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Ciência & Educação

Print version ISSN 1516-7313On-line version ISSN 1980-850X

Ciência educ. vol.29  Bauru  2023  Epub Aug 16, 2023

https://doi.org/10.1590/1516-731320230035 

Artigo Original

As múltiplas ações dos animais e as possibilidades de abordagem interdisciplinar no Ensino de Biologia

The multiple actions of animals and the possibilities of an interdisciplinary approach in Biology Teaching

David Figueiredo de Almeida1 
http://orcid.org/0000-0001-7836-1162

1Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amapá (IFAP), Macapá, AP, Brasil


Resumo

Duas questões nortearam a pesquisa aqui descrita. Quais ações dos animais são percebidas por alunos de ensino médio? Até que ponto as ações percebidas contribuem para abordagens interdisciplinares no ensino de Biologia? As evidências vieram principalmente de questionários e entrevistas com alunos de escolas secundárias do entorno do grande e enigmático Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque, localizado no extremo norte do Brasil. No cenário, apresentado a partir das questões de pesquisa e dos enunciados dos alunos, conclui-se que as múltiplas ações dos animais representam variadas possibilidades de abordagens interdisciplinares no ensino de Biologia. Nesse cenário, por exemplo, as abelhas não possuem apenas a ação clássica de carregar o grão de pólen de uma flor a outra. Também há ações aproveitadas pelos humanos em áreas diversas. Valorizar as múltiplas ações dos animais pode levar as discussões no ensino de Biologia para áreas como a Geografia, o Direito Ambiental, a Filosofia e as Artes Visuais.

Palavras-chave Ensino médio; Ensino de biologia; Abordagem interdisciplinar; Floresta tropical; Animais

Abstract

The research that is described below has been guided by two questions. Which animal behaviors are thought to be acceptable by high school students? How much do the perceived behavior support interdisciplinary teaching strategies in Biology? The majority of the data came from questionnaires and in-depth interviews with high school students in the isolated and enigmatic Tumucumaque Mountains national park in northern Brazil. The multiple actions of animals represent various possibilities for interdisciplinary approaches in biology teaching, according to the research questions and the students' responses. In this particular scenario, for instance, bees possess a distinct characteristic beyond the conventional action of transporting pollen grains from one flower to another. There are other actions exploited by humans in different activities, and considering the multiple actions of animals can lead to discussions in biology teaching in areas such as geography, environmental law, philosophy, and the visual arts.

Keywords Secondary education; Biology teaching; Interdisciplinary approaches; Tropical forest; Animals

Introdução

Duas questões nortearam a pesquisa aqui descrita. Primeiro: Quais ações dos animais são percebidas por alunos de ensino médio? Segundo: Até que ponto as ações percebidas contribuem para abordagens interdisciplinares no ensino de Biologia? As evidências vieram de escolas secundárias do entorno do grande e enigmático Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque (PNMT), localizado no extremo norte do Brasil. Assim, o presente tópico introdutório está focado nos conceitos-chave das questões de pesquisa (ação, interdisciplinaridade) e no contexto regional onde se deu o trabalho de campo.

Para focar o conceito-chave ação, iniciemos mobilizando um enunciado de Paulo Coelho: “Um espinho, por menor que seja, faz o viajante interromper seu passo. Uma pequena e invisível célula pode destruir um organismo sadio” (COELHO, 2003, p. 67). Apesar de o romancista brasileiro não estar declaradamente interessado em teorizar sobre a ação, é evidente em seu enunciado o potencial que um simples espinho e uma pequena célula possuem de fazer a diferença. Há outro exemplo notável. Para a maior parte dos biologistas, os vírus não são considerados seres vivos, pois não possuem qualquer unidade celular. Porém, não há dúvida da esmagadora diferença que o coronavírus fez no cotidiano de bilhões de seres humanos, sobretudo nos anos 2020 e 2021. Ainda é possível se questionar sobre as diferenças que fazem, em algum contexto, coisas como carros, aviões, celulares, estrelas, montanhas, medicamentos, etc.

Fazer a diferença é algo primordial no quadro teórico adotado para o conceito-chave ação na presente pesquisa. Para o antropólogo francês Bruno Latour, e colegas como Michel Callon e John Law, não somente os seres humanos possuem ação, como convencionalmente se acredita. Nesse quadro teórico, a ação é estendida a todo e qualquer elemento que faz a diferença em alguma rede de atores (CALLON, 1986; LATOUR, 1994, 2011, 2012; LAW, 2006), como o espinho e a célula de Paulo Coelho, com a distinção de que esses últimos não são aliados na rede que inclui o viajante e o corpo sadio, respectivamente, mas agem como o que Callon (1986) chama de forças adversas, ou forças opostas.

