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Ciência & Educação

Print version ISSN 1516-7313On-line version ISSN 1980-850X

Ciência educ. vol.28  Bauru  2022  Epub Oct 28, 2022

https://doi.org/10.1590/1516-731320220045 

Artigo Original

A matemática dos contos de fadas: a construção do conceito de correspondência a partir da contação de histórias infantis

The mathematics of fairy tales: constructing the concept of correspondence by telling children’s stories

1Escola Municipal de Ensino Fundamental Machado de Assis, Pelotas, RS, Brasil.

2Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense (IFSul), Pelotas, RS, Brasil.


Resumo:

O objetivo do presente artigo é discutir a possibilidade de desenvolver o processo mental de correspondência, fundamental para a construção do conceito de número, a partir da contação de histórias dos Contos Clássicos. O artigo se divide em três partes: na primeira, o texto discorre sobre as contribuições das inter-relações entre Literatura e Matemática para o ensino da Matemática; na segunda é discutida a importância do desenvolvimento dos processos mentais na construção do conceito de número; na terceira é apontado como o processo mental de correspondência pode ser desenvolvido através dos Contos Clássicos, a que se acrescentam exemplos de atividades para elucidar a discussão. As atividades propostas são voltadas para os anos finais da Educação Infantil e podem ser replicadas ou adaptadas pelo professor, já que esse texto visa auxiliar os que desejam dirigir um olhar matemático aos Clássicos Infantis.

Palavras-chave: Educação infantil; Ensino de matemática; Literatura infantil; Processo mental; Conceito de número

Abstract:

This article addresses the possibility of developing the mental process of correspondence, which is fundamental for the construction of the concept of number, by telling classic tales. The article is divided into three parts: in the first one, the text deals with the interrelationships between Literature and Mathematics for Math teaching; the second part discusses the importance of the development of mental processes in the construction of the concept of number; in the third part, it is pointed out how the mental process of correspondence can be developed with classic tales, to which are added examples of activities to elucidate the discussion. The proposed activities are aimed at the final years of Early Child Education and they can be replicated or adapted by the teacher, since this text aims to assist those who wish to look at the children’s classics from a mathematics perspective.

Keywords: Child education; Mathematics teaching; Children’s literature; Mental process; Concept of number

Introdução

Este artigo parte dos estudos realizados para o desenvolvimento da dissertação de Cunha (2019), desenvolvida no Mestrado Profissional em Educação e Tecnologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense. A pesquisa, majoritariamente bibliográfica (FONSECA, 2002), buscou elementos matemáticos presentes nos Contos Clássicos que pudessem contribuir para o ensino e para a aprendizagem do conceito de número na Educação Infantil. Neste artigo, apresenta-se um recorte que discute a possibilidade de desenvolver o processo mental de correspondência, fundamental para a construção do conceito de número, a partir da contação de histórias dos Contos Clássicos.

A opção pela análise dos clássicos se deu por serem, esses, livros encontrados em grande profusão nas livrarias e bibliotecas escolares além de, segundo Machado (2009, p. 80), constituírem um “[...] precioso acervo de experiências emocionais, de contatos com vidas diferentes e de reiteração da confiança em si mesmo”; ainda segundo a autora, este tipo de narrativa proporciona às crianças vivenciarem conflitos psicológicos de forma simbólica saindo, dessa experiência, normalmente mais felizes.

Contudo, embora os Contos Clássicos sejam narrativas amplamente difundidas, são, também, as que mais sofreram alterações, uma vez que faziam parte, em sua origem, da tradição oral. Por isso, o professor que pretende trabalhar com os Contos Clássicos com o intuito de ensinar conteúdos escolares (não apenas os da matemática) deve, primeiramente, atentar para a qualidade literária e estética das coleções escolhidas. O que acontece, com bastante frequência, é a perda dessa qualidade em detrimento de transformar essas histórias em leitura de iniciação, o que resulta em textos vazios tanto estética quanto artisticamente. Deste modo, deixam de exercer o encantamento tão característico destas histórias e causam menor ou nenhum impacto psicológico, o que, segundo Bettelheim (2017), só acontece se a história for, antes de tudo, uma obra de arte.

