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Ciência & Educação

versão impressa ISSN 1516-7313versão On-line ISSN 1980-850X

Ciência educ. vol.28  Bauru  2022  Epub 17-Nov-2022

https://doi.org/10.1590/1516-731320220052 

Artigo Original

Formação continuada e suas contribuições para as práticas matemáticas no âmbito da Educação no Campo

Continuing education and its contributions to mathematical practices in the field of Rural Education

Alícia Gonçalves Vasquez1 
http://orcid.org/0000-0002-7867-2638

Gerson Ribeiro Bacury1 
http://orcid.org/0000-0002-1160-3187

1Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Faculdade de Educação (Faced), Manaus, AM, Brasil


Resumo

Este artigo apresenta compreensões relacionadas às práticas matemáticas de professores, por meio da formação continuada, em Escolas no Campo. Para a reflexão acerca dessa temática, tomamos como base norteadora as discussões advindas do Grupo de Estudos e Pesquisas de Práticas Investigativas em Educação Matemática (GEPIMat). Nessa direção questionamos: quais fatores motivam e contribuem para os processos com as práticas matemáticas de professores que atuam no contexto da Educação do Campo? Objetivamos descrever os percursos iniciais de constituição dos professores que atuam no contexto da Educação do Campo com práticas matemáticas. Trata-se de uma pesquisa qualitativa realizada com duas professoras de Escolas do Campo em Manaus, no estado do Amazonas, Brasil. Quanto ao percurso metodológico, utilizamos como instrumentos de recolha e de análise de dados, observações, anotações, gravações e o uso dos percursos formativos. Os resultados destacaram que a formação continuada corrobora para uma reflexão para as práticas matemáticas futuras de professores.

Palavras-chave Formação continuada do professor; Educação escolar; Ensino de matemática; Educação no campo

Abstract

This article presents thinking related to the mathematical practices of teachers, through continuing education, in Rural Schools. For the reflection on this theme, we take as a guiding basis the discussions arising from the Group of Studies and Research of Investigative Practices in Mathematics Education (GEPIMat). In this direction, we ask: which factors motivate and contribute to the processes concerning mathematical practices of teachers who work in the context of Rural Education? Our aim is to the initial paths in the making of teachers who work in the context of Rural Education with mathematical practices. It is a qualitative inquiry, a Case Study, carried out with two teachers from schools in Manaus, Amazonas, Brazil. As for methods, we used the following instruments of collection and analysis: observations, notes, recordings, and the use of training paths. The results highlighted that continuing education supports a reflection on the future mathematical practices of teachers.

Keywords Teacher training; Schooling; Mathematics teaching; Rural education

Introdução

As reflexões às quais nos propomos discutir neste texto têm suas bases conceituais, didáticas e pedagógicas em nossa formação continuada, nas práticas, vivências e experiências como professores no contexto da Educação do Campo, com destaque ao ensino da Matemática, bem como nas discussões advindas do Grupo de Estudos e Pesquisas de Práticas Investigativas em Educação Matemática (GEPIMat) da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), de modo a estudarmos os processos de ensino e as práticas pedagógicas de professores que ensinam matemáticas nas Escolas do Campo.

Ademais, apresentamos nossos primeiros olhares quanto às motivações e contribuições dos processos com as práticas matemáticas de professores que atuam no contexto da Educação do Campo, que são parte integrante da pesquisa de mestrado, desenvolvida na cidade de Manaus, estado do Amazonas, no Programa de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (PPGE), da Faculdade de Educação (Faced), da UFAM, com a temática da formação de professores no âmbito da Educação do Campo.

Nessa perspectiva, compreendemos a formação de professores como um exercício permanente de desenvolvimento profissional, "[...] um processo contínuo, sistemático e organizado de aprendizagens, que ocorre ao longo de toda a carreira docente, visando promover o desenvolvimento profissional do professor.” (GIORGI, 2011, p. 33).

No decurso do processo investigativo, procuramos abordar questões acerca da formação de professores, com destaque aos que ensinam matemáticas, e suas práticas desenvolvidas na sala de aula. Todavia, é importante ressaltar que a formação continuada para professores que desenvolvem seu trabalho nas Escolas do Campo é direcionada para uma realidade pautada no trabalho com turmas multisseriadas, em escolas nucleadas.

Ao pensarmos sobre as práticas pedagógicas dos professores, nos deparamos com alguns questionamentos referentes aos processos de formação daqueles que atuam na Educação do Campo e que ensinam matemática, tendo como ideia inicial a necessidade de investigar a possibilidade de interlocução entre a formação recebida, durante sua formação continuada, e as suas práticas com a Matemática ao retornar para a sala de aula.

A Matemática, assim como as demais áreas do conhecimento, ocupa um papel fundamental na formação do indivíduo. Nessa direção está o desafio de buscarmos uma formação continuada de modo que a interlocução entre esse momento e, posteriormente, o trabalho do professor com as matemáticas nas salas de aulas, propicie uma aproximação entre ela e os estudantes, fomentando novos conhecimentos, a partir das práticas sociais trazidas por eles.

Portanto, ao considerarmos as distintas manifestações socioculturais trazidas por esses estudantes, toma-se para as práticas pedagógicas e didáticas dos professores a necessidade de a educação escolar ser vista como parte de uma totalidade maior, envolvendo as culturas, os quereres das comunidades rurais e o encontro com o outro nesse processo formativo, ou seja, dos conhecimentos interculturais e intraculturais (D'AMBROSIO, 2004).

A partir dessas compreensões, indagamos: Quais fatores motivam e contribuem para os processos com as práticas matemáticas de professores que atuam no contexto da Educação do Campo? Vale destacar que levamos em consideração as interconexões entre a Matemática Acadêmica, a Matemática Escolar e a Matemática do Cotidiano - partindo dos contextos comunitários das localidades nas quais realizamos a pesquisa.

