Introdução
Vivemos, hoje, diante de variados desequilíbrios ambientais (MARQUES FILHO, 2016), que decorrem predominantemente da ação dos seres humanos no meio ambiente e têm sido caracterizados, por alguns pesquisadores, como crise ambiental (LEFF, 2001).
Há, assim, um reconhecimento de que a dinâmica natural sofre alterações provocadas por modelos historicamente construídos, consequências dos padrões de relação que a sociedade estabelece com a natureza. No caso do modelo de produção capitalista, cristaliza-se a ideia de que o ser humano e a natureza se constituem de forma separada, pressupondo uma visão de "homem não natural e fora da natureza" (GONÇALVES, 2014, p. 35). Para Bornheim (1985), a natureza é reduzida às exigências de consumo da sociedade contemporânea, e os processos de manipulação que tendem a atender as demandas do homem, acabam por resultar na destruição da natureza.
Dentre as diferentes atividades econômicas associadas aos processos de degradação ambiental, destacam-se, historicamente, as práticas agrícolas. Importante lembrarmos que, na década de 1970, os pressupostos da chamada Revolução Verde estavam em ampla divulgação e aceitação pelas políticas de produção de commodities, vinculadas à produção agropecuária (PORTO-GONÇALVES, 2012). A discussão sobre os impactos ambientais causados pelas atividades agrícolas ganhou destaque, na época, e será, também, tema presente nesta pesquisa.
Em 1980, Lutzenberger, no Manifesto Ecológico Brasileiro, já alertava a sociedade sobre problemas advindos da exploração imediatista do homem do campo sobre a paisagem. Para o autor, a agricultura empresarial em grande escala traz consigo os processos de mecanização, de seleção genética, visando a alta produtividade e o uso intensivo dos métodos da agroquímica (LUTZENBERGER, 1980).
Para Lutzenberger (1980), a presença de métodos agroquímicos na agricultura contamina a alimentação humana e animal, bem como o ambiente como um todo. Além dos impactos ambientais, o modelo de agricultura moderna seria responsável por eliminar a mão de obra no campo, substituída pelo processo de mecanização característico das grandes monoculturas. Nesse cenário, a terra em si não é valorizada, sendo vista como objeto para usufruto do agricultor, que a utiliza em busca de uma produção momentânea e imediatista.
A tomada de consciência por grupos sociais diretamente envolvidos com a temática acerca de processos de degradação ambiental, quer sejam os causados pelas atividades agrícolas, ou por outros setores da atividade humana, alimentou tentativas de compreender os padrões das relações estabelecidas entre sociedade-natureza, bem como buscar alternativas para superar o quadro de degradação ambiental (CARVALHO, 1989, 2006).
Dentre essas alternativas, a educação passa a ser vista como um processo que pode contribuir para a busca de soluções para os impactos ambientais (CARVALHO, 1989). No entanto, para que tal intenção se concretize é necessário que estejamos cientes que diferentes visões dos processos sociais e do processo educativo estruturam, consequentemente, diferentes programas de ações sociais e propostas educativas (CARVALHO, 2006). Segundo esse autor, há quem veja o processo educativo enquanto uma "[...] possibilidade de ajustar comportamentos individuais a padrões socialmente desejáveis", diferentemente daqueles que entendem ser a "[...] educação [...] um motor de transformações mais radicais na sociedade como um todo." (CARVALHO, 2006, p. 22).
Dessa forma, Carvalho (1989) aponta que a inserção da temática ambiental em propostas educativas em espaços escolares, passa, necessariamente, por escolhas e por intenções de natureza diversa, orientando-se por perspectivas político-ideológicas que apontam para objetivos também diversos. Tais perspectivas e objetivos se concretizam por meio da implementação dos projetos político-pedagógicos das instituições, marcando as intenções que se pretendem que sejam desenvolvidas no espaço escolar.
Nesse sentido, Oliveira (2007) indica a importância do currículo e projetos políticopedagógicos serem perpassados e marcados pela temática socioambiental, podendo aparecer na forma, por exemplo, de temas transversais, a partir de abordagens inter e transdisciplinares, práticas pedagógicas ou metodologias de projeto. Atualmente, alguns autores destacam que a discussão sobre a importância da EA em documentos oficiais, tem sido pautada por uma notável ausência naqueles que se voltam para as políticas educacionais brasileiras, como a proposta da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (ANDRADE; PICCININI, 2017; BEHREND; COUSIN; GALIAZZI, 2018; FRIZZO; CARVALHO, 2018; OLIVEIRA; ROYER, 2019; SILVA; LOUREIRO, 2019). Desta forma, a comunidade de educadores ambientais tem manifestado uma importante fragilidade no que diz respeito a essas políticas educacionais aplicadas no Brasil e apontam que a EA vem perdendo espaço nas disputas pela constituição do currículo da Educação Básica e esse posicionamento é entendido como uma "[...] escolha política centrada no afastamento crítico da educação das questões próximas ao cotidiano socioambiental das escolas, principalmente públicas" (ANDRADE; PICCININI, 2017, p. 11).
No que diz respeito às práticas pedagógicas relacionadas com a temática ambiental desenvolvidas em escolas de nível técnico, e mais especificamente técnicas agrícolas, Rosas (2012) aponta que essas são marcadas por um distanciamento em relação ao conhecimento técnico-científico e pela falta de integração entre o ensino médio de formação geral e o ensino técnico profissionalizante. Segundo esse autor, é importante levarmos em conta que o ensino profissional não deve formar o estudante somente para o trabalho. Essa modalidade de ensino deve estar comprometida com o contexto histórico, social, político, cultural e econômico e bem como com o processo de emancipação do sujeito.
Ainda, sobre esse nível escolar, Carvalho (2004), ao analisar as concepções e práticas em EA, aponta que, de maneira geral, os programas das disciplinas dos cursos técnicos analisados abordam a questão ambiental, porém, muitas vezes, ficam evidenciados os aspectos biológicos e aqueles relacionados ao desenvolvimento econômico, pautado em sua maior parte pela maior obtenção de lucro num menor espaço de tempo, em detrimento dos políticos, sociais e éticos. Assim, considerando a tendência sumariada anteriormente no texto, e considerando as abordagens que têm sido dadas à temática socioambiental nos cursos técnicos, entendemos que a inserção dessa temática na formação do Técnico em Agropecuária é imprescindível e urgente, visto que o curso busca qualificar para atuação em áreas estritamente relacionadas com essa temática. (PIMENTEL, 2009).
