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Ciência & Educação

versão impressa ISSN 1516-7313versão On-line ISSN 1980-850X

Ciência educ. vol.28  Bauru  2022  Epub 28-Out-2022

https://doi.org/10.1590/1516-731320220048 

Artigo Original

Processos de in/exclusão de alunos com deficiência em tempos de sindemia covídica

In/exclusion processes for students with disabilities in times of the Covid syndemic

1Universidade Federal do Rio Grande (FURG), Instituto de Educação, Rio Grande, RS, Brasil.

2Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Campus Litoral Norte, Departamento Interdisciplinar, Tramandaí, RS, Brasil.


Resumo:

Este artigo analisa os processos de in/exclusão vivenciados por alunos com deficiência durante o distanciamento social causado pela Covid-19, a partir de respostas a 214 questionários aplicados com docentes e gestores, atuantes em diferentes etapas da Educação Básica. Mediante análise do discurso de orientação foucaultiana, evidenciaram-se dois eixos de discussão: o primeiro aponta para um acirramento das desigualdades escolares e um enfraquecimento da democracia; e o segundo diz respeito a práticas de in/exclusão desenvolvidas por meio da individualização das atividades docentes e a outras elaboradas colaborativamente. Por fim, considera-se a escola como espaço comum na produção de práticas mais includentes.

Palavras-chave: Inclusão escolar; Deficiência; Práticas pedagógicas; Pandemia

Abstract:

This paper analyzes processes of in/exclusion experienced by students with disabilities during the social distancing caused by Covid-19, considering the answers to 214 questionnaires administered to teachers and school managers working in different stages of Basic Education. Following a Foucauldian discourse analysis, two discussion axes have emerged: the first one points out the strengthening of school inequalities and the weakening of democracy; the second is related to both practices of in/exclusion carried out through the individualization of teacher activities and practices carried out collaboratively. Finally, the school is regarded as a common space for producing practices that are more inclusive.

Keywords: School inclusion; Disability; Pedagogical practices; Pandemic

Introdução

Este artigo problematiza os processos de in/exclusão produzidos por meio de práticas pedagógicas voltadas a alunos com deficiência matriculados em diferentes instituições escolares em distintos Estados do Brasil, durante o distanciamento social causado pela Covid-19. Tais práticas foram descritas por profissionais da área da Educação, especialmente professores e professoras que atuam na Educação Básica, assim como gestores e gestoras. Buscou-se mapear como os professores organizaram suas práticas em relação aos alunos com deficiência, tendo em vista esse contexto atípico que surpreendeu a todos no início do ano letivo de 2020. Em função da variedade de notícias veiculadas nas grandes mídias sobre a educação e o ensino a serem ofertados nas escolas nesse período, torna-se urgente apresentar uma análise do ponto de vista da educação e dos professores que atuam nas escolas, buscando organizar práticas que possam dar continuidade a seu trabalho contemplando todos os alunos.

Com essa intenção, aproximamo-nos da perspectiva foucaultiana de análise do discurso, na medida em que as respostas dos participantes às questões são analisadas a partir do que é dito, identificando-se tais respostas como condizentes aos discursos que circulam no presente, constituindo suas formas de pensar. Esses discursos, muitas vezes, são tomados como verdades do campo educacional, sejam eles relativos à necessidade de desenvolver práticas específicas e adaptadas aos estudantes com deficiência, sejam aqueles que acreditam que todos devem receber a mesma condução pedagógica e atividades sem tratamento diferenciado. Outro conjunto de discursos encontra-se em uma linha muito tênue entre aspectos sociais e educacionais que acabam reforçando a desigualdade escolar, com isso articulando-se a um processo de (des)democratização, o que será abordado no decorrer deste texto.

Para discutir sobre essas questões, o texto divide-se em quatro seções. A primeira seção apresenta esta breve introdução. A segunda mostra os caminhos metodológicos, evidenciando a problematização dos dados para a discussão sobre práticas de in/exclusão numa perspectiva foucaultiana da análise de discurso. A terceira seção procura descrever os efeitos do Ensino Remoto Emergencial e os processos de in/exclusão daí decorrentes. Na quarta seção, analisam-se os dados coletados na pesquisa, a partir de dois eixos analíticos: o primeiro diz respeito ao acirramento das desigualdades escolares e ao enfraquecimento da democracia, quando não é possível identificar algum tipo de atendimento aos alunos com deficiência; no outro identifica-se, a partir das práticas descritas pelos professores entrevistados, um trabalho pedagógico que enfatiza os processos de individualização voltados aos sujeitos com deficiência e, em menor proporção, uma ação pedagógica que se organiza mediante um trabalho colaborativo. Como considerações finais, destacam-se algumas perspectivas para continuarmos pensando, no período pós-pandêmico, sobre a escola como espaço comum que percebe a potência da diferença para a relação com o outro e a produção de práticas mais includentes.

Apresentação dos dados da pesquisa e caminhos metodológicos

Traçamos os caminhos metodológicos a partir de um trabalho de investigação proveniente de uma pesquisa maior, que visa problematizar os discursos de individualização que perpassam as políticas de inclusão escolar na contemporaneidade. Com a emergência de uma nova configuração do ensino, em decorrência da sindemia de Covid-19, no ano de 2020, sentimos a necessidade de reorganizar a pesquisa e então investigar como as escolas estão atendendo os alunos com deficiência neste momento sindemico.

Antes de apresentar os caminhos metodológicos da investigação, torna-se importante justificar a nossa escolha pela expressão sindemia covidíca para se referir a conhecida pandemia da Covid-19. Em setembro de 2020, o editor-chefe da The Lancet (HORTON, 2020, p. 874, tradução nossa) afirmou que "[...] a COVID-19 não é uma pandemia. É uma sindemia". Tal termo vem sendo utilizado em diferentes instâncias do campo acadêmico para abordar problemas que se situam em âmbitos aparentemente distintos (sanitário, sociocultural, ambiental) mas que combinados levam a sua potencialização. Para Veiga-Neto (2020, p. 4), sindemia foi "[...] o conceito criado pelo antropólogo-médico estadunidense Merrill Singer, na década de 1990, para designar as combinações sinérgicas entre a saúde de uma população e os respectivos contextos sociais, econômicos e culturais". Ou seja, as possibilidades de transmissão da Covid-19, os efeitos que ela causa nos grupos populacionais, a maneira como atinge mais fortemente determinados grupos ou não, seu gerenciamento em termos políticos, sociais e informacionais, tudo isso reúne um conjunto de situações muito complexas, que não se restringem à pandemia em si, ampliando-se nas sinergias que a orbitam, a produzem, a expandem ou a controlam. Veiga-Neto (2020) alerta, ainda, que neologismo sindemia pode ser bastante útil para analisarmos a combinação e a potencialização de problemas que se situam nos âmbitos sanitário, sociocultural e ambiental, tornando-se fundamental para pensar seus efeitos no campo da educação e a intensificação das desigualdades sociais.

