científicos.

Em síntese, reconhecemos o movimento de inserção dos livros de Literatura produzido pela área de pesquisa como um aspecto importante do ensino, porém defendemos que ele poderia ser mais rico, desde que pautado em um modelo de formação omnilateral, que tem a criação de motivos e a humanização dos estudantes como referências.

Agradecimento

Este trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Código de financiamento 001.

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Recebido: 12 de Novembro de 2021; Aceito: 25 de Abril de 2022

Autora Correspondente: rafaela.valero@unesp.br

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