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Ciência & Educação

versão impressa ISSN 1516-7313versão On-line ISSN 1980-850X

Ciência educ. vol.28  Bauru  2022  Epub 17-Nov-2022

https://doi.org/10.1590/1516-731320220057 

Artigo Original

Produção do Currículo Bahia e a disciplina escolar Ciências: uma análise centrada nos temas integradores

Curriculum development in Bahia and the school subject of Science: focus on integrative themes

Jéssica Gomes das Mercês Costa1 
http://orcid.org/0000-0003-1030-0851

Edinaldo Medeiros Carmo2 
http://orcid.org/0000-0002-1594-8983

1Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, Brasil

2Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Departamento de Ciências Naturais, Vitória da Conquista, BA, Brasil


Resumo

O presente artigo tem como objetivo analisar os desdobramentos e releituras da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que culminaram no texto Documento Curricular Referencial da Bahia para Educação Infantil e Ensino Fundamental (DCRB), bem como sua influência na disciplina escolar Ciências. Após a homologação da BNCC, iniciou-se a construção de textos secundários que auxiliaram na sua implementação nos estados e municípios, assim, no estado da Bahia foi desenvolvido o DCRB. Por meio da análise dos textos foi possível observar as permanências e as rupturas de diferentes discursos e configurações, resultado dos processos de releituras da Base Nacional. Dessa forma, o Documento Curricular baiano destaca temas importantes que foram silenciados ou minimizados no texto final da BNCC. Nesse contexto, a disciplina escolar Ciências, presente no DCRB, propõe um ensino mais amplo, significativo e que possibilita uma formação mais integral dos estudantes.

Palavras-chave Ensino de ciências; BNCC; Currículo referencial; Bahia; Política da educação

Abstract

This paper aims to analyze further implications and new ways of reading the Base Nacional Comum Curricular (BNCC), National Common Core Curriculum), that resulted in the Documento Curricular Referencial da Bahia (DCRB), Bahia’s Reference Curriculum Document, and how it affects the school subject of Science. After the BNCC's approval, the construction of secondary texts that aid its implementation in states and cities began; therefore, in Bahia, the DCRB was constructed. As a result of the analysis of the texts, it was possible to observe the permanence and rupture of different discourses and configurations resulting from new ways of reading the BNCC. Thereby, the DCRB highlights important issues that have been repressed or minimized in the BNCC. In this scenario, the school subject of Science, as represented in the DCRB, advocates wide, meaningful teaching that provides students with a wholesome education.

Keywords Science teaching; BNCC; Reference curriculum; Bahia; Educational policy

Introdução

O objetivo do presente artigo é analisar os desdobramentos e releituras da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) no estado da Bahia que culminaram no texto Documento Curricular Referencial da Bahia para Educação Infantil e Ensino Fundamental (DCRB), bem como sua influência na disciplina escolar Ciências. Tal análise se fundamenta nos aportes teóricos-metodológicos da abordagem do ciclo de políticas de Stephen Ball e colaboradores, pois ela concebe que os processos de recontextualização são intrínsecos à disseminação dos textos e neles são observadas as resistências, as reinterpretações e as mudanças nos variados contextos da produção das políticas (LOPES; MACEDO, 2011a). Dessa forma, é possível uma leitura complexa e não linear das políticas educacionais e curriculares.

O currículo é importante no processo educativo. É nele que ocorrem as interações entre as normativas determinadas pelo Estado e as vivências cotidianas que promovem a aprendizagem (COSTA, 2021). Nesse sentido, a construção do currículo pelas escolas é mediada por políticas públicas oficiais (parâmetros, diretrizes, leis, projeto político pedagógico etc.) e, também, por aspectos sociais e culturais relacionados ao tempo e ao espaço no qual ele tem sido produzido.

Segundo Lopes e Macedo (2011b), com os novos estudos e as mudanças na forma de pensar o currículo, começa-se a compreender que este elemento educacional não é responsável somente pela formação do aluno, mas também é um produtor de conhecimento, portanto, amplia-se o interesse na seleção daquilo que é objeto da escolarização. Dada sua importância, o currículo também se torna um campo de disputas, no qual diferentes agentes buscam consolidar e propagar seus discursos. Cabe considerar que o processo de selecionar os conhecimentos é uma operação de poder (SILVA, 2010). Diante disso, a produção das políticas educacionais e curriculares são permeadas por disputas para privilegiar determinados conhecimentos e obter a hegemonia.

O currículo, comumente, tem sido apresentado como elemento central nas políticas educacionais (LOPES, 2004). Diferentes textos políticos (Constituição de 1988, Lei de Diretrizes e Bases da Educação - LDB etc.) atribuem ao Estado a função de determinar o conjunto de conhecimentos e cultura que devem estar presentes no currículo, por isso, são elaborados textos normativos (Parâmetros Curriculares Nacionais - PCN, Diretrizes Curriculares Nacionais - DCN, BNCC etc.) para coordenar as mudanças curriculares. Uma série de ações é necessária para transformações na educação, entretanto, tem sido apresentando um ponto de vista no qual as reformas educacionais dependem das políticas curriculares. Tais políticas visam promover as reformas educacionais, mas é preciso estar ciente de que elas não são, por si mesmas, a reforma educacional (LOPES, 2004).

A homologação da BNCC demonstra essa perspectiva de reforma educacional por intermédio de políticas educacionais que interferem nos currículos escolares. A Base Nacional é um documento normativo que traz elementos para auxiliar na construção do currículo nos espaços escolares de todo o território brasileiro, cuja finalidade é “[...] superar a fragmentação das políticas educacionais” (BRASIL, 2018a, p. 8), a fim de propor que todo o sistema educacional seja regido segundo as orientações presentes nesse documento e que a escolarização seja homogênea. Para isso, indica conhecimentos e competências gerais esperados dos estudantes ao fim do percurso na Educação Básica para sua formação integral (COSTA, 2021).