Foi pensando justamente na potência deste conceito para esta investigação que optamos em utilizar tal termo nesta escrita. Assim, a partir de agora e inspiradas nas orientações de Veiga-Neto (2020), quando nos referirmos a atual pandemia da COVID-19 utilizaremos a expressão sindemia covídica.

Esta pesquisa foi desenvolvida de forma interinstitucional por dois Grupos de Pesquisa, o Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação e In/Exclusão (GEIX), da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), e o Grupo de Estudos e Pesquisa em Disciplinamento (GPED), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) – ambos com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) –, e teve dois momentos distintos. No primeiro, analisamos notícias de três sites de sindicatos gaúchos: Sindicato do Ensino Privado (SINEPE), Sindicato dos Professores do Ensino Privado (SINPRO) e Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul (CPERS), assim como reportagens publicadas na versão online do jornal Zero Hora no período de 16 de março a 31 de maio de 2020. As matérias selecionadas, em um total de 44 reportagens, tinham em seu conteúdo referências às formas de organização dos processos de ensino no modo remoto. O Ensino Remoto Emergencial é

[...] uma modalidade de ensino ou aula que pressupõe o distanciamento geográfico de professores e estudantes e foi adotada nos diferentes níveis de ensino, por instituições educacionais no mundo todo, em função das restrições impostas pelo COVID-19, que impossibilitou a presença física de estudantes e professores nos espaços geográficos das instituições educacionais. (MOREIRA; SCHLEMMER, 2020, p. 8).

O segundo momento da pesquisa abrangeu os meses de maio e junho de 2020, com aplicação de questionário on-line, para compreendermos como os docentes de todas as regiões do país, atuantes em todas as etapas da Educação Básica (EI, EF e EM), estavam desenvolvendo seu trabalho. Esse questionário foi amplamente divulgado pelas redes sociais Instagram e Twitter, e os docentes e gestores puderam relatar suas experiências pedagógicas nos tempos sindêmicos. No total, obtivemos 214 respostas, com uma representatividade de vários estados brasileiros1, porém, com centralidade na região Sul do Brasil, mais precisamente, envolvendo docentes e gestores que atuam no estado do Rio Grande do Sul. O questionário contou com a participação de professores e coordenadores pedagógicos que atuam nas redes públicas (municipal, estadual e federal) e na rede privada. A maior participação foi da rede pública municipal, e a menor, da rede pública federal, conforme podemos visualizar no gráfico 1.

Fonte: elaborado pelas autoras, a partir dos dados da pesquisa.

Gráfico 1 Redes de Ensino 

Além disso, foi possível perceber que a maioria dos respondentes é de professores que atuam em sala de aula, tendo maior representatividade aqueles que trabalham nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental e na Educação Infantil. É importante notar que alguns respondentes atuam em mais de uma etapa da Educação Básica, concentrando suas atividades, na maior parte das vezes, em Educação Infantil e Ensino Fundamental. Esses dados podem ser melhor visualizados no gráfico 2.

Fonte: elaborado pelas autoras a partir dos dados da pesquisa.

Gráfico 2 Atuação dos participantes da pesquisa 

Tendo apresentado o perfil dos participantes da pesquisa, é preciso destacar que este artigo focaliza suas análises no segundo momento da pesquisa, mais especificamente, nas respostas referentes à forma como o atendimento aos alunos com deficiência vem sendo desenvolvido neste momento de sindemia covídica. Nossa intenção, com tal questionamento, é conhecer as práticas pedagógicas que foram propostas aos alunos com deficiência neste momento e, com isso, levantar problematizações de como esse contexto produziu processos de in/exclusão.

Salienta-se que, na perspectiva adotada neste trabalho, não há uma separação entre as palavras e as coisas, entre o que se diz e o que se faz em educação. O entendimento foucaultiano de discurso tem nos possibilitado produzir uma 'amarração' bastante produtiva entre as palavras e as coisas, entre os discursos proferidos e o ordenamento do mundo social. Segundo Sommer (2005, p. 14), "[...] não se pode afirmar que exista uma contradição entre o dito e o feito em nossas escolas. O que se faz é condicionado pelo que se diz [...]". Ou seja, a teorização pós-estruturalista, na qual nos movimentamos, coloca em xeque aquelas narrativas que afirmam o descompasso entre os discursos e as práticas, entre o que se diz e o que realmente se faz, enfim, entre as palavras e as coisas. Para isso, Foucault (2002, p. 56) propõe uma tarefa bastante instigante, que "[...] consiste em não mais tratar os discursos como conjuntos de signos (elementos significantes que remetem a conteúdos ou a representações), mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam."

Assim, compreendemos que as narrativas materializadas nos questionários não estão dissociadas de tudo aquilo que vem sendo posto em prática pelas escolas brasileiras no Ensino Remoto Emergencial. A atuação no campo pedagógico passa a ser constituída por uma série de discursos que circulam e que legitimam determinadas formas de fazer educação. O que se diz sobre ensino, o que se fala sobre o saber pedagógico ou sobre a inclusão escolar, constitui determinadas verdades que moldam formas de agir na escola e de conduzir nossa prática docente. É com esse entendimento que analisamos os ditos expressos no material, especialmente as respostas às questões: há algum atendimento específico para os alunos com deficiência neste momento de sindemia covidíca? Quais? E como vêm ocorrendo?

O ensino remoto emergencial e os processos de in/exclusão dos alunos com deficiência

Ferreira e Lockmann (2021) descrevem esse contexto sindêmico a partir de outras pandemias, como foi o caso da gripe espanhola de 1918 e da gripe H1N1 de 2009. As autoras, mediante análise de documentos históricos e outros da atualidade, observam que a disseminação da informação, seja ela qual for, produz efeitos na forma de conduzir a vida dos sujeitos e da população.