As coleções utilizadas na análise elaborada para a dissertação foram: Clássicos ilustrados e Clássicos para sempre, ambas publicadas pela Editora Maurício de Souza. Ambas apresentam qualidade em sua narrativa verbal, com textos não muito resumidos e poucas alterações no que se refere à extirpação das marcas de violência, preservando, assim, o impacto psicológico dos contos. Outro destaque é a qualidade da narrativa visual destas coleções que, além de estabelecer uma relação de absoluta complementaridade com a narrativa verbal, muitas vezes oferece os elementos matemáticos necessários para o desenvolvimento dos processos mentais para a construção do conceito de número (CUNHA, 2019).

Para discutir estas questões, o artigo foi organizado em três partes: (1) aborda as contribuições das inter-relações entre Literatura e Matemática para o ensino da segunda; (2) trata da importância do desenvolvimento dos processos mentais na construção do conceito de número; (3) discute como o processo mental de correspondência pode ser desenvolvido através dos Contos Clássicos.

Inter-relações entre literatura e matemática

São amplamente difundidas as contribuições da Literatura Infantil em relação à área da linguagem, contudo o mesmo não acontece em relação à Matemática. Com o intuito de minimizar esse quadro, apontam-se, a seguir, algumas dessas possíveis inter-relações entre Literatura e Matemática.

A Literatura Infantil exerce um grande fascínio – não só, mas principalmente – nas crianças e desperta, nelas, interesse e atenção. O simples pronunciar do "Era uma vez..." é um convite para adentrar ao mundo do imaginário, do faz de conta, sendo capaz de aquietar seres tão irrequietos como as crianças. É justamente esse fascínio, que segundo Amarilha (2004) é exercido pelo jogo ficcional presente na narrativa, que pode proporcionar a mobilização inicial para aprender.

Segundo Vasconcellos (1992), o aluno necessita ter seu interesse provocado e sua curiosidade atiçada, mobilizando sua atenção para o conhecimento para que, de fato, haja aprendizagem. Neste sentido, a Literatura pode desempenhar papel fundamental nesta significação inicial, pois, de acordo com Farias (2006, p. 89),

[...] quando lemos ou ouvimos uma história, somos capturados por sintonias de tensão e de espanto diante do desconhecido, porque elas propiciam a oportunidade de ultrapassar as fronteiras do mundo pessoal através de uma incursão imaginária desencadeada por esse processo de acionamento cognitivo.

Sendo assim, conforme destacam Campos e Montoito (2010), a literatura proporciona um envolvimento emocional com a narrativa, permitindo à criança viver o jogo ficcional, despertando seu interesse, criando expectativas e possibilitando uma aproximação mais harmoniosa e significativa em relação ao objeto de estudo. "A literatura possibilita uma vazão do imaginário e conecta, ainda que não de maneira espelhada, o que o autor cria e aquilo que o leitor recria para si." (MONTOITO; DALCIN, 2020, p. 7).

Na Educação Infantil, a criança necessita, segundo Lorenzato (2011), ir da ação para a representação, ou seja, necessita transformar suas ações sobre o concreto em interiorizações. Para que isso ocorra, precisa passar da ação à comunicação e, posteriormente, para o registro. Neste processo, a Literatura Infantil se apresenta como uma importante ferramenta, uma vez que amplia o universo de ideias e favorece o desenvolvimento da linguagem, além de fornecer subsídios para registro, seja ele pictórico, iconográfico ou simbólico (CUNHA, 2019).

O desenvolvimento da linguagem, neste processo, desempenha um papel fundamental na aprendizagem, não só da matemática, uma vez que não é apenas uma ferramenta que ajuda a criança a pensar, mas é, também, de acordo com Bannell et al. (2016) e Wittgenstein (2017), constitutiva do próprio pensamento. Vale ressaltar, contudo, que a filosofia da linguagem de Wittgenstein, embora bastante mobilizada em pesquisas da área de Educação Matemática (SILVEIRA, 2015; VILELA, 2013), é um ponto que não pode ser abordado em poucas linhas. Aqui, cita-se apenas uma de suas frases, a qual dá o tom com o qual este estudo comunga, no sentido de entender a linguagem como importante constitutiva – embora não única – do processo de aprendizagem e do alargamento de visões de mundo: "[...] os limites de minha linguagem significam os limites de meu mundo." (WITTGENSTEIN, 2017, p. 219, grifo do autor).