Para que um elemento se torne um ator em uma rede, é preciso haver uma translação de interesses, o que requer novas interpretações. Latour (2011) descreve, por exemplo, como Charles Lyell estava interessado (no século XIX) em estudar a história da Terra, mas se encontrou em um dilema quanto à sua teoria de que a Terra tinha idade na casa dos milhões de anos, pois contrariava os interesses do Estado e do público, ainda bastante influenciados pela antiga teologia. Para convencer os altos funcionários do Estado, Lyell fez uma translação de interesses, mostrando que a geologia poderia ser útil para descobrir jazidas carboníferas, mapear territórios, etc. A ideia consistiu em atrair os interesses do Estado para conquistar aliados. Demonstrando as múltiplas ações dos estudiosos posteriormente chamados de geólogos, houve a possibilidade de vislumbrar as contribuições dos estudos da Terra para vários campos do interesse humano. Observando Lyell com a ótica do século XXI, não será incomum pensar que sua estratégia teve desdobramentos interdisciplinares, o que nos conduz ao segundo conceito-chave para a presente pesquisa.

A interdisciplinaridade se dá de forma quase simétrica quando duas disciplinas convergem num determinado campo (ALVARGONZÁLEZ, 2011), como na bioquímica (biologia e química), na geofísica (geologia e física). Klein (2011) apresenta uma taxonomia da interdisciplinaridade. Para a autora, pioneira nos estudos sobre interdisciplinaridade, nem toda atividade interdisciplinar exige cooperação cotidiana. Por exemplo, na interdisciplinaridade partilhada, ao contrário da interdisciplinaridade cooperativa, os pesquisadores trabalham separadamente de acordo com suas competências, comunicam seus resultados e monitoram o processo geral. Na interdisciplinaridade metodológica, há transferência de um método ou técnica de uma área a outra, enquanto na interdisciplinaridade teórica o interesse é construir um quadro teórico comum às disciplinas envolvidas.

Klein (2011) traz ainda exemplos de interdisciplinaridades instrumental, crítica, exógena e endógena. A instrumental visa melhorar os dados de uma disciplina e atender a demandas do mercado e a necessidades nacionais. A interdisciplinaridade crítica pode ser exemplificada com a Educação Ambiental, na medida em que questiona as estruturas dominantes da educação, da sociedade, com o intuito de as transformar. Por fim, há a distinção entre interdisciplinaridades endógena e exógena, quando ocorrem dentro das áreas do conhecimento acadêmico e quando envolvem questões coletivas da comunidade não acadêmica, respectivamente.

No presente artigo, a comunidade não acadêmica (imediata) em questão é formada por habitantes do entorno do Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque (PNMT), precisamente alunos de escolas do ensino médio. Também inclui uma infinidade de atores não humanos que habitam no entorno e dentro do PNMT. O referido parque foi criado em 2003 como o maior do mundo em floresta tropical, ocupando áreas em seis municípios (cinco no Amapá e um no Pará) e totalizando 3.867.000 hectares. Bernard (2008) apresenta um levantamento rápido da fauna do PNMT, realizado por biologistas do Brasil e do exterior. À época, foi evidenciada a existência na região de ao menos 643 gêneros de plantas, 207 espécies de peixes, 70 de anfíbios, 86 de répteis, 366 de aves e 105 de mamíferos. O PNMT é uma área de proteção integral, ou seja, não admite o uso direto dessa biodiversidade e demais elementos em seu interior. Por isso, não há populações humanas no PNMT, com exceção da pequena Vila Brasil, em Oiapoque.

Há pequenos núcleos urbanos e populações humanas no entorno do PNMT. Por exemplo, a sede do município de Serra do Navio e entre 15 a 20 populações rurais do mesmo município. A maioria dessas populações rurais é ribeirinha, de acesso apenas por transporte fluvial (SILVA, 2007). O município de Serra do Navio, em especial, é considerado a principal porta de entrada ao PNMT e seu núcleo urbano dista apenas em torno de 50 quilômetros dos limites do parque. Apesar de o parque fazer parte do imaginário de populações locais, a maior parte das pessoas jamais se aventurou ao interior do PNMT (SCHMIDT, 2009). Assim, uma vez que as escolas secundárias, em foco no presente estudo, localizam-se no entorno do PNMT, conhecer aspectos das percepções de alunos acerca dos animais da região pode ter importantes desdobramentos à proteção ambiental. Outros detalhes sobre as percepções e imaginários de habitantes, bem como aspectos histórico-culturais do entorno do PNMT, podem ser consultados no levantamento realizado pela antropóloga e professora da Universidade de São Paulo (USP), Dominique Tilkin Gallois (GALLOIS, 2008).

Opções metodológicas

Antes da pesquisa, as percepções dos alunos sobre as ações dos animais no entorno do PNMT eram um domínio totalmente desconhecido. As pesquisas se concentravam no levantamento da fauna e da flora da região, não nas percepções humanas sobre os animais e as plantas, por exemplo, menos ainda no contexto escolar. Por essa razão, optou-se aqui por uma pesquisa exploratória, em que o intuito foi navegar pela superfície desse domínio e registrar acontecimentos enunciados pelos alunos sobre as ações dos animais da região.

A incerteza e a não familiarização do domínio em questão são características dos sujeitos que estão a usar as pesquisas exploratórias (WHITE; ROTH, 2009). Porém, ainda conforme esses autores, não é apenas o ato de explorar que torna uma pesquisa exploratória, pois ela leva também ao desenvolvimento de novas capacidades, habilidades, valores, compreensões e preferências. Na presente pesquisa, a exploração conduzirá a algumas propostas de abordagens interdisciplinares para o ensino de Biologia.