O que nos interessa mostrar, a partir do estudo, é que as práticas pedagógicas desenvolvidas nesse período sindêmico dependeram muito, e principalmente, da organização das escolas investigadas para se adequarem a esse contexto. Ferreira e Lockmann (2021) afirmam que não se trata de culpabilizar uma ou outra instância, seja a escola, os professores ou as famílias, pela descontinuidade do processo escolar ou pelo acirramento das desigualdades. No entanto, o estudo citado apontou possibilidades de organizar um trabalho escolar mais coletivo e cooperativo, partindo das condições que o atual momento exige. Uma escola "[...] que promove o diálogo entre os professores e a equipe como um todo, especialmente diante do momento pandêmico em que estamos vivendo, potencializa o trabalho pedagógico e o enriquece." (FERREIRA; LOCKMANN, 2021, p. 25).

No contexto do ensino remoto, importa aproximarmo-nos dessa perspectiva de análise para pensar em como esses sujeitos, historicamente excluídos do processo educacional formal, vêm tendo algum tipo de atendimento na escola. Se, em uma situação de ensino presencial, esse atendimento já exigia problematizações, discussões e estudos frequentes, a fim de (re)organizar o trabalho pedagógico escolar, podem-se imaginar os desafios que ele impõe neste momento de Ensino Remoto Emergencial.

Para os autores Masschelein e Simons (2013), na contemporaneidade, a escola necessita responder a imperativos da sociedade de aprendizagem. Isso significa que os princípios que a organizam estão pautados pelo mercado, com vistas a desenvolver determinadas competências e habilidades, visando à eficiência dos alunos, bem como à sua preparação para a vida profissional. No contexto da sindemia covídica, as escolas precisaram:

[...] inventar estratégias que consigam transferir seu funcionamento para dentro da casa de estudantes e professores. Assim, as escolas devem orientar seus professores a inventarem essas estratégias, tendo em vista que, como mostra a empiria desta pesquisa, a maior parte da responsabilidade em lidar com essa questão foi delegada aos docentes de modo individualizado. Nem escolas, nem redes de ensino, conseguiram, em um primeiro momento, desenvolver planejamentos abrangentes e produzir orientações claras sobre como os docentes deveriam proceder. (SARAIVA; TRAVERSINI; LOCKMANN, 2020, p.17).

Sabemos que a garantia de participação e aprendizagem dos alunos nesse modelo de ensino remoto emergencial, que conta com a cultura digital, não é responsabilidade apenas do professor, ainda que lhe caiba preocupar-se com as adaptações do ensino. Além disso, adaptar tais estratégias, considerando os alunos com deficiência, constitui-se em mais um desafio. Esse processo vai exigir outras intervenções da escola, bem como investimentos da gestão governamental, a qual deverá garantir o mínimo de acesso dos alunos e dos professores às redes de informatização e tecnologias. O acesso às tecnologias não pode ser restrito à discussão sobre o trabalho docente, se ele está ou não preparado para essas mudanças. A transferência do modelo escolar para as casas dos estudantes requer análises críticas sobre a 'exaustão docente', tal como discutido pelas autoras citadas.

O uso das ferramentas digitais é colocado como imprescindível para o desenvolvimento das competências e habilidades dos estudantes, conforme apresenta a Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017, p. 572), no que tange à competência número cinco, o uso das ferramentas deve ser feito "[...] de forma crítica, significativa, reflexiva e ética [...]". Porém, precisamos considerar que grande parcela dos estudantes foi excluída desse processo remoto. Segundo o site da Agência Brasil (CAMPOS, 2020), "[...] mesmo com as opções de atividades para a continuidade das aprendizagens em casa, pelo menos 4,8 milhões de crianças e adolescentes em todo o Brasil não têm acesso à Internet". Além disso, a Agência divulgou que existem outros milhões com acesso precário ou falta de equipamento, não podendo manter o vínculo com a escola durante todo o período de isolamento social.

Diante desse cenário, que acirra as desigualdades social e educacional, precisamos perguntar-nos sobre o que esse confinamento está produzindo nesses sujeitos que já carregam marcas da exclusão dentro da escola. Analisar essa questão da pesquisa, sobre o atendimento específico para os alunos com deficiência, neste momento de sindemia covídica, permite-nos problematizar o tema da inclusão e as formas como ela vem operando, especialmente no contexto da educação escolar durante o Ensino Remoto Emergencial.

Nesse sentido, os discursos em prol da Educação Inclusiva não podem ser tomados de forma restrita ao âmbito pedagógico, ainda que ele seja fundamental. Ao contrário, nossa proposta é tomar a inclusão como uma temática que merece ser analisada a partir de um conjunto de elementos que marcam a necessidade de ela estar presente no contexto da educação e da escola, assim como no contexto social, garantindo participação e aprendizagem a todos. Argumentamos que vivemos hoje processos de in/exclusão, que ora incluem os sujeitos, ora os excluem, mediante as mais variadas práticas criadas pela escola no presente.

Esses processos de in/exclusão não se restringem apenas ao que ocorre com os sujeitos público-alvo da Educação Especial, o qual é definido pela Política da Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva como: pessoas com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação. (BRASIL, 2008).

Compreende-se a necessidade de, por um lado, haver tal demarcação para atender às especificidades desses sujeitos; por outro lado, precisa-se tensionar o uso desses diagnósticos que definem suas identidades no contexto da escola e da sala de aula. Buscamos escapar dessas classificações para pensar esses sujeitos, considerando suas diferenças e não apenas os diagnósticos. As diferenças, antes de serem um problema a ser resolvido, são vistas como potencialidades dos sujeitos que demandam por práticas pedagógicas planejadas a partir de múltiplos fatores. Se acreditamos que esses sujeitos constituem suas identidades a partir das relações que estabelecem com o outro, então, tais relações são pensadas por meio de processos de in/exclusão. Tal processo exigirá uma atuação pedagógica que estará não apenas voltada a alterar a situação de exclusão do sujeito, mas também atenta às relações que ele pode estabelecer nesse contexto a fim de constituir-se de outros modos, ocupando outros lugares, que não somente esse marcado pela exclusão.

