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Ciência & Educação

Print version ISSN 1516-7313On-line version ISSN 1980-850X

Ciência educ. vol.29  Bauru  2023  Epub Sep 20, 2023

https://doi.org/10.1590/1516-731320230042 

Artigo Original

Currículo de formação inicial de professores de Matemática e a construção do repertório profissional

The curriculum for the early education of Mathematics teachers and the construction of their professional repertoire

Maria Izabel Barbosa de Sousa1 
http://orcid.org/0000-0003-0939-4467

Sidilene Aquino de Farias1 
http://orcid.org/0000-0003-3866-207X

1Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Manaus, AM, Brasil


Resumo:

Diante das demandas socioculturais que perpassam pela Educação, a formação e a prática pedagógica do professor de Matemática precisam ser reavaliadas constantemente, questionando-se os conhecimentos necessários para atualizar esse profissional. Nesse contexto, o objetivo deste estudo consistiu-se em analisar a mobilização de conhecimentos docentes, à luz do Modelo de Formação de Professores de Lee Shulman, nos currículos dos cursos de Licenciatura em Matemática de três Instituições de Educação Superior públicas localizadas na Região Norte do Brasil. Para tanto, realizou-se a Análise Documental dos Projetos Pedagógicos de Curso e das Matrizes Curriculares, mediante Análise Textual Discursiva. Os resultados sinalizam que os documentos integraram conhecimentos específicos, didático-pedagógicos, socioculturais e histórico-filosóficos em suas propostas, perspectiva que tangencia as categorias do construto de Shulman e estimula a construção do Conhecimento Pedagógico do Conteúdo. Nesse aspecto, esses cursos propõem uma formação docente com vistas ao enfrentamento de situações adversas que emergem da prática pedagógica escolar.

Palavras-chave: Formação inicial do professor; Ensino de matemática; Avaliação do currículo; Ensino superior; Prática pedagógica

Abstract:

Due to the numerous demands concerning education, it is essential to continuously debate the knowledge required to educate mathematics teachers as professionals and to challenge their pedagogical practices. The purpose of this study was to examine the mobilization of professional knowledge in the curricula of mathematics degrees at three public higher education institutions in Brazil's Northern Region in the light of Lee Schulman's Teacher Training Model. These institutions' pedagogical curricula were the subject of a documentary analysis that looked at the data through discursive textual analysis. The findings show that the curricula included conceptual, didactic-pedagogical, sociocultural, and historical-philosophical knowledge in their recommendations for training. As a result, this knowledge crosses over with Schulman's construct categories and fosters the development of pedagogical content knowledge. In this regard, these courses propose teacher training with a view to facing adverse situations that emerge from pedagogical practice in schools.

Keywords: Initial teacher training; Mathematics teaching; Curriculum evaluation; Higher education; Pedagogical practice

Introdução

No prisma da formação inicial de professores de Matemática, as pesquisas que abordam essa temática ocupam um espaço de discussão cada vez mais significativo nas comunidades acadêmicas do país, pois recorrentemente os conhecimentos necessários para formar um educador são tomados como pauta para debates (CALDATTO; RIBEIRO, 2020; OLIVEIRA; FIORENTINI, 2018; TEIXEIRA; BRANDALISE, 2020). Em vista disso, a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica, presente na Resolução CNE/CP nº 2/2019 (BRASIL, 2019), destaca um conjunto de habilidades requeridas para o exercício docente, cujas licenciaturas podem subsidiar o seu desenvolvimento mediante a articulação de uma gama de conhecimentos.

Nesse horizonte, um aspecto muito discutido e criticado na formação de professores, em especial daqueles que ensinam Matemática, diz respeito à ausência de comunicação entre o conhecimento do conteúdo específico e as distintas maneiras de abordá-lo, posto que a área disciplinar e a pedagógica ainda parecem duas vertentes dispersas e desconexas. Assim, evidencia-se uma atenção aos esforços empreendidos nos cursos de Licenciatura em Matemática quanto ao seu alinhamento com as necessidades formativas dos discentes (CALDATTO; RIBEIRO, 2020; GATTI; BARRETTO; ANDRÉ, 2011; MOREIRA; FERREIRA, 2013).

A perspectiva em questão não concerne somente a uma análise da estrutura e disposição dos componentes curriculares, não obstante, à integração de conhecimentos mobilizados nesses espaços. Esse quadro está para além da superação do modelo formativo 3+1, três anos cursando disciplinas do conteúdo específico e um ano de disciplinas de natureza pedagógica (MOREIRA, 2012), privilegiando-se a difusão de múltiplas dimensões dos conhecimentos e princípios pertinentes à prática pedagógica do educador matemático (CURY; BISOGNIN, 2017; OLIVEIRA; FIORENTINI, 2018).