Nessa direção, como fio condutor na busca da(s) possiblidade(s) de resposta(s) à essa questão, traçamos como objetivo da pesquisa: descrever os percursos iniciais de constituição dos professores que atuam no contexto da Educação do Campo com práticas matemáticas.

Posto isso, recorremos inicialmente de modo a conhecer o contexto no qual se desenvolvem essas atividades. Destacaremos alguns elementos pertinentes aos desafios que vivem os professores, tomando como ponto de partida a formação continuada, no Curso de Especialização em Educação do Campo da UFAM/Faced, em busca de desvelar suas interconexões e refletir sobre a função que esse processo desempenha nas práticas formativas desses professores, com a Matemática, tendo em vista o trabalho no âmbito da Educação do Campo. Esse ponto de vista passaremos a discutir na seção seguinte.

A formação continuada e as práticas matemáticas na Educação do Campo

Ao falarmos de Educação do Campo, evidenciamos que essa modalidade surgiu por meio dos movimentos sociais e, ao longo de seu processo histórico, tem adquirido alguns direitos, com destaque para o Decreto 7352/2010 (BRASIL, 2010) e para as Resoluções nº 1 de 3 de abril de 2002 e nº 2 de 28 de abril de 2008, ambas do Conselho Nacional de Educação (CNE) e da Câmara de Educação Básica (CEB) (BRASIL, 2002a, 2008), que instituem estratégias para políticas educacionais da Educação do Campo.

Esses marcos legais também refletem as políticas públicas voltadas para formação continuada e para professores que atuam nas Escolas do Campo. Partimos do que constitui a Resolução nº 02, de 28 de abril de 2008 (BRASIL, 2008), quanto às diretrizes complementares, às normas e aos princípios para o desenvolvimento de políticas públicas de atendimento da educação básica do campo, ao estabelecer que:

Art. 1º A Educação do Campo compreende a Educação Básica em suas etapas de Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio e Educação Profissional Técnica de nível médio integrada com o Ensino Médio e destina-se ao atendimento às populações rurais em suas mais variadas formas de produção da vida - agricultores familiares, extrativistas, pescadores artesanais, ribeirinhos, assentados e acampados da Reforma Agrária, quilombolas, caiçaras, indígenas e outros. § 1º A Educação do Campo, de responsabilidade dos Entes Federados, que deverão estabelecer formas de colaboração em seu planejamento e execução, terá como objetivos a universalização do acesso, da permanência e do sucesso escolar com qualidade em todo o nível da Educação Básica. (BRASIL, 2008, p. 1).

Ademais, acrescenta que:

§ 1º A organização e o funcionamento das escolas do campo respeitarão as diferenças entre as populações atendidas quanto à sua atividade econômica, seu estilo de vida, sua cultura e suas tradições. § 2º A admissão e a formação inicial e continuada dos professores e do pessoal de magistério de apoio ao trabalho docente deverão considerar sempre a formação pedagógica apropriada à Educação do Campo e às oportunidades de atualização e aperfeiçoamento com os profissionais comprometidos com suas especificidades. (BRASIL, 2008, p. 3).

Antecedendo a essa legislação, há também a resolução nº 1, de 3 de abril de 2002 (BRASIL, 2002a), que institui as diretrizes operacionais para a Educação Básica nas escolas do campo, a serem observadas nos projetos das instituições que integram os diversos sistemas do ensino, assegurando que a identidade dessa escola é definida pela sua vinculação às questões inerentes à sua realidade, ancorando-se na temporalidade e saberes próprios dos estudantes, na memória coletiva e em rede de ciência e tecnologia, disponível na sociedade e nos movimentos sociais, em defesa de projetos que associem as soluções exigidas por essas questões à qualidade social da vida coletiva no país.

Todavia, compreendemos que há um hiato entre o que se propõe pela legislação e o que realmente é colocado em prática nos espaços das Escolas do Campo (ribeirinhas e rodoviárias), principalmente as ribeirinhas, posto que nem todas têm as condições e o apoio para desenvolver um trabalho atento à sua cultura e realidade, visto que, boa parte dessas escolas, tem suas práticas voltadas para um contexto cultural urbano. Ainda, a escola ribeirinha é, sob a acepção de Victória (2008), dentro do contexto amazônico, uma escola que nasce e se desenvolve à beira dos rios e lagos; que conduzem o cotidiano de homens e mulheres, que pautam suas vivências culturais e sociais, principalmente na relação com o rio.

De acordo com o pensamento de Costa (2015), para falarmos de escola ribeirinha é necessário ter em mente que o Brasil é um país multicultural, de dimensões continentais e com características geográficas, econômicas e sociais que se diferem de uma região para outra. Essas diversidades estão retratadas nos costumes locais e até mesmo no acesso à escola, que por serem diferentes, requerem um olhar distinto que vá além do que já está posto nessas culturas. Nesse sentido, é fundamental uma escola que atenda às características geográficas locais e que pense a formação do professor de acordo com essas particularidades, principalmente no contexto da região amazônica, com destaque à Educação do Campo.

A partir do exposto, entendemos que a formação de professores engloba uma formação inicial e continuada, necessitando de conhecimentos teóricos e práticos - levando em consideração que aprender a ser professor não se encerra com a formação inicial, ou seja, essa aprendizagem acontecerá por meios de situações práticas, que determinam o desenvolvimento profissional amplo e contínuo. Em relação ao trabalho docente:

[...] Os trabalhos realizados de acordo com essa perspectiva mostram que os saberes docentes são temporais, plurais e heterogêneos, personalizados e situados, e que carregam consigo as marcas do seu objeto, que é o ser humano. Ora, os conhecimentos teóricos construídos pela pesquisa em ciências da educação, em os da pedagogia e da didática que são ministradas nos cursos de formação para o ensino, não concedem ou concedem muito pouca legitimidade aos saberes dos professores, saberes criados e mobilizados por meio de seu trabalho. Na formação inicial, os saberes codificados das ciências da educação e os saberes profissionais são vizinhos, mas não se interpenetram nem se interpelam mutuamente. Se admitirmos a legitimidade dessa tese, não podemos deixar de considerar certas questões importantes para a pesquisa e para a formação universitária. (TARDIF, 2000, p. 17).