Olhando-se para tais relações, considera-se que esses sujeitos, bem como todos os demais que ocupam esse espaço escolar, são constituídos por múltiplos marcadores culturais, como gênero, raça, etnia e geração, entre outros, e não só por aqueles relativos a aspectos individuais ou cognitivos. Assim, considera-se os sujeitos a partir de suas diferenças e da necessidade de garantir um olhar atento às suas especificidades de aprendizagem, as quais são orientadas pelas políticas de inclusão, tal como descrito anteriormente.

Também nos inspiramos em estudos anteriores, como o de Veiga-Neto (2001), em que o autor já apontava a noção de in/exclusão como fortemente pautada nos processos de subjetivação dos sujeitos. Se os alunos com deficiência estão hoje dentro da escola regular é por força de lei, e buscamos garantir que aprendam por algumas estratégias específicas que, muitas vezes, marcam esse lugar da exclusão: da deficiência, da falta, do déficit, dos marcadores que mostram a sua ineficiência e incapacidade para aprender como os demais. Essa concepção binária eficiência e deficiência ou incluído e excluído, construída a partir de um projeto de sociedade moderna que tem a escola como seu grande operador, de acordo com o autor, precisaria ser problematizada. De modo mais recente, vemos desenhar-se uma proposta de escola inclusiva, reafirmando esse projeto.

Quando utilizamos o termo in/exclusão, não estamos nos aproximando desse projeto totalizador de sociedade no qual se busca uma posição de inclusão como uma condição permanente para todos. Embora a in/exclusão tenha como princípio a inclusão de todos, o termo pretende evidenciar justamente os processos excludentes que podem ocorrer por dentro da própria inclusão. Estar na escola não garante que a inclusão aconteça para todos os sujeitos. A condição de incluído não está assegurada apenas pelo âmbito institucional ou pelo espaço físico ocupado. No caso, a inclusão na escola regular precisa possibilitar a todos o acompanhamento dos processos de ensino e de aprendizagem. Mais do que uma questão que tem sido muito enfatizada ultimamente sobre a adaptação ou flexibilização curricular, precisamos pensar nesse princípio da inclusão como um direito de todos à escolarização. A forma como essa escolarização vem ocorrendo nesse contexto de sindemia covídica é o que estamos nos propondo a analisar. De modo mais específico, analisamos os tipos de práticas que estão sendo desenvolvidas com os sujeitos da inclusão, conforme narram os docentes da Educação Básica.

Acirramento das desigualdades escolares e (des)democratização

Em um primeiro movimento analítico, o que percebemos foi um silenciamento no que se refere ao trabalho pedagógico direcionado aos alunos com deficiência. Observou-se que a maioria dos professores e gestores não menciona qualquer tipo de atendimento ou prática pensada para os alunos com deficiência neste momento de sindemia. Das 214 respostas, um total de 127 dizem não ser realizado nenhum trabalho ou que trabalham da mesma forma com todos os alunos, ou ainda, que não sabem informar se de fato existem algumas práticas direcionadas a esse público. Para mostrar as especificidades das respostas, trazemos o gráfico 3.

Fonte: elaborado pelas autoras a partir dos dados da pesquisa.

Gráfico 3 Atendimento aos alunos com deficiência na sindemia covídica 

Nesse contingente de 127 respostas negativas à pergunta sobre formas de atendimento para sujeitos com deficiência, visualizamos alguns entendimentos expressos nas respostas a seguir:

Questionário 94, Porto Alegre, RS: Se estão ocorrendo, eu desconheço. Meus alunos com deficiência intelectual, que frequentavam a Sala de Integração e Recursos, não estão sendo atendidos.

Questionário 8, Itajaí, SC: Desconheço, e não recebemos nenhuma orientação sobre como proceder.

Questionário 12, Jataí, GO: Não. Inclusive, é mais complicado planejar um trabalho com alunos que possuem laudo ou algum transtorno; logo, eles estão sofrendo com a adaptação.

Questionário 26, Novo Hamburgo, RS: As atividades são sugeridas para todos os alunos.

Questionário 200, Porto Alegre, RS: Não especificamente. Há videoaulas disponibilizadas, mas nada diferente...

Questionário 61, Agudo, RS: Especificamente, não. Até porque eles têm as atividades da classe comum, e os pais não têm muito acesso a recursos para ajudar seus filhos.

A partir dessas evidências de inexistência ou de desconhecimento do atendimento dispensado a essa parcela do alunado no período sindêmico, importa mostrar algumas condições que favorecem esse tipo de encaminhamento por determinados professores. Não pretendemos aqui direcionar um olhar de julgamento aos professores pela inexistência ou desconhecimento de tais práticas, até porque, como demostram Ortiz, Corrêa e Lockmann (2021), o professor vivencia, no contexto pandêmico, uma espécie de solidão docente na condução do seu trabalho, decorrente de um processo de responsabilização que recai muitas vezes apenas sobre ele. Trata-se de olhar além dos professores, considerando também as escolas e suas mantenedoras, as quais estão envolvidas nesses processos de in/exclusão. Compreendemos que é necessário pensar mais em ações coletivas do que em percepções individualizadas a respeito da atividade pedagógica, que geralmente remetem a julgamentos sobre ela. Ao problematizarmos tais condições, consideramos importante um conjunto de elementos imprescindíveis para a realização da atividade docente escolar, tais como pedagógicos, formativos, estruturais, conceituais, entre outros.

Diante desse cenário, professores e pesquisadores buscam criar soluções e medidas para minimizar os grandes impactos educacionais. O Ensino Remoto Emergencial, de acordo com Ferreira e Lockmann (2021), ganha visibilidade no cenário nacional e mundial durante a sindemia covídica, com a necessidade do distanciamento geográfico entre alunos e docentes. Os computadores e os celulares passam a ser privilegiados como meios de comunicação da sala de aula. No entanto, esse confinamento não pode criar um estado de isolamento no currículo, porque este é um espaço de partilha que precisa considerar as relações sociais, históricas e culturais dos sujeitos envolvidos. Se, por um lado, podemos viver um excesso de práticas digitalizadas, por outro, temos muitas famílias sem condições econômicas e sem acesso às tecnologias digitais que garantem, no mínimo, o acesso às plataformas digitalizadas que as escolas vêm oferecendo, de acordo com Campos (2020).