A coleta de informações, que posteriormente se tornaram resultados (evidências), ocorreu antes da pandemia de Covid-19 em três escolas de ensino médio de Serra do Navio, localizadas no entorno do PNMT. As ações dos animais foram registradas por 180 alunos em questionários abertos, principais fontes para a pesquisa. Como fontes adicionais de informação, também foram realizadas entrevistas e observações diretas. Após as negociações da entrada em campo, incluindo a apresentação do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido a diretores, professores e alunos, a aplicação dos questionários se deu nas próprias salas de aula, em horários cedidos pelos professores. A aplicação e a leitura prévia dos questionários respondidos foram seguidas pela realização de entrevistas que permitiram acesso a informações mais aprofundadas sobre acontecimentos relatados pelos alunos.

O questionário continha questões de perfil (características dos alunos) e questões temáticas (ações dos animais). A partir das questões de perfil, foi possível trazer algumas informações gerais sobre as amostras. A Escola 1 (n= 65 ou 36,1 %), está localizada no pequeno núcleo urbano de Serra do Navio, com menos de 4 mil habitantes. A Escola 2 (n= 32, ou 17,7%) e a Escola 3 (n= 83 ou 46,2%) estão localizadas na zona rural do município e recebem sobretudo alunos das pequenas comunidades ribeirinhas, que vivem em grande parte da agricultura, da caça e da pesca (SILVA, 2007). A maioria dos alunos pertence à 1ª série do ensino médio (n= 86 ou 48%), estando na faixa entre 14 e 16 anos (n = 70 ou 39%) e com frequências mais ou menos equilibradas entre os gêneros masculino e feminino (≅50% para todas as escolas).

Durante a análise, para que as informações coletadas se convertessem em evidências, foi necessário que nelas se explicitassem situações de animais em ação. Para tanto, deu-se atenção aos verbos que tinham animais como os atores (sujeitos) nos enunciados dos alunos. Essa análise seguiu uma abordagem predominantemente qualitativa, com a intenção menos de encontrar leis universais que de analisar e compreender relatos, ainda que pouco frequentes. Para Erickson (2012), mesmo que a abordagem seja qualitativa, sempre é importante contar algumas coisas, mostrar certas frequências, dados quantitativos, para que não se limite a usar expressões como a maioria, a maior parte, alguns, muitos, sem que sejam acompanhadas pelas frequências. Assim, buscou-se mobilizar dados quantitativos sempre que possível, especificamente as frequências absolutas das ações de animais citadas pelos alunos. As ações dos animais reportadas pelos alunos foram divididas, a posteriori, em cinco grandes categorias: Ações positivas para os atores humanos (APAH), Ações negativas para os atores humanos (ANAH), Ações positivas para outros atores não humanos (APANH), Ações negativas para outros atores não humanos (ANANH) e Ações humanas negativas em relação aos atores não humanos (AHNANH).

APAH indica ações associadas aos animais que, nos enunciados dos alunos, são vantajosas ou benéficas para os atores humanos. A categoria ANAH indica ações dos animais vistas como prejuízos, desvantagens, riscos aos atores humanos. APANH, por sua vez, indica ações vistas pelos alunos como vantajosas ou benéficas para outros atores que não os humanos. Por exemplo, benefícios ou vantagens para outros animais, plantas, ecossistemas, rios, etc. Na categoria ANANH estão os animais que possuem ações interpretadas como prejuízos, desvantagens, riscos para outros atores não humanos. É importante destacar que, por vezes, o mesmo animal possui ações reconhecidas em mais de uma categoria, quando citado por alunos diferentes, por exemplo. Em relação à última categoria, AHNANH, o ser humano não recebeu qualquer citação como um animal habitante do entorno do PNMT, possivelmente por não ser considerado um animal pelos alunos, no sentido comum do termo animal. Porém, ações humanas puderam ser apreendidas quando os alunos citaram animais não humanos da região.

Resultados

Os alunos citaram alguns animais inexistentes no entorno do PNMT, como elefantes, tigres, leões e micos-leões-dourados. Esses animais, individualmente citados por menos de 5% dos alunos, não foram incluídos nas etapas posteriores da análise dos dados. Nos enunciados dos alunos se observou grande presença de animais como onças-pintadas, cobras, cachorros, araras, peixes, antas, pacas, macacos, veados, mosquitos. Animais com pequena presença incluem raposas, tamanduás, guaribas, jacurarus, formigas, urubus e outros.

Ações positivas para os atores humanos

Ações de animais diversos podem ser interpretadas como positivas para os atores humanos, o que depende também das ações desses últimos. Entre as ações dos animais reconhecidas por alunos, podemos citar ações na medicina, na segurança e no entretenimento.