Uma formação docente, na qual conhecimentos teóricos e pedagógicos são abordados de maneira articulada e sem fragmentações, demonstra-se crucial para que o professor não compreenda a sala de aula como um momento de simples aplicação do que aprendeu na academia. Por essa razão, sublinha-se que o domínio de conhecimentos específicos nem sempre viabilizará um ensino eficaz sobre determinado conteúdo, já que muitos licenciandos desconhecem o significado dos conceitos aprendidos ao longo do seu curso e/ou como serão transfigurados e readaptados em sala de aula. Dito isso, há uma necessidade de superar a dicotomização coexistente entre os especialistas que projetam o currículo e os professores que o executam no fazer diário (AUGUSTO; AMARAL, 2018; PIMENTA, 2018).

Em diálogo com o cenário apresentado, Shulman (2015a, 2019) propõe um Modelo para Formação de Professores por meio do qual o educador pode construir um repertório de conhecimentos profissionais, que conciliam tanto o conteúdo quanto a pedagogia e podem ser desenvolvidos e aprimorados ao longo da formação docente inicial e continuada, subsidiando a práxis educativa em diferentes contextos e situações. Diante do exposto, neste estudo1, pretendeu-se analisar a mobilização de conhecimentos docentes, à luz do Modelo de Formação de Professores de Lee Shulman, nos currículos dos cursos de Licenciatura em Matemática de três Instituições de Educação Superior públicas localizadas na região Norte do Brasil.

Conhecimentos docentes e a construção do repertório profissional do professor de Matemática

Na década de 1970, as pesquisas em ensino concernentes à formação de professores direcionavam-se aos conhecimentos específicos da disciplina que um docente deveria dominar, e à apreensão de técnicas reproduzíveis em sala de aula. Em vista disso, desconsideravam questões relativas aos demais conhecimentos inerentes à prática educativa, cujo questionamento “o que ensinar” cedeu espaço para o “como ensinar” (BORN; PRADO; FELIPPE, 2019; COLLING; RICHIT, 2019).

Segundo Almeida et al. (2019), estudos acerca das teorizações referentes à natureza do conhecimento profissional docente ganharam força desde os anos 80 em vários países, em que alguns teóricos se consolidaram ao pesquisar os conhecimentos fundamentais à ação pedagógica, bem como sua relação com a formação de professores (CARVALHO; GIL-PÉREZ, 2011; PIMENTA, 2018; SCHÖN, 2000; TARDIF, 2014). Com base nesses autores, a compreensão de conhecimentos docentes traduz-se em capacidades, habilidades e atitudes associadas à identidade e experiência profissional, que são emergentes das relações do professor com sua formação e o ambiente escolar, social, cultural, político, dentre outros.

Lee Shulman, a partir do que denominou como o Paradigma Perdido na Pesquisa sobre Ensino – a desvalorização que o conteúdo específico e a forma como ensiná-lo estava recebendo na formação do professor –, dedicou-se a estudar a interação entre conteúdo e pedagogia, reconhecendo que precisam ser trabalhados de forma articulada. Ademais, tal vínculo não ocorre de modo inerte, pois está interligado ao desenvolvimento de um arcabouço de conhecimentos (BORN; PRADO; FELIPPE, 2019).

Diante disso, instituiu a Base de Conhecimentos para o Ensino, a qual está organizada conforme sete categorias de conhecimentos necessários à formação de professores: conhecimento do conteúdo; conhecimento curricular; conhecimento pedagógico do conteúdo; conhecimento pedagógico geral; conhecimento dos alunos e de suas características; conhecimento de contextos educacionais; conhecimento dos fins, propósitos e valores da educação e de sua base histórica e filosófica (SHULMAN, 2015a, 2019).

Em conformidade com Born, Prado e Felippe (2019), o construto do autor salientou a existência de uma rede multifacetada de conhecimentos e habilidades peculiares do ato de ensinar. Em função disso, Shulman (2015a, 2019) adverte que não é suficiente o docente dominar o conteúdo específico se desconhece sua pertinência, o momento oportuno e as estratégias para ensiná-lo, assim como sua conexão com outros conteúdos e áreas afins. Além disso, é imprescindível atentar-se aos processos que perfazem a aprendizagem dos discentes, considerando seus conhecimentos passados, como foram desenvolvidos e suas consequências para o desempenho escolar/acadêmico.