As ponderações até aqui sistematizadas reforçam a importância de analisarmos criteriosamente as tendências quanto à inserção da temática socioambiental nos currículos e práticas pedagógicas das escolas profissionalizantes, em especial as de nível técnico agrícola, principalmente, em cursos responsáveis pela formação de profissionais cujas atividades de trabalho envolvam, diretamente, problemáticas socioambientais.
Nesse sentido, a pesquisa voltou-se para essa problemática e tem como objetivo identificar se a temática socioambiental é considerada no Plano Plurianual de Gestão 2018-2022 (PPG 2018-2022) e nos Planos dos cursos Técnicos de Agropecuária integrado ao Ensino Médio (PC-AGROPECUÁRIA) e de Agroindústria (PC-AGROINDÚSTRIA) de uma escola do interior de São Paulo, vinculada ao Centro Paula Souza. Além disso, buscamos explorar possíveis significados e sentidos relacionados com a temática socioambiental, mobilizados a partir da análise dos documentos que orientam os princípios, ações e práticas pedagógicas desenvolvidas nos cursos investigados.
Para além das questões apresentadas até aqui, e a partir dos dados produzidos com o desenvolvimento da pesquisa mais ampla, neste artigo em particular, temos como objetivo explorar possíveis significados e sentidos mobilizados a partir das relações propostas entre a temática socioambiental, o processo educativo e questões relativas à técnica, discutindo as implicações dessa tendência para o processo educativo como um todo.
Perspectivas teórico-metodológicas e procedimentos de pesquisa
Trata-se de uma pesquisa documental, de abordagem qualitativa, que tem como objeto de investigação os documentos que orientam os princípios, ações e as práticas pedagógicas propostas e desenvolvidas pela escola e voltadas à temática socioambiental.
Bogdan e Biklen (1994, p. 180) apontam que, quando se trata de uma pesquisa qualitativa em que o corpus documental é constituído por documentos oficiais da escola, esses materiais, muitas vezes, são vistos como "[...] subjetivos, representando os enviesamentos dos seus promotores e, quando escritos para consumo externo, apresentando um retrato brilhante e irrealista de como funciona a organização". No entanto, destacam que é justamente por essas propriedades, que os documentos oficiais são fontes importantes de construção de dados qualitativos e auxiliam na tentativa de compreender esta escola.
Como referencial teórico-metodológico, optamos pela perspectiva sócio-histórica, que tem como base as ideias de Vygotsky e Bakhtin. Parte-se de Vygotsky, a partir do campo psicológico, considerando o sujeito a partir da sua relação com a sociedade, "[...] articulando dialeticamente os aspectos externos com os internos" (FREITAS, 2002, p. 22). A autora aponta que as contribuições de Bakhtin partem de sua perspectiva dialógica, compreendendo o "[...] estudo da língua em sua natureza viva e articulada com o social pela interação verbal" (FREITAS, 2002, p. 22).
A partir da pesquisa qualitativa desenvolvida sob uma perspectiva sócio-histórica, entendemos que, assim como os sujeitos são constituídos num contexto sócio-histórico, e essa relação precisa ser considerada nas análises, os documentos orientadores da escola também foram formulados por grupos que fazem parte de um determinado contexto sócio-histórico.
Diante da escolha dos termos significado e sentido em nossos objetivos de pesquisa, consideramos as definições trazidas por Valentin Volóchinov (Círculo de Bakhtin). Entendese por significação "[...] aqueles aspectos do enunciado que são repetíveis e idênticos a si mesmos em todas as ocorrências" (VOLÓCHINOV, 2017, p. 228, grifo do autor). Pode-se dizer que o significado da palavra é de certa forma estável, ou seja, é construído por sujeitos que compartilham o mesmo espaço físico e que se fazem entender por meio de signos padronizados (VIANNA, 2010).
A significação de um enunciado é construída a partir das "[...] formas da sua ligação morfológica e sintática, da entonação interrogativa [...]", não sendo possível mostrar a significação de uma palavra isolada, sem construir um enunciado. Por outro lado, o tema de um enunciado "[...] deve apoiar-se em alguma significação estável, caso contrário ele perderá a sua conexão com aquilo que veio antes e que veio depois, ou seja, perderá totalmente o seu sentido" (VOLÓCHINOV, 2017, p. 229).
Para Volóchinov (2017), toda compreensão é ativa. Nesse sentido, para que haja compreensão de um enunciado, é necessário orientar-se em relação a ele, ou seja, "[...] em cada palavra de um enunciado compreendido, acrescentamos como que uma camada de nossas palavras responsivas". Ao considerarmos que toda compreensão é dialógica, entendemos que "[...] a compreensão busca uma antipalavra à palavra do falante" (VOLÓCHINOV, 2017, p. 232, grifo do autor). Dessa forma, segundo o autor,
[...] não se pode falar que a significação pertence à palavra como tal. Em sua essência, ela pertence à palavra localizada entre os falantes, ou seja, ela se realiza apenas no processo de uma compreensão ativa e responsiva. A significação não está na palavra, nem na alma do falante, nem na alma do ouvinte. A significação é um efeito da interação entre o falante e o ouvinte no material de um dado conjunto sonoro (VOLÓCHINOV, 2017, p. 232-233).
Com o intuito de operacionalizar a sistematização dos dados produzidos a partir das leituras dos documentos, nos apoiamos na proposta dos núcleos de significação, de Aguiar e Ozella (2006, 2013). Os autores indicam que a "reflexão metodológica sobre apreensão dos sentidos" marca a necessidade de aprofundamento do objeto estudado, no sentido de "[...] não nos contentarmos com a descrição dos fatos, mas [...] estudá-lo no seu processo histórico". (AGUIAR; OZELLA, 2006, p. 225). Assim, deve-se caminhar para o entendimento do processo, para além da aparência, indo em busca do não dito, do sentido.