Apesar da ideia de homogeneidade do ensino proposta pela BNCC, por meio da reprodução dos conteúdos preestabelecidos, é necessário considerar os discursos e as finalidades orquestradas nessa política educacional e nos currículos. A fim de se esquivar de uma análise estadocêntrica, é importante compreender que as políticas educacionais não se limitam aos textos e discursos produzidos e promovidos no âmbito do Estado, devem ser considerados aspectos como o discurso pedagógico, as demandas educacionais da sociedade e das escolas (LOPES; MACEDO, 2011a). Tais aspectos apresentam particularidades que são materializadas no cotidiano escolar. De acordo com Ball (2001, p. 102), as políticas locais são heterogêneas e são resultado de “[...] um constante processo de empréstimo e cópia de fragmentos e partes de ideias de outros contextos [...]”.

A abordagem do ciclo de políticas acompanha o percurso da política educacional, desde sua produção até os resultados obtidos após o processo de implementação. Para isso, essa abordagem se organiza em cinco contextos nos quais a política se desenvolve: contexto da influência, contexto da produção de texto, contexto da prática, contexto dos resultados (efeitos) e contexto da estratégia política (MAINARDES, 2006). No contexto da produção de texto uma conjuntura importante a ser investigada no ciclo de políticas é a produção de textos secundários.

A decomposição das políticas educacionais pode ser observada em função da produção dos textos secundários que, de acordo com Mainardes (2006, p. 50), são “[...] textos de subsídio, produzidos no decorrer da implementação de um programa ou política”, eles são importantes para que a política seja posta em ação no contexto da prática. Tais documentos podem apresentar elementos que se diferenciam do texto inicial, os quais demonstram os processos de resistências, reinterpretações e mudanças (COSTA, 2021). Estes são textos que vão auxiliar na implementação da política e seu estilo não precisa estar em consonância com a escrita da política principal (MAINARDES, 2006). Assim, os textos secundários podem apresentar tanto uma escrita readerly (ou prescristiva) como writerly (ou escrevível) ou, até mesmo, ambas.

De acordo com o texto da BNCC, após a homologação, o documento deve servir de alicerce para a construção dos currículos das redes de ensino públicas e privadas de todo território nacional, de forma que o plano normativo propositivo do documento seja executado no plano da ação, de acordo o contexto e a prática nos estados e municípios. É nesse momento da trajetória da política educacional que as releituras começam a acontecer de maneira mais substancial. O texto da Base Nacional foi produzido sob coordenação do Ministério da Educação (MEC) e, segundo o documento, é responsabilidade desse órgão o monitoramento do processo de implementação em todo Brasil (BRASIL, 2018a).

Diante disso, no estado da Bahia foi elaborado o DCRB, também conhecido como Currículo Bahia. Este documento apresenta uma releitura da BNCC para o estado e objetiva “[...] assegurar os princípios educacionais e os direitos de aprendizagem de todos os estudantes do território estadual, em toda a Educação Básica” (BAHIA, 2019, p. 13). É um texto que irá orientar a produção dos currículos nos municípios deste estado. Para além de suas propostas, outros discursos podem ser fixados nestes currículos por intermédio das releituras. Estes discursos, legitimados nos currículos escolares, são organizados como os conteúdos de ensino que, por sua vez, são sistematizados em disciplinas escolares (LOPES; MACEDO, 2011b).

De acordo com Costa (2021), a disciplina escolar Ciências na BNCC apresenta a finalidade de manter uma organização do ensino mediante o controle dos indivíduos envolvidos no processo de ensino e aprendizagem e monitoramento dos conhecimentos mobilizados no espaço escolar. A autora supracitada afirma que a Base promove uma leitura de mundo universalista e individualista, a qual responsabiliza os indivíduos por todas as questões que envolvem a sua vivência, retira a incumbência do Estado ou sistema econômico que regem a sociedade e satisfaz os anseios do mercado econômico, por intermédio da capacitação dos indivíduos com habilidades e competências que serão úteis no mercado de trabalho.

Percurso metodológico

O presente estudo é um recorte de uma dissertação de mestrado que objetivou analisar os contextos de influência e de produção de texto da Base Nacional Comum Curricular, especificamente na disciplina escolar Ciências, além de discutir o processo de releitura da BNCC materializada no Documento Curricular Referencial da Bahia.

A adoção de uma abordagem qualitativa permitiu que esta pesquisa respondesse a questões subjetivas que não podem ser simplificadas em dados estatísticos, estas se referem aos significados e às intenções presentes no mundo das relações e estruturas sociais (MINAYO, 2014). Por intermédio da análise documental, foi possível a produção de dados os quais tiveram como fonte o DCRB. Tais dados foram submetidos à análise dentro da abordagem do ciclo de políticas de Stephen Ball e colaboradores, o que proporcionou uma investigação mais aprofundada, considerando os diversos aspectos que permeiam a concepção do referido documento.

A abordagem do ciclo de políticas, conforme já mencionado, é constituída por cinco contextos inter-relacionados e que se organizam de forma cíclica, ou seja, não há uma linearidade temporal ou sequencial a ser obedecida. Assim, ela recomenda que o percurso de uma política seja analisado com apoio em um ciclo contínuo, composto por contextos que estão inter-relacionados e atravessados por disputas e relações de poder (MAINARDES, 2006). Vale ressaltar que a classificação em contextos se dá a fim de facilitar a prática metodológica, mas esta não é uma divisão real dos acontecimentos da política.

É importante elucidar que este é um recorte de uma pesquisa de mestrado, a qual teve que abdicar da análise de alguns contextos diante da conjuntura pandêmica, pois houve o fechamento das escolas, devido ao isolamento social, e, por isso, a BNCC e o DCRB não chegaram ao espaço escolar, impossibilitando a produção de dados necessários para a análise dos contextos da prática, dos resultados e da estratégia política (COSTA, 2021).

A fim de alcançar os objetivos propostos na pesquisa, a abordagem teóricoanalítica foi ajustada, assim, não se utilizou os cinco contextos propostos, mas atentou-se a dois deles: (a) contexto de influência; (b) contexto da produção de texto. Dessa forma, foi analisado o contexto de influência que propôs discursos sobre a organização e as finalidades da disciplina escolar Ciências e, por meio do contexto da produção de texto, percebeu-se como esta política se materializou para o público em geral.