A ação das abelhas de produzirem o mel que possibilita aos atores humanos a produção de remédios caseiros foi reconhecida por alunos (n= 4). As cobras, raramente representadas de modo positivo, também foram citadas graças à ação de produzirem o veneno que também é usado na produção de soros antiofídicos (n= 5), por exemplo. Os urubus, por sua vez, decompõem o lixo, limpam as cidades, segundo outros alunos (n= 6). Abelhas, cobras e urubus, desse modo, agem com desdobramentos positivos para os humanos, na percepção de todos esses alunos, apesar de o caso das cobras parecer paradoxal. Elas podem ser vistas como causando o problema para logo em seguida oferecerem a solução.

Para os alunos de famílias que agem nas plantações, algumas ações das cobras parecem ser vistas como positivas. Há cobras que devoram insetos que, por sua vez, devoram as plantas cultivadas. “Para as plantações, as cobras são guardiães”, classifica um aluno. Tamanduás também emergem em uma situação semelhante, quando agem devorando os cupins (n= 1), por vezes retratados como devoradores das casas e dos móveis (n= 2). Assim como cobras são vistas agindo como guardiães, vigilantes das plantações, e tamanduás de algum modo protegendo, indiretamente, as casas, os móveis, pode-se dizer que cães (n= 16) e gatos (n= 5) também possuem ações de vigilância, uma vez que os primeiros são citados como “ajuda na prevenção de ladrões”, ou como úteis para “vigiar nossa casa”, além da já esperada ideia de que são “os melhores amigos do homem”. Gatos, por sua vez, agem positivamente caçando e comendo ratos, em outros relatos.

Há animais citados como agindo por meio da exibição de sua beleza, com seu colorido, contribuindo para o maior embelezamento da natureza, como araras (n= 24), onças-pintadas (n= 20) e beija-flores (n= 4). Passarinhos, como os curiós (n= 5), agem cantando e “o canto é bonito para se ouvir”, afirma um aluno. Porém, aparentemente nenhum grupo animal age de modo tão polivalente nos relatos como os macacos (n= 24), cujas ações foram interpretadas pelos alunos por meio de qualidades atribuídas, como amigos, habilidosos, dóceis, inteligentes, divertidos, brincalhões. Não à toa, muitos desses e outros animais são citados como de estimação, a exemplo dos próprios macacos (n= 4), jabutis (n= 3), papagaios (n= 2), cutias (n= 2), antas (n= 1), jiboias (n= 1) e tatus (n= 1).

Ações negativas para os atores humanos

As ações negativas de animais citadas pelos alunos, em geral, incluem casos em que há algum perigo à integridade física dos atores humanos, ou às suas propriedades. As cobras representam o grupo animal com mais ações tidas como negativas entre os alunos (n= 62), quanto ao perigo à integridade física. Um em cada três alunos de toda a amostra citaram ações tidas como negativas desses animais: “matou meu tio”, “pode deixar deficiente”, “se ela pica uma pessoa, a pessoa morre”, “é um animal agressivo em todos os sentidos”. É possível que as cobras recebam, de modo generalizado, esses atributos, já que em apenas uma ocasião houve a ressalva de que nem todas as espécies são peçonhentas. Todos os alunos que citaram ações tidas como negativas das cobras também foram contrários à proteção desse grupo animal.

Ações perigosas das onças-pintadas (n= 22) são citadas sobretudo por alunos que habitam longe das escolas, em regiões afastadas do núcleo urbano de Serra do Navio. São, em geral, alunos de comunidades pequenas, ribeirinhas, que sobrevivem principalmente da caça, da pesca, da agricultura. Apenas nesses casos em que as onças-pintadas representam algum perigo imediato é que os alunos se posicionaram contrariamente à proteção do animal: “traz perigo” às pessoas, “comem gente”, “matam os homens”. Não tanto como as onças-pintadas, os cachorros ferozes também representam perigo para alguns alunos do núcleo urbano de Serra do Navio (n= 3). Tanto no caso das onças-pintadas como dos cachorros ferozes, alguns alunos também mobilizaram objetos em seus relatos (n= 3). Por exemplo, jaulas para animais ferozes selvagens, como as onças-pintadas, e correntes e focinheiras para cachorros ferozes.

Entre os invertebrados, as aranhas (n= 23), os mosquitos (n= 25) e, em menor frequência as formigas (n= 13), foram os animais com mais ações tidas como negativas. A particularidade dos mosquitos, em relação a todos os outros animais citados, é que não houve caso de aluno defendendo que os mosquitos devam ser protegidos. Todos os 25 alunos que citaram os mosquitos defenderam o extermínio desses animais, sob justificativas como “transmite doenças”, “causa a morte”, “suga muito sangue”.

Em relação às aranhas, apesar de a maioria dos alunos que as lembraram negativamente ter citado ações como “ela mata”, “causa a morte”, “ela ferra”, “é traiçoeira”, um aluno citou a ação das aranhas de construírem teias, como justificativa para a não proteção desses animais: “deixa a casa cheia de teias”.