Na tentativa de realizar a apreensão dos sentidos, Aguiar e Ozella (2006) mostram que a proposta de construção dos núcleos de significação é dividida em quatro etapas. Recomendam, primeiramente, um levantamento de pré-indicadores, que consiste em destacar trechos do discurso compostos por "[...] palavras que compõe um significado, carregam e expressam a totalidade do sujeito e, portanto, constituem uma unidade de pensamento e linguagem." (AGUIAR; OZELLA, 2013, p. 309).
A segunda etapa é marcada pela sistematização de indicadores, na qual os pré-indicadores devem ser agrupados de acordo com os critérios de similaridade, complementaridade ou contraposição. A terceira etapa compreende em articular os indicadores, resultando nos núcleos de significação. É nesse momento que há uma aproximação com uma face mais interpretativa dos dados. A quarta, e última, etapa consiste na análise dos núcleos de significação e discussão dos componentes de cada núcleo. Esse procedimento de análise é marcado pelo movimento do sujeito, uma vez que, as contradições não estão, necessariamente, presentes no discurso do sujeito, sendo apreendidas por meio da análise (AGUIAR; OZELLA, 2006).
Nesse sentido, a leitura e análise dos três documentos nos permitiram propor dois núcleos de significação, quais sejam, de um lado a relação entre a temática socioambiental, o processo educativo e a Técnica e, de outro, a relação entre educação e Sustentabilidade ou Desenvolvimento Sustentável. Como já mencionado, neste artigo procuramos explorar os possíveis significados e sentidos construídos sobre a relação entre a temática socioambiental, o processo educativo e a dimensão técnica na formação do futuro profissional técnico-agrícola.
Caracterização do locus da pesquisa e corpus documental
As Escolas Técnicas Estaduais (ETEC) pertencem ao Centro Paula Souza - entendido como uma autarquia do Governo do estado de São Paulo, vinculado à Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação (SDECTI) - e são distribuídas no estado de São Paulo. Além disso, abrangem o ensino técnico, médio e técnico integrado ao médio (ETIM) e oferecem cursos profissionalizantes para os setores industrial, agropecuário e de serviços.
A escola objeto do nosso estudo localiza-se em uma região do interior do estado de São Paulo conhecida por sua produção de café e outras atividades agrícolas. Assim, a escola está inserida em um contexto geográfico com características particulares do ponto de vista das práticas agrícolas, que a torna um espaço único para a investigação de práticas pedagógicas que tragam aspectos relacionados à temática socioambiental.
Na tentativa de compreendermos o processo de inserção da temática socioambiental nessa escola técnica agrícola, optamos, como já mencionado, pela análise de documentos norteadores da proposta pedagógica da escola. As ETECs têm, como principal documento, o Plano Plurianual de Gestão (PPG), documento que explicitará os projetos a serem desenvolvidos na escola. Conta, como eixo norteador, com o Projeto Político Pedagógico, que está nele incluído. O PPG é proposto para uma vigência de cinco anos, com replanejamento mínimo anual. Dessa forma, incluímos em nosso corpus, a última versão do PGG que abrange o período 2018-2022.
Além desse documento, fazem parte do corpus documental, o Plano do Curso de Agropecuária integrado ao Ensino Médio (EM) e o Plano do Curso de Agroindústria. Esses documentos são compostos pela caracterização e justificativa dos cursos e do perfil dos profissionais, pela organização curricular, critérios de aproveitamento de conhecimento e experiências anteriores e avaliação de aprendizagem, instalações e equipamentos e pessoal docente e técnico. A diferença entre os planos dos dois cursos, é que, pelo fato de o curso de Agropecuária ser integrado ao EM, a sua matriz curricular é composta pelos componentes curriculares da Formação Geral, correspondente ao EM, e componentes curriculares da Formação Profissional (Ensino Técnico). A matriz curricular do curso de Agroindústria, por sua vez, é composta somente por componentes curriculares da Formação Profissional.
Ciência, técnica e conhecimento
A ênfase dada à dimensão técnica nas propostas curriculares dos cursos em análise, suscita algumas reflexões iniciais sobre o significado construído em relação ao papel da ciência, ao processo tecnológico e aos produtos por ele gerados.
Inicialmente, pontuamos que a ciência ganhou destaque a partir da ideia de esclarecimento elaborada por Kant, na tentativa de dissolver os mitos e substituir a imaginação pelo saber. Para o programa do esclarecimento, tudo que não fosse submetido aos critérios da calculabilidade e da utilidade era tido como suspeito (ADORNO; HORKHEIMER, 1985).
Como um dos precursores da ciência moderna, Francis Bacon (1561-1626) discordava das ideias disseminadas pela igreja, enfatizando, assim, a importância do conhecimento científico (ADORNO; HORKHEIMER, 1985). A partir do século XVII, com o triunfo da ciência e da razão, as invenções passaram a ser construídas a partir de um método definido.
Theodor Wiesengrund-Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973), intelectuais vinculados à Escola de Frankfurt, escreveram a obra Dialética do esclarecimento, que caracterizou uma ruptura da razão libertadora proposta por Kant. Para esses autores, a técnica é a base do saber "[...] que não visa conceitos e imagens, nem o prazer do discernimento, mas o método, a utilização do trabalho dos outros, o capital" (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 20).
Nesse contexto, podemos considerar que as sociedades modernas ocidentais estabeleceram uma relação de grande confiança nos recursos gerados pela ciência e pela técnica (GIACOIA, 2004). Acredita-se na técnica enquanto resultado da capacidade de criação do homem, que permite a mediação entre a relação homem-natureza e sobre a qual se deposita a ideia de progresso da humanidade (PORTO-GONÇALVES, 2012).
Nesse sentido, Adorno e Horkheimer (1985) apontam para o movimento dialético que envolve a ideia de esclarecimento, ou seja, a valorização do conhecimento científico e da técnica que, inicialmente, tiveram como pressuposto a ideia de liberdade, são apropriadas pelo aspecto econômico e passam a exercer o papel de dominação.