Em relação às categorias do modelo formativo, o Conhecimento do Conteúdo versa sobre a compreensão teórica da disciplina e sua organização na mente do professor. Por esse lado, abarca o entendimento de significados conceituais, proposições particulares e generalizadas, princípios, propriedades, demonstrações, definições e regras, além da percepção para ponderar sobre o que carece ser apresentado. Ainda, recomenda-se que o professor reconheça as estruturas da sua extensão disciplinar e constitua relações entre os objetos de estudo interna e externamente, ou seja, atendendo a pontos gerais e secundários do conteúdo (SHULMAN, 2015a, 2019).

O Conhecimento Pedagógico do Conteúdo (CPC) refere-se à compreensão de como subsidiar a aprendizagem de um tópico específico, definir-se-ia como os métodos de ensino. O educador necessita entender o motivo pelo qual leciona determinados conteúdos e a razão de possuírem um destaque central ou periférico na disciplina (SHULMAN, 2015a, 2015b). Por conseguinte, essa categoria permite a transposição de um conhecimento acadêmico em um conhecimento escolar, levando em consideração fatores, instrumentos, técnicas e princípios associados à aprendizagem dos alunos, tais como:

[...] assuntos da área regularmente ensinados, as formas mais úteis de representar essas ideias, as mais poderosas analogias, ilustrações, exemplos, explicações, e demonstrações – em uma palavra, os caminhos para representar e formular um assunto para torná-lo compreensível para os outros. [...] Inclui também uma compreensão do que torna a aprendizagem de tópicos fáceis ou difíceis: as concepções e pré-concepções que estudantes de diferentes idades carregam para a aprendizagem dos tópicos e lições mais frequentemente ensinadas (SHULMAN, 2019, p. 284, tradução nossa).

O Conhecimento Curricular, segundo Shulman (2015a, 2019), não corresponde apenas ao conhecimento do conteúdo programático das disciplinas, contudo, à capacidade de construir e estabelecer articulações. Tais conexões podem se manifestar de modo lateral - a partir da percepção dos conteúdos que os alunos estão aprendendo em outras disciplinas e como trabalhá-los em suas aulas paralelamente – e/ou vertical – com conteúdos que antecedem e sucedem outros -, logo, torna-se importante analisar os materiais e programas viáveis para a aprendizagem dos estudantes com uma visão holística.

Em convergência, o professor precisa delinear os recursos de ensino que tratam e exemplificam o conteúdo com vistas às circunstâncias particulares da sala de aula e ao manejo de textos, softwares, programas, materiais visuais, jogos, entre outros. Portanto, espera-se que possua um nível de amadurecimento e familiarização com os materiais curriculares utilizados em outros componentes, relacionando a sua forma de trabalho com áreas afins.

O Conhecimento Pedagógico Geral consiste nas estratégias amplas de gestão e organização da sala de aula, ademais, engloba aspectos externos como a compreensão das características gerais dos discentes e dos contextos sociais coparticipantes do processo educativo (SHULMAN, 2015a). Desse modo, além do conhecimento específico da área e de como ensiná-lo, preconiza-se que o professor engendre um repertório de conhecimentos para compreender os contextos, valores e metas educacionais, assim como as bases históricas e filosóficas que circunscrevem o processo formativo.

O Conhecimento dos Alunos e de suas Características exige que o professor conheça seus alunos e como assimilam para que encontre diferentes modelos de ensino e proporcione a chance de todos atingirem a aprendizagem. Em virtude disso, é fundamental considerar os conhecimentos prévios, as experiências passadas (afinidade/domínio com um objeto de conhecimento), os atributos específicos e gerais, os processos cognitivos, comportamentais e socioemocionais, as diferenças culturais e sociais que se manifestam dentro e fora da sala de aula (SHULMAN, 2015a, 2019).

Paralelamente, o Conhecimento de Contextos Educacionais versa sobre questões socioculturais, políticas e econômicas, variando desde o funcionamento da sala de aula, escola, governança e financiamento até o caráter das comunidades e culturas, nas quais as instituições de ensino estão inseridas (SHULMAN, 2015a, 2015b). Assim, é importante que o professor se inteire sobre questões que perpassam pelo ambiente escolar ao se sensibilizar com as realidades de seus alunos e considerar os pormenores que afetam o ciclo formativo.