A formação de professores estabelece compromisso com uma fundamentação teórica consistente e uma íntima relação entre teoria e prática, promovendo a práxis educativa, que se estabelece por meio de uma estreita relação entre os saberes dos professores e os saberes universitários. Essa práxis leva à uma análise da própria formação, visto que, em alguns momentos, reproduzimos nossas experiências como estudantes e, ao nos tornarmos professores, nos desvinculamos dessa "epistemologia da prática" proposta por Schön (2000), bem como da relação com a sociedade e história do lugar de professor pesquisador, e de que trabalhos e saberes que podem contribuir para a integração entre teoria e prática, proporcionando subsídios para um ensino de qualidade.

[...] a prática docente crítica, implicante do pensar certo, envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer. [...] O que se precisa é possibilitar, que, voltando-se sobre si mesma, através da reflexão sobre a prática, a curiosidade ingênua, percebendo-se como tal, se vá tornando crítica. (FREIRE, 2019 p. 42).

Com base nesses aportes, compreendemos que o conceito de prática docente crítica ressalta dois pontos: o da crítica e o da formação permanente. Sendo que, a crítica vem a ser a curiosidade epistemológica, enquanto a formação permanente é o resultado do conceito da condição que o ser humano tem de sua construção e da consciência de estar sempre em constante formação.

Já a práxis, termo grego relacionado à prática e com raízes nos pensamentos de Aristóteles, se apresenta como um conceito utilizado em oposição ao de teoria, fazendo alusão ao processo pelo qual uma teoria passa a fazer parte da experiência vivida. Neste contexto, práxis é considerada uma etapa necessária na construção de conhecimento válido.

Assim, a teoria é implementada nas aulas e foca-se na abstração intelectual; por sua vez, a práxis, ocorre a partir do momento em que essas ideias são experimentadas no mundo físico, para continuar com uma contemplação reflexiva dos seus resultados. O que permite repensar as práticas educativas e pedagógicas para que estas "[...] não se configurem num desserviço à sociedade pelo modo como lidamos com o conhecimento na escola, em particular na escola do campo." (GHEDIN, 2008, p. 274).

Ao discorrermos sobre as práticas pedagógicas, principalmente em relação à Educação do Campo, não podemos desvinculá-las da formação de professores, tanto inicial, quanto continuada, posto que, ao longo do tempo, o Brasil vem constituindo políticas públicas voltadas para formação de professores, dentre as quais destacamos o Decreto nº 6.755, de 29 de janeiro de 2009 (BRASIL, 2009), que Institui a Política Nacional de Formação de Profissionais do Magistério da Educação Básica e disciplina a atuação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) no fomento a programas de formação inicial e continuada, entre outros direcionamentos.

Um marco na consolidação da Educação do Campo é a instituição do Decreto nº 7.352 de 4 de novembro de 2010, que dispõe sobre a Política de Educação do Campo e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA). Esse documento aborda os princípios da Educação do Campo, tais como: o respeito à diversidade, a formulação de projetos políticos pedagógicos específicos, o desenvolvimento de políticas de formação de profissionais da educação e a efetiva participação da comunidade e dos movimentos sociais do campo. Destaca em seu a Art. 1º § 4º que:

A Educação do Campo concretizar-se-á mediante a oferta de formação inicial e continuada de profissionais da educação, a garantia de condições de infraestrutura e transporte escolar, bem como de materiais e livros didáticos, equipamentos, laboratórios, biblioteca e áreas de lazer e desporto adequados ao projeto políticopedagógico e em conformidade com a realidade local e a diversidade das populações do campo. (BRASIL, 2010, p. 1).

Com base nessa diretriz, foi criado o Curso de Especialização em Educação do Campo, com ênfase em práticas pedagógicas, cuja proposta foi homologada no dia 6 de maio de 2016 pela Câmara de Pesquisa e Pós-graduação da UFAM, local no qual selecionamos os colaboradores da nossa pesquisa. Os estudos de Melo (2016) concebem o termo "colaborador" por não considerar os professores somente como sujeitos da pesquisa, e sim parte dela.

O Curso teve como objetivo geral formar profissionais envolvidos com a temática da Educação do Campo, portadores de diploma de graduação, em especial em Licenciaturas, possibilitando refletirem sobre seus conhecimentos teóricos e metodológicos, centrados em práticas pedagógicas, capazes de proporem estratégias interdisciplinares e transdisciplinares, facilitando a integração do saber tradicional ao saber científico do mundo do trabalho do campo.

O perfil dos participantes dessa formação continuada foi pautado em profissionais graduados que atuam nas escolas multisseriadas do campo no município de Manaus, sendo uma formação norteada pelo estudo dos referenciais teóricos e dos princípios da Educação do Campo. Dividida entre Tempos Universidade (400 h), onde eram abordados conhecimentos científicos, e Tempos Comunidade (120 h), desenvolvendo os eixos temáticos às práticas pedagógicas em forma de oficina de aprendizagem: Linguagem, Matemática, Ciência, História e Geografia, referentes aos conhecimentos dos anos iniciais do ensino fundamental. Nesse ambiente formativo, buscamos entender os conhecimentos adquiridos por esses professores e, principalmente, obter respostas sobre questões relacionadas às suas práticas com essa disciplina, nas salas de aulas, após a realização desse Curso de Especialização.

Entendemos o trabalho com as matemáticas, nesse contexto, com certa complexidade. Haja vista que há uma distinção no processo de ensino da Matemática no contexto da Educação do Campo, comparada ao contexto da Educação nas escolas da Zona Urbana, uma especificidade na pedagogia e estrutura curricular que, muitas vezes, está longe da realidade e da cultura dos estudantes do campo, precisando ser adaptadas à vivência local, valorizando aquilo que faz parte do cotidiano deles.

