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Ciência & Educação

Print version ISSN 1516-7313On-line version ISSN 1980-850X

Ciência educ. vol.29  Bauru  2023  Epub Aug 16, 2023

https://doi.org/10.1590/1516-731320230029 

Artigo Original

O papel epistêmico da diversidade e as origens metafísicas da teoria do Big Bang: reflexões para a educação científica

The epistemic role of diversity and the metaphysical origins of the Big Bang Theory: reflections for science education

Alexandre Bagdonas1 
http://orcid.org/0000-0002-7125-2016

Climerio Paulo da Silva Neto1 
http://orcid.org/0000-0001-9675-324X

1Universidade Federal de Lavras (UFLA), Departamento de Ciências Exatas, Lavras, MG, Brasil

2Universidade Federal da Bahia (UFBA), Instituto de Física, Salvador, BA, Brasil


Resumo

Com base em estudos de história e filosofia da ciência que enfatizam sua natureza social, argumentamos que diversidade fortalece a ciência. Analisamos aspectos culturais e metafísicos que influenciaram a cosmologia do Big Bang, discutindo os modelos relativísticos de universo em expansão criados por Friedman e Lemaître na década de 1920. Enquanto Friedman foi influenciado por visões sobre nascimento, morte e ressurreição na URSS, Lemaître foi inspirado pela crença católica na criação divina do universo. Finalmente, defendemos a pertinência educacional deste tipo de abordagem para o estudo de casos diversos, que podem contribuir para a consolidação da história e filosofia da ciência como base para a construção de visões mais complexas sobre a natureza da ciência.

Palavras-chave Cosmologia filosófica; Natureza da ciência; Multiculturalismo; História da ciência; Teoria do Big Bang

Abstract

Based on studies of the history and philosophy of science that emphasize its social nature, we argue that diversity strengthens science. We analyze cultural and metaphysical aspects that have influenced the creation of the Big Bang cosmology, discussing the relativistic models of the universe in expansion proposed by Friedman and Lemaître in the 1920s. While Friedman drew on views about birth, death, and resurrection in the USSR, Lemaître gained inspiration from the Catholic belief in the divine creation of the universe. Finally, we defend the educational relevance of this approach to varied cases, which can help consolidate the history and philosophy of science as a basis for more complex views about the nature of science.

Keywords Philosophical cosmology; Nature of science; Multiculturalism; History of science; Big Bang theory

Introdução

No início do ano de 2019, dois dos telescópios mais poderosos do mundo, localizados no Havaí, ajudaram a produzir a primeira imagem de um buraco negro. Os astrônomos que estavam à frente da empreitada resolveram convidar o linguista e professor da Universidade do Havaí, Larry Kimura, para nomear o buraco negro registrado na imagem. Quando Jessica Dempsey, vice-diretora do observatório James Clerk Maxwell, e seus colegas descreveram as fotos para Kimura, ficaram boquiabertos com a proposta: Pōwehi, que na língua havaiana significa fonte embelezada e insondável de criação incessante de escuridão, ou fonte escura embelezada e insondável de criação incessante. A inspiração veio de um cântico da criação do universo da mitologia havaiana intitulado Fonte de escuridão (Kumulipo) e é uma combinação das palavras (fonte insondável de criação incessante de escuridão) e wehi (honrado com embelezamento). Astrônomos e físicos ao redor do mundo aclamaram o nome como sendo mais representativo que o próprio termo buraco negro. Nas palavras de Jessica Dempsey (UH HILO..., 2019, tradução nossa), o nome “[...] é tão perfeito porque expressa verdades reais sobre a imagem que vemos”.

Esse episódio é um exemplo de como a ciência e os cientistas podem se beneficiar de perspectivas de outras culturas que podem ajudar na compreensão dos objetos de estudo da física ou de fenômenos físicos. Entretanto, podemos igualmente elencar casos em que cientistas perderam a oportunidade de usar vastos conhecimentos tradicionais que poderiam contribuir para a ciência. Em 1963, o governo canadense concluiu a instalação de um observatório de raios cósmicos, em uma cidade localizada no Nordeste do ártico canadense, chamada Inuvik. A região é ocupada há séculos por uma comunidade indígena cujas práticas culturais religiosas estão intimamente ligadas a observações astronômicas e fenômenos como a aurora boreal, o que resultou em um acúmulo de séculos e séculos de conhecimentos astronômicos, passados de geração em geração. Em seu estudo de um contador de coincidências (coincidence mixer) utilizado na detecção de raios cósmicos, o historiador canadense David Pantalony (PANTALONY, 2020, p. 141, tradução nossa) ficou “[...] impressionado com o fato de que as pessoas que administravam o observatório não tinham criado uma conexão ou aproveitado essa vasta base de conhecimento sobre o céu noturno”, defendendo que este caso demonstra limites e possibilidades para ciência ocidental.

As contribuições potenciais desses encontros entre culturas para a ciência podem ir muito além da nomenclatura de um ente físico como o buraco negro. Como buscamos argumentar aqui, utilizando casos da origem da teoria do big bang, a diversidade de perspectivas promovida por interações interculturais pode levar a novos insights e descobertas científicas importantes. Para defender este argumento e pensar suas implicações para o ensino de ciências, utilizaremos estudos de história e filosofia da ciência que possuem potencial para orientar o desenvolvimento de novas abordagens a questões relacionadas à natureza da ciência, em especial sobre multiculturalismo/interculturalismo, em salas de aula de ciências.