As formigas são citadas agindo com agressividade sobretudo por alunos que agem na agricultura: “Elas ferram e dói muito”, “mordem as pessoas e causam feridas”. Em somente uma ocasião o tipo de formiga foi especificado: assaúba, nos termos do aluno. Em geral, para alunos que possuem percepção semelhante, as formigas não devem ser protegidas. Um aluno que não trabalha na agricultura e habita no núcleo urbano de Serra do Navio, porém, afirmou ser desnecessário que as formigas sejam protegidas, uma vez que “as formigas sabem se cuidar sozinhas”, ao contrário de outros animais da região.

Se, nos enunciados dos alunos, as araras agem principalmente por conta de sua beleza, o contrário pode ser dito sobre os sapos, bastante lembrados negativamente pelos alunos (n= 22), em geral por não serem considerados esteticamente favorecidos, causando desconfortos diversos. Além disso, foram citadas ações como “tem veneno”, “transmite doenças pela urina”, “transmite micoses”, “causa medo na mulherada”.

Outros animais, apesar das ações positivas, para a maioria dos alunos que os citaram, tiveram ações não muito apreciadas por outros alunos. Um desses alunos descreve habitar em um grande terreno com muitas plantas frutíferas, o que é comum nos arredores do núcleo urbano de Serra do Navio. As raposas da região, segundo o referido aluno, “elas comem muita fruta do terreno”. As guaribas, em geral mais bem vistas (n= 4) pelos alunos que o contrário, têm uma ação considerada negativa por um aluno: “Muito barulhenta”, em referência à potente vocalização desses primatas, facilmente ouvida do núcleo urbano de Serra do Navio.

Ações positivas para outros atores não humanos

Nessa categoria, estão as ações de animais aqui interpretadas como positivas para outros atores não humanos, como outros animais e até mesmo atores de interesse primordial para a geologia, por exemplo. Raramente as ações específicas de cada animal foram citadas, sendo mais comuns os enunciados genéricos com ações referentes à liberdade, ao equilíbrio ecológico e ao funcionamento da natureza.

Sapos (n= 5), cobras (n= 6) e aranhas (n= 2), outrora com ações tidas como negativas para os humanos, na presente categoria são reconhecidos por suas ações positivas para a natureza, meio ambiente, ecossistema, termos que variam conforme os enunciados dos alunos. Tal situação não ocorre com os mosquitos, que não tiveram qualquer ação positiva citada em relação a outros atores não humanos. Cobras, apesar de mais lembradas por suas ações tidas como negativas, foram por vezes lembradas por sua importância ambiental e matança desordenada pelos humanos.

A ação de dispersar sementes foi citada para vários animais: pássaros (n= 1, “fazem a distribuição de sementes na mata”), macacos (n= 1, “semeiam sementes afora”), capivaras (n= 1, “distribui sementes”), tucanos (n= 1, “ajuda a semear frutos na natureza”) e veados (n= 1, “servem como distribuição para a floresta”). Outras ações pouco citadas incluem os jacarés como “defensores de rios e lagos” (n= 1) e as araras, citadas como um tipo de “pássaro fiel ao seu par” (n= 1). No caso das ações de animais dispersores de sementes, elas podem ser encaradas como positivas tanto para as plantas que produzem tais sementes, quanto para os animais que dependem da multiplicação dessas plantas frutíferas, incluindo o próprio ser humano. Ou, ainda, como ação positiva para a floresta como um todo.

Ações negativas para outros atores não humanos

Ações de animais classificados pela Ecologia como predadores receberam algumas citações negativamente. Como exemplo, as aves de rapina conhecidas localmente como gaviões (n= 4): “matam os filhotes de outros pássaros”, “levam galinhas”, “destroem outros bichos”. Não tanto quanto os gaviões, o grande lagarto jacuraru (n= 1) também foi reportado como um animal que “come muitas galinhas” na região. As ações dos predadores contra as galinhas domésticas também podem ser interpretadas como negativas para os atores humanos associados aos animais predados.

Ações humanas negativas em relação aos animais

Nessa categoria, as ações humanas foram classificadas como negativas por limitarem notavelmente as possibilidades de ação dos demais animais, abrangendo três categorias: tráfico de animais, manutenção de animais em gaiolas e caça abusiva. Referências ao tráfico de animais foram feitas, por exemplo, em relação a papagaios (n= 5) e macacos (n= 3), como nos exemplos: “Há muito tráfico de papagaios aqui”, “Os papagaios estão incluídos no tráfico de animais”, “os homens pegam [macacos] para vender”, “Extinção e tráfico de macacos para outros países”.

A questão do tráfico de animais está relacionada a outro tema que emergiu nos enunciados dos alunos, ou seja, a manutenção de animais em gaiolas, uma vez que os animais são vendidos ou traficados para atores humanos com interesses de manter esses animais em cativeiro. Segundo os alunos, os humanos da região possuem preferência por manterem principalmente as aves em gaiolas, com destaque para curiós e outros passeriformes (n= 7), além de aves do grupo de papagaios (n= 3) e araras (n= 3). Esse tema parece ter sido do interesse específico de uma aluna, que usou a maior parte do questionário para se posicionar favoravelmente à proteção de inúmeras aves que são mantidas enjauladas pelos humanos, como “arara, papagaio, sabiá, rouxinol, curió, periquito, coruja”. Ainda acerca dessa questão, outra aluna declarou sobre o grupo das araras: “É um animal que não merece estar em gaiola”.