Mendes, Pletsch e Lockmann (2020) perguntam-se sobre como grupos minoritários, como os de pessoas com deficiências e de outros, que residem em contextos sociais vulneráveis, têm participado desse processo escolar em tempos de Ensino Remoto Emergencial. As autoras apresentam um dossiê com pesquisas no campo da Educação que nos convocam a discutir esse quadro complexo dos movimentos educacionais produzidos como resposta aos impactos da sindemia de Covid-19 no Brasil e no mundo. Os efeitos produzidos na e para a educação são evidentes, segundo as autoras:

[...] o aprofundamento das desigualdades sociais, as limitações do modelo de educação remota, o acirramento das exclusões de determinados grupos sociais, a intensificação do trabalho docente e os impedimentos de convívio com o outro que esses tempos acionam. De outra parte, [...] a potência da escola, os esforços docentes, o envolvimento da família e a resiliência do humano diante de um mundo em estado de exceção. É também por isso que conseguimos, mesmo nesses tempos sombrios, adiar o fim da escola e mostrar sua força como espaço público, comum e democrático de encontro com o outro. (MENDES; PLETSCH; LOCKMANN, 2020, p. 5-6).

Acreditando na potência da escola é que evidenciamos, a partir de 87 respostas dos docentes entrevistados, algumas formas de atendimento aos alunos com deficiência durante esse período de ensino remoto. Muitos docentes, apesar de reconhecerem a necessidade de os alunos continuarem recebendo esse atendimento específico, apontam os desafios pedagógicos implicados, em grande medida, nas questões sociais vivenciadas pelas famílias desses alunos. Reforçam que são perceptíveis as carências da família em relação ao tempo e às condições de acompanhamento dos estudos dos filhos, bem como a falta de recursos tecnológicos, como o acesso à internet para participação nas aulas e ou para impressão dos materiais enviados aos alunos.

Nesse sentido é que nos colocamos a pensar sobre o acirramento das desigualdades sociais neste momento. Falar da potencialização de determinados problemas sociais e educacionais em meio à sindemia covídica já é lugar comum, especialmente no Brasil, um país povoado por desigualdades múltiplas (DUBET, 2020). Entretanto, o que nos parece importante analisar aqui são os efeitos que o acirramento das desigualdades sociais pode produzir e vem produzindo para a própria democracia, uma vez que fragiliza direitos já conquistados, promovendo um processo de (des)democratização.

É preciso lembrar que, para Wendy Brown (BROWN, 2019), a democracia tem como base a igualdade, e não só a liberdade. A autora recorre à etimologia da palavra democracia e lembra-nos de que demos, em grego, significa povo e kratos, poder ou governo. Assim, "[...] a democracia significa os arranjos políticos por meio dos quais o povo governa a si mesmo" (BROWN, 2019, p. 33), um governo exercido por todos e para todos. Portanto, a igualdade de oportunidades deve ser a base da democracia. A autora destaca que:

Quando a igualdade política está ausente, seja por exclusões ou privilégios políticos explícitos, pelas disparidades sociais ou econômicas extremas, pelo acesso desigual ou controlado ao conhecimento, ou pela manipulação do sistema eleitoral, o poder será inevitavelmente exercido por e para uma parte em vez do todo. O demos (povo) deixa de governar. (BROWN, 2019, p. 33).

A falta de igualdade de condições, por exemplo, pode fragilizar a própria democracia, uma vez que esta não garante direitos igualitários a todos os sujeitos. Podemos perceber que a democracia sempre foi frágil no Brasil e talvez nunca tenha se realizado plenamente. As desigualdades sociais já existiam sobremaneira antes desse momento sindêmico, mas alguns direitos básicos, como o direito à educação, mantinham-se presentes para a maioria da população brasileira. O fato é que, com a chegada da pandemia, até mesmo esses direitos foram sucateados, pois eles dependiam de outros direitos para se manterem presentes, como, por exemplo, o direito à conectividade e ao acesso a equipamentos tecnológicos. Como esses direitos nunca foram garantidos no Brasil, a falta de democratização da internet, por exemplo, produziu a falta de democratização da própria educação.

Isso fez com que os professores buscassem insistentemente outras maneiras de disponibilizar atividades e conteúdos aos alunos, de forma assíncrona e muitas vezes em material impresso. Porém, se tal formato já se apresenta muito precário para a grande maioria dos alunos, o que se dirá quando a isso se acrescentam as especificidades dos sujeitos com deficiência, suas necessidades de interação e de aportes pedagógicos para a condução do trabalho escolar? Talvez justamente por isso, identificamos uma insistência dos professores em manter contato com as famílias, mesmo diante de todas as dificuldades acentuadas pela sindemia covídica.

Essa persistência em manter contato com as famílias aparece descrita pelos professores como fundamental para a continuidade do trabalho pedagógico com esses alunos. A seguir, os professores mencionam essas preocupações:

Questionário 160, São Leopoldo, RS: O NAPPI iniciou reuniões com as professoras de salas AEE. As professoras têm realizado contato com as famílias para fazer acompanhamentos que possam ser necessários frente ao momento.

Questionário 168, Porto Alegre, RS: Nas duas escolas, as professoras responsáveis pela SIR. [Sala de Integração e Recursos] comunicaram que entraram em contato com as famílias dos/as alunos/as com necessidades educacionais especiais e se colocaram à disposição para auxílio nesse momento. Não há postagens específicas das professoras referências das turmas para esses/as alunos/as, com o intuito de não expor essas crianças.

Questionário 210, Alegrete, RS: Os alunos recebem materiais impressos de acordo com suas habilidades, e o contato com a família é de extrema importância. Para o próximo mês, os professores estarão auxiliando estes alunos na escola ou nas suas residências, conforme agendamento.

Questionário 87, Porto Alegre, RS: Sim, a professora da SIR [Sala de Integração e Recursos] organizou um grupo de WhatsApp com os pais dos alunos com deficiência e envia as atividades adaptadas pelos professores diretamente para essas famílias. No entanto, há muitas limitações, pois nem todos os responsáveis têm acesso à internet, nem capacidade de imprimir tarefas [no caso dos alunos pequenos].