A importância da história e filosofia da ciência (HFC) como fonte de contribuições para o ensino de ciências vem sendo ressaltada por historiadores, filósofos, cientistas e pesquisadores em ensino e educação há décadas. Especialmente a partir do final do século XX, se consolidou como um dos principais objetivos desta linha de pesquisa, o ensino sobre a natureza da ciência (NdC) que é reconhecida pelos pesquisadores como um conceito dinâmico, complexo, mutável, que recebe contribuições de campos de estudo diversos, em especial história, filosofia e sociologia, que têm a ciência como objeto de estudo. Apesar das discordâncias entre pesquisadores(as) dedicados(as) ao tema, há um consenso de que a ciência é complexa e multifacetada, e que não há uma única visão correta sobre a chamada natureza da ciência, assim como não é mais possível defender a existência de um (único) método científico (EL-HANI, 2006; LEDERMAN; 1992; MARTINS, 2006; PRESTES; CALDEIRA, 2009). Por outro lado, esta chamada visão 'consensual' da NdC tem recebido críticas, por desencorajar a abordagem de temas controversos, mas com relevância educacional (BAGDONAS; GURGEL; ZANETIC, 2014; ROZENTALSKI, 2018). Como alternativas, Rozentalski (2018) descreve propostas como a substituição do termo Natureza da Ciência por Características da Ciência, a abordagem da 'ciência integral', a proposta de substituir afirmações e listas por 'temas e questões', e a abordagem de 'semelhança de família'.

Uma questão diretamente relacionada aos estudos envolvendo a NdC é como a ciência deve lidar com o encontro entre diferentes visões de mundo em sala de aula, tais como nos embates entre ciência e religião (BAGDONAS; AZEVEDO, 2017; BAGDONAS; SILVA, 2015), e nas tensões entre universalismo e multiculturalismo, em que os primeiros defendem que apesar das diferenças culturais, o ensino de ciências deve fomentar, com respeito, a noção de ciência universal, evitando a inclusão na educação científica de questões multiculturais (EL-HANI; MORTIMER, 2007). Mais recentemente, surgiu também a diferenciação entre multiculturalismo, em que predominava a justaposição de etnias e culturas, pressupondo a aceitação do heterogêneo, e a interculturalidade, que implica que “[...] os diferentes se constituem mutuamente e, assim, tornam-se o que são em relações de negociação, conflitos e trocas recíprocas.” (EL-HANI, 2022, p. 6).

Nesse sentido, buscando contribuir com estes debates e fomentar diálogos interculturais, mostra-se importante a atualização dos estudos envolvendo história, filosofia e sociologia da ciência para entender a diversidade na ciência. Nossa percepção é que debates sobre controvérsias envolvendo a natureza da ciência e o multiculturalismo podem ser enriquecidos pela atualização e diversificação dos referenciais de filosofia, história e sociologia das ciências. Acreditamos que algumas dessas tensões podem ser superadas incorporando as contribuições da epistemologia feminista e correntes correlatas da epistemologia social, que consideram o caráter social da ciência como seu ponto forte.

Guerra e Moura (2022, p. 6) defendem a história cultural das ciências como forma de promover uma perspectiva sociocultural na educação, enfatizando assim a análise dos “[...] aspectos sociointeracionais, organizacionais, sociológicos, biográficos, históricos, linguísticos, culturais e, também, políticos da educação em ciências”. Alguns referenciais que têm sido abordados pelo grupo são os olhares para o Sul Global, de Boaventura Santos, e os estudos sobre objetividade e racionalidade com base em estudos sociais, da historiadora feminista Sandra Harding (HARDING, 2015). Esta nos parece uma perspectiva interessante que integra requisitos das pesquisas de HFC e educação CTSA, indo além do ensino somente de conceitos e preparando também para a tomada de decisões sobre questões sociocientíficas (HODSON, 2018).

Neste artigo propomos uma abordagem de casos da história da física que busca contemplar algumas das necessidades apontadas acima sobre a relevância pedagógica de abordar a NdC, sem fugir de casos controversos, com base em reflexões interdisciplinares sobre a diversidade na ciência. Ao utilizar estudos de casos da história das ciências para discutir em que medida uma comunidade científica demograficamente diversa contribui para a produção do conhecimento científico, buscamos também valorizar discussões contemporâneas sobre questões de gênero, raça, multiculturalismo e a confiabilidade das ciências.

Essa tarefa implica em revisitar o diálogo entre o racionalismo crítico, proposto por filósofos como Karl Popper e Imre Lakatos, e o relativismo epistemológico e cultural, defendido por autores como Paul Feyerabend. Este último tem sido frequentemente acusado de fomentar visões anticientíficas ingênuas, mas acreditamos que seja possível, com base em estudos oriundos de visões críticas à autoridade da ciência, promover uma visão mais crítica e madura sobre a confiabilidade das teorias científicas (BAGDONAS, 2020). Da mesma maneira, autores como Bruno Latour, igualmente acusados de fomentar o relativismo, têm sido empregados no Ensino de Ciências como base para a formação de cidadãos capazes de se posicionar criticamente no cenário sociocientífico contemporâneo (LIMA et al., 2019).