Desdobramentos da BNCC

A homologação da BNCC exigiu dos estados e municípios a movimentação para a produção de documentos que orientassem a elaboração dos currículos conforme as premissas da Base Nacional, assim como as especificidades locais. A elaboração destes textos secundários e a implementação da Base deveria ser monitorada pelo MEC, o que sugere o caráter prescritivo deste documento. Assim, foi instituído pela Portaria nº 311, de 5 de abril de 2018, o Programa de Apoio à Implementação da Base Nacional Comum Curricular (ProBNCC), cuja finalidade foi auxiliar as secretarias estaduais e municipais de Educação na elaboração, revisão e/ou implementação da Base Nacional (BRASIL, 2018b).

Ao aderir ao ProBNCC, as unidades federativas recebiam subsídios de assistência financeira e técnica (formação das equipes, bolsas de fomento, contratação de analistas de gestão, material de apoio etc.). Este pode ter sido um incentivo para que os estados e municípios adotassem o programa e para que o MEC continuasse interferindo de forma mais direta na elaboração dos currículos, pois as equipes selecionadas para a construção do texto nos entes federativos obtiveram formação coordenada pelo próprio Ministério.

Vale ressaltar que, para o Ensino Fundamental (EF), as disciplinas escolares devem ser implementadas com base em objetivos de aprendizagem obrigatórios definidos pela BNCC. Entretanto, considerando os currículos e as disciplinas como construções sociais, em suas produções serão inseridas as particularidades de cada região (GOODSON, 1997). Ao pensarmos nas especificidades territoriais, é relevante destacar que, mesmo diante do caráter prescritivo da BNCC, a produção de texto secundário realiza uma releitura. Assim, o DCRB

[...] foi construído em colaboração permanente entre Municípios e Estado com a participação de diversos segmentos de nossas Redes de Ensino, alicerçando uma consistente integração, capaz de promover o aperfeiçoamento do Sistema de Educação Básica e, consequentemente, efetivar o sucesso da escolarização de cada cidadão baiano (BAHIA, 2019, p. 8).

A Bahia é o quinto maior estado do Brasil e se caracteriza por suas singularidades geopolíticas, socioeconômicas, identitárias e de culturas. Diante disso, o DCRB se apoia na ideia que os currículos devem ser uma produção do cotidiano de cada território. A produção do DCRB contou com a colaboração da Secretaria da Educação do Estado da Bahia (SEC) e de órgãos do campo da educação, Conselho Estadual de Educação do Governo do Estado da Bahia (CEE), União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (UNCME), Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), Fundação Lemann, Projeto Faz Sentido, Fundação Getúlio Vargas, além da colaboração das Universidades, Institutos Federais e faculdades da Bahia (BAHIA, 2019). Todos estes organismos participaram de alguma das etapas ou na produção de seções do documento, alguns em áreas gerais e outros em áreas específicas.

Em relação às colaborações para produção de políticas, estas têm sido justificadas pelo discurso de que as agências podem se constituir como uma solução para o ‘fracasso’ do Estado no âmbito da Educação. Nesse sentido, é interessante refletir sobre as alianças entre os governos e estes organismos, nas quais é dada autoridade para que os discursos e soluções de algumas redes sejam implementadas nas políticas educacionais dos países periféricos (BALL, 2014). De acordo com Lopes (2008, p. 97), muitas vezes, as influências das agências multilaterais nas reformas curriculares brasileiras ocorrem de maneira direta “[...] através da participação de consultores do MEC nas elaborações das agências de fomento, assim como de consultores das agências nas reformas brasileiras”. Por isso, é relevante observar quais são os agentes (quadro 1) nas reformas, quais são seus vínculos, quais ideais eles difundem e quais soluções têm apresentando.

Quadro 1 Principais agentes envolvidos na elaboração do Documento Curricular Referencial da Bahia para a Educação Infantil e Ensino Fundamental 

Função Ano Agente colaborador Instituição
Governador 2018-2019 Rui Costa dos Santos Estado
Secretário de Educação do Estado da Bahia 2018 Walter de Freitas Pinheiro Estado
2019 Jerônimo Rodrigues Souza
Superintendente de Políticas para a Educação Básica 2018 Ney Jorge Campello Estado
2019 Manuelita Falcão Brito
Presidente da UNDIME 2018-2019 Williams Panfile Santos Brandão UNDIME/BA
Equipe de currículo 2018 Índia Clara Santana Nascimento CONSED
2019 Jurema Oliveira Brito
Equipe de currículo 2018 Zuma Evangelista Castro da Silva UNDIME/BA
2019 Cláudia Cristina Pinto Santos
Equipe de currículo 2018-2019 Maria Julia Gomes Aleixo F. Lima MEC
Equipe de currículo - Articuladora 2018-2019 Eronize Lima Souza UNDIME/BA
Coordenadoras de etapas 2018 Ianê Barbosa de Jesus SEC
2019 Kátia Suely Paim Matheó
Redatores do EF - Ciências 2018-2019 Francisco Michael Nogueira Franco Instituto Superior de Educação Ocidente (ISEO)
Redatores do EF - Ciências 2018-2019 Renata Silva de Souza SEC
Redatores do EF - Ciências 2018-2019 Sandra Cristina Alves Peixoto SEC

Fonte: Brasil (2018a, p. 8).

A maioria dos agentes apresentados no quadro anterior estão vinculados a organizações que estiveram presentes no contexto de produção de texto da Base Nacional, portanto, expressam os mesmos ideais defendidos no processo de materialização da política educacional (COSTA, 2021). O foco nesta pesquisa esteve voltado à área de Ciências da Natureza, diante disso, torna-se pertinente a discussão em relação aos redatores desta área do DCRB para o EF. Para esta área foram selecionados, por meio do processo seletivo, três professores: Francisco Michael Nogueira Franco, Renata Silva de Souza, Sandra Cristina Alves Peixoto (BAHIA, 2019).