Essa preocupação da escola em envolver as famílias no acompanhamento das aprendizagens dos alunos sempre esteve presente. A família tem sido geralmente acionada pela escola para compartilhar as responsabilidades de acompanhamento escolar das crianças ou jovens. A ausência das famílias e o não acompanhamento do trabalho pedagógico, que anteriormente a este momento pandêmico já se colocava como um problema, agora são uma justificativa para que a escola, muitas vezes, abra mão do seu compromisso com o ensino e a aprendizagem dos sujeitos. Nesse contexto, é possível perceber que tais fronteiras das responsabilidades de cada âmbito se misturam, se confundem. A escola aciona as famílias para realizarem o acompanhamento, mas estas acusam a escola de não realizar seu trabalho, agravando ainda mais as desigualdades daqueles grupos de alunos, geralmente à margem das práticas pedagógicas desenvolvidas com e para a turma como um todo.

Argumentamos, então, que o acirramento de tais desigualdades escolares ocorre quando as responsabilidades são imbricadas e indefinidas. Sabemos que o momento exige e, em certa medida, continua exigindo esse distanciamento físico da escola, que confinou os alunos em suas casas, delegando às famílias determinadas responsabilidades que antes não faziam parte de suas rotinas. No entanto, parece-nos necessário compreender que continua cabendo à escola evidenciar a sua condução pedagógica. Essa condução exigirá ainda maior clareza em relação às aprendizagens de todos os alunos, mas especialmente daqueles com deficiência que não tiveram a oportunidade de dar continuidade ao seu processo escolar durante esse período.

Práticas de in/exclusão: trabalho pedagógico individualizado ou colaborativo?

Diante das respostas dos professores sobre a ação pedagógica com os alunos com deficiência, evidenciam-se dois movimentos: um deles, em sua maior parte, pressupõe um trabalho pedagógico individualizado, que se dá por encaminhamentos de atividades, pelo professor, diretamente aos alunos; envio de propostas aos estudantes pelo docente do AEE; encaminhamento de tarefas por outro profissional/estagiário/monitor, que seria o apoio à inclusão de alunos com deficiência. O outro movimento, em menor quantidade, aponta para alguns professores que realizam tentativas de construção de uma ação pedagógica mais colaborativa em relação aos alunos com deficiência.

Iniciamos a discussão pelo primeiro movimento, relativo ao trabalho pedagógico individualizado, destacando algumas práticas citadas pelos docentes:

Questionário 34, Canoas, RS: Sim, temos atendido os alunos especiais, mandando atividades adaptadas.

Questionário 44, Campo Bom, RS: Sim, para as crianças com necessidades especiais, há uma professora designada para criar propostas adaptadas para elas.

Questionário 90, Canoas, RS: Eu me disponibilizei e realizo planejamento separado para minha aluna com Síndrome de Down. Nem todos os meus colegas tiveram a mesma atitude.

Questionário 50, Herval do Oeste, SC: Para alunos que têm segundo professor, as aulas são adaptadas pelo segundo professor. Em uma das escolas em que trabalho, tem um aluno que não tem segundo professor; o professor de cada disciplina adapta, e os pais tentam ajudar. Não sei como os segundos professores estão realizando esse atendimento.

Questionário 15, Sorocaba, SP: Apenas os alunos que possuem professora auxiliar.

Questionário 104, Balsas, MA: Eles estão sendo atendidos e orientados pelas auxiliares de sala, que os acompanham por aplicativos online em chamadas ao vivo.

Questionário 139, Florianópolis, SC: Sim, os professores enviam tarefas diferenciadas diretamente para o e-mail do aluno, junto ao e-mail do responsável e da monitora. A monitora dá atendimento por videochamada pelo aplicativo WhatsApp.

As práticas descritas remetem a uma organização do trabalho pedagógico de modo individualizado. Por um lado, temos o professor regente enviando atividades adaptadas para os alunos com deficiência, considerando suas especificidades a partir de um planejamento. Por outro temos outros profissionais (monitor, professor auxiliar, segundo professor) realizando tais adaptações, muitas vezes sem articulação com o trabalho do professor regente, que, inclusive, desconhece "como os segundos professores estão realizando esse atendimento". São tarefas ou atividades realizadas pelo professor ou por outro profissional, a fim de atender à premissa de que algo precisa ser encaminhado a esses alunos, mas as atividades encaminhadas, de um modo geral, não estão necessariamente articuladas àquelas realizadas pelos demais alunos da turma.

Pode-se perceber que esse processo de individualização ocorre com a figura do professor, tal como mostraram as autoras Ortiz, Corrêa e Lockmann (2021), mas também em relação ao aluno, quando recai sobre ele a responsabilidade de aprender, pois o professor da sala de aula ou do AEE, ou ainda, o auxiliar e o monitor são acionados para ofertarem atividades e tarefas adaptadas a esses alunos. Esse processo de individualização pode ser associado ao que os autores Dardot e Laval (2016) discutem sobre o neoliberalismo, em que destacam a sua capacidade de destruir a dimensão coletiva das experiências dos sujeitos.

[...] uma individualização radical que faz com que as formas de crise social sejam percebidas como crises individuais, todas as desigualdades sejam atribuídas a uma responsabilidade individual. A maquinaria instaurada ‘transforma as causas externas em responsabilidades individuais e os problemas ligados ao sistema em fracassos pessoais’. (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 348)

A partir dessa perspectiva, mediante o 'esforço' da escola em organizar e adaptar o trabalho pedagógico, seja com os professores regentes, com auxiliares ou monitores, os alunos com deficiência que não acompanham seriam os responsáveis por seus próprios fracassos.

De acordo com Sherer e Gräff (2017), as adaptações curriculares que, em um determinado período, eram vistas como solução para os problemas relativos aos alunos incluídos na escola regular, passaram a ser compreendidas como algo não suficiente no contexto escolar. Não bastaria adaptar a escola, a sala de aula e mesmo as atividades se a escola não modificasse o currículo escolar. Essa ênfase nas questões curriculares remete à ideia de que uma flexibilização curricular seria mais adequada para um contexto em que, não somente o aluno com deficiência precisaria ser considerado, mas todos em suas diferenças. Segundo as autoras citadas, o processo de ensino e de aprendizagem, no contexto escolar, passou a exigir, na atualidade, uma educação customizada, que deveria ser pautada nas flexibilizações curriculares para todos. Para Sherer e Gräff (2017, p. 391), "[...] mais do que adaptar o currículo para que os alunos com necessidades educacionais especiais aprendam, a necessidade se volta para uma educação customizada para todos.”