Diante das obras de Kuhn, Feyerabend, Latour e dos diversos autores que investigaram os aspectos socioculturais da prática científica, não é mais possível defender que a força da ciência está em um método científico, ou em seu lastro sobre fatos observacionais, nem podemos garantir que as teorias científicas refletem fielmente a realidade e não serão no futuro desacreditadas. Embora essas novas perspectivas sobre a prática científica tenham dado munição para os críticos da ciência, não podemos fechar os olhos para o fato de que elas ajudaram a produzir uma visão muito mais rica da prática científica e, mesmo em um momento em que tendemos a buscar uma defesa da ciência frente às várias correntes negacionistas, devem nortear reflexões sobre natureza da ciência.

Por outro lado, poucas pessoas envolvidas com ensino de ciências atualmente negariam que a ciência, enquanto instituição, é digna da confiança, ou que a solução para os grandes problemas que enfrentamos atualmente enquanto sociedade, como as mudanças climáticas e pandemias como a da COVID-19, necessita de um fortalecimento das instituições científicas. Uma questão central para o ensino de natureza da ciência é, então, como apresentar essa visão rica e multifacetada da ciência sem correr o risco de minar a confiança na ciência?

Uma boa resposta a esta questão foi articulada pela historiadora das ciências Naomi Oreskes (ORESKES, 2019) em Why trust science? Apoiada na epistemologia feminista, em especial nos trabalhos de Sandra Harding e Helen Longino, ela argumenta convincentemente que a força da ciência está exatamente em sua natureza social. É a socialização do conhecimento, promovida em canais de comunicação especiais (como conferências e periódicos), associada a práticas sociais desenvolvidas ao longo de séculos para promover criticismo construtivo (como a revisão por pares), que permite que a comunidade científica supere vieses subjetivos de cientistas individuais ou de grupos pouco diversos.

Estas reflexões sobre práticas científicas possuem grande potencial para discussões sobre a natureza da ciência em sala de aula. Queremos chamar atenção apenas para um aspecto que é muito pouco explorado em discussões sobre natureza da ciência no ensino de ciências: a importância da diversidade para a aspiração de objetividade do conhecimento científico. Para Oreskes (2019), a diversidade é um elemento central dos mecanismos sociais que permite eliminar vieses individuais e reduzir as chances de que teorias que são objetos de consenso da comunidade científica, como sobre a antropicidade das mudanças climáticas, estejam erradas. “Quanto maior a diversidade e abertura de uma comunidade e mais robustos forem seus protocolos para apoiar debates abertos e livres, maior o grau de objetividade.” (ORESKES, 2019, 53, tradução nossa). “Em diversidade, há força epistemológica” (ORESKES, 2019, 55, tradução nossa), resume a autora.

Em filosofia da ciência e epistemologia social, estudos sobre o papel epistêmico da diversidade costumam dividi-la em dois tipos que se interseccionam. A diversidade cognitiva captura as diferenças em termos de acesso a informações, formação ou estilos de pensamento. Já a diversidade demográfica ou social envolve as diferenças na forma como as pessoas se identificam (como mulheres, homens, LGBTQIA+, negras, brancos, imigrantes, progressistas, conservadores, etc.). Esses vários rótulos ou marcadores sociais, muitos dos quais carecem de definição rigorosa, na prática se interseccionam para formatar de maneira complexa as experiências e perspectivas dos indivíduos que frequentemente resultam em diferenças cognitivas. Uma vez que identidades são fortemente associadas à cultura, a diversidade cultural pode ser então considerada como uma forma de diversidade demográfica. Há um consenso entre epistemólogos sociais que, na maioria das situações, a diversidade cognitiva traz claros benefícios epistemológicos à ciência. Entretanto, a diversidade demográfica nem sempre leva a diversidade cognitiva e, por sua vez, diversidade cognitiva não leva automaticamente a benefícios epistemológicos. A questão central se torna então saber em quais condições diversidade demográfica resulta em diversidade cognitiva epistemologicamente benéfica para a produção do conhecimento científico (PETERS, 2021; ROLIN, 2019).

Essa perspectiva permite trazer para as discussões sobre ciências em sala de aula tanto a importância de aumentar a representatividade de grupos demográficos ainda sub-representados nas ciências (mulheres e as populações negras, indígenas e LGBTQ+ etc.), quanto a relação da ciência com outras formas de produção de conhecimento e outras culturas sem minar a confiança nas ciências.

Nas seções seguintes, discutiremos as origens da teoria do big bang com o propósito de refletir sobre como esta teoria, que é atualmente a mais aceita para as origens do universo, foi beneficiada por intercâmbios culturais. Apesar de termos escolhido o foco somente nesta teoria cosmológica, é importante a ressalva de que é importante que sejam discutidas também outras teorias cosmológicas alternativas como forma de discutir a diversidade na ciência. Há diversos trabalhos que abordam como a história da cosmologia pode ser interessante para promover discussões sobre a natureza da ciência na educação, incluindo controvérsias sobre visões diferentes da cosmologia do Big Bang, como Bagdonas (2020), Bagdonas e Silva (2015), Bagdonas, Gurgel e Zanetic (2014, 2018) e Neves (2000).

A próxima seção trata dos trabalhos do físico matemático russo Alexander Friedman (1888-1925). Veremos como o contexto sociocultural da Rússia revolucionária e as experiências vividas por Alexandre Friedman no período 1917-1925 foram cruciais para que ele levasse a sério a possibilidade de modelos cosmológicos extraídos da relatividade geral, que foram inicialmente descartados por Einstein e outros físicos e astrônomos da época, como sem significado físico. Entre eles estava o modelo segundo o qual o universo teria evoluído a partir de um ponto infinitamente denso e estaria em um estado dinâmico de expansão. Estudar um caso da história das ciências na URSS é particularmente interessante porque, ao tempo em que a URSS deu grandes contribuições à física ao longo do século XX, ela teve uma história cultural, política e econômica notadamente distinta. Isso faz do experimento soviético um objeto privilegiado para estudos comparativos sobre a ciência (BAGDONAS; GURGEL; ZANETIC, 2012; GRAHAM, 1998).