Nesse processo, que compreende a valorização da ciência, há um distanciamento do homem em relação à natureza, ocorrendo, assim, o processo de apropriação da natureza pelo homem. Esse homem, embasado na ciência, conhece as coisas com a intenção de dominá-las e gerar benefícios a ele. Dessa forma, a essência das coisas passou pelo movimento em que o "seu em-si torna para-ele" (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 24, grifo dos autores).
Em uma economia capitalista, com o intuito de atender as demandas e a lógica desse sistema, a técnica está associada à garantia de uma maior produtividade (GONÇALVES, 2014). Sendo assim, o desenvolvimento tecnológico de uma sociedade não ocorre somente por uma razão técnica, mas por um viés político de dominação sobre o trabalhador e a natureza. Assim, nas palavras de Gonçalves (2014, p. 122) a "[...] técnica não pode ser vista independentemente de um determinado contexto social, político e cultural".
Os aspectos práticos e tecnológicos do saber originado da ciência configuram a vida nas sociedades ocidentais e vêm se desenvolvendo desde os séculos XVII e XVIII, sendo que o crescimento se deu de forma acelerada a partir da importante influência da produção industrial em larga escala, sobre a reprodução do conhecimento científico (GIACOIA, 2004).
Nesse sentido, considerando que as máquinas representam uma forma de se colocar em prática o saber originado da ciência, Gonçalves (2014) aponta que, em um contexto de desenvolvimento capitalista, houve um movimento de substituição da manufatura pela maquinofatura. Pode-se dizer que no processo que envolve a manufatura, a produção dependia da atuação do trabalhador e, por mais que se exigisse deste, havia limitações psíquicas e biológicas que impunham limites à dinâmica da acumulação capitalista. Assim, a inserção da máquina no processo produtivo subordinou o trabalhador ao ritmo que o capital impõe. Nesse processo, é importante salientarmos que, o conhecimento antes pertencente ao trabalhador foi deslocado para a máquina, ocasionando, assim, uma expropriação do seu saber (GONÇALVES, 2014).
No que diz respeito à relação entre desenvolvimento tecnológico e a dominação da natureza, Gonçalves (2014) aponta que, a partir da inserção das máquinas a vapor, a produção deixou de depender dos ciclos da natureza, o que promoveu um aumento na produção de mercadorias em um determinado espaço de tempo.
A inserção de processos tecnológicos, frutos do conhecimento científico-tecnológico nas indústrias passou, então, a influenciar de forma direta a produtividade industrial e o crescimento econômico de alguns países. Desse modo, a necessidade da pesquisa científica para o funcionamento da sociedade, no âmbito social e econômico, desencadeou o aumento do interesse e financiamento das pesquisas por parte das indústrias.
Giacoia (2004, p. 391) destaca que, uma vez que a pesquisa tecnológica está vinculada ao seu aproveitamento prático, há uma estreita relação entre a produção econômica e produção tecno-científica, que transforma a ciência moderna em força produtiva e a torna intimamente ligada ao "[...] progresso econômico, sociopolítico e militar de países tecnologicamente desenvolvidos".
Se deslocarmos essa discussão para o contexto da produção agrícola, a crença de que seria possível acabar com os problemas da falta de produção de alimentos no mundo e, consequentemente, acabar com a fome, materializou-se nos discursos e narrativas da agroindústria e concretizou-se em um grande projeto denominado Revolução Verde, como já apontado. Segundo essa perspectiva, a partir de um amplo e profundo projeto tecnológico, houve um incentivo aos processos de mecanização da agricultura, seleção genética e uso intensivo de métodos agroquímicos (GONÇALVES, 2014; LUTZENBERGER, 1980).
Nesse sentido, Petersen (2015, p. 30) afirma que a estratégia de justificar a necessidade de utilização dos agrotóxicos se dá por meio da "[...] imposição da racionalidade tecnocrática sobre a opinião pública". Esse artifício traz, de forma implícita, a ideia de que toda técnica direcionada a solucionar o problema relacionado à questão alimentar, tem em si uma justificativa moral e, portanto, deve ser aplicada. Desta forma, o "[...] imperativo tecnocrático apresenta como objetivamente necessário aquilo que é econômica e ideologicamente oportuno." (PETERSEN, 2015, p. 30).
Ainda sobre esse contexto, Carneiro et al. (2015) apontam para o papel do Estado, que por meio das políticas públicas de incentivo à artificialização da agricultura promove a facilitação do processo de expansão do capitalismo sobre a agricultura. Ocorre, assim, que os governos acabam por injetar elevadas verbas nas atividades construídas sob a perspectiva de intensa utilização de processos resultantes das técnicas e implementação de novas tecnologias.
Nesse sentido, são incentivados os grupos que creem na onipotência tecnológica (LUTZENBERGER, 1980), consolidando-se a ideia de que não há limites para a sua utilização, bem como não há problemas que não possam ser resolvidos pela técnica. Entretanto, é necessário considerarmos que, em uma sociedade marcada por relações sociais e de poder contraditórias, consequentemente, as técnicas por ela criadas trarão, também, contradições sociais e políticas.
De acordo com Gonçalves (2014), essa utilização cada vez mais intensa da técnica tem desencadeado diversas consequências socioambientais, como por exemplo, a homogeneização genética, tornando os ecossistemas mais vulneráveis e dependentes de agrotóxicos, bem como a dependência financeira dos produtores.
A temática socioambiental nos cursos analisados e a questão da técnica
Após a análise dos documentos que compõem o corpus da pesquisa, caminhamos na tentativa de apontar algumas tendências que nos levaram à construção de significados e sentidos relacionados à inserção da temática socioambiental nas propostas curriculares de cursos técnicos de Agropecuária e Agroindústria.
Dentre essas tendências, parece-nos plausível reconhecer que os documentos acabam por enfatizar uma visão utilitarista da natureza. Essa perspectiva vai se consolidando no processo de leitura e passa a ser entendida como questão a ser considerada em todo o processo de análise, inclusive no processo de construção de significados e sentidos que se voltam para relação entre a educação profissional e a dimensão técnica.