Por fim, as ações humanas negativas surgem quando os alunos denunciam os casos de caça abusiva, desnecessária. Como apresentado em Opções Metodológicas, a subsistência pela caça, pela pesca e/ou pela agricultura são fortes em Serra do Navio, onde há entre 15 e 20 comunidades rurais muito pequenas, com entre oito e 600 famílias, algumas das quais ribeirinhas, que habitam localidades de difícil acesso. Muitos desses alunos e suas famílias, por vezes, se sustentam da caça e da pesca. Entre os animais que emergiram nos enunciados dos alunos como de suas preferências alimentares, tiveram destaque peixes (n= 37), pacas (n= 21), tatus (n=13), cutias (n= 9), antas (n= 14), capivaras (n= 5) e veados (n= 15). Outros, menos citados nesse sentido, incluem jacarés (n= 4), tartarugas (n= 2), camaleões (n= 2), queixadas (n= 2) e guaribas (n= 2). Nos casos de tartarugas e camaleões, são citados especificamente os ovos.

As ações negativas dos humanos em relação aos animais não se referem à caça e/ou à pesca de subsistência. No caso da caça, os alunos se referem principalmente às situações em que as pessoas caçam para vender a carne dos animais ou para extrair e comercializar outras partes do corpo. Ou seja, nos enunciados dos alunos, alguns humanos da região agem negativamente caçando além do necessário, especialmente antas (n= 31), pacas (n= 28), veados (n= 15) e capivaras (n= 10). Todos esses animais são tipicamente descritos por esses alunos como em extinção em Serra do Navio. Porém, isso talvez dependa da localidade, uma vez que há casos de alunos segundo os quais os referidos animais não estão em extinção em suas localidades, sendo até mesmo "abundantes".

Por fim, os humanos foram retratados por 46 alunos como perseguindo e/ou sendo responsáveis pelo risco de extinção das onças-pintadas na região, caçadas para a comercialização do couro, entre outras motivações não especificadas pelos alunos: “Estão matando muito”, “Esse animal deve ser protegido porque é muito perseguido pelos caçadores. Sendo assim, pode acabar entrando em extinção”, “Nunca mais ouvi falar sobre elas”, “Existem poucas aqui”, “Estão sumindo muito rápido”, “o homem mata para tirar o couro”, “a pele da onça-pintada é muito cobiçada”. Dois alunos citaram outra motivação para que caçadores matem as onças-pintadas: “Muitos caçadores matam com medo”, “Quando o homem vê um animal como a onça, ele se sente ameaçado e o mata”. Muitas pessoas, sobretudo do sexo masculino, adentram as profundezas da floresta para praticar a caça por conta da necessidade de saciar a fome de suas famílias. Por outro lado, como já descrito, também há casos de caçadores cujo interesse está relacionado a comercializar os animais caçados, uma prática incontroversamente ilegal. Em ambos os casos, porém, não devem ser tão atípicos os encontros com onças-pintadas.

Discussão

Os instrumentos de pesquisa usados permitiram a revelação, por parte dos alunos, de acontecimentos que indicam as ações de inúmeros animais do entorno do PNMT, apesar de alguns animais citados não fazerem parte da fauna local.

A aplicação do princípio lógico Navalha de Occam (BAKER, 2007) demonstra que é mais simples e parcimonioso aceitar a inexistência no entorno do PNMT de animais como elefantes, girafas, avestruzes, cangurus, tigres, leões e micos-leões-dourados. Ainda que seja possível que, por meio do contrabando de animais, algum habitante do entorno do PNMT possua um mico-leão-dourado, tal hipótese mobiliza atores ou entidades demais, não sendo a hipótese mais simples. Por questões evidentes de biogeografia, é sabido que leões, cangurus e micos-leões-dourados habitam naturalmente a África, a Austrália e a Mata Atlântica (Brasil), respectivamente.

Dado o contexto geográfico do local da pesquisa, é plausível inferir que a maioria dos animais cujas ações foram descritas, faz parte, de algum modo, da realidade imediata ou aproximadamente imediata dos alunos. Isso é perceptível nos enunciados dos alunos, ricos em experiências vividas pelos próprios, ou por atores humanos associados a eles. Animais introduzidos na região pelos humanos, como cachorros e gatos, foram incluídos na análise por fazerem parte das redes locais, o que ficou evidente pela simples observação direta no momento da pesquisa.

Os animais com ações classificadas na categoria APAH podem ser vistos como potenciais aliados dos atores humanos, uma vez que as ações desses animais são interpretadas como benéficas, positivas para os interesses humanos. Os principais exemplos são cachorros e gatos, aliados na vigilância residencial e na caça aos ratos, respectivamente. São animais que possuem laços mais fortes nas redes que incluem humanos, o que também pode ser válido para os casos, específicos e dentro do contexto, dos animais silvestres citados pelos alunos como animais de estimação, como macacos, araras, antas. Cada um desses últimos casos, porém, requer mais estudos empíricos que descrevam os laços entre os humanos e os animais tidos como de estimação.