Na sequência, discutimos os trabalhos do astrônomo, físico e padre belga George Lemaître. Assim como no caso de Friedman, as motivações que levaram Lemaître a defender ideias consideradas heterodoxas na época dificilmente se enquadram nas concepções usuais do processo de produção do conhecimento científico. Sua busca inicial por uma explicação científica da origem do universo foi influenciada pela sua compreensão de Gênesis. Entretanto, à medida que essas ideias cruzaram fronteiras e foram sendo adotadas por outros cientistas, elas foram se dissociando dos contextos e motivações de seus criadores.

Cataclismas, revoluções e os universos relativistas de Alexandre Friedman

Eric Hobsbawm, em seu clássico Era dos extremos, chamou o período de 1914 a 1945 de Era das Catástrofes. Iniciado e finalizado com as duas guerras mais sangrentas da história, o período foi também marcado por revoluções e crises que levaram à derrocada da civilização ocidental eurocêntrica. Assim como as sociedades dos países diretamente envolvidos na guerra, como é evidente nas muitas manifestações artísticas e culturais que surgiram em resposta a estes acontecimentos, as ciências foram profundamente afetadas por estas catástrofes (HOBSBAWN, 2011).

Trabalhos de história da física nas primeiras décadas do século XX mostram como essas transformações sociais tiveram influência notável não apenas em instituições científicas, mas também no próprio conteúdo da física. Um exemplo nessa direção é a influência da crise generalizada na Alemanha no período entreguerras, principalmente na época da República de Weimar, sobre o desenvolvimento da mecânica quântica. Como documentado por Paul Forman, o clima hostil aos ideais de racionalidade da ciência que dominou a república de Weimar abriu espaço para concepções alternativas e posturas heterodoxas entres os físicos, que se viram inclinados a adaptar sua ciência ao espírito do tempo (CARSON; KOJEVNIKOV; TRISCHLER, 2011; FORMAN, 1983).

Nesta seção, no intuito de discutir o impacto científico das experiências vividas por pessoas que sobreviveram a esses eventos catastróficos, voltaremos nossa atenção ao contexto da Rússia revolucionária, um contexto ainda mais conturbado e violento que a República de Weimar. Em outubro de 1917, o Império Russo colapsou depois de uma sucessão de guerras e convulsões sociais, dando lugar a uma revolução que formatou de maneira crucial a história do século XX. A tomada de poder, que ocorreu sem derramamento de sangue, foi seguida por uma guerra civil ainda mais sangrenta que a primeira grande guerra, para as populações do território do antigo império Russo. A guerra civil, por sua vez, gerou fome e epidemias que devastaram dezenas de milhões de pessoas. Estimativas mais atualizadas do impacto econômico e demográfico da série de catástrofes (primeira guerra mundial, guerra civil e epidemias) apontam para um excesso de mortes da ordem de 13 milhões de pessoas, cerca de 9% da população, mesmo tomando como base os elevados padrões de mortalidade da região no final do século XIX e começo do século XX. Em termos econômicos, ao final da guerra civil, o PIB per capita da Rússia havia sido reduzido a cerca de um terço de seu valor em 1913 (MARKEVICH, 2011). Tais números são extraordinários, mesmo para os padrões do século XX, o mais sangrento da história da humanidade. Seus efeitos sobre o povo russo e sua visão de mundo não podiam ser menos extraordinários.

Esse foi o contexto no qual os trabalhos de Albert Einstein sobre a relatividade geral foram recebidos na União Soviética. Como no Ocidente, a relatividade despertou enorme interesse entre o público letrado, mas o caldo cultural temperado pelas experiências traumáticas e revolucionárias, abriu espaço a interpretações ainda mais revolucionárias de teorias científicas. Conforme mostrou Kojevnikov (2022), a emoção extraordinária e o trauma experienciado pelo público russo no começo do século XX causou mudanças dramáticas nas concepções de espaço e tempo. Ideias radicais que, neste contexto cultural revolucionário, foram associadas à relatividade, incluíam interpretações altamente especulativas, relacionando o espaço-tempo a conceitos biológicos de ressurreição, catastrofismo astronômico e histórico, além de periodicidades fundamentais em escalas temporais de organismos, de eventos históricos humanos e na história cosmológica do universo.

Apesar do grande interesse público, compreender a matemática abstrata da nova teoria em seus anos iniciais era para poucos. O jovem físico matemático Alexander Friedman foi um desses poucos que conseguiram compreender e aplicar a relatividade geral para desenvolver modelos cosmológicos. Friedman havia nascido em São Petersburgo, em uma família de músicos, judeus praticantes da Igreja Ortodoxa Russa. Sua mãe era pianista e professora de música, seu avô músico e compositor, e seu pai, que também se chamava Alexander Friedman, foi compositor do Balé do Teatro Imperial. Quebrando a tradição familiar, Friedman optou por uma graduação em matemática na Universidade de São Petersburgo. Logo após a graduação, concluída em 1910, ele trabalhou com física matemática aplicada, principalmente em tópicos de hidrodinâmica e meteorologia, desenvolvendo conhecimentos e habilidades que aplicaria à navegação, balística e voos durante a Primeira Guerra (1914-1917) como oficial da aeronáutica russa (TROPP; FRENKEL; CHERNIN, 1993).