Notamos que o termo técnica e os termos diretamente associados a ele nos enunciados analisados - tecnologias, inovação, mecanização e modernização - são mencionados nos documentos, explícita ou implicitamente. Explicitamente, quando assim nomeados e implicitamente, quando, por exemplo, o documento enfatiza o uso de produtos que são resultados de processos tecnológicos. Essa possibilidade fica patente na ênfase dada nos textos aos agrotóxicos, vistos como produto tecnológico desenvolvido pelos seres humanos a serviço da produção.
Vejamos algumas passagens dos documentos analisados nas quais essa questão se torna evidente. No Plano Plurianual de Gestão (PPG) 2018-2022, quando são apresentados os objetivos gerais da escola, o documento enfatiza que se deve adequar o "[...] ensino técnico e integrado com a formação de profissionais capacitados, de acordo com as mudanças tecnológicas e trabalhistas observadas na área, assim nos tornando um pólo regional na produção e difusão de novas tecnologias." (ETEC, 2018, p. 58).
Na justificativa do curso de Agropecuária, podemos encontrar aspectos que reforçam a relação da produção agropecuária e a tecnologia, como pode ser observado a seguir:
A produção agropecuária anda lado a lado com a tecnologia, as propriedades rurais são classificadas segundo o nível tecnológico, ou seja, o grau de tecnologia empregado na propriedade rural, que determina se a propriedade e seu sistema de produção é tradicional (prática de agricultura ou pecuária vinculada na produção sem tecnologias) ou moderna (prática de agricultura, em geral, em grandes propriedades monocultoras ou pecuárias vinculadas na produção com tecnologias que caracteriza pela criação intensiva) (ETEC, 2018, p. 3; SÃO PAULO, 2017a, p. 8, grifo nosso).
O PPG 2018-2022 apresenta a proposta do curso de Agroindústria, pontuando que se objetiva "[...] capacitar o profissional para planejar, monitorar, avaliar e gerenciar os processos de industrialização de produtos agropecuários promovendo o desenvolvimento técnico e tecnológico da área." (ETEC, 2018, p. 7).
No PC Agropecuária, dentre as competências gerais, sugere-se que o profissional deverá "[...] selecionar, aplicar, monitorar e orientar o uso de tecnologias de produção adequadas, em todas as etapas do cultivo e da criação nos projetos agropecuários." (SÃO PAULO, 2017a, p. 15).
A referência às tecnologias também se faz presente nas Áreas de atividades em que o profissional poderá atuar, a saber: "[...] Participação em pesquisa e desenvolvimento de tecnologias agropecuárias - Monitoramento e desenvolvimento de atividades de desenvolvimento, teste e experimentação de equipamentos e tecnologias." (SÃO PAULO, 2017a, p. 21).
Outros exemplos do mesmo item sugerem questões relacionadas ao "[...] nível e capacidade técnica e tecnológica do empreendimento", bem como a implantação, uso e substituição de novas técnicas e tecnologias (SÃO PAULO, 2017a, p. 19).
Na descrição da justificativa de desenvolvimento do curso de Agroindústria, o documento enfatiza, como objetivo, a apropriação de tecnologias, como podemos observar no seguinte extrato:
O Centro Estadual de Educação e Tecnologia Paula Souza, considerando as tendências atuais e futuras, bem como as características empreendedoras específicas, setoriais e globais dessas demandas, está preparado para oferecer a Habilitação Profissional de Técnico em Agroindústria, a qual tem por objetivo proporcionar aos estudantes conhecimentos e práticas que os levem a apropriarem-se de tecnologias em uma condição de excelência, articulando conceitos e metodologias, estratégias e avanços técnicomercadológicos adicionados a novos recursos humanos [...]. (SÃO PAULO, 2017b, p. 6-7, grifo nosso).
Além da referência às tecnologias, o PPG 2018-2022, o plano do curso de Agropecuária e do curso de Agroindústria fazem menção à ideia de inovação que, de maneira geral, vem associada à utilização de novas tecnologias na produção agrícola ou industrialização do setor. Indica-se, por exemplo, valorizar a inovação (ETEC, 2018, p. 9; SÃO PAULO, 2017a, p. 15) como uma competência geral do curso de Agropecuária. No PC Agropecuária, por exemplo, quando o documento faz referência às Áreas de atividades que o profissional poderá atuar, propõe-se um incentivo às tecnologias, técnicas, inovações tecnológicas, entre outros termos, conforme segue:
ASSISTÊNCIA TÉCNICA E EXTENSÃO E CAPACITAÇÃO DO TRABALHO RURAL Organização de reuniões, divulgação de tecnologias e apresentação de resultados da evolução tecnológica a produtores rurais ou em eventos técnico-científicos.
Orientação sobre a implantação de inovações tecnológicas profissionais [...] (SÃO PAULO, 2017a, p. 18, grifo nosso).
Dentre os objetivos propostos para o curso de Agroindústria, destacamos, "[...] estimular a inovação e corresponder às exigências de qualidade e de segurança de alimentos através de análises químicas, físicas, microbiológicas e sensoriais" (SÃO PAULO, 2017b, p. 7).
Como indicado no início deste texto, a dimensão da técnica também pode apresentarse, de maneira explícita, nos documentos a partir de questões relacionadas à modernização e mecanização. Nesse sentido, o PPG 2018-2022 e o PC Agropecuária pontuam como um dos fatores que favoreceram o crescimento da atividade agropecuária no Brasil, o "[...] processo de modernização e mecanização da produção rural" (ETEC, 2018, p. 3; SÃO PAULO, 2017a, p. 8).
No tópico intitulado Recursos materiais, apresentado no PPG 2018-2022, o documento descreve os materiais e equipamentos pertencentes à escola, bem como situa as condições de uso e as justificativas para solicitações de novos materiais. Nesse sentido, há uma passagem que indica que a escola necessita de máquinas modernas e novas tecnologias para o ensino de qualidade:
Com o aprimoramento e avanço tecnológico os materiais hoje disponíveis, em pouco espaço de tempo devem ser repostos e atualizados. [...] Os maquinários e materiais existentes são na sua maioria obsoletos, precisando de máquinas novas como tratores, roçadeiras e outros implementos modernizados para que possamos dar um ensino de melhor qualidade, com novas tecnologias [...] (ETEC, 2018, p. 41, grifo nosso).