É válido mencionar a questão da estrutura das escolas, muitas delas ainda de taipa, madeira, sem iluminação e circulação de ar adequadas, faltando carteiras e outros materiais básicos. Ademais, chegar nas escolas do campo é um grande problema devido às distâncias e outras questões geográficas, sendo necessário acordar muito cedo para percorrer estradas ou rios. Em período de chuva é ainda mais complicado, pondo em risco não apenas a integridade física e emocional dos estudantes, como também dos funcionários.

Essas problemáticas interferem negativamente na Educação do Campo, se fazendo necessário mudanças pautadas nas lutas por direitos iguais, permitindo aos estudantes desses espaços uma educação de qualidade ampla, respeitando tanto o social como o cultural, e uma educação digna que reduza a desigualdade educacional.

Observa-se assim que, desde o início, valorizamos as questões vinculadas diretamente à sala de aula e os estudos e pesquisas centrados na questão da aprendizagem e do ensino da matemática na escola. Ainda que a promoção de acesso social generalizado a uma educação matemática básica de qualidade seja condicionada fortemente por fatores que ultrapassam o ambiente restrito da sala de aula e da própria escola, entendemos que, como educadores matemáticos, temos um trabalho importante a fazer nesse espaço particular e específico de atuação, juntamente com os professores e com a comunidade escolar em geral. Além disso, entendemos que muitas das mudanças mais significativas que precisam ocorrer na educação matemática escolar, tais como aquelas necessárias no campo de formação de professores e das referências curriculares para a educação básica, devem estar estreitamente articuladas com (e melhor informadas por) aquilo que acontece ou deixa de acontecer em temos de aprendizagem e de ensino na sala de aula da escola. (DAVID; MOREIRA; TOMAZ, 2013, p. 43).

Diante do exposto, verificamos os obstáculos enfrentados pelos professores do campo, ainda em formação inicial, ao compararmos com os futuros professores nos cursos de Licenciatura em Matemática da zona urbana. Principalmente no que se refere às relações entre a prática e a teoria, entre o conteúdo matemático e a ação pedagógica, e, em especial, a relação entre a Matemática Acadêmica, a Matemática Escolar e a Matemática do Cotidiano, na sala de aula; não deixando de lado as questões culturais e a vivência escolar, como ferramentas que podem ser exploradas pelo professor que irá atuar no âmbito da Educação do Campo.

Os estudos de David, Moreira e Tomaz (2013), quando se referem às práticas do Ensino da Matemática na zona urbana, evidenciam que seu desenvolvimento ocorre de forma convencional, ou seja, pautadas em exposições, seguidas de tarefas para exercitar os conteúdos planejados - esquecendo de trazer para a sala de aula o cotidiano dos estudantes, como forma de ensinar Matemática de uma maneira mais dinâmica e atrativa. Atualmente, ao verificarmos os professores que atuam nas escolas da zona urbana, percebemos que alguns deles tentam utilizar recursos diferenciados para o desenvolvimento de suas práticas com a Matemática nas escolas, no intuito de conciliar o conhecimento matemático e o cotidiano dos estudantes.

Nessa direção, os estudos de Bacury (2017) indicam um caminho formativo que ocorre durante o processo de formação inicial, permitindo as devidas interconexões entre a teoria e a prática no conhecimento matemático e na metodologia de ensino; no uso das Tendências em Educação Matemática, em suas práticas educativas e formativas; na relação entre a Matemática Acadêmica e a Matemática Escolar; na produção de textos acadêmicos e material didático, dentre outros, contribuindo para que os futuros professores possam já nesse momento de formação, vivenciar a realidade das escolas públicas.

Compreendemos que esse olhar também pode se configurar como uma possibilidade para o trabalho do professor nas Escolas do Campo, mesmo considerando as dificuldades que venham a surgir durante o desenvolvimento de suas práticas, buscando trazer situações do cotidiano dos estudantes para a sala de aula. Todavia, o professor que atua nas Escolas do Campo pode ampliar seu olhar sobre a aprendizagem da Matemática, executando atividades semelhantes às desenvolvidas nas escolas da zona urbana.

Para uma melhor compreensão dos segmentos Educação do Campo e Educação Urbana, David, Moreira e Tomaz (2013) apresentam alguns pontos divergentes entres eles, posto que na Educação do Campo os interesses são voltados para o povo camponês e dos movimentos sociais, priorizando o coletivo por meio da pedagogia transformadora, com necessidade de qualificação permanente, mas com poucos investimentos por parte dos governos. Enquanto na Educação Urbana, o interesse é voltado para o capitalismo e corresponde ao modelo político de desenvolvimento econômico, tendo como base os interesses das classes dominantes e políticas, sendo mais individualista, apoiada na pedagogia tradicional e com qualificação permanente, pois recebem bem mais investimentos e prioridades na aplicação dos recursos públicos.

Posto isso, ressaltamos que os profissionais que vão atuar nesse espaço como professores, precisam ser preparados para enfrentar esses obstáculos que, de alguma maneira, influenciam na aprendizagem dos estudantes, pois, tais dificuldades, sobretudo aquelas ligadas às questões de diversidade sociocultural, para quem atua na Educação do Campo, podem ser mais complexas para o desenvolvimento de seu trabalho quando comparadas às situações pelas quais passam os professores que atuam nas escolas da zona urbana. Haja vista que no:

[...] processo de formação de professores espera-se que prepare o licenciando para desenvolver uma ação docente consciente da diversidade sociocultural que compõe o espaço escolar e o torne capaz de reconhecer as situações problemas e transformálas em situações de ensino. (COSTA; GHEDIN; LUCENA, 2013, p. 2).