Zilberman (2003) aponta que o alargamento do domínio linguístico amplia a percepção e a compreensão de mundo, pois é justamente a linguagem a mediadora entre a criança e o mundo. Em complemento, como a língua materna está em impregnação mútua com a linguagem matemática, ajudando e possibilitando a construção de sentidos (MACHADO, 2011), tem-se aí uma relação linguagem-matemática-pensamento que é indispensável para a aprendizagem, uma vez que, segundo Vygotsky (1989, p. 44), é a linguagem que determina o desenvolvimento do pensamento, pois são "[...] as estruturas da fala dominadas pela criança [que] tornam-se estruturas básicas de seu pensamento."

A linguagem literária expressa nos livros, com seus trajes domingueiros (MARIA, 2009), enriquece o vocabulário do pequeno leitor e lhe dá, além do que dizer, o como dizer, favorecendo o processo de comunicação. A pesquisadora ainda ressalta que é justamente esse processo de organizar a expressão que modela a atividade mental, daí a importância de a criança ter contato com o universo literário desde cedo. Durante a contação de histórias, é possível a criança antecipar o que está por vir, analisar as informações fornecidas não só pela narrativa verbal, mas também pelo visual, e comunicar suas hipóteses, desde que estimuladas para isso. Estas atividades – de antecipar, analisar e comunicar – são fundamentais também para o ensino de matemática (CUNHA, 2019).

Outro aspecto relevante em relação ao desenvolvimento da linguagem se refere à aproximação da língua materna com a linguagem matemática. Machado (2011) ressalta que a matemática não possui oralidade própria e por isso estabelece uma relação de absoluta complementaridade com a língua materna, acarretando uma impregnação mútua. O autor toma a linguagem matemática como um sistema de representação da realidade e, portanto, a aprendizagem da língua materna vai muito além da compreensão de enunciados. De acordo com Machado (2011, p. 181),

[...] é preciso compreender a Matemática como um sistema básico de expressão e compreensão de mundo, em sintonia e em absoluta complementaridade com a língua materna. Em outras palavras, é preciso reencantar a Matemática, e para tanto, a exploração de sua aproximação visceral com língua materna é fundamental.

Em relação a esta aproximação entre Literatura Infantil e Matemática, Smole, Cândido e Stancanelli (1997) afirmam que, por meio desta conexão, é possível criar situações de sala de aula que proporcionem familiaridade com a linguagem matemática e possibilitem os alunos estabelecerem "[...] ligações cognitivas entre a linguagem materna, conceitos de vida real e a linguagem matemática formal, dando oportunidade para [...] escreverem e falarem sobre o vocabulário matemático" (SMOLE; CÂNDIDO; STANCARELLI, 1997, p. 13). Ao se dar primazia à discussão da importância do papel da linguagem para o processo de aprendizagem da matemática, este artigo não está afirmando que não sejam necessários outros elementos para o êxito deste: tal qual Lins (1999) advoga em seu modelo dos campos semânticos, é preciso que os interlocutores (neste caso, professor e alunos) compartilhem um mesmo espaço comunicativo (potencializado pela linguagem narrativa das histórias infantis) em que algumas estipulações são compartilhadas (por exemplo, compreender o narrado como uma afirmação possível, ou seja, ignorar que há um ‘mundo de faz de conta’ cujas regras diferem do mundo real) para que, no interior de atividades, se dê a produção de significados (conceito de correspondência).

Souza e Carneiro (2015, p. 398), por sua vez, afirmam que

[...] conectar literatura infantil e matemática possibilita a criação de situações de ensino que permitem explorar as relações entre língua materna e matemática; propicia circunstâncias que mostram ao aluno a importância e a utilidade da linguagem e o simbolismo matemático, bem como o uso apropriado desses símbolos e da terminologia matemática; e permite também o desenvolvimento da comunicação matemática, podendo levar o aluno a compreender conteúdos matemáticos e a linguagem matemática.