Ao analisarmos mais especificamente as questões decorrentes do processo de modernização e à ênfase na questão da técnica, podemos observar que os documentos fazem menção a aspectos que envolvem a biotecnologia, o melhoramento genético, a transgenia, inseminação artificial e os agrotóxicos.
Nesse sentido, o PC Agropecuária aponta para o incentivo, por exemplo, às "novas tendências advindas da biotecnologia" (SÃO PAULO, 2017a, p. 9). O mesmo documento apresenta como uma das competências gerais que o profissional deverá desenvolver, a propagação de tecnologias envolvidas no melhoramento genético animal e vegetal, conforme exposto em seguida.
Difundir técnicas e tecnologias de produção agropecuária e agroindustrial, principalmente nas áreas de:
reprodução, multiplicação e melhoramento genético animal e vegetal;
nutrição animal;
fertilidade e conservação dos solos;
legislação e cuidados sanitários, de higiene e profilaxia nas culturas e criações e no processamento agroindustrial (SÃO PAULO, 2017a, p. 15, grifo nosso).
Ainda sobre o curso de Agropecuária, o texto propõe aspectos relacionados ao processo de modernização, no componente intitulado Microbiologia e Botânica Agrícola com Práticas em Olericultura e Especiarias, a partir da temática da transgenia. Constatamos essa mesma tendência quando analisamos a proposta do componente curricular Reprodução e Seleção Animal com Práticas com Animais de Pequeno Porte. O PC Agropecuária sugere que, dentre as competências a serem desenvolvidas, está a de "[...] criar e selecionar animais utilizando princípios e esquemas de multiplicação, seleção e reprodução" (SÃO PAULO, 2017a, p. 57), bem como "[...] criar e orientar a multiplicação de animais visando à constante melhoria genética e produtiva do rebanho, utilizando recursos como a inseminação artificial e fertilização in vitro." (SÃO PAULO, 2017a, p. 57).
Identificamos, também, que o tema agrotóxico é entendido enquanto produto resultante de processos científicos e tecnológicos. Sendo assim, optamos por realizar uma busca mais detalhada pelo termo agrotóxico(s) nos três documentos analisados. No caso do PPG 2018-2022 e no PC Agroindústria, identificamos que o termo aparece uma única vez, referindo-se ao "galpão de depósito de embalagens de agrotóxicos" (ETEC, 2018, p. 36), parte dos recursos físicos da escola e a "coleta seletiva na agroindústria: embalagens de agrotóxicos [...] e sua destinação para empresas do setor de reciclagem" (SÃO PAULO, 2017b, p. 64), respectivamente. No PC Agropecuária, o termo foi citado no componente curricular intitulado Saúde e Segurança no Trabalho Rural, indicando como habilidade "[...] utilizar os procedimentos corretos de manuseio dos agroquímicos/ agrotóxicos e produtos afins." (SÃO PAULO, 2017a, p. 87).
Ainda, sobre as questões que envolvem os agrotóxicos, destacamos que no PPG 20182022 e no PC Agropecuária ocorre uma substituição do termo agrotóxico, principalmente, pelos termos defensivos agrícolas, defensivos e agroquímicos.
Essa substituição foi observada no PPG 2018-2022, em especial, em Recursos Humanos, quando o documento descreve o quadro de funcionários e suas funções na escola. Indica-se, por exemplo, a atividade de "[...] aplicar defensivos agrícolas, em pequena escala, operando equipamentos específicos, sob orientação técnica" (ETEC, 2018, p. 23) e "[...] identificar a necessidade de aquisição de máquinas, sementes, fertilizantes, defensivos, rações e demais insumos, para assegurar os meios indispensáveis à execução do programa de trabalho." (ETEC, 2018, p. 32).
Há, também, uma referência pontual a essa questão, quando, no mesmo documento, faz-se referência aos recursos físicos da escola; citando a horta orgânica, indica-se que se trata de um "[...] cultivo sem utilização de defensivos químicos [...]" (ETEC, 2018, p. 40).
Para o PC Agropecuária, a substituição do termo agrotóxico foi observada dentre as competências gerais do curso, quando o texto propõe que o profissional deve “[...] avaliar os aspectos e o impacto do uso e dos resíduos de defensivos agrícolas e medicamentos veterinários e minimizar o uso e seus efeitos possíveis” (SÃO PAULO, 2017a, p. 16).
Outra passagem sobre a mesma temática pode ser encontrada no componente curricular Saúde e Segurança no Trabalho Rural, no qual se propõe a "[...] analisar e orientar uso de defensivos agrícolas dentro das normas legais e de segurança humana, da produção e do ambiente" (SÃO PAULO, 2017a, p. 87), bem como tratar de temas relacionados a "[...] acidentes no trabalho rural - investigação e análise - riscos e danos em potenciais: [...] agentes químicos: defensivos agrícolas: usos e aplicação; transporte; manipulação; armazenamento; destino de embalagens / tríplice lavagem." (SÃO PAULO, 2017a, p. 87).
Faz-se, também, referência ao termo defensivos agrícolas no componente curricular Nutrição Vegetal, Adubos e Corretivos com Práticas em Culturas Anuais, no PC Agropecuária, quando o documento aponta para os conteúdos sobre "[...] técnicas de controle de pragas e doenças em culturas anuais: métodos de pulverização; métodos de aplicação de defensivos." (SÃO PAULO, 2017a, p. 81).
Outro aspecto que gostaríamos de enfatizar é a veiculação da ideia da possibilidade de utilização correta e uso consciente dos agrotóxicos, nos documentos analisados. No PC Agropecuária, o documento enfatiza que o profissional deve atuar na "[...] promoção do uso consciente e ambiental e sanitariamente comprometido de defensivos agrícolas." (SÃO PAULO, 2017a, p. 19).