Ressaltamos que, nos planejamentos de formação continuada destinados aos professores, iniciantes ou experientes, é fundamental ouvir os docentes, suas dificuldades e desafios, de forma que se priorizem as temáticas que realmente podem contribuir para a sua prática. Assim, é mais provável que os professores, ao participarem da formatação de seu próprio aprendizado, tenham mais compromisso com o processo, afinal "[...] o conhecimento das necessidades de formação do professor pelo próprio professor é uma das condições primordiais para o reinvestimento da formação na sua prática." (RODRIGUES, 2006, p. 9).

A partir dessas reflexões e dos novos aprendizados que foram se constituindo durante nossa caminhada no PPGE/FACED/UFAM, compartilhados e refletidos no GEPIMat, passaremos a abordar, na seção seguinte, nossas primeiras imersões no estudo das possíveis contribuições dos processos de formação continuada nas práticas pedagógicas de professores que ensinam matemáticas no contexto da Educação do Campo.

Caminho investigativo da pesquisa

Dadas as características da pesquisa e levando em consideração o objeto de estudo, optamos pela abordagem qualitativa que, na acepção de Oliveira (2012), se constitui num processo que permite a reflexão e análise da realidade via utilização de métodos e técnicas de compreensão detalhada do objeto de estudo. O referencial teóricometodológico da pesquisa qualitativa tem as motivações, os significados e atitudes em destaque como elementos fundamentais para análise do estudo em questão.

Por meio das leituras realizadas em teses, dissertações e artigos, buscamos nas metodologias desses trabalhos uma modalidade de pesquisa que nos possibilitasse a recolha e as análises de informações de modo a alcançar a questão e o objetivo propostos.

Após a realização desse mapeamento sobre o Estudo de Caso, optamos pelas compreensões de Yin (2015) ao conceber esse tipo de pesquisa como uma investigação empírica, que investiga um fenômeno contemporâneo (o "caso") em profundidade e em seu contexto de mundo real, especialmente quando os limites entre o fenômeno e o contexto puderem não ser claramente evidentes. Para Ponte (2006) o Estudo de Caso se configura como uma investigação que se assume como particularista, isto é, que se debruça deliberadamente sobre uma situação específica que se supõe ser única ou especial.

Levando em conta as particularidades da nossa pesquisa e o contexto em que ela se insere ao investigarmos as possibilidades de práticas pedagógicas de professores que ensinam Matemática na Escolas do Campo, com base nos processos de formação continuada desenvolvidos por elas no Curso de Especialização em Educação do Campo da Faced/UFAM, intencionamos captar as nuances da relação entre a teoria apreendida nessa formação continuada e o desenvolvimento de prática a serem desenvolvidas posteriormente, nos espaços escolares.

O estudo no qual propomos neste artigo foi desenvolvido com duas professoras, cujos critérios de inserção foram: ser professora de Matemática atuante em turmas de 1º ao 5º ano, em escola municipal de Ensino Fundamental I, localizada na zona rural, e ter concluído o curso de Especialização em Educação do Campo - Ênfases em Práticas Pedagógicas, da Faced/UFAM.

Ao planejarmos nossa investigação, adotamos como instrumento de recolha das informações: a observação, as anotações, as gravações de narrativas e, principalmente, o uso dos percursos formativos, ferramenta que possibilitou captar a perspectiva das professoras em relação a temática abordada, alinhado às reflexões no GEPIMat acerca de fatos ocorridos e observados. Nessa direção, levamos em consideração que "[...] os percursos formativos são as autobiografias construídas a partir dos relatos no processo de formação inicial dos partícipes." (BACURY, 2017, p. 79).

Todavia, por conta da pandemia causada pela Covid 19, houve uma reestruturação no estudo, isto é, com as medidas tomadas em âmbito nacional e estadual, ocorreu a suspensão das atividades presenciais nas escolas públicas e universidades. Para situarmos esse contexto, destacamos as bases legais adotadas pelos governos federal e estadual, a saber: a Portaria nº 343, de 17 de março de 2020, do Ministério da Educação (MEC) (BRASIL, 2020), um dos primeiros documentos publicados, que estabeleceu a substituição das disciplinas presenciais, em andamento, por aulas que utilizassem meios e Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC).

Nessa direção, o governo do Estado do Amazonas, por meio do Decreto nº 42.061, de 16 de março de 2020 (AMAZONAS, 2020), também suspendeu as aulas, no âmbito da rede estadual pública de ensino na capital do Estado. Em decorrência, também houve a suspenção nas escolas municipais (urbanas e rurais) por meio da Portaria nº 0380, de 31 de março de 2020, da Secretaria Municipal da Educação de Manaus (Semed) (MANAUS, 2020).

Tal paralisação também ocorreu nas atividades da UFAM com o ensino, com a pesquisa e com a extensão que, pela Portaria do Gabinete do Reitor (GR) nº 626, de 13 de março de 2020 (UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS, 2020), considerando a declaração de pandemia pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e a confirmação dos primeiros casos de pessoas infectadas com o vírus da Covid-19 no Estado do Amazonas, determinou a suspenção das suas atividades presenciais acadêmicas e administrativas. Com o avançar da pandemia, esses aportes legais foram prorrogados. Em meio a esse cenário de incertezas, procuramos nos adequar para darmos continuidade aos nossos trabalhos.

Como o cenário da pandemia interferiu em nossa metodologia? Ao iniciarmos nossa empiria, estava previsto observar a prática das professoras em suas salas de aula nas escolas selecionadas como local da pesquisa, porém, com a suspensão das aulas, não foi possível conhecer esses espaços e realizar todas as observações referentes às práticas matemáticas desses professores com os estudantes. Isso fez com que fizéssemos uso de outros meios para poder concluir as nossas recolhas de informação, como foi o caso do uso de e-mail, WhatsApp, dentre outros.