Apesar de todo o livro de Literatura Infantil carregar em si a intenção de ensinar e divertir, pois pertence tanto à área pedagógica quanto à arte literária (COELHO, 2018), quando se pretende trabalhar com Literatura e Matemática se fazem necessários alguns cuidados na escolha dos livros. É importante que a obra selecionada tenha um equilíbrio entre o didático e o artístico e, ainda, de acordo com Arnold (2016, p. 32), é preciso "[...] buscar obras que, mesmo trabalhando conteúdos escolares, sejam estética, linguística e artisticamente ricas, ampliando o repertório cultural de nossos alunos." A intencionalidade pedagógica do livro não exclui o seu caráter literário. Deste modo, o livro selecionado deve conter uma narrativa instigante, com contexto fértil que desperte a imaginação e a curiosidade e desafie os alunos a buscar, tanto na Matemática quanto na história, estratégias para a resolução de situações problemas.

O professor que busca aproximar estas duas áreas – Literatura e Matemática – necessita aguçar seu olhar para além da narrativa, pois a matemática pode ser encontrada nos livros de Literatura Infantil de diferentes formas:

Muitos livros trazem a matemática inserida no próprio texto, outros servirão para relacionar a matemática com outras áreas do currículo; há aqueles que envolvem determinadas habilidades matemáticas que se deseja desenvolver e, outros, ainda providenciam uma motivação para o uso de materiais didáticos. Um livro às vezes sugere uma variedade de atividades que podem guiar os alunos para tópicos matemáticos e habilidades além daquelas mencionadas no texto (SMOLE; CÂNDIDO; STANCANELLI, 1995, p. 22).

Por isso, um trabalho que busca estabelecer esta inter-relação entre Literatura e Matemática exige que o professor tenha claros os objetivos de aprendizagem dos alunos, tanto na área da Matemática quanto na área da linguagem, para que possa explorar o livro selecionado de forma a extrair deste aprendizagens mais significativas e instigantes.

Os processos mentais básicos para a construção do conceito de número

Para que a criança construa o conceito de número é preciso, antes de mais nada, que ela exerça ações sobre as coisas e que vivencie inúmeras situações de aprendizagem, em que, para além de agir sobre os objetos, necessite estabelecer diversas relações. De acordo com Kamii (2007), é nessa interação com o meio que a criança é desafiada e tem a possibilidade de desenvolver sua capacidade de estabelecer relações e comparar objetos das mais diversas formas. A progressão na consolidação do conceito de número se dará, segundo Nogueira (2011), à medida que a criança for capaz de coordenar estas relações e as diversas ações sobre os objetos, tais como: correspondência, comparação, classificação, sequenciação, seriação, inclusão e conservação, que são ações a que Lorenzato (2011) chama de "[...] sete processos mentais básicos para a aprendizagem matemática", destacando que essas são o alicerce das estruturas cognitivas que acompanharão o indivíduo ao longo de toda sua vida.

Porém, para que a estrutura numérica seja operatória, segundo Ramos (2009), é necessário que ocorra uma síntese entre os aspectos numéricos de cardinalidade e ordinalidade. O número cardinal expressa uma quantidade, já o número ordinal se refere à posição de um objeto em determinada ordem. Na figura 1, é possível observar a relação que os processos mentais possuem com os aspectos de cardinalidade e ordinalidade do número:

Fonte: adaptado de Ramos (2009).

Figura 1 Relação entre os processos mentais e os aspectos cardinal e ordinal do número 

Os processos mentais de classificação, conservação e inclusão auxiliam na compreensão do aspecto cardinal do número. Quando a criança é estimulada a classificar, esta tem favorecido o desenvolvimento das noções de quantidade, de formação de classes e subclasses, de agrupamentos e da noção das partes contidas no todo.

Atividades que favoreçam o desenvolvimento do processo de inclusão possibilitam a compreensão de que o um está incluído no dois, o dois no três, e que o quatro representa a quantidade total de um conjunto; além disso, esse processo é base para compreensão de todo o sistema de numeração decimal (1 centena = 10 dezenas = 100 unidades). Sem o desenvolvimento deste processo, a criança não consegue decompor quantidades para realizar operações.

O processo de conservação de quantidade possibilita o desenvolvimento da noção de reversibilidade (unir as partes num todo e separar o todo nas partes), o que é fundamental para a realização das operações. Além disso, favorece o reconhecimento de quantidades iguais em situações diferentes e que estas não mudam conforme a disposição espacial.