Mediante pesquisa dos currículos virtuais destes redatores selecionados é possível observar algumas similaridades entre eles e os discursos apresentados na Base Nacional. Primeiramente, todos atuam profissionalmente na Bahia e são graduados em Ciências Biológicas. As professoras bolsistas Renata Souza e Sandra Peixoto atuam na rede pública de ensino, enquanto o bolsista Francisco Franco não apresenta em seu currículo, disponível na Plataforma Lattes, vínculo de atuação profissional com a rede pública de ensino, somente com uma fundação privada da cidade de Salvador. Porém, contrariando o trecho do ProBNCC (BRASIL, 2018b) que indica que um dos critérios para a concessão da bolsa é que o candidato seja professor da educação básica, há no currículo virtual dele o vínculo como bolsista do MEC no enquadramento de redator - formador, cuja última atualização foi feita em novembro de 2019. Além disso, no próprio DCRB aparece sua vinculação ao Instituto Superior de Educação Ocidente (BAHIA, 2019), entidade financiada pela Fundação OCIDEMNTE (Organização Científica de Estudos Materiais, Naturais e Espirituais), uma instituição não sectária, sem fins lucrativos, regida por estatuto próprio, ou seja, mais uma instituição privada na ação de elaboração de política educacional, nesse caso, vinculada ao MEC, por intermédio do bolsista para atuar na produção de uma política estadual.

Outra informação relevante na trajetória acadêmica e profissional de Francisco Franco e de Sandra Peixoto são as formações continuadas e os projetos desenvolvidos que têm relação com o empreendedorismo e a administração de empresas. Esta informação merece destaque, pois os projetos desenvolvidos por estes professores estão em consonância com os discursos presentes na BNCC que, em suas competências, enfatizam a necessidade de desenvolver um projeto de vida e administrar determinadas habilidades para saber gerir o futuro pessoal e profissional (BRASIL, 2018a). Além disso, a estrutura da BNCC fundamentada na pedagogia de competências, enfatiza a aproximação da escola com o mercado de trabalho, com a gestão e o empreendedorismo.

Outros agentes colaborativos na produção do DCRB que merecem destaque são a Fundação Lemann e o Projeto Faz Sentido (Instituto Inspirare, Instituto Tellus, Instituto Unibanco) (BAHIA, 2019). Essas entidades estavam presentes durante o processo de materialização da Base (atuavam na educação antes da BNCC), elas apresentam como principais parceiros os bancos e empresas privadas. Com discursos de inovação e tecnologia elas representam as redes apontadas por Stephen Ball (BALL, 2014), as quais ostentam as soluções inovadoras para os problemas da Educação e trazem para as políticas e reformas educacionais discursos do neoliberalismo. Portanto, mesmo na elaboração dos textos secundários, representantes dos discursos neoliberais se fazem presentes deixando suas marcas.

Releitura da BNCC: rupturas, permanências e embates no DCRB

Com a materialização do Currículo Bahia foi possível analisar e comparar seu texto com o da BNCC. O primeiro diferencial deste texto secundário em relação à BNCC encontrase na escrita, a primeira seção do documento referencial é uma carta aos educadores e às educadoras que apresenta uma escrita writerly, a qual tenciona a comunicação com os destinatários e apresenta o currículo como um ponto de diálogo, um elemento múltiplo e que deve considerar as especificidades de todo o território baiano. Esta ideia de currículo dialoga com as concepções de Goodson (1997) o qual afirma que o currículo não é uniforme e é uma produção social. Dessa forma, o documento não apresenta somente características reguladoras do ensino, mas ostenta prescrições e orientações, além de enfatizar a necessidade de que o processo de ensino só pode ser exitoso por meio do trabalho em conjunto e do diálogo entre o Estado e os professores (BAHIA, 2019). Assim, sua escrita pode ser considerada mista (writerly e readerly). A seguinte descrição se encontra em seu texto

O Documento Curricular Referencial da Bahia - DCRB para a Educação Infantil e Ensino Fundamental tem como objetivo assegurar os princípios educacionais e os direitos de aprendizagem de todos os estudantes do território estadual, em toda a Educação Básica. Trata-se de um documento aberto, não prescritivo, que pretende incorporar inovações e atualizações pedagógicas advindas dos marcos legais, do arcabouço teórico-metodológico do currículo, no processo de implementação, considerando, também, aspectos identificados pelos segmentos da comunidade escolar (BAHIA, 2019, p. 13).

É interessante observar que o documento baiano retoma a proposição do artigo 3º da LDB nº 9394/1996, o qual apresenta entre os princípios da educação o direito à aprendizagem, que foi suprimido na terceira versão da BNCC. No trecho supracitado há mais uma diferença marcante com a BNCC, ao considerar os “aspectos identificados pelos segmentos da comunidade escolar”, o DCRB considera a cultura escolar, ou seja, é necessário dar importância aos conhecimentos e culturas produzidos no seio da escola. Como o foco da BNCC está no desenvolvimento das competências e habilidades, são desconsideradas as produções escolares. De acordo com Girotto (2018), sob a perspectiva do neoliberalismo, a escola é uma instituição simples, pois são ignoradas todas as suas particularidades e sua relação com o espaço e a sociedade.

Em relação à organização curricular, o DCRB se baseia na pedagogia das competências para o EF, para tanto, toma como alicerce a Base Nacional, entretanto, em consonância com o estilo writerly de texto que ele está estruturado, deixa

[...] abertura e flexibilidade para que as escolas e seus educadores possam conjugar outras experiências curriculares, pertinentes e relevantes, tendo como critério para a escolha pedagógica dessa conjugação modelos curriculares pautados em pedagogias ativas e de possibilidades emancipacionistas que devem permear os Projetos Políticos-Pedagógicos (PPP) e as ações pedagógicas, tais como reuniões, planejamentos e horas dedicadas ao objeto das aprendizagens da comunidade escolar (BAHIA, 2019, p. 31-32).

Dessa forma, o Documento Referencial baiano enfatiza a necessidade da aprendizagem por intermédio das competências e habilidades, contudo, destaca que para a formação integral do indivíduo é necessária uma formação em todas as instâncias da vida humana (técnica, científica, social, cultural, emocional etc.). Dessa forma, o DCRB se aproxima de uma concepção progressivista dos conhecimentos, visto que o currículo deve estar apto a apresentar conhecimentos universais (disciplinas de referência) e conhecimentos individuais (dimensão psicológica) para formar cidadãos para uma sociedade democrática, de equidade social e qualidade de vida para todos (LOPES; MACEDO, 2011b).