No que concerne ao uso desse recurso, Borba, Almeida e Gracias (2019) destacam que as vozes permeadas por Tecnologias Digitais, nas quais as informações são repassadas, podem se constituir em conhecimento, consolidando um entrelaçamento entre o espaço virtual e o presencial; ou seja, permitindo que as vozes dos colaboradores desta pesquisa cheguem até os pesquisadores e vice-versa, de certo modo, transformando essas vozes virtuais em presenciais.

Com esse novo direcionamento, estruturamos a recolha de informações a partir das vias de correspondência digital, aplicativos de conversa e plataformas de videochamadas; trabalhando, junto às colaboradoras da pesquisa, com a ferramenta do Percurso Formativo. Esse Percurso Formativo é concebido por Bacury (2017), como uma ferramenta de recolha e análise de informações que abordam a trajetória ou um recorte temporal da trajetória dos colaboradores da pesquisa, por meio de temáticas previamente elaboradas pelo pesquisador.

Dentre as temáticas que abordamos, daremos destaque: a motivação pessoal para a escolha da formação continuada em Educação do Campo e as contribuições da formação continuada em suas práticas matemáticas na sala de aula.

Nessa perspectiva, propomos realizar as análises a partir dos percursos formativos dessas colaboradoras, de modo a constituirmos uma reflexão sobre os processos de formação continuada delas, assim como conhecer os fatores que motivam e contribuem para com suas práticas matemáticas no contexto da Educação do Campo.

No que concerne ao local da pesquisa e às características do objeto de estudo, escolhemos as instituições escolares e as professoras pertencentes à Secretaria Municipal de Educação de Manaus, que atende 890 escolas da zona rural e urbana, sendo que as escolas da zona rural são 120 escolas, nas modalidades de Educação Infantil, Ensino Fundamental series iniciais e finais, Educação Escolar Indígena e Educação de Jovens, Adultos e Idosos (EJAI).

Desse processo investigativo, foram selecionados quatro professores, com os quais tivemos um contato prévio, antes da suspensão das aulas nas escolas, para uma conversa sobre as intenções da pesquisa e para verificarmos se teriam interesse em colaborar com o estudo. Após a apresentação da proposta de trabalho da pesquisa, do perfil do colaborador da pesquisa, e dentre outros detalhes, obtivemos o aceite de duas professoras.

Em paralelo, passamos à submissão do projeto da pesquisa de mestrado junto ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEP) da UFAM, no sentido de tomar os devidos cuidados éticos com a pesquisa quanto a proteção dos interesses dos colaboradores, assim como da sua integridade e dignidade para colaborar no desenvolvimento da pesquisa. Ressaltamos que foi essencial para esse processo a aquisição da carta de anuência da Semed de Manaus, para assim darmos início a pesquisa nas escolas.

Quanto aos processos de análises, priorizamos as estratégias analíticas propostas por Yin (2015), nas quais o pesquisador deve usar da criatividade para sobressair-se nesse tipo de estudo, em especial os iniciantes, distanciando-se de tudo o que sabe sobre o caso, para que aflore sua intuição e, assim, encontre algum padrão de convergência entre as informações recolhidas. Por meio dessas recolhas junto às nossas colaboradoras, realizamos nossas primeiras análises, que passaremos a apresentar a seguir.

Resultados e discussões

Ao realizarmos as devidas análises do que recolhemos, partimos da aproximação com a realidade, momento esse que nos forneceu informações significativas a respeito do nosso objeto de estudo.

Inicialmente, estruturamos o nosso planejamento estabelecendo o cronograma de atividades para o desenvolvimento da empiria virtualmente, haja vista que as ações presenciais como visita, observação das práticas pedagógicas com as matemáticas e a reunião no local da pesquisa foram suspensas.

Posteriormente, definimos as escolas de realização da pesquisa de acordo com a lotação das professoras selecionadas; estas, oriundas do curso de Especialização em Educação do Campo da UFAM, além de ensinarem Matemática nas Escolas do Campo e concordarem em colaborar com a pesquisa. Definido isso, começamos a empiria em fevereiro de 2020, momento em que iniciava o ano escolar.

Com base nos direcionamentos sinalizados por Bacury (2017), quanto ao Percurso Formativo e o refinamento desse instrumento para a recolha das informações, foi compartilhada, refletida e iniciada a sua construção nos encontros no GEPIMa, com o devido cuidado de adequá-lo às características da nossa pesquisa e ao objeto de estudo em questão. Feito isso, passamos ao próximo passo: a recolha das informações junto às colaboradoras da pesquisa.

Num segundo momento, as professoras fizeram suas reflexões sobre as questões contidas nos Percursos Formativos e, posterirormente, passaram a proceder quanto ao preenchimento desse instrumento - esse processo foi realizado via correspondência por e-mail e/ou pelo WhatsApp. Passamos, então, ao início do esquadrinhamento das informações recolhidas junto às professoras colaboradoras da pesquisa.

Ao observarmos os percursos formativos, iniciamos as análises, extraindo das narrativas das professoras as percepções ali contidas, investigando as ideias apresentadas em cada temática abordada, com o objetivo de compreender o que dali emergia. Assim, captamos suas reflexões, evidenciadas nas temáticas apresentadas em seguida.

Motivação pessoal para a escolha da formação continuada em educação do campo

[...] a minha motivação pessoal foi para que eu pudesse melhorar o meu desempenho na área onde eu atuo, pois já trabalho há 16 anos nessa localidade/comunidade, por isso foi muito bom e fiquei feliz para ir, e claro, mais motivada, apesar de não ser fácil, porque é uma rotina difícil está na escola e está estudando, mas me motivei ainda mais, pela a secretaria lembrar de nós e nos escolher para nos aperfeiçoar, e isso foi muito importante para nós, porque na realidade não foram todos os professores que foram contemplados com essa formação. Eu acredito que a secretaria fez uma seleção daquelas pessoas que são mais engajadas e que têm uma postura de realmente avançar na Educação do Campo [...]. [Professora 1, 2022].