Essa ideia de uma educação customizada, adequada à turma, vem ao encontro da perspectiva neoliberal, a qual, sustentando-se na concorrência como uma forma de vida, compreende o sujeito como flexível e a escola, pautada na flexibilização curricular, como uma instituição que pode garantir aprendizagem de todos e de cada um por meio de perspectivas individualizadas. As flexibilizações curriculares, portanto, podem percorrer "[...] um caminho individualizado na sua escolarização, com base em seus gostos, preferências, dificuldades e facilidades" (SHERER; GRÄFF, 2017, p. 392).

Até aqui, vemos uma ênfase nas práticas de individualização apontadas na grande maioria das respostas dos docentes que participaram da pesquisa – seja uma individualização do professor regente, do professor de AEE ou do monitor escolar, que se veem sozinhos e responsáveis pela elaboração de propostas pedagógicas adaptadas aos sujeitos com deficiência, seja do aluno, que, nessa lógica neoliberal, passa também a ser responsabilizado pelo fracasso ou pelo sucesso de sua aprendizagem. Mais do que nunca, o Ensino Remoto Emergencial e seu desenvolvimento no contexto doméstico e privado da família potencializaram esses processos de individualização discente e docente.

Entretanto, encontramos, na pesquisa, vozes dissidentes: professores e escolas que tentaram elaborar propostas mais coletivas e colaborativas. Eis o segundo movimento apontado por nós nesta investigação: o trabalho pedagógico colaborativo. Este não exclui o primeiro movimento, mas aponta para a realização de um trabalho pedagógico diferenciado que toma o currículo de forma central. Porém, não se trata de afirmar que essa maneira seria uma solução para a criação de propostas não individualizadas, que não passam pela necessidade de adaptação do ensino ao aluno que apresenta algum comprometimento para acompanhamento da turma.

Nas respostas que apresentavam uma forma mais colaborativa de organização do trabalho pedagógico (apenas sete das 214 analisadas na pesquisa), também foi evidenciada a preocupação com o acompanhamento individual do aluno. No entanto, traziam a necessidade de articulação com as famílias dos alunos para o desenvolvimento das propostas solicitadas pela escola. Além disso, outras respostas indicaram a articulação com instâncias que transcendem o trabalho pedagógico realizado pelo professor da turma ou de uma disciplina. Determinados professores mencionam ações que vão desde conversas entre os diferentes professores que atendem esses alunos até centros de apoio, salas de recursos, órgãos gestores, o que caracteriza uma proposta mais cooperativa e interligada, dentro e fora do espaço escolar. Alguns docentes descrevem essa necessidade:

Questionário 207, Florianópolis, SC: Sim, estamos realizando chamadas de vídeo, enviando atividades optativas, orientando as famílias e os professores de disciplinas curriculares sobre estratégias e flexibilizações para atender às demandas dos estudantes público-alvo da Ed. Especial.

Questionário 52, Cidreira, RS: Nossa professora do AEE tem contato direto com algumas famílias de alunos com maiores dificuldades. As apostilas são adaptadas aos alunos, que têm uma pasta especial no drive para acesso, e são impressas para entrega presencial. Porém, nem todos os professores conseguem elaborar algo apropriado. Estamos tentando conscientizar, mas o retorno está sendo lento.

Questionário 17, Campo Bom, RS: São planejadas atividades de acordo com a necessidade deste aluno. As professoras trabalham em conjunto com a professora do AEE.

Questionário 65, Porto Alegre, RS: Estão com encontros semanais com a professora regente, alguns estão também com um momento semanal com a educadora especial, atividades adaptadas, de acordo com seu currículo personalizado, conversas on-line com as famílias e especialistas, se for necessário. Questionário 112, Porto Alegre, RS: Atendimento individualizado pela professora regente e pela professora da sala de recursos, pela plataforma digital, para aquelas crianças que conseguem dar esses retornos. Para outras, são enviados vídeos e atividades para fazerem em casa.

Questionário 137, Montenegro, RS: Para os alunos que apresentam algum comprometimento, as professoras que atuam nas salas de AEE estão auxiliando e direcionando as professoras em relação às atividades, assim como a Coordenadora da Educação inclusiva da própria SMEC.

A articulação entre o professor regente e o professor do Atendimento Educacional Especializado (AEE) evidencia a realização de um trabalho planejado de forma mais coletiva, em que se prioriza a atenção ao aluno incluído no que se refere ao atendimento de suas especificidades de aprendizagem. Nesse sentido, podemos dizer que o ensino colaborativo consiste em uma parceria, que envolve os professores e os profissionais especializados e de apoio à inclusão. Mediante parceria, divide-se "[...] a responsabilidade de planejar, instruir e avaliar os procedimentos de ensino a um grupo heterogêneo de estudantes." (FERREIRA et al., 2007, p. 1).

É preciso repensar e redefinir os papéis dos profissionais, já que o professor regente não será mais aquele responsável pelo planejamento e desenvolvimento das aulas na classe comum, enquanto o professor de AEE ou de apoio será responsável por pensar as atividades específicas para os alunos em situação de inclusão. Vilaronga e Mendes (2014, p. 142) destacam que tal “[...] proposta implica a redefinição do papel dos professores de ensino especial, como apoio centrado na classe comum e não somente serviços que envolvam a retirada dos alunos com deficiência das salas de aula regulares”.

Esse processo não é fácil, nem simples, pois implica a construção de um trabalho coletivo que envolve diálogo, exposição e afinidade, também exigindo de toda a escola uma reorganização constante. De acordo com Gately (2001 apud VILARONGA; MENDES, 2014), existem níveis de colaboração – em três estágios – pelos quais precisamos passar para consolidar essa proposta, explicados da seguinte forma:

Estágio inicial: eles se comunicam superficialmente, criando limites e tentativas de estabelecer um relacionamento profissional entre si, a comunicação é formal e infrequente; Estágio de comprometimento: a comunicação entre eles é mais frequente, aberta e interativa, o que possibilita que eles construam o nível de confiança necessário para a colaboração; Estágio Colaborativo: eles se comunicam e interagem abertamente, sendo que a comunicação, o humor e um alto grau de conforto é experienciado por todos. Eles trabalham juntos e um complementa o outro. (GATELY, 2001 apud VILARONGA; MENDES, 2014, p. 148).