Durante a guerra civil, quando outros partidos, além do Bolchevique, se tornaram ilegais, Friedman viu-se forçado a tomar partido. Como muitos jovens russos de sua época, ele havia sido criado em uma família devota ao cristianismo ortodoxo, mas, no começo do século, havia sido cooptado pelas ideias marxistas e, por volta de 1905, ele e seus companheiros de escola envolveram-se com um partido marxista (possivelmente os Mencheviques). Depois de se tornar professor universitário, Friedman tornou-se cada vez menos atuante politicamente, mas, quando forçado a escolher entre o exército Vermelho ou o Branco, não hesitou em escolher o lado vermelho, atuando como especialista em estudos envolvendo física com interesse militar, durante a guerra civil. Em 1918, ele conseguiu a posição de professor na Universidade de Perm, onde ficou até 1920, e passou a colaborar, entusiasticamente, com os bolcheviques na construção de novas instituições científicas (KOJEVNIKOV, 2022).

Friedman começou a estudar a teoria da relatividade geral após 1920, quando a URSS voltou a receber artigos internacionais após um longo período de isolamento causado pela Revolução Russa e pela Guerra Civil. Dois anos depois, publicou uma das primeiras grandes contribuições soviéticas à ciência: diversas soluções dinâmicas, ou seja, não estáticas, das equações da relatividade geral que não haviam sido encontradas nem por Einstein, nem por de Sitter em 1917 (KOJEVNIKOV, 2004).

Após apresentar as diversas soluções possíveis em um artigo predominantemente matemático, Friedman fez algumas sugestões cautelosas sobre como se poderia, no futuro, escolher entre os diversos modelos de universo, com base em questões físicas, como força centrífuga e eletrodinâmica (FRIEDMANN, 1922).

Este artigo foi submetido a uma revista alemã e avaliado por Albert Einstein, que escreveu uma nota para a mesma revista, considerando suspeitas as soluções com raio crescente, levando em conta que elas seriam incompatíveis com suas equações de campo (EINSTEIN, 1922, 1923). Yuri Krutkov (1890-1952), um colega de Friedman, encontrou Einstein antes desta nota ser publicada e, conversando com ele, soube desta objeção. Quando voltou à URSS, ele relatou a Friedmann sobre a reação de Einstein, motivando-o a defender sua proposta (BAGDONAS, 2015; BERSTEIN; FEINBERG, 1986).

Então, Friedmann revisou seus cálculos e escreveu uma carta para Einstein, argumentando que não havia erros em seu artigo:

Caro professor, a partir da carta de um amigo meu que agora está no exterior tive a honra de saber que você submeteu uma nota a ser impressa no 11º volume da Zeitschrift fur Physik, na qual afirma que se forem aceitas as suposições feitas em meu artigo “Sobre a curvatura do espaço”, se concluirá, a partir das equações de campo derivadas por você, que o raio de curvatura do universo é uma quantidade independente do tempo (...) Se considerar os cálculos apresentados nesta carta corretos, por favor, tenha a gentileza de informar isso aos editores da Zeitschrift fur Physik; talvez seja adequado você publicar uma correção de sua nota ou dar a oportunidade de que uma parte desta carta seja publicada (FRIEDMANN, 1922 apud TROPP; FRENKEL; CHERNIN, 1993, p. 170, tradução nossa).

Einstein estava viajando por diversos países (Suíça, França, Japão, Palestina e Espanha) nos meses seguintes e, por isso, não leu a carta de Friedmann. Somente em maio de 1923, em um evento em Leiden, que homenageava a aposentadoria do físico holandês H. Lorentz, Einstein encontrou-se novamente com Yuri Krutkov (TROPP; FRENKEL; CHERNIN, 1993). Eles discutiram sobre o suposto erro no artigo de Friedman e depois, Krutkov, em uma carta para sua irmã, escreveu: “Eu ganhei de Einstein em um argumento sobre Friedmann. A honra de Petrogrado está salva” (KRUTKOV, 1923 apud FRENKEL, 2002, p. 7, tradução nossa). Então, Einstein publicou na mesma revista uma nova nota, reconhecendo seu erro na nota anterior, e a influência de Kurtkov em sua mudança de posição:

Em uma nota anterior [EINSTEIN, 1922] eu critiquei o artigo citado [FRIEDMANN, 1922]. Minha objeção era baseada, no entanto, em um erro de cálculo, como me convenceram o Sr. Krutkoff pessoalmente e o Sr. Friedmann em uma carta. Estou convencido de que os resultados do Sr. Friedmann são corretos e elucidativos. Eles mostram que além das soluções estáticas das equações de campo existem também soluções que variam no tempo com estrutura espacial simétrica (EINSTEIN, 1923, p. 228, tradução nossa).

Contudo, a aceitação de Einstein se deu apenas como uma possibilidade matemática. Em um manuscrito não publicado, encontrado pelo historiador da ciência John Stachel em 1987, há uma frase adicional, que deve ter sido apagada por Einstein na hora de enviar o artigo: “A solução de Friedmann de um universo não estático ainda que correta matematicamente, dificilmente pode ter algum sentido físico.” (STACHEL, 1987 apud FRENKEL, 2002, p. 7, tradução nossa).