Na minha infância eu sempre estudei em escola multisseriada, e quando eu decidi ser professora, entrei para secretaria e já fui trabalhar com classes multisseriadas, e tudo isso foi um incentivo para eu participar dessa formação, e também buscando melhorar meus conhecimentos, me atualizando pra fazer um trabalho melhor, de como trabalhar com meus alunos em classes multisseriadas, porque não é fácil, [...] melhorar minha prática pedagógica na sala de aula, e trabalhar com classes multisseriadas. Com tudo isso, eu pretendo continuar, nesse mesmo objetivo, procurando melhorar cada vez mais. [Professora 2, 2022].

As apurações destacadas pelas professoras 1 e 2, nesta temática, evidenciaram que existe, por parte das professoras, a necessidade de terem uma formação contínua para o seu desenvolvimento profissional, principalmente em relação às escolas do campo, onde há carência dessa especificidade para atuarem nesse contexto. Nessa direção, a especialização oferecida traz, em sua proposta, metodologias voltadas a esse contexto, pautado na 'pedagogia da alternância', envolvendo dois momentos: tempos universidade e tempos comunidade.

Em sua proposta inicial, o curso objetivava formar profissionais envolvidos com a temática da Educação do Campo - portadores de diploma de graduação, em especial Licenciaturas - para que possam refletir sobre seus conhecimentos teóricos e metodológicos, centrados em suas práticas pedagógicas, buscando proporem estratégias interdisciplinares e transdisciplinares como forma de facilitar a integração do saber tradicional ao saber científico do mundo do trabalho do campo.

Para isso, o perfil dos participantes está pautado em profissionais graduados que atuam nas escolas multisseriadas do campo no município de Manaus, que já concluíram o Curso de Aperfeiçoamento em Educação do Campo, aos formadores(as) do referido Curso e os educadores(as) vinculados a Secretaria de Estado de Educação do Amazonas, e aos Movimentos Sociais do Campo.

Em relação a formação continuada, a Resolução Nº 2 de 28 de abril de 2008 (CNE/ CNB), constitui que:

§ 2º A admissão e a formação inicial e continuada dos professores e do pessoal de magistério de apoio ao trabalho docente deverão considerar sempre a formação pedagógica apropriada à Educação do Campo e às oportunidades de atualização e aperfeiçoamento com os profissionais comprometidos com suas especificidades. (BRASIL, 2008, p. 3).

Neste sentido, percebemos, por meio dessas falas, que a motivação para a escolha da formação foi algo induzido pelo processo acadêmico, em consonância aos objetivos propostos pela formação e atendendo ao que versa a legislação nacional. De acordo com Costa (2015), as influências percebidas depois de um processo de formação continuada podem sofrer intervenções culturais, sociais e econômicas, ou seja, a formação continuada pode sofrer intervenções devido todo processo cultural característico da própria região.

As intervenções apontadas por Costa (2015), certamente, terão influência nas ações futuras dessas colaboradoras da pesquisa pois, as interações no processo cultural que experimentaram nessas regiões, juntamente com o que vivenciaram e experienciaram em sua formação continuada no curso de Especialização em Educação do Campo da UFAM, tendem a reverberar em suas práticas futuras com as matemáticas nas salas de aula das Escolas do Campo, conforme evidenciado na temática a seguir.

[...] precisamos sim nos capacitar, a cada momento, porque nós precisamos melhorar essa educação, porque o ser humano precisa, realmente estar se reinventando, e a Educação Rural não é mais como há dez/quinze anos atrás. Então, a minha prática anterior nunca foi tradicionalismo, mas a minha prática era de uma forma e agora, depois dessa formação, veio de outra, como eu já falei, principalmente trabalhar as especificidades da comunidade, ter esse olhar pro aluno, com as atividades voltadas para seu cotidiano, mas não deixando de passar o conhecimento que é exigido pela proposta (os conteúdos), usar a interdisciplinaridade, [...] fazer com que a nossa prática se torne diferente, para que o aluno não venha ter aquela aula maçante de sempre, mas sim uma rotina prazerosa. [...] vimos as lutas dos professores da UFAM, tentando valorizar o que temos, a todo momento eles nos incentivando. Lembro também de um professor de Matemática, aquele professor foi dez, ele trouxe atividades que poderíamos fazer na sala de aula, que muitas vezes queremos modernizar tanto e temos tudo ali, em nossas mãos. Foi muito gratificante o que ele passou, as atividades que desenvolveu com a reta numérica [...] [Professora 1, 2022].

Eu sempre tive um bom desempenho na escola, pois sempre busquei trabalhar usando as coisas da comunidade [...] então essa prática veio para nos orientar a trabalhar dessa forma, usando o que a gente tem ali, a realidade da comunidade, a realidade da criança, usar realmente ali onde ela está inserida. Veio para inovar a nossa prática, para trabalhar de forma interdisciplinar e usar a realidade da criança, porque cada um tem a sua realidade, nós trabalhamos na zona rural, mas cada comunidade tem a sua especificidade. A comunidade que eu trabalho, é uma comunidade tradicional [eles se julgam assim], e eles usam muito a pescaria, então a nossa realidade lá é essa, do artesanato, que eles usam muito, e da agricultura também, eles têm uma plantação, uma casa de farinha e eu tenho até vontade de levar meus alunos lá, para conhecerem a realidade dali. Então essa formação veio para isso, para abrir a nossa visão de que nós temos que trabalhar o aluno dentro da sua realidade, do que ele vivencia diariamente, e não deixar as raízes dele. [Professora 2, 2022].

Compreendemos que a formação inicial, por si só, nem sempre permite ao professor refletir quanto ao papel de agente transformador da sociedade, e que compreender e dominar o conhecimento científico não é suficiente para atuar em sala de aula. Diante disso, a Formação continuada de Professores pode ser entendida como "[...] um processo contínuo de permanente desenvolvimento" (BRASIL, 2002b, p. 63), em relação aos Referenciais para a Formação de professores no âmbito nacional.