O mesmo ocorre com o componente curricular Saúde e Segurança no Trabalho Rural, no qual se sugere o trabalho com "[...] uso de defensivos agrícolas dentro das normas legais e de segurança humana, da produção e do ambiente" (SÃO PAULO, 2017a, p. 87). Um último exemplo, no componente curricular Fitossanidade e Proteção de Plantas com Práticas em Culturas Perenes, Semiperenes, Paisagismo e Silvicultura, no qual, além do "[...] uso seguro, eficiente e sustentável de defensivos agrícolas" (SÃO PAULO, 2017a, p. 101), o documento aponta para o armazenamento e destino correto das embalagens de defensivos agrícolas, e a aplicação, priorizando segurança humana e ambiental. (SÃO PAULO, 2017a).
Um último ponto, a ser evidenciado nas análises remete-nos às passagens, nos textos, nas quais se estabelece uma relação entre técnica e solução, ou redução, dos problemas ambientais. O PPG 2018-2022 apresenta, entre os objetivos do curso de Agroindústria, capacitar o profissional para "[...] reduzir os efeitos negativos da atividade produtiva sobre o ambiente por meio de tratamento e reciclagem de resíduos e efluentes." (ETEC, 2018, p. 7).
Nesse mesmo sentido, outros exemplos podem ser apontados na relação entre a técnica e a solução dos problemas ambientais, como: utilização de "tecnologias menos impactantes e ambientalmente agressivas" (SÃO PAULO, 2017a, p. 19), bem como métodos e técnicas para a conservação do solo e identificar "[...] tecnologias aplicadas nos impactos ambientais, nas emissões atmosféricas e na sua redução." (SÃO PAULO, 2017a, p. 71).
Por último, essas questões também estão presentes no PC Agroindústria, no decorrer do documento e, mais especificamente, no componente curricular intitulado Tecnologia de Produtos Não Alimentícios, indicando como competências a análise do uso de tecnologias de aproveitamento técnico e econômico dos resíduos vegetais e de origem animal da agroindústria, e da “[...] necessidade de tratamentos tecnológicos para a diminuição dos riscos ecológicos envolvidos” (SÃO PAULO, 2017b, p. 63-64).
Assim, partindo das análises aqui sistematizadas, podemos considerar que, em todos os documentos analisados, fica evidente a ênfase na dimensão técnica no processo de formação dos técnicos em Agropecuária e em Agroindústria.
Dentre as diferentes passagens que reforçam essa dimensão, faz-se constante a referência aos processos de modernização e mecanização. Nesse caso, as possibilidades de mecanização das atividades agrícolas envolvem pelo menos duas questões. Primeiramente, aquela referente à mecanização que substitui o uso de animais, que, por vezes leva em conta a diminuição das consequências para o animal, mas, ainda assim, sem considerar a hipótese da não utilização. A outra questão diz respeito à substituição/eliminação da mão de obra humana pela inserção das máquinas agrícolas. Pudemos observar, assim, uma valorização de um determinado modelo de produção agrícola, intensificado pelo uso de máquinas, visto em sua expressão máxima como modelo do agronegócio.
No que diz respeito à ideia de modernização, um processo referenciado nos documentos, visto como fruto da aplicação tecnológica, refere-se à inserção da biotecnologia nas atividades agrícolas. Notamos um incentivo à biotecnologia, sem que haja qualquer problematização, por meio de técnicas de melhoramento produtivo e genético tanto animal quanto vegetal, bem como a inseminação artificial e a fertilização in vitro, além da utilização de agrotóxicos. Dentre essas diferentes possibilidades oferecidas pela biotecnologia, a transgenia também é enfatizada nos documentos analisados.
Nesse sentido, podemos associar essas diferentes possibilidades enfatizadas nos textos analisados com as considerações de Porto-Gonçalves (2012), quando aponta que a cultura dos transgênicos está embasada na ideia de que a solução para o problema da fome encontra-se inserida no contexto da técnica. Ocorre, assim, um deslocamento do contexto social e político do problema, para o técnico-científico. As sementes transgênicas são o resultado de um processo científico-tecnológico e, portanto, a sua utilização não pode ser vista como neutra, sendo, portanto, carregada de intencionalidade.
A ideia de dominação está presente na universalidade, assumida pela linguagem científica, ou seja, a imparcialidade da linguagem científica se concretiza, uma vez que se torna dominante e hegemônica, e é entendida como neutra, em detrimento dos contra-hegemônicos, que não encontram espaço e força para sua expressão. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985).
Acrescenta-se à discussão sobre os transgênicos, a "[...] desapropriação/ desqualificação do saber ancestral/atual ou, quando menos, uma separação entre o lugar que produz e o que usa o conhecimento, cada vez mais centralizado nos laboratórios científicos empresariais e nos países hegemônicos" (PORTO-GONÇALVES, 2012, p. 270). Segundo esse autor há, nesse caso, além da intenção de produzir a semente, o objetivo de geração de lucro por meio da sua venda.
Considerando a questão dos agrotóxicos como um produto da técnica, notamos que o tema, embora não muito frequente, é abordado como exemplificado anteriormente, em algumas passagens, tanto no PPG 2018-2022 quanto no PC Agroindústria. No PC Agropecuária, observamos que há uma constante substituição do termo agrotóxico por outros termos como defensivos agrícolas, como já apontado. Essa substituição pode representar uma tentativa de minimizar ou ocultar os impactos gerados pelo produto.
Algumas passagens dos documentos são exemplos que nos permitem compreender uma ênfase na possibilidade de uso correto dos agrotóxicos, de forma a não prejudicar o meio ambiente e os seres humanos, em detrimento da discussão acerca dos riscos reais dessa utilização. Ocorre, também, um deslocamento da responsabilidade dos efeitos da contaminação para o agricultor, que deverá manuseá-lo corretamente, uma vez que se defende que esse trabalhador participou de formações técnicas, que eliminam tais riscos.
De um lado, entendemos que não se pode desconsiderar a importância da boa formação do técnico em agropecuária em relação ao manuseio responsável e criterioso dos agrotóxicos. Por outro lado, parece-nos imprescindível que em seu processo formativo fique claro que, por mais criterioso que seja o uso desses produtos, torna-se impossível evitar os prejuízos de sua utilização em larga escala, em quantidades muitas vezes, desnecessárias.