Os processos de sequenciação e seriação auxiliam na compreensão do aspecto ordinal do número. A ação de sequenciar objetos favorece a percepção da organização destes, possibilitando um contraste com o processo de seriar, no qual a ordem importa e estimula a percepção da posição do objeto em relação à dos demais.

Os processos de comparação e correspondência auxiliam tanto no aspecto cardinal quanto no ordinal. O processo mental de comparar é base para o desenvolvimento de todos os demais processos, uma vez que é a partir desse que se estabelece os critérios de semelhanças e diferenças. A correspondência auxilia na percepção de que a cada quantidade corresponde um número e, a cada posição, um número ordinal; também, na percepção de um para vários ou de vários para um (10 unidades = 1 dezena, 1 centena = 100 unidades).

No quadro 1 são apresentados os processos mentais encontrados em alguns Contos Clássicos.

Quadro 1 Processos mentais encontrados nos Clássicos Infantis 

Processos mentais encontrados nos Clássicos Infantis
Clássicos Infantis Correspondência Comparação Classificaçãox' Sequenciação Seriação Inclusão Conservação Contagem*
Cachinhos dourados x x x
Branca de neve x x x x x
Três porquinhos x x
Pinóquio x x
O pequeno polegar x x x x x x
Soldadinho de chumbo x x
As 12 princesas dançarinas x x x x
O patinho feio x x x

*Embora Contagem não seja um processo mental, foi incluída no quadro devido à sua importância no processo de construção do conceito de número.

Fonte: Cunha (2019).

Devido às delimitações de espaço deste artigo, não é possível apresentar todos os elementos matemáticos que, presentes nos contos analisados, possibilitam um trabalho voltado para o desenvolvimento dos processos mentais – para um aprofundamento sobre como estes processos mentais para a aprendizagem do conceito de número subjazem nas histórias apontadas no quadro 1, sugere-se o produto técnico elaborado por Cunha e Montoito (2020).

Para este artigo, foi escolhido o processo mental de correspondência para ser comentado, cujas possibilidades de desenvolver um trabalho com os Contos Clássicos que favoreçam o desenvolvimento deste processo serão discutidas a seguir.

O processo mental de correspondência nos Contos Clássicos

O processo mental de correspondência é fundamental na construção do conceito de número e das operações, pois é a correspondência um a um que possibilita a percepção de que a cada quantidade existe um numeral correspondente e, para cada posição, um número ordinal. Esse processo é fundamental, também, durante a contagem, pois, de acordo com Nogueira (2011), ao executar tal atividade, a criança necessita estabelecer correspondência biunívoca termo a termo entre: objeto, gesto, olhar e a palavra-número.

Já a correspondência um para vários é fundamental na compreensão do Sistema de Numeração Decimal, bem como a de vários para um, já que uma dezena corresponde a dez unidades e cem unidades corresponde a uma centena e a dez dezenas. Também está presente na percepção de que 3 x 15 corresponde a 15+15+15. Sem terem este processo bem desenvolvido, as crianças podem apresentar dificuldades nas operações formais, uma vez que não compreendem, de fato, o Sistema de Numeração Decimal.

Para a elaboração de atividades, para crianças da Educação Infantil, que favoreçam o desenvolvimento deste processo, Lorenzato (2011, p. 95) aponta quatro etapas com objetivos distintos que buscam favorecer:

  • a. a percepção visual direta, apresentando uma disposição espacial que ressalta a correspondência ótica, visual, de elemento para elemento.

    Exemplo: o o o o o o o o

    / / / / / / / /

  • b. a percepção visual indireta, pois a disposição espacial dos elementos de um conjunto é diferente da disposição espacial dos elementos do outro conjunto.

    Exemplo: 0 / / /

    0 / / /

    0 0 0 0

  • c. a percepção da correspondência de um elemento de um conjunto, com vários elementos de outro conjunto, e vice-versa. Exemplo: dados dois palhaços, dois chapéus, quatro sapatos e oito botões, as crianças devem dar a cada palhaço um chapéu, dois sapatos e quatro botões.

  • d. Associação de uma mesma ideia presente em dois objetos diferentes. Exemplo: uma cartela com os desenhos de martelo, trem, escova de dente, pé e árvore, e uma outra cartela com os desenhos de prego, folha, bota, trilhos e tubo de pasta de dente.