Todavia, em conformidade com a BNCC, os discursos que relacionam a escola com o mercado de trabalho também se fazem presentes neste documento referencial. Ele afirma ir ao encontro “[...] das necessidades e demandas do mundo do trabalho, da produção, das culturas, das diversas existencialidades e da configuração sociotécnica da contemporaneidade” (BAHIA, 2019, p. 35). De acordo com Girotto (2018), o discurso da empregabilidade impõe ao indivíduo a responsabilidade de criar as condições para ser inserido no mercado de trabalho, caso não consiga ocupar um espaço profissional, é sua obrigação desenvolver novas aptidões. Nesse sentido, segundo Ball (2001, p. 105), "[...] o estabelecimento de uma nova cultura de desempenho competitivo envolve o uso de uma combinação de devolução, objetivos e incentivos de forma a gerar uma reconfiguração institucional [...]", em que os entrelaçamentos entre setor privado e escola são necessários para a consolidação dessa reconfiguração.

Nesse contexto, é importante inteirar que, ao se alicerçar na pedagogia das competências e promover o ensino baseado nas habilidades, a Base Nacional se alinha com as avaliações gerais, nacionais e internacionais, restringindo o processo de ensino e aprendizagem ao alcance de êxito nas referidas avaliações, ao passo que para o DCRB, as avaliações internas e externas devem ser utilizadas para aferir a eficácia das políticas educacionais implementadas (BAHIA, 2019). De acordo com Lopes (2004), investigar a qualidade educacional por intermédio de avaliações gerais poda a autonomia docente no contexto de sua prática. Enquanto isso, o DCRB utiliza a LDB nº 9394/1996 para enfatizar a avalição como uma prática diária e realizada de maneira que abarque todas as dimensões humanas que envolvem a aprendizagem. Contudo, diante da prescrição da configuração do ensino por competências e habilidades, o documento afirma que prevalecerá o processo avaliativo nesse enfoque, entretanto, ele deve ser dinâmico e realizado por diversos instrumentos (BAHIA, 2019).

Segundo o documento baiano, as avaliações em geral, como Prova Brasil (avaliação aplicada aos alunos de 5º e 9º anos do Ensino Fundamental, nas redes estadual, municipal e federal) e o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) ganharam bastante destaque no panorama político-educacional dos estados e municípios (BAHIA, 2019). Apesar do documento estadual não citar, seguindo a tendência nacional de avaliações em larga escala, as escolas no estado da Bahia contam com o Sistema de Avaliação Baiano de Educação (SABE), criado em 2007 e é constituído por dois projetos: a Avaliação Externa do Ensino Médio e a Avaliação Externa da Alfabetização1. Conforme Oliveira (2022), o SABE é um instrumento de qualidade no processo de avaliação educacional, uma vez que reflete dados da realidade dos estudantes baianos.

Vale ressaltar a importância da utilização das avaliações em larga escala para compreender as conjunturas em que o processo educativo tem se desenvolvido, avaliar as políticas públicas em vigência e subsidiar a produção de novas políticas públicas que atendam as demandas apontadas pelos dados destas avaliações. Portanto, é necessário que as avaliações gerais sejam utilizadas “[...] não apenas com finalidade de ordem política, mas, principalmente, com o intuito de se fazer intervenções pedagógicas, que venham a gerar impactos positivos diretamente nas unidades escolares [...]” (OLIVEIRA, 2022, p. 6).

No que diz respeito, especificamente, à área de Ciências da Natureza, o DCRB mescla os estilos de escrita, utiliza o readerly para repassar as prescrições contidas na BNCC para a disciplina escolar Ciências e o writerly para propor alternativas que podem acrescentar outros conhecimentos importantes para a formação do cidadão. Em relação à estrutura da disciplina, o quadro seguinte (quadro 2) demonstra um breve comparativo entre a BNCC e o DCRB.

Quadro 2 Comparação da configuração curricular da BNCC e do DCRB 

Estrutura BNCC DCRB Total
Competências gerais 10 10
Competências específicas 8 8
Temas integradores 14 9
Habilidades nos anos finais do EF 63 98
BNCC DCRB
6º ano 14 (3*) 10 24
7º ano 16 (1*) 9 25
8º ano 16 (2*) 12 28
9º ano 17 (1*) 4 21

Fonte: Bahia (2019) e Brasil (2018a).

*Habilidades da BNCC que foram, de alguma forma, modificadas no DCRB.

No quadro anterior é possível observar que o DCRB manteve as competências gerais e específicas estabelecidas pela BNCC, sem nenhuma exclusão, acréscimo ou alteração do que estava posto. No texto do DCRB rejeita-se a perspectiva de uma escola neutra, além de reconhecer os processos de transposição didática necessários para que o conhecimento escolar se concretize (BAHIA, 2019). Por isso, enfatizam a necessidade de entrelaçamento dos conhecimentos científicos com os tradicionais (advindos dos sujeitos). Dessa forma, manifestam a importância dos múltiplos conhecimentos, debates e temas.

No que se refere às habilidades definidas para a Educação Básica no estado da Bahia, foram feitas alterações em algumas habilidades apropriadas da BNCC, cuja finalidade foi de contextualizá-las para atender especificidades locais, além da substituição de terminologias defasadas que se encontram nas habilidades da Base. Por exemplo, as habilidades EF08CI09 e EF08CI10 presentes na Base Nacional apresentam em seu vocabulário o seguinte termo “[...] Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST)” (BRASIL, 2018a, p. 349) que está em desuso, assim, no texto do DCRB é possível encontrar as mesmas habilidades, porém, com o vocabulário atualizado, utilizando o termo atualmente aceito “[...] Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST)” nas habilidades EF08CI09* e EF08CI10* (BAHIA, 2019, p. 397).