Por fim, a análise dos documentos nos permite inferir que a perspectiva que considera a técnica como solução para os problemas ambientais é a que se apresenta como hegemônica no PPG 2018-2022, no PC Agropecuária e PC Agroindústria. Indica-se a técnica como responsável por minimizar os diversos impactos ambientais gerados pelos atuais modelos hegemônicos de relação sociedade-natureza.
A proposta de se trabalhar com os alunos a ideia de que a técnica per si resolve todos os problemas sociais e ambientais, em nada contribui com a possibilidade de construção de uma sociedade justa, do ponto de vista socioambiental. Ao contrário, a produção científica e tecnológica é, hoje, uma dentre outras práticas sociais que são constituintes das relações sociais entre os seres humanos e destes com os outros elementos da natureza. Assim, não há como prescindirmos das profundas mudanças que tais práticas têm provocado nos nossos modos de ser e estar no mundo.
No geral, por mais que sejam ampliados os conhecimentos em diversas áreas, tornou-se impossível prever "[...] inteiramente as consequências que podem resultar da aplicação técnico-experimental da ciência, menos ainda de sua utilização industrial" (GIACOIA, 2004, p. 393). Dessa forma, além de levarmos em conta os limites da técnica e da ciência, não podemos perder de vista os processos formativos que, por vezes "[...] admite-se como solução o que é parte do problema” (PORTO-GONÇALVES, 2012, p. 76). O autor aponta, ainda, que
Não podemos mais aceitar a ideia de que os efeitos estejam dissociados das causas, como se as poluições, as devastações, os desastres ambientais, o desemprego, a injustiça fossem meros efeitos colaterais e, assim, pudéssemos ficar com o lado bom desse processo científico e tecnológico e o absolvêssemos das consequências, muitas vezes trágicas, que ele mesmo nos traz. A técnica torna os meios e os fins inseparáveis, praticamente concretos. Não é mais possível separar ciência e ética, ciência e política, se é que algum dia foi (PORTO-GONÇALVES, 2012, p. 84).
A ideia da Revolução Verde exemplifica como a questão da técnica deve ser vista com cautela, uma vez que, com o pretexto de solucionar algum problema, acaba causando outros ainda mais graves, que agridem a população e a natureza. Segundo Porto-Gonçalves (2012, p. 79), uma vez que a técnica está inserida nas relações sociais e de poder, a crítica que se faz à técnica "[...] é sempre uma crítica às intenções nela implicadas."
Entendemos que a solução dos problemas socioambientais não é de natureza técnica, mas está inserida no campo político e cultural (GONÇALVES, 2014, p. 124). Para esse autor "[...] a técnica deve servir à sociedade e não esta ficar subordinada àquela [...]".
Assim, e mais uma vez, é importante ressaltar que não se trata de criar uma aversão à técnica e à ciência, mas levar em conta que esta é necessária, mas não suficiente para resolver todos os problemas vividos pela humanidade.
Considerações finais
A partir dos dados que vimos produzindo, relacionados com aspectos da temática socioambiental nas propostas do PPG 2018-2022 e dos Planos dos Cursos de Agropecuária e de Agroindústria, procuramos, neste artigo, explorar as relações mobilizadas entre a técnica, a temática socioambiental e o processo educativo.
Notamos, nos documentos analisados, que as questões que envolvem a técnica estão associadas a um modelo de desenvolvimento que deixa de atender aos preceitos da sobrevivência e passa a ocupar um lugar fundamental na obtenção de lucro. Ocorre, então, uma constante substituição por novas tecnologias, que objetivam uma maior dominação da natureza e do trabalhador, visando maior produtividade e, por conseguinte, maiores lucros.
Como exemplo, ao considerarmos os agrotóxicos como produto dos processos tecnológicos, apontamos que os textos mobilizam discursos muito presentes no contexto do agronegócio, como a possibilidade de utilização correta dos agrotóxicos, a necessidade de modernização da agricultura e os benefícios dos transgênicos. Dessa forma, parece implícita a ideia de que, de um lado, se torna possível que a utilização de todas essas tecnologias de forma a não prejudicar o meio ambiente e os seres humanos. Por outro lado, há um silenciamento em relação aos discursos que, contra-hegemonicamente, enfatizam os riscos reais dessa utilização. Além disso, ocorre um deslocamento da responsabilidade dos efeitos da contaminação por agrotóxicos para o agricultor que irá manuseá-lo.
Sobre as questões da mecanização e modernização da produção agrícola, é preciso estarmos atentos aos efeitos que estão por trás desses processos. Além dos impactos ambientais, o modelo de agricultura moderna seria responsável por eliminar a mão de obra no campo, substituída pelo processo de mecanização característico das grandes monoculturas (LUTZENBERGER, 1980). O sistema força um acentuado movimento de concentração de terras, bem como um aumento no uso de agrotóxicos e sementes transgênicas.
Diante desse cenário, podemos considerar que, entendido o contexto de dominação desencadeado pela ciência, marcado pela 'superioridade dos homens' e apropriação da natureza, notamos o crescimento desigual de alguns setores, bem como de alguns países. Esse processo de dominação resulta não somente na "alienação dos homens com relação aos objetos dominados", mas coisifica a relação que se estabelece do indivíduo consigo mesmo, tornando-o suscetível ao que se espera objetivamente dele, seus comportamentos reações e funções (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 40).
Por fim, observamos que a visão da técnica enquanto solução para os problemas socioambientais é bastante enfatizada e predomina nos documentos analisados. Deslocase para a técnica a responsabilidade sobre a preservação e conservação do ambiente.
As considerações acerca deste trabalho nos levam a refletir sobre outras questões que podem ser futuramente exploradas, como: a perspectiva da técnica relacionada à temática socioambiental está presente em outros cursos oferecidos nas escolas técnicas do estado de São Paulo e do Brasil? Quais outras perspectivas podem ser encontradas nas propostas curriculares das demais escolas técnicas agrícolas do estado de São Paulo e do Brasil? Seria possível pensar nas práticas curriculares das escolas técnicas agrícolas, considerando outros caminhos que apontassem para modelos de relação entre a sociedade e natureza?