Na Educação do Campo existe ainda a necessidade de uma formação inicial que ofereça ao professor uma base sólida de conhecimentos e que lhe possibilite reelaborar continuamente os seus saberes iniciais, confrontando com as suas experiências vivenciadas no cotidiano escolar - daí a importância da formação continuada dentro desse contexto.

Conforme apontado anteriormente, "[...] o conhecimento das necessidades de formação do professor pelo próprio professor é uma das condições primordiais para o reinvestimento da formação na sua prática" (RODRIGUES, 2006, p. 9), ou seja, o planejamento de formações continuadas para professores deve considerar as dificuldades e desafios enfrentados no cotidiano escolar destes, priorizando temáticas que contribuem com o seu desenvolvimento profissional e suas ações em sala de aula.

Consideramos, por meio das falas de nossas colaboradoras, que a formação continuada se faz necessária para o desenvolvimento profissional e a constituição do professor, para que possa melhorar suas práticas, no caso, com o ensino da Matemática em sua sala de aula, conforme aponta Bacury (2017) em relação às Práticas Investigativas em Educação Matemática. Podemos, assim, fazer uma aproximação do que as professoras apontam em suas falas e esse tipo de prática.

Destacamos que as vivências da formação proporcionaram aprendizados compartilhados que as professoras levaram para a sua sala de aula, escola/comunidade, realizando trabalhos com estudantes e envolvendo as matemáticas do cotidiano deles, de maneira que os incentivassem para interações com o trabalho e a comunidade, o que foi gratificante para as professoras colaboradoras da pesquisa, posto que, na medida que buscaram uma formação continuada, foram aprimorando suas práticas pedagógicas.

A imersão no campo de pesquisa nos possibilitou fazer a relação das narrativas destacadas pelas professoras no contexto de suas salas de aula, com o que elas realizam no cotidiano das escolas onde desenvolvem suas práticas pedagógicas, considerando que são os professores que fazem de suas salas de aulas um laboratório de ensino e de pesquisa.

Posto isso, pretendemos como próximo passo, caso haja o retorno das atividades nas escolas, ainda dentro do prazo reconfigurado em nosso cronograma de pesquisa quanto ao desenvolvimento da dissertação, realizarmos visitas nas respectivas comunidades, nas quais essas colaboradoras atuam. E, assim, ampliar nosso estudo, por meio de observações de atividades práticas e 'registros audiovisuais' (POWELL; SILVA, 2015), dentre outros que pretendemos adicionar às nossas reflexões.

Considerações finais

Tomando como base as nossas vivências durante o processo formativo e as discussões e reflexões advindas do GEPIMat, procuramos ampliar nossos conhecimentos teóricos de forma a contribuir com estudos na área da Formação Continuada. Neste sentido, direcionamos nosso estudo ao encontro de uma resposta à questão de pesquisa que nos propomos investigar.

Em relação a Educação do Campo, principalmente no Brasil, é necessário, ainda, que estudos viabilizem o desenvolvimento mais dinâmico, principalmente no que se refere às práticas educativas com as matemáticas. Outros estudos já apontaram que o insucesso no aprendizado da disciplina de Matemática atinge o desenvolvimento escolar dos estudantes, trazendo à tona uma triste realidade, na qual a maior parte deles está atrasada em relação à idade/série.

Não podemos deixar de mencionar o impacto da pandemia, causada pelo Covid-19, no calendário escolar, apresentando como alternativa o ensino remoto. O que configurou em uma situação ainda mais difícil para esses estudantes e professores, principalmente em relação ao ensino nas escolas do campo, haja vista a dificuldade e/ou falta de acesso à internet, o que evidencia ainda mais as discrepâncias existentes em nosso país.

Vale mencionar que a pandemia ocasionou grandes instabilidades a nível mundial, o que também acarretou contratempos para a realização da empiria de nosso estudo, levando a algumas mudanças no rumo de nossa pesquisa. Ao pensarmos o nosso projeto de pesquisa, não imaginávamos o que teríamos pela frente, vislumbrávamos realizar essa investigação talvez com algum tipo de imprevisto, mas nunca por algo igual ao que estamos passando, o que de fato interferiu no desenvolvimento da empiria.

Ressaltamos ainda que o uso do ‘percurso formativo’ nos proporcionou subsídios necessários para realizarmos as análises daquilo que foi apontado pelas professoras colaboradoras, levando a conhecer, de forma ampliada, sobre as possibilidades de práticas pedagógicas a partir dos processos de formação continuada de professores que ensinam matemáticas na Escola do Campo.

Os resultados sinalizaram que as professoras consideram que a formação continuada corrobora para uma reflexão sobre as suas práticas com o ensino da Matemática. O que nos permitiu compreender que a formação continuada deve ocorrer de forma reflexível, fazendo uma interlocução com as práticas desenvolvidas em sala de aula, possibilitando o fortalecimento das relações de saberes e práticas pedagógicas e propiciando o desenvolvimento delas, de modo à condução para uma prática reflexiva e adequada à realidade do cotidiano, principalmente traçando metodologias voltadas para o ensino da Matemática.

Ademais, acreditamos que o resultado dessa investigação possa subsidiar outros estudos, tanto a nível lato sensu e quanto a stricto sensu, de modo a fomentar novas possibilidades pedagógicas. Contribuindo, assim, com outras pesquisas nessa linha a partir de olhares múltiplos e, principalmente, com aqueles que estão atuando na sala de aula das Escolas do Campo.

Agradecimentos

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam) pelo incentivo dedicado à pesquisa em nosso estado e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), como financiadora do PPGE/Faced/Ufam. Aos membros do nosso Grupo de Estudos e Pesquisas de Práticas Investigativas em Educação Matemática (GEPIMat), com os quais interagimos durante todo esse processo.

Referências

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Recebido: 09 de Abril de 2021; Aceito: 07 de Junho de 2022

Autora Correspondente: alicia.vasquez@seduc.net

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