É importante ressaltar que, ao longo do documento baiano, as habilidades da BNCC que tiveram trechos modificados podem ser identificadas por meio do * (asterisco) em seu código alfanumérico (por exemplo, EF09CI05*) (BAHIA, 2019). Cabe considerar que as alterações realizadas não produziram mudanças significativas na finalidade das habilidades.

Além disso, houve um aumento significativo no número geral de habilidades de Ciências da Natureza no DCRB em relação à BNCC, como pode ser observado no quadro 2. Esse aumento refere-se às 35 habilidades desenvolvidas pelos redatores do documento baiano e acrescentadas na área de conhecimento (BAHIA, 2019). Este acréscimo, em suma, é um esforço para pôr em prática os discursos proferidos ao longo do documento, ou seja, as novas habilidades buscam uma diversificação nos conhecimentos, além de propor o estudo das particularidades locais e das formas de aprender.

Por exemplo, a habilidade “(EF06CI07BA) Argumentar como as contribuições da ciência e tecnologia interferem a vida daqueles que possuem deficiência motora” (BAHIA, 2019, p. 392) afirma a existência de outros corpos para além do padrão hegemônico e propõe aos estudantes refletir sobre as vivências do outro, as dificuldades impostas pela sociedade para os outros corpos e os meios que podem ser utilizados para superá-las. De acordo com Silva (2010), é fundamental a construção de um currículo que problematize as hierarquias e alcance as diferenças. Vale ressaltar que a mera apresentação das diferenças não é suficiente para uma formação integral, é necessário que a discussão dessas diferenças esteja associada com os aspectos sociais que a produzem, como está disposto na habilidade.

Em relação à incorporação de temas contemporâneos nos currículos, a BNCC orienta que esta ação é da incumbência das redes estaduais, municipais, privadas, escolas ou sistemas de ensino (BRASIL, 2018a). Assim, a Base propôs 14 temas que poderiam ser utilizados na elaboração dos currículos, destes, o DCRB se apropriou de Educação para o Trânsito, Educação Ambiental, Educação em Direitos Humanos, Educação das Relações Étnico-Raciais, Educação para o Consumo, Educação Financeira e Fiscal (BRASIL, 2018a).

Além disso, realizou a adaptação de outras, totalizando oito temas integradores (figura 1) que devem estar presentes nos currículos de forma transversal na Educação Básica (BAHIA, 2019).

Fonte: Elaborado pelos autores com base em Bahia (2019).

Figura 1 Temas integradores estabelecidos pelo Documento Curricular Referencial da Bahia para compor os currículos no estado 

Os oito temas integradores definidos pelo DCRB devem estar presentes em todas as etapas e modalidades da Educação Básica. Para a definição, os elaboradores contaram com a fundamentação de diversos normativos legais nacionais e estaduais. Além disso, o DCRB destaca que estes temas têm a finalidade de promover a aprendizagem significativa e com sentidos para os estudantes (BAHIA, 2019). Ao contrário da BNCC, que apresenta um currículo pautado em concepções tradicionais, o documento referencial da Bahia transita na proposta de currículos em uma perspectiva crítica, ao continuamente mencionar a importância da emancipação dos estudantes, bem como em uma perspectiva pós-crítica, ao enfatizar a valorização das diversas culturas e identidades (LOPES; MACEDO, 2011b). Com isso, deixa a critério das escolas a definição de qual perspectiva é mais interessante à sua realidade.

Ao apresentar os temas integradores, o DCRB realça a autonomia das escolas no acréscimo de outros temas que lhe sejam indispensáveis. É interessante refletir sobre a constância do documento em prezar pela autonomia dos territórios escolares na produção de currículos próprios, considerando as subjetividades de onde estão inseridos. De acordo com Lopes e Macedo (2011b), pensar uma cultura geral é excluir as múltiplas produções e identidades que não se identificam com o que se tem universalizado. Dessa forma, o DCRB, ao permitir a discussão e o desenvolvimento de currículos que atendam as especificidades, apresenta uma forma de ser diverso, mesmo que não abranja toda pluralidade.

Ainda referente aos temas integradores, o DCRB reconhece a escola como produtora de conhecimentos e culturas, enquanto a BNCC prioriza a hegemonia de determinados conhecimentos pautados nas disciplinas de referências ou apoiados em valores conservadores. A relação com estes valores conservadores está cristalizada no texto da BNCC e ratificada por diversos Projetos de Lei (PL) que interferem no cotidiano escolar e dificultam a discussão de temas que confrontam os valores morais e tradicionais, a exemplo dos PL nº 8099/2014, PL nº 867/2015, PL n° 1859/2015, PL nº 5336/2016 (COSTA, 2021). O PL nº 8099/2014 se refere à inserção de conteúdos sobre criacionismo no currículo das Redes Públicas e Privadas de Ensino (BRASIL, 2014). O PL nº 867/2015 inclui o Programa Escola sem Partido entre as diretrizes e bases da educação nacional (BRASIL, 2015a). O PL n° 1859/2015 acrescenta um parágrafo único na LDB nº 9394/1996, o qual impede o uso dos termos gênero, orientação sexual e discussões acerca de ideologia de gênero na educação (BRASIL, 2015b). O PL nº 5336/2016 inclui a 'teoria da criação' na base curricular do Ensino Fundamental e Médio (BRASIL, 2016). A discussão dessas temáticas por meio dos temas intergradores propostos no documento referencial do estado da Bahia, garante ao professor a liberdade e a segurança de abordá-los sem sofrer retaliações, pois vão estar resguardados por um documento oficial.

O tema integrador Educação para a Diversidade é um exemplo de temática tolhida nas discussões escolares tradicionais e um importante aspecto para a teoria pós-crítica de currículo (SILVA, 2010). De acordo com o DCRB, este tema integrador pode ser desenvolvido nas escolas por meio de dois vieses: Educação para as Relações de Gênero e Sexualidade e Educação para as Relações Étnico-raciais (BAHIA, 2019). É interessante lembrar a existência dos diversos Projetos de Lei (principalmente o PL nº 1859/2015) que recriminam a abordagem das questões de gênero e sexualidade nas escolas. Vale ressaltar que esta temática estava presente nas duas primeiras versões da BNCC, entretanto, foram alvo de críticas e não foram mantidos os termos na versão final deste documento, além da supressão de trechos de habilidades que faziam referências a estes termos. Ainda que as questões de gênero e sexualidade apresentem, no DCRB (BAHIA, 2019, p. 69), “[...] presença marcante nas práticas e ambientes sociais, sobretudo na contemporaneidade, e não diferente nos territórios escolares”, o fortalecimento de vínculos religiosos com o sistema de ensino afeta os métodos e o conteúdo de ensino (BORBA; ANDRADE; SELLES, 2019).