Os enunciados dos alunos indicaram como alguns animais podem ser vistos enquanto potenciais aliados em uma rede, mas forças opostas em outra. Por exemplo, as cobras como (perigosas?) aliadas quando executam ações interpretadas pelos humanos como proteção às plantações das famílias de alunos, mas como forças opostas às redes de outros alunos, como os que perderam familiares de suas redes por conta do ataque de cobras. Cachorros ferozes, outrora interpretados como aliados para a vigilância de algumas residências, podem atuar como forças opostas para as pessoas vulneráveis ao ataque desses animais, pessoas ‘vistas’ como estranhas, invasoras das residências.

Os objetos também agem nos relatos dos alunos, a exemplo de focinheiras, correntes e gaiolas. Os dois primeiros objetos podem ser vistos como atores na medida em que limitam as ações de animais como cachorros ferozes. São objetos desvantajosos para esses animais, mas vantajosos para potenciais vítimas humanas e, em alguns momentos, para os atores humanos associados (‘donos’), na medida em que tais objetos diminuem a possibilidade de problemas legais com possíveis ataques de cachorros ferozes a estranhos. As gaiolas, qualificadas negativamente pelos alunos, também limitam as ações de animais diversos e integram as redes formadas por traficantes e pessoas comuns que mantêm animais diversos presos.

Todos esses objetos dispensam a necessidade da presença humana e suas ações de vigilância. Podem ser vistos como mais que objetos, em razão de possuírem propriedades antes reservadas aos atores humanos, numa perspectiva latouriana (KHONG, 2003). Por exemplo, Latour (2012) cita as ameaçadoras cercas de arame farpado que substituem as ações de vigilância dos pastores e dos cães, mantendo assim submissos e quietos os carneiros. Não que haja, para Latour, intencionalidade nos objetos como as correntes, focinheiras e gaiolas. A intencionalidade surge como produto das relações, intercâmbios entre os atores humanos e os atores não humanos (PYYHTINEN; TAMMINEN, 2011).

Objetos como correntes e focinheiras podem ser interpretados aqui como aliados contra cachorros ferozes. Kellert (1996) aponta que, além das relações positivas e solidárias entre os humanos e o mundo natural, esse último também é um poderoso estimulador de sentimentos hostis e negativos. O autor cita cobras, aranhas, grandes carnívoros, tubarões, ventos fortes, pântanos e cavernas escuras como elementos que podem despertar sentimentos destrutivos, ao mesmo tempo em que podem incentivar um distanciamento saudável e até mesmo respeito pela natureza. Ao medo, por vezes destrutivo, que leva o homem a matar animais como os lobos no Hemisfério Norte, Kellert chama de terofobia, o medo da besta como uma criatura irracional, violenta, insaciável. Matar a besta tem a ver com o medo, mas também com a provação da masculinidade. Na presente pesquisa, o medo despertado não somente pelos cachorros ferozes que podem ser controlados por correntes e focinheiras, mas, principalmente, o medo despertado pelas onças-pintadas em alguns caçadores citados pelos alunos - também reportado por Almeida, Maniva e Campos (2015) -, dialoga bem com o conceito de terofobia, de Kellert. Apesar disso, Kellert (1996) faz uma ressalva: temer certos aspectos da natureza é importante para que se desenvolva um sentimento de admiração por ela, como toda divindade que possui tanto o poder de aterrorizar quanto de expressar amor e compaixão.

Para finalizar, é preciso voltar a questionar: Até que ponto as ações dos animais podem contribuir para abordagens interdisciplinares no ensino de Biologia? Latour (2012) propõe que para o estudo das redes é indispensável seguir os atores, que sempre são muitos, como um enxame de abelhas. Aqui, a aplicação dos instrumentos de pesquisa junto aos alunos de escolas do entorno de um parque nacional de floresta tropical, evidenciou ações de inúmeros animais. Usar como porta de entrada qualquer dos enunciados dos alunos e rastrear as ações citadas de qualquer dos animais em questão pode ter desdobramentos diferentes, com ricas possibilidades de interação entre disciplinas diversas.

Não é inesperado que o ensino de Biologia dê protagonismo aos seres vivos, como animais, plantas, microorganismos, tipicamente até omitindo as ações humanas em muitos temas, como botânica, zoologia, evolução. No último tema, as ações humanas se concentram basicamente nos trabalhos de Lamarck e Darwin. Os resultados apresentados anteriormente evidenciam possibilidades de também valorizar as ações humanas em inúmeros temas no ensino de Biologia, uma vez que as próprias ações dos animais tipicamente se relacionam às ações humanas nas realidades imediatas dos alunos (por exemplo, cobras atacando humanos e humanos atacando cobras).

Por outro lado, o interesse principal do presente artigo são as ações dos animais para as abordagens interdisciplinares no ensino de Biologia. Nesse sentido, uma das lições oriundas dos resultados se refere à multiplicidade de interpretações sobre as ações de cada animal. As abelhas, por exemplo, não possuem exclusivamente as ações clássicas de carregar o grão de pólen de uma flor a outra. Também possuem ações aproveitadas pelos atores humanos na medicina popular.