Tendo em vista estas etapas, buscaram-se, nos Contos, elementos que possibilitassem um trabalho voltado para o processo de correspondência. No quadro 1, é possível identificar em quais histórias foram encontrados elementos matemáticos que permitissem um trabalho voltado para o desenvolvimento do processo mental de correspondência.

No conto Cachinhos dourados (SOUZA, 2015b), tomado aqui como um exemplo possível, durante a narrativa, o pequeno leitor – ou ouvinte – é levado a fazer correspondência para entender o fio condutor da narrativa e distinguir os objetos de cada personagem, cuja 'dica' está no tamanho de cada um (pequeno, médio e grande). Isso pode ser observado na figura 2, em que as camas possuem tamanhos diferentes e cada uma possui um par de chinelos correspondentes, também de tamanhos diferentes. Por isso, é importante que o professor, durante a narrativa, chame a atenção das crianças para estes aspectos – e principalmente para as ilustrações –, com questionamentos que lhes agucem a atenção.

Fonte: Souza (2015b).

Figura 2 Ilustração do livro Cachinhos dourados 

Contudo, na maioria das histórias, são as ilustrações que fornecem elementos para criação de contextos de aprendizagem e atividades de correspondência, por isso é fundamental, ao selecionar uma coleção de Clássicos Infantis, atentar também para a narrativa visual do livro. Atividades que exigem figuras móveis podem ser realizadas utilizando as próprias ilustrações do livro ou outras imagens associadas a estas.

A partir das ilustrações, ainda considerando a história Cachinhos dourados (SOUZA, 2015b), é possível criar cartelas com imagens do papai, da mamãe e do bebê urso e de seus objetos (camas, tigelas, cadeiras e chinelos) em tamanhos grande, médio e pequeno, para pedir às crianças que distribuam os objetos de acordo com seu respectivo dono. A criança deverá estabelecer a correspondência associando as características dos elementos de um grupo às características dos elementos de outro grupo, respeitando a história contada. Não é qualquer cadeira para o papai urso, é uma cadeira que atende à característica de o papai urso ser o maior. Partindo do contexto de comparação de tamanhos, pode-se comparar, entre 2 ou 3 alunos, o tamanho dos pés e pedir aos colegas que associem seus respectivos sapatos; o mesmo pode ser feito com fitas coladas na parede indicando o tamanho de alguns alunos. Este tipo de atividade favorece a percepção visual direta.

No conto Branca de neve (SOUZA, 2016a), utilizando-se de passagens da história (como a que aparece na figura 3), pode-se pedir para as crianças pintarem os objetos (pratos, copos e talheres) de acordo com a cor do gorro de cada personagem da história, e depois fazerem a correspondência dos objetos aos seus respectivos donos, recortando e colando. Neste caso, os alunos necessitam estabelecer a correspondência ao pintar e, posteriormente, ao colar os objetos de acordo com cada cor, o que favorece tanto a percepção visual indireta quanto a direta.

Fonte: Souza (2016a).

Figura 3 Ilustração do livro Branca de neve 

Atividade semelhante pode ser realizada com a história Pequeno polegar (SOUZA, 2016b), na qual podem ser distribuídas algumas cartelas com as princesas da história e com os irmãos do Pequeno Polegar e, outras (em quantidade maior), com gorros e coroas. A partir daí, pede-se às crianças que peguem a quantidade de gorros necessária para cada menino e a quantidade de coroas necessárias para cada princesa. O fato de ter mais objetos que o necessário propicia que a criança relacione os dois conjuntos ao invés de executar a tarefa sem reflexão. É muito importante observar qual estratégia o aluno utiliza para resolver tal atividade, pois isso pode se dar pela contagem, pela correspondência ou pela organização espacial, sendo que essa última privilegia o aspecto figurativo, como no exemplo a seguir:

0 0 0 0 0 0 0 0 0 0

XXXXXXXXXXXXX

A partir da história Os três porquinhos (SOUZA, 2015c), podem ser realizadas atividades semelhantes às realizadas com o conto Pequeno polegar (SOUZA, 2016b), buscando relacionar as casas aos seus respectivos donos e aos materiais utilizados na construção destas. Na narrativa As 12 princesas dançarinas (SOUZA, 2015a), pode-se buscar a correspondência das princesas com os príncipes, com os barcos e com os pares de sapatos, facilitando a percepção da correspondência de um elemento de um conjunto com vários elementos de outro conjunto.