A defesa do DCRB para a presença do debate de gênero e sexualidade como tema integrador revela o reconhecimento de que estes elementos são inerentes ao ser humano, afinal, “[...] todos os seres humanos se identificam na construção sociocultural do gênero e da sexualidade em determinado momento [...]” (BAHIA, 2019, p. 72). De acordo com Nascimento, Fernandes e Mendonça (2010), para a formação humana dos estudantes, é necessário que os professores estejam atentos a tudo que constitui a existência humana e seu envolvimento na sociedade, por isso, um dos modos para romper com a profunda perspectiva positivista de Ciência e a visão de mundo conservadora e autoritária do processo educativo, seria por intermédio da formação inicial e continuada. Assim, diante dos desafios impostos oficialmente no âmbito federal, Borba, Andrade e Selles (2019) preveem desafios aos professores comprometidos com a pluralidade de ideias e diversidade humana, mas a produção de textos secundários que minimizam tais repressões ameniza as adversidades.

As investidas conservadoras também foram disparadas em relação às Relações Étnico-Raciais no âmbito da BNCC. Desde os anos 2000, com o aumento de políticas públicas voltadas para as relações étnico-raciais, intensificou-se este debate na sociedade e, consequentemente, no ambiente escolar. Para o DCRB é de suma importância o estabelecimento do tema integrador Educação para as Relações Étnico-Raciais, uma vez que se faz necessária a desconstrução do racismo estrutural estabelecido na sociedade brasileira, assim como na Bahia (BAHIA, 2019). A ascensão do neoconservadorismo, associado com o movimento neopentecostal no Brasil e que têm feito alianças políticas no campo educacional, obliteraram a discussão dessa temática dada a discriminação e perseguição, sobretudo em relação aos praticantes de religiões que não são judaicocristãs, como aquelas de matriz africana (BORBA; ANDRADE; SELLES, 2019).

Ademais, discutir as relações étnico-raciais não se limita ao debate sobre raça, mas perpassa pelo diálogo e problematização das questões de classe, de gênero, de sexualidade, da cultura, do sistema prisional etc., ou seja, é debater a história do povo brasileiro e apontar a hegemonia estabelecida em todas as faces da sociedade. Assim, por intermédio da abordagem desse tema integrador, o DCRB busca abordar a diversidade, considerando sua complexidade, de modo que seja possível compreender a educação como artifício para eliminar as discriminações e promover a emancipação de grupos historicamente discriminados (BAHIA, 2019).

Em consonância com o tema integrador anterior, a Educação para os Direitos Humanos designa uma discussão que afeta a vida humana de forma global, para tanto, considera “[...] o compromisso da escola de propiciar uma formação integral, balizada pelos direitos humanos e princípios democráticos [...]” (BRASIL, 2018a, p. 61). Com esse foco, o DCRB propõe aos currículos baianos essa questão, a fim de combater a discriminação e promover a construção de uma sociedade baseada na justiça e no respeito. Para Gonçalves, Machado e Correia (2020), é pelo planejamento conjunto e discussões coletivas que se pondera sobre as invisibilidades, pois a pluralidade abre espaço em meios homogêneos e as vivências escolares produzem um aprendizado significativo para a vida em sociedade.

Em relação à questão da coletividade e da responsabilidade social, o tema integrador Educação Ambiental também se consolida no texto do DCRB. As condições ambientais globais tornam urgente a necessidade de discutir acerca da preservação da biosfera, da conscientização do consumo exacerbado e das consequências da ação antrópica, ainda assim, a BNCC, em sua versão final, promoveu um apagamento dessas questões, visto que retirou eixos e unidades de conhecimento importantes para este debate (COMPIANI, 2018). O desinteresse na abordagem de um tema tão necessário na Base pode ser compreendido em razão dos discursos fixados nesse documento que são os discursos do capital.

Os conhecimentos cristalizados na BNCC, alicerçados em uma concepção neoliberal, promovem as aspirações do sistema capitalista, dado que neste sistema o foco principal está na intensa produção e no consumo desenfreado, ou seja, não cabe a discussão de temáticas que atingem diretamente os grandes produtores favorecidos pelo capitalismo. De acordo com Girotto (2018), não é possível formar um sujeito crítico, responsável e capaz de construir alternativas para os problemas da atualidade, negando as contradições do sistema capitalista e suas consequências no mundo. Dessa forma, o DCRB aponta que a escola deve implementar o debate das questões ambientais de forma crítica, questionadora, consciente das disputas de poder que permeiam este campo e provocando nos sujeitos o interesse em buscar soluções para os problemas que estão presentes atualmente e aqueles que ocorrerão pelas imprudências do agora (BAHIA, 2019).

Dentro dessa abordagem também se relaciona o tema integrador Educação Financeira e para Consumo. Na competência geral 10, a BNCC aponta a importância do “[...] consumo responsável em âmbito local, regional e global [...]” (BRASIL, 2018a, p. 9). O consumismo pode trazer prejuízos financeiros, psicológicos e ambientais, com isso, afetar não só o indivíduo como toda a sociedade, assim, o DCRB aponta que o sistema econômico dominante opera de forma a promover cada vez mais o consumismo, sendo responsabilidade da educação promover novas formas de pensar o mundo e auxiliar os sujeitos no desenvolvimento de consciência e responsabilidade social (BAHIA, 2019). Este aspecto é denunciado por Ball (2001), ao destacar que um ensino pautado nos discursos neoliberais não abre espaços para a reflexão e o diálogo sobre outros valores que não sejam do capital, por isso, tais discursos não são expressos enfaticamente na BNCC.