Em que medida Friedman atribuiu significado físico ao seu modelo tem sido, há algum tempo, matéria de debate. Historiadores como Helge Kragh têm enfatizado que os artigos de Friedman sobre a expansão do universo seriam de natureza predominantemente matemática, e não física, já que não houve tentativas de ligar suas descobertas com observações astronômicas, como desvios espectrais para o vermelho (KRAGH, 1996).

Em 1963, comemorando o aniversário de 75 anos do nascimento de Friedman, os físicos soviéticos Yakov Zeldovich (1914-1987) e Vladimir Fock (1898-1974) escreveram sobre suas contribuições à cosmologia (FOCK, 1964; ZELDOVICH, 1964). Fock (1964), que traduziu o artigo de Friedman para o alemão para ser publicado em 1922, também defendeu a tese de que sua visão do universo seria predominantemente matemática: “Friedman mais de uma vez disse que sua tarefa seria indicar as possíveis soluções das equações de Einstein, e então os físicos poderiam fazer o que quisessem com estas soluções.” (FOCK 1964, p. 474, tradução nossa).

Esta citação de Friedman apresentada por Fock, foi utilizada por Kragh e Lambert para defender que Friedman via seus modelos de universo como possibilidades matemáticas e não como uma realidade física. Eles também argumentam que Friedman não utilizou em seus artigos termos físicos, como energia, nebulosa ou radiação, nem incluiu referência aos desvios espectrais das nebulosas. Friedman já sabia de sua existência por ter lido e citado em seu artigo de 1922, a edição francesa do livro Espaço, tempo e gravitação, em que o astrônomo Arthur Eddington (EDDINGTON, 1920) mencionava as observações de desvios espectrais realizadas por Vesto Slipher desde 1914 (KRAGH; LAMBERT, 2007).

É provável que Friedman também tenha lido o livro A teoria matemática da relatividade (EDDINGTON, 1923), em que há uma apresentação mais detalhada dos desvios espectrais medidos por Slipher. O físico soviético Dmitri Ivanenko (1904-1994) se baseou na mesma hipótese: a de que Friedman conhecia os desvios espectrais para o vermelho, para discordar da interpretação de que seus modelos cosmológicos eram vistos por ele como puramente matemáticos. Em suas memórias sobre os físicos soviéticos com quem conviveu, Ivanenko defendeu que Friedman também se preocupava com observações astronômicas, ainda que não tenha comentado sobre elas em seus artigos de 1922 e 1924:

Eu me lembro de seu último pronunciamento sobre cosmologia, em que ele relacionou sua teoria da expansão do universo com observações de galáxias se afastando, realizadas pelo astrônomo estadunidense Slipher. Como se sabe, a lei da recessão foi estabelecida em 1929 por Hubble, em pleno acordo com a teoria de Friedman. Contrariamente à opinião de certos autores que acreditavam que Friedman via seus resultados como conclusões puramente matemáticas, criadas a partir da teoria da relatividade geral, é claro que Friedman tinha um profundo entendimento da importância fundamental de seus resultados e da necessidade de considerar a evolução temporal do universo (Ivanenko apud SARDANASHVILY 2010, p. 115, tradução nossa).

Os autores da principal biografia de Friedman (TROPP; FRENKEL; CHERNIN, 1993) argumentaram que a classificação de Friedman de sua própria contribuição à cosmologia como matemática, que foi citada por Fock (1964), seria apenas uma anedota enfatizando estereótipos sobre físicos e matemáticos. Não deveríamos interpretá-la, portanto, de forma literal. Para eles, em todos os problemas científicos que trabalhou, desde o cálculo de trajetórias de bombas durante a Primeira Guerra Mundial, até seus estudos meteorológicos e sobre a dinâmica atmosférica, Friedmann sempre se preocupou em verificar experimentalmente as teorias.

Alguém poderia argumentar que essa foi uma racionalização a posteriori de físicos russos para valorizar o trabalho de Friedman, uma vez que a expansão do universo se tornou um fato estabelecido. Entretanto, com base em um estudo minucioso, que levou mais de uma década, sobre a influência do ambiente cultural revolucionário no trabalho de Friedman, Kojevnikov (2022) documenta convincentemente como aquele ambiente foi fator decisivo para que Friedman contemplasse ideias que em outro contexto seriam consideradas demasiadamente heterodoxas. Ele aponta três ideias pouco usuais do modelo de Friedman que podem ser diretamente vinculadas a debates que engajaram a intelligentsia do início da década de 1920:

  1. a possibilidade de um universo não-estático;

  2. a aceitação da realidade das singularidades matemáticas, e;

  3. sua predisposição por um universo periódico.

Para ele, a terceira seria incompatível com a interpretação de que a contribuição de Friedman para a cosmologia seria exclusivamente matemática, sem significado físico.

A abordagem da história cultural utilizada neste artigo nos ajuda a evitar tais inconsistências lógicas e interpretar todas as 3 ideias - independentemente de sua aceitação pela ciência atual - como carregando importantes significados culturais no local, tempo histórico e espaço de Friedman (KOJEVNIKOV, 2022, p. 46, tradução nossa).