Precisamos compreender que o trabalho colaborativo se baseia em interações humanas, construídas a partir de certo grau de confiança, que pode, aos poucos, ir se fortalecendo na relação entre os diferentes sujeitos que dividem responsabilidades pedagógicas. Essa divisão de responsabilidades, entre os professores da turma, o professor do AEE, os demais profissionais de apoio que atendem esses alunos ou os coordenadores e gestores da escola, torna-se algo necessário não só neste contexto de sindemia. Observa-se que as respostas dos professores que atuam de modo colaborativo demonstram as necessidades de comunicação entre eles, de espaços de planejamento coletivos, de manutenção do diálogo com as famílias, de envolvimento das direções ou coordenações das escolas, entre outras. O atendimento de todas essas necessidades passa a ser ainda mais imprescindível quando não temos a proximidade do encontro físico para os momentos de trocas que ocorrem, muitas vezes, de maneira informal. De acordo com Klein (2021), pode-se pensar na proposta colaborativa a partir de algumas premissas para o estabelecimento de uma rede de cooperação que

[...] transcende esse espaço e inclui também os serviços de apoio, os extraclasses, os especializados e outros tantos disponibilizados pela comunidade onde a escola se insere [...] a competição e a cooperação se encontram imbricadas [...] há uma dimensão ética em cada instância envolvida, que deve comprometer-se com o outro, independentemente de quem ele é, construindo uma relação de respeito, confiança e amizade, capaz de consolidar uma proposta de escola adequada a todos os sujeitos pertencentes a ela. (KLEIN, 2021, p.119).

Importa mostrar, também, que o trabalho colaborativo, na perspectiva de uma flexibilização curricular em que a escola se modifica para atender a todos os alunos, independentemente de suas caracterizações e deficiências, não exclui a necessidade de adaptar atividades. Os professores mencionam vídeos, atividades on-line ou impressas, apostilas adaptadas, entre outras, que propiciam uma individualização do aluno, mas que, planejadas e combinadas no coletivo, passam a ser algo compartilhado com todos, incluindo as responsabilidades para reelaborarem-nas de forma constante.

Perspectivas para o contexto de sindemia covídica

Considerando que estamos atravessando na atualidade um período anômalo, desde março de 2020 – não o primeiro na história da humanidade e, provavelmente, não o último –, precisamos resistir em meio a tantas desigualdades sociais e escolares, que estão sendo ainda mais acirradas, especialmente, alertando para a fragilização da democracia, uma vez que não estamos conseguindo garantir direitos igualitários a todos os sujeitos. Centramos nossos argumentos como resistências a partir dessa forma de escuta aos diferentes professores que atuam e continuaram atuando no contexto educacional nesse período. Essa escuta pode apontar outras possibilidades para a realização do trabalho pedagógico que venham minimizar as desigualdades sociais e educacionais e não fragilizar, por sua vez, as práticas democráticas.

As desigualdades de acesso às tecnologias evidenciam os parcos investimentos no campo da educação e em políticas públicas para atender às necessidades escolares. Coube-nos apontar que, em decorrência desse pouco investimento, o comprometimento com a atuação pedagógica escolar precisa ser considerado quando se pretende discutir sobre a atuação docente.

Primeiramente, apontamos que houve e continua havendo, neste ano de 2021, em que continuamos a conviver com a sindemia covídica, a negação ao atendimento dos alunos com deficiência. No entanto, considerando o período de aplicação do questionário (abril a junho de 2020) as escolas ainda estavam buscando adaptar-se à nova situação que se impunha; por isso, as propostas de atendimento aos alunos ficaram comprometidas, talvez não somente para os alunos com deficiência. A partir de nossas análises, aponta-se igualmente que o não atendimento não depende somente do professor, nem mesmo do envio de atividades ao aluno. Reforçamos que se trata de uma série de fatores que estão diretamente implicados no fazer docente. Além disso, as responsabilidades das famílias e da escola continuam se colocando como uma premissa, o que merece ser constantemente repensado, a fim de não isentar nem uma, nem outra.

Importou-nos mostrar também, com base naqueles professores que descreveram algum atendimento adaptado ao aluno, que essas adaptações não sirvam simplesmente para reafirmar as deficiências dos alunos, não contribuindo para que avancem em suas aprendizagens. Já outras propostas, que mostraram o encaminhamento do aluno ao AEE, apoio de profissionais especializados/auxiliares, espaço de troca e planejamento entre os professores, busca de diálogo constante com as famílias dos alunos, parceria com gestores externos e internos na escola, enfim, são ações que reforçam uma espécie de rede colaborativa, cooperativa e compartilhada, capaz de construir experiências/práticas de aprendizagens para alunos, a partir de suas diferenças.

Atualmente, parece que estamos entrando em um novo momento desta sindemia covídica. Trata-se de planejar e organizar o retorno ao espaço físico da escola. Novos desafios serão colocados a todos os envolvidos no espaço público e comum em que a escola deve constituir-se. Com certeza, as lacunas deixadas pelas desigualdades sociais e educacionais ao longo destes dois anos de distanciamento social se farão evidentes. Estratégias pedagógicas precisarão ser pensadas e criadas no coletivo e no microespaço de cada escola, não só para os sujeitos com deficiência, como também para todos que passam por esse processo e sentem suas dores, suas dificuldades e também suas potencialidades. Os desafios serão grandes, mas alegra-nos saber que estaremos juntos no espaço da escola, reafirmando-a como espaço comum, público, democrático e, por isso mesmo, de todos e para todos. Que essa possa ser a nossa luta no retorno às aulas presenciais, em defesa do espaço comum da escola como aquele que pode fortalecer os princípios democráticos e, talvez, pouco a pouco, devolver a todos o direito à educação e à escola.

1Os estados participantes da pesquisa foram: Alagoas, Bahia, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

Agradecimento

Agradecemos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo financiamento desta pesquisa por meio do Edital Universal 2018.

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Recebido: 25 de Outubro de 2021; Aceito: 18 de Maio de 2022

Autor correspondente: kamila.furg@gmail.com

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