Atrelado a esta temática o tema integrador Educação Fiscal tem papel importante na conscientização dos indivíduos, pois a tomada de consciência é peça-chave para a transformação das diversas esferas da sociedade (NASCIMENTO; FERNANDES; MENDONÇA, 2010). De acordo com o DCRB, este tema auxiliará no desenvolvimento de atributos importantes para o conhecimento e exercício de direitos e deveres na relação recíproca entre os cidadãos e o Estado, visto que enfatiza a ideia de sujeito de direito na condução das vivências e relações.

A temática da Saúde na Escola é outro tema integrador no DCRB. Sendo a saúde um direito constitucional, é imprescindível o seu debate no campo da educação. Diante disso, o documento propõe a abordagem transversal do tema nas escolas, a fim de proporcionar a formação integral dos estudantes. Para isso, é necessário que eles saibam acerca de bem-estar físico, social e mental, reconheçam as vulnerabilidades relacionadas à saúde impulsionada pelas questões de classe, de território e saibam agir para preservar e promover a saúde individual e coletiva. Vale ressaltar que a BNCC excluiu a Unidade de Conhecimento Bem-estar e Saúde da disciplina escolar Ciências, presente na primeira versão do documento (MARCONDES, 2018).

A BNCC propôs o tema integrador Educação para o Trânsito, que foi aderido pelo DCRB. A abordagem dessa temática nas diferentes disciplinas escolares não pode ser resumida em um caráter meramente informativo, visto que todos os indivíduos em uma sociedade experienciam o trânsito, seja como motoristas, pedestres, ciclistas, moradores de localidades onde são construídas estradas, modificando toda a dinâmica desses locais. Dentro do documento referencial baiano, “[...] o objetivo geral da Educação para o Trânsito é despertar uma nova consciência viária que priorize a prevenção de acidentes e a preservação da vida.” (BAHIA, 2019, p. 80).

Por fim, o tema integrador Cultura Digital se faz primordial dado o contexto de avanços tecnológicos em que a maioria das pessoas estão envolvidas na sociedade. Na BNCC, há referências acerca do mundo digital em duas competências gerais para a Educação Básica e, ao longo do texto, é ressaltada a importância do desenvolvimento de habilidades tecnológicas e digitais (BRASIL, 2018a). De acordo com Machado e Amaral (2021), a noção de cultura digital apresentada na BNCC parte de um viés meramente gnosiológico, pois ignora os aspectos sociais que envolvem a abordagem dessa temática.

O DCRB inclui essa temática no rol dos temas integradores dada a finalidade de superação dos desafios impostos à educação na era digital, uma vez que há novos modos de aprender, com os quais os professores nem sempre estão familiarizados. Para Machado e Amaral (2021, p. 16), “[...] é possível tornar o acesso e o uso das tecnologias digitais propostas na BNCC verdadeiramente apropriadas aos múltiplos contextos onde se inserem [...]”. Diante do que diz o texto do documento baiano, no qual a cultura digital permite a produção e transmissão de inúmeros conhecimentos, é necessária perspicácia para sondar aquilo que é relevante e, finalmente, a escola necessita compreender o tempo e espaço nos quais está inserida e aproveitar dos elementos que a tecnologia fornece (BAHIA, 2019).

De modo geral, a atribuição destes temas integradores nos currículos das escolas baianas amplificará o espectro de conhecimentos relevantes para a formação de sujeitos conscientes de si e da sociedade, cientes dos direitos e deveres que lhes apetece, críticos e diplomáticos no que diz respeito às diferenças ideológicas, étnicas-raciais, de gênero e sexualidade, econômicas e sociais.

Considerações finais

A análise do DCRB apresentou diferenças significativas entre este documento e a Base Nacional. A começar pela escrita writerly, a qual busca uma construção curricular pautada no diálogo com os atores escolares. Assim, o documento não ostenta caráter prescritivo, pois propõe liberdade aos diversos municípios do estado na elaboração dos seus currículos, tanto na definição dos conhecimentos adotados quanto nas formas de mobilizá-los. Para isso, enfatiza a necessidade de estarem fundamentados nas competências e habilidades presentes na BNCC. No ciclo de políticas, é sabido que os discursos impõem limites para a interpretação, à exemplo o fato de não poder abdicar do discurso das competências e habilidades. Dessa forma, são nas lacunas que se estabelecem as resistências à regulação.

É importante enfatizar que, mesmo diante da presença de agentes externos vinculados a entidades privadas que consolidaram os discursos neoliberais e mercadológicos no Currículo Bahia, a proposição de diversas temáticas presentes nos temas integradores ou nas habilidades da disciplina escolar Ciências problematizam o vigente sistema econômico e social. Ou seja, mesmo havendo permanências de discursos conservadores e neoliberais no DCRB, estes são contestados pelas discussões presentes no documento.

Na disciplina escolar Ciências o DCRB faz o resgate de conhecimentos pertinentes à área de Ciências da Natureza e elabora habilidades que ampliam o espectro de discussões de temas inerentes às vivências humanas e seu envolvimento na sociedade que abrangem a biodiversidade, o meio ambiente, as relações interpessoais e não se limita a uma abordagem antropocêntrica. O documento referencial baiano traz um respiro em meio às prescrições ditadas pela BNCC; ele não é perfeito ou revolucionário, mas abarca questões que vão contra aos movimentos retrógrados, conservadores e extremistas que têm se estabelecido no território brasileiro. Apesar de se fundamentar na configuração das competências e habilidades, ao propagar ideias neoliberais que beneficiam o sistema capitalista e suas entidades, o DCRB abre brechas e permite aos professores encontrarem outras maneiras de lidarem com as prescrições que estão postas e buscarem um processo de ensino e aprendizagem mais humanizados, que permita a formação integral dos indivíduos críticos, questionadores e conscientes.

1As informações acerca do Sistema de Avaliação Baiano de Educação (SABE) podem ser encontradas no site oficial do Governo do Estado da Bahia.

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Recebido: 19 de Novembro de 2021; Aceito: 19 de Agosto de 2022

Autora Correspondente: jessicamerces@id.uff.br

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