Em síntese, com base no que foi discutido acima, podemos ver que estudar as equações da relatividade a partir do contexto da Rússia revolucionária conferiu a Friedman uma perspectiva diferente da adotada por Einstein, de Sitter e outros estudiosos da teoria da relatividade. Entretanto, Friedman não foi o único a levar a sério a possibilidade de um universo não estacionário. Sabemos que, um pouco depois, mas, ao que tudo indica, de maneira independente, um padre e cosmólogo belga chamado George Lemaître (1894-1966) propôs um modelo do universo em expansão que teria sido originado de uma singularidade. Como veremos abaixo, o caso de Lemaître é mais um exemplo que atesta o papel epistêmico da diversidade na ciência.

Lemaître, Gamow e origens do Big Bang

Em meados da década de 1920, assim como no caso de Friedman, também houve diversas influências no longo processo de criação das teorias que poderiam ser consideradas místicas ou metafísicas, amparadas em suas experiências e contexto socioculturais.

No início de sua carreira como cientista e padre, apesar de discordar da alegação do papa de que a Bíblia ensinava ciência, Lemaître considerava que Deus poderia, de alguma maneira, ter direcionado os autores da Bíblia a deixar alguns insights velados sobre as leis da natureza. Ainda em 1917, ele escreveu para um amigo: “Eu compreendi o 'Fiat Lux' [em latim: 'que haja luz'] como a razão para a existência do universo [...]” (LEMAÎTRE, 1917 apud FELIPE, 2017) e nos anos seguintes esforçou-se para “[...] estabelecer um concordismo elaborado em torno da ideia de luz na origem do universo inspirado em Gênesis 1:3.” (FELIPE, 2017, tradução nossa). Em 1921, Lemaître estudou como certas passagens do Gênesis poderiam ser mais bem compreendidas utilizando conceitos da física moderna, e escreveu um manuscrito chamado As três primeiras declarações de Deus, em que abordou a questão de como poderia haver luz em um universo que ainda não existia? (KRAGH, 2004).

Com o passar dos anos a postura de Lemaître mudou, tendendo a preferir ver a ciência e religião como independentes. Evitando a ideia de integração, considerava a possibilidade de diálogos construtivos. Defendeu que os valores metafísicos e religiosos seriam essenciais para os cientistas no campo da ética, mas que estes valores não deveriam interferir em seus métodos ou conclusões. Tanto que, na década de 1950, quando o Papa Pio XII fez um discurso para a Pontifical Academy of Sciences sobre os resultados da ciência contemporânea e sua relação com a doutrina católica, argumentando que não havia conflitos entre os astrônomos e a igreja, além de afirmar que os resultados da ciência moderna mostram sólidas evidências da existência de um criador, Lemaître se posicionou contrário. Ele considerava que as teorias científicas são provisórias; sendo assim, se opunha ao seu uso como forma de dar suporte a teses filosóficas, teológicas ou religiosas (BAGDONAS; SILVA, 2015; KRAGH, 2004).

O Papa alegava que a Bíblia estaria sendo confirmada pelas teorias de Friedman, Lemaître e também de George Gamow (1904-1968), um ex-estudante de Friedman, que usou a mecânica quântica e física nuclear para explicar como o universo poderia se formar a partir de um estado superdenso e quente. Gamow, que com a ascensão do nazismo na Europa teve cada vez mais dificuldade para viajar para o exterior, emigrou da URSS para os EUA no início da década de 1930. Lá, desenvolveu a teoria de que o universo explodiu como uma bomba nuclear enorme, de escalas cósmicas, no mesmo período em que a maioria dos físicos estadunidenses trabalhavam em projetos ligados à produção de armas nucleares. Ele embasou sua hipótese a partir de dados astronômicos e cálculo de como reações nucleares poderiam produzir matéria, estrelas e galáxias. Este modelo permitiu que ele e seus colaboradores pudessem explicar a origem dos elementos químicos e prever novas observações, como a radiação cósmica de fundo (BAGDONAS; KOJEVNIKOV, 2021).

As duas Guerras Mundiais condicionaram o trânsito de uma série de cientistas, que como Gamow se tornaram imigrantes transnacionais, interagindo entre diferentes culturas e contribuindo para o aumento da diversidade na física, sobretudo nos EUA, com consequências importantes para a cosmologia. Um dos colaboradores nos estudos de Gamow sobre cosmologia nos EUA foi outro imigrante, o indiano Subrahmanyan Chandrasekhar (1910-1995). Impedidos de trabalhar no projeto Manhattan, em Los Alamos, os dois mantiveram correspondência intensa sobre estudos envolvendo a origem da energia nas estrelas e cosmologia durante todo o período da Segunda Guerra Mundial, um período no qual a relatividade e a cosmologia ainda eram áreas marginais na física. Apesar de já ter enunciado alguns elementos da teoria do Big Bang em livros de divulgação científica no final da década de 1930, Gamow publicou os primeiros artigos em revistas científicas sobre sua teoria logo após a Guerra, entre 1946 e 1948 (BAGDONAS; KOJEVNIKOV, 2021). Tanto Gamow quanto Chandrasekhar promoveram teorias sobre as estrelas e sobre o universo heterodoxas para suas épocas, mas que se tornariam bem aceitas nas décadas seguintes.

Em síntese, os estudos sobre as origens das ideias que levariam à teoria mais aceita atualmente sobre as origens do universo, mostram que essas ideias foram fomentadas por fatores que dificilmente são associados aos métodos da ciência. Entretanto, é importante notar que, uma vez que esses atores desenvolveram suas ideias em publicações, essas motivações iniciais são deixadas de fora ou indicadas de maneira muito sutil e cautelosa. Além disso, o modelo do universo em expansão só foi mais amplamente aceito pela comunidade científica depois de observações astronômicas apontarem para sua plausibilidade e à medida que outros cientistas de origens diversas passaram a contribuir para seu desenvolvimento, o modelo se distanciou cada vez mais das concepções metafísicas de seus criadores. É inegável, no entanto, que as concepções metafísicas de Friedman e Lemaître, que divergiam claramente das concepções dominantes entre físicos e astrônomos da época, foram cruciais para nossa compreensão do universo.