Essas histórias podem servir de contexto para diversas atividades de correspondência a serem realizadas com os alunos e seus objetos, como uma corrida para encontrar seus pares de sapatos, suas mochilas ou outros pertences, além de atividades de correspondência dos alunos com seus familiares. É possível criar também, a partir das ilustrações, jogos de memória associativa.

Por fim, cabe ressaltar que, embora se tenha o objetivo de utilizar a literatura para promover a aprendizagem matemática, é absolutamente imperioso que se garanta que a contação de histórias seja um momento absolutamente lúdico e prazeroso e qualquer questionamento durante a contação deve ser no sentido de aguçar a curiosidade, a imaginação, a antecipação do que está por vir, estimulando a comunicação e a argumentação, tomando sempre o cuidado para não interromper o fio da narrativa.

Considerações finais

A Literatura Infantil amplia o vocabulário, estabelecendo uma relação entre a língua materna e a linguagem matemática, desperta a atenção e a curiosidade em relação a fenômenos naturais ou artificiais e as propriedades dos objetos, possibilitando estabelecer diversas relações entre eles. Além disso, as ilustrações fornecem uma gama de diferentes formas de representações (pictórica, icônica e simbólica), favorecendo que a criança se ancore nestas para fazer as suas próprias representações.

Esse tipo de atividade, em que os professores voltam a sua atenção para livros de Literatura Infantil, não considerados paradidáticos, com o intuito de encontrar elementos que permitam o ensino – não só da matemática –, amplia o leque de possibilidades e permite uma proposta de ensino interdisciplinar.

Os Clássicos Infantis continuam exercendo grande fascínio sobre as crianças que, nesta faixa etária – anos finais da Educação Infantil –, necessitam ouvir e ver os livros várias vezes, pois é ao escutarem uma história novamente que as lacunas de sua compreensão vão sendo preenchidas. Por isso os Clássicos, ainda que conhecidos das crianças, continuam despertando seu interesse e proporcionando o vínculo afetivo e o acionamento cognitivo para aprender (FARIAS, 2006).

O livro de Literatura Infantil proporciona ao pequeno leitor ou ouvinte o recurso da ilustração para ancorar suas hipóteses sobre a história ou desafios propostos pelo professor. Por isso é fundamental facilitar o acesso ao livro contado e permitir que as crianças recorram a ele sempre que sentirem necessidade. Outro ponto importante é explorar a linguagem matemática presente nas narrativas, como as noções de maior e menor, igual e diferente, mais e menos, dentre outras; é o reconhecimento de que existe um "entrelugar" habitado conjuntamente pela matemática e pela literatura (MONTOITO, 2019) que possibilita chamar a matemática para, de certo modo, participar das atividades de contação de histórias.

Embora tenha sido apresentado aqui o processo de correspondência separado dos demais, cabe destacar que os processos mentais se desenvolvem de forma integrada, em que um vai esclarecendo o outro, por isso é importante a criança vivenciar atividades diversas em que possa estabelecer diferentes relações entre os objetos de estudo. Contudo, por questões didáticas, o professor, ao escolher um conto para trabalhar matemática, talvez necessite priorizar alguns processos de acordo com as necessidades da turma ou com as potencialidades da narrativa. A intenção deste estudo foi apontar algumas possibilidades, mas é o professor que deve escolher o que ensinar, de acordo com seus objetivos.

Conforme o exposto, existem muitas possibilidades de inter-relacionar Literatura e Matemática, cabendo ao professor proporcionar esta aproximação de modo a possibilitar aprendizagens mais fecundas, auxiliando a despertar, no aluno, o interesse, a imaginação e o prazer em aprender, bem como incentivando a comunicação, de modo a propiciar que o aluno faça uso real e social da linguagem matemática, articulada com a língua materna.

Referências

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Recebido: 19 de Abril de 2021; Aceito: 18 de Maio de 2022

Autor correspondente: alinepacto@gmail.com

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