A multiplicidade de ações dos animais (e as interpretações humanas disso) torna possíveis as abordagens interdisciplinares no ensino de Biologia. Por exemplo, a exibição do colorido pelas araras pode ser um gatilho para interações entre a Biologia e as Artes Visuais, ao passo que os cantos dos passarinhos podem interagir com a Música. Nas áreas da Medicina e da Saúde Pública, há possibilidades de levar em conta as ações locais de cobras, ratos e urubus. As ações de vigilância de cães ferozes representam oportunidades de interação com a Sociologia e com a Filosofia, uma vez que cachorros parecem substituir câmeras de vigilância e outros dispositivos técnicos para a prevenção contra ladrões. Cachorros ferozes podem “vigiar e punir” (não somente) criminosos, para adaptar aqui uma expressão clássica em Foucault (1987). Finalmente, as ações dos seres humanos e demais animais em temas como tráfico de animais podem ser objetos de abordagens interdisciplinares com o Direito Ambiental, ao passo que a caça de subsistência dialoga bem com a Sociologia, Antropologia e Economia. Quanto às representações dos alunos sobre a fauna local, quando emergem animais como girafas, elefantes, tigres, leões, etc., tem-se a possibilidade de interações com a Geografia (Biogeografia), quando são questionadas as razões pelas quais esses grupos de animais não fazem parte da fauna local.

Uma observação chamativa se refere à pouca emergência das plantas nos relatos dos alunos, o que poderia conduzir a discussão para o conceito de cegueira botânica (NEVES; BUNDCHEN; LISBOA, 2019), um fenômeno no qual as plantas são ignoradas ou colocadas em segundo plano diante do protagonismo dos animais. Aqui, poderíamos ir além e falar de cegueiras fúngica, microbiológica, geológica, astronômica, dada a pouca presença de elementos de outros domínios da natureza nos enunciados dos alunos. No caso das plantas, elas emergem timidamente quando os alunos citam sobre as plantações de suas famílias e sobre as ações dos animais que dispersam sementes. Isso decorre da opção metodológica do presente trabalho por solicitar que os alunos se expressassem sobre as ações dos animais. Sabe-se que o discurso é uma construção e uma simples alteração na voz verbal de alguns enunciados já traz o protagonismo para as plantas (de tucanos que “ajudam a semear os frutos na natureza” para “frutos que são semeados na natureza por tucanos”).

O caráter exploratório da presente pesquisa permitiu que múltiplos animais e suas ações emergissem nos enunciados de alunos de ensino médio no entorno de um parque nacional de floresta tropical. Outras pesquisas podem seguir qualquer dos acontecimentos enunciados pelos alunos, como as ações de animais (aliados ou não) nas plantações locais, as ações de animais predadores de animais domésticos, como gaviões e jacurarus, as ações de animais da fauna urbana, como cachorros, ratos, urubus, e as ações humanas frente aos demais animais. Muitas dessas situações relatadas representam acidentes, rupturas, golpes que evidenciam as ações de atores diversos (LATOUR, 2012).

A continuação das pesquisas pode rastrear novas situações que evidenciem as ações de muitos de possíveis atores não citados por alunos, como fungos, astros, etc., tornando assim mais ricas as possibilidades de abordagem interdisciplinar para o ensino de Biologia. Pode-se dizer que o presente estudo tem desdobramentos principalmente para a interdisciplinaridade instrumental, pois as evidências são analisadas no sentido de propor a valorização das ações dos animais como instrumento para a melhoria do ensino de Biologia, com inevitáveis desdobramentos para a melhoria no ensino de outras disciplinas. Também se pode falar em interdisciplinaridade crítica, na medida em que trabalhos em Educação Ambiental problematizem, questionem e visem contribuir para a modificação de algumas relações entre atores humanos e outros atores, tidas como abusivas, a exemplo do tráfico de animais reportado por vários alunos.

Conclusão

O objetivo da pesquisa foi analisar evidências para as seguintes questões: Quais ações dos animais são percebidas por alunos de ensino médio? Até que ponto as ações percebidas contribuem para abordagens interdisciplinares no ensino de Biologia? No cenário apresentado a partir dessas questões e dos enunciados de alunos, as múltiplas ações dos animais representam variadas possibilidades de abordagens interdisciplinares no ensino de Biologia, que podem levar a discussão para os rumos de áreas como a Geografia, o Direito Ambiental, a Filosofia e as Artes Visuais. Outras questões ou perguntas de pesquisa podem ser geradas a partir de cada acontecimento enunciado pelos alunos, trazendo novas evidências sobre os acontecimentos específicos do contexto investigado. Espera-se que o cenário aqui apresentado também inspire questões ou perguntas de pesquisa em outros contextos ou localidades.

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Recebido: 19 de Julho de 2022; Aceito: 10 de Abril de 2023

Autor correspondente: david.almeida@alumni.usp.br

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