Considerações finais

As controvérsias sobre a natureza da ciência que se desenvolveram ao longo do século XX nos mostraram que o processo de gestação e criação de teorias é complexo, diverso e nunca linear. Esta conclusão é bem fundamentada em estudos de diferentes casos históricos por historiadores, filósofos e sociólogos da ciência, tanto de linha mais racionalista como Lakatos, quanto os de linha mais relativista como Feyerabend, e tem norteado há muito as pesquisas em ensino de ciências. A ideia de progresso na ciência, e o processo racional de aceitação das teorias com base em evidências se dá pelos diálogos em uma comunidade de especialistas, que leva um certo tempo para decidir quais são as melhores explicações disponíveis. Nesse processo, também é consenso de que existe a influência de fatores identitários como nacionalidade, gênero, raça e cultura. O desacordo surge na questão do quanto essas influências são efetivamente importantes quando comparadas com fatores empíricos, lógicos e racionais, normalmente vistos como internos à comunidade científica, uma vez que durante o processo de universalização e justificação das teorias científicas, estes elementos que são considerados subjetivos, as marcas de contextos socioculturais, vão sendo abandonados.

O estudo de caso aqui apresentado, bem como trabalhos de história e filosofia da ciência, mostra que esses elementos subjetivos frequentemente desempenham papel positivo tanto no processo de descobertas científicas quanto no processo de crítica e desenvolvimento das teorias. Como argumenta Oreskes (2019), diversidade pode resultar em resultados intelectuais mais rigorosos por promover questionamentos críticos que revelam preconceitos socioculturais. Assim, a objetividade científica tem uma origem social, enriquecida pela participação de cientistas com perspectivas e visões de mundo diferentes. Ao aumentar a diversidade nas ciências, estamos também aumentando sua objetividade e universalização.

Acreditamos que, dentre os tipos de diversidade que têm sido empregados por estudos de História, Filosofia e Sociologia da Ciência (HFSC), para nosso estudo de caso, a diversidade demográfica (associada à intersecção de marcadores sociais que definem identidades de determinados grupos), mostra-se um conceito mais adequado do que a diversidade cultural. Naturalmente, não é qualquer um que viveu as experiências dos anos iniciais da URSS, nem qualquer padre belga, que poderia transformar elementos dessas culturas em modelos de universo. Há outros elementos que fazem parte das identidades destes cientistas que foram cruciais para a criação de seus modelos. Portanto, o conceito de interseccionalidade, comumente utilizado em estudos de questões de gênero, raça e classe, nos parece útil para aprofundar nossa compreensão sobre o papel epistêmico da diversidade.

Vale salientar que, embora a diversidade aqui presente seja bem limitada em termos de gênero e raça, o fato de suas abordagens dos modelos relativísticos estarem relacionadas a experiências pessoais e identidades, aponta para a importância da diversidade demográfica no processo de produção do conhecimento e para a necessidade de mais estudos nessa direção. Isso porque gênero e raça são dois dos vários marcadores que se interseccionam para formatar as experiências de vida e pontos de vista dos indivíduos.

Questões de gênero, raça, classe, nacionalidade e outros marcadores sociais vêm sendo apontadas como questões essenciais na educação científica, em especial por trabalhos que mostram esforços de reconhecimento e valorização das contribuições de mulheres e grupos historicamente subalternizados para a ciência, como forma de promover uma educação libertadora e inclusiva (ALVES-BRITO et al., 2020; FORATO; BAGDONAS; TESTONI, 2017; LEAL; FORATO, 2021; ROSA; ALVES-BRITO; PINHEIRO, 2020; SEPÚLVEDA; SILVA, 2021). Entretanto, não encontramos trabalho cujo foco principal tenha sido discutir os impactos da diversidade na ciência com base em HFSC. Esses esforços podem ser potencializados por uma fundamentação teórica pautada no papel epistemológico da diversidade na ciência, com base em trabalhos de epistemologia social e filosofia das ciências que tratam da temática.

Ainda que, neste artigo, tenhamos iniciado o debate e o aprofundamento de estudos nesta direção, nos parece que esta abordagem de aspectos culturais e sociais da história e filosofia da ciência tem grande potencial para fomentar visões mais ricas sobre a natureza da ciência. Para isso, além de aprender conceitos, estudantes poderiam também, a partir do contato com diferentes ênfases historiográficas, ter contato com elementos das origens e implicações sociais da ciência. Essa abordagem permite discutir, a partir de um elemento comum a todas as disciplinas, as características da ciência, como sua natureza social e a objetividade, a diversidade de métodos nas ciências e a confiabilidade das afirmações científicas.

Agradecimentos

Agradecemos a Alexei Kojevnikov pelas discussões sobre a ciência na União Soviética e pelo estímulo para escrever este artigo; a Cristiano Moura, Nathan Lima e Angela Bagdonas pelas críticas, comentários e sugestões.

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Recebido: 24 de Agosto de 2022; Aceito: 27 de Março de 2023

Autor correspondente: alexandre.bagdonas@ufla.br

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