Por fim, o Conhecimento dos Fins e Valores Educacionais corresponde à compreensão dos modelos e documentos educacionais vigentes além dos processos históricos e filosóficos subjacentes a sua formulação. Em vista disso, torna-se fundamental que o professor perceba o conhecimento, a Educação e a sua prática como um movimento dinâmico e contínuo de reflexão e (des)(re)construção (SHULMAN; SHULMAN, 2016). Nesse horizonte, e em concordância com Shulman, um profissional necessita desenvolver os hábitos do coração, isto é, “[...] integridade, valores morais, um senso de responsabilidade, uma missão, um compromisso” (BORN; PRADO; FELLIPE, 2019, p. 7).

Dentre as categorias apresentadas, Shulman (2015a, 2015b) enfatiza que o CPC possibilita a integração de conhecimentos, ótica que condiz com a rede de conexões presente entre todas as categorias do seu construto. Nesse sentido, o CPC promove a distinção de um matemático e um professor de Matemática, cujo último pode desenvolver um complexo de conhecimentos imprescindíveis ao exercício da docência e o currículo do seu curso de formação inicial desempenha um papel fundamental na garantia dessa perspectiva.

Reflexões sobre o conhecimento pedagógico do conteúdo para a formação inicial do professor de Matemática

O modelo formativo de Shulman (2015a, 2019), com reflexões sobre a formação inicial e continuada de professores de Matemática, desencadeou o interesse por pesquisas centralizadas na Base de Conhecimento para o Ensino e nas relações entre os conhecimentos teóricos e didático-pedagógicos. Tais pesquisas fomentam discussões acerca dos cursos de Licenciatura em Matemática (LM), destacando o Conhecimento Pedagógico do Conteúdo (CPC) como um dos elementos cruciais ao processo formativo do futuro professor (CALDATTO; RIBEIRO, 2020; CURY; BISOGNIN, 2017; TEIXEIRA; BRANDALISE, 2020).

De acordo com Caldatto e Ribeiro (2020), o interesse por pesquisas acerca do conhecimento profissional do professor que ensina Matemática ganhou destaque nas últimas décadas, de modo que tais estudos foram inspirados no modelo original de Shulman e expandidos conforme as especificidades de cada área. O construto do autor representa uma das categorizações mais pertinentes ao conhecimento docente em nível internacional, sobretudo pela capacidade de identificar o CPC em diferentes contextos onde ocorra a mobilização de conhecimentos para transformar um conteúdo em um objeto de ensino.

Nessa direção, baseados no CPC defendido por Shulman (2019) e com uma visão orientada para a Matemática, Ball, Thames e Phelps (2008, p. 395) identificaram o Conhecimento Matemático para o Ensino, que pode ser definido como “o conhecimento matemático necessário para levar adiante o trabalho de ensinar matemática” . Nesse sentido, para os autores, o Conhecimento do Conteúdo (SHULMAN, 2019) pode ser subdividido em Conhecimento Comum do Conteúdo e Conhecimento Especializado do Conteúdo: o primeiro não é exclusivo do professor de Matemática, dado que os profissionais de outros cursos de Ciências Exatas, como Física e Engenharias, também podem dominar e ministrar disciplinas relacionadas ao ensino de Matemática; por sua vez, o segundo é próprio do professor de Matemática, pois não só compreende o conteúdo como possui capacidade para ensiná-lo em situações adversas (CURY; BISOGNIN, 2017).

Mediante o construto de Shulman (2005, 2019) e uma reinterpretação dos escritos de Ball, Thames e Phelps (2008), Carrillo-Yañez et al. (2018) propuseram o Modelo para o Conhecimento Especializado do Professor de Matemática, que consiste em conhecimentos de distintas naturezas para o ensino da Matemática. De modo geral, está estruturado de acordo com: o Conhecimento das Matemáticas, subdividido entre o conhecimento profundo, estrutural e prático dos temas matemáticos, com atenção a significados, definições, propriedades, demonstrações e articulações; o Conhecimento Didático do Conteúdo, que versa sobre características e padrões da aprendizagem e do ensino da Matemática, ou seja, entendimento de como os alunos aprendem, dos variados métodos de ensino, recursos e materiais didáticos e das diretrizes propostas para gerir o ambiente educacional; o Conhecimento das Crenças do Professor de Matemática e das bases filosóficas que circundam o ensino e aprendizagem da Matemática.

No cerne desses modelos, surgem discussões acerca de como propor um currículo de formação inicial para nortear a prática pedagógica do professor. Nesse contexto, ao analisar o perfil e a situação dos cursos de Licenciatura em Matemática, Nacarato (2006) afirma que as disciplinas específicas ainda são fundamentadas majoritariamente no modelo técnico-formal e, em convergência, Oliveira e Fiorentini (2018) compactuam que a formação matemática ainda permanece distanciada ou desarticulada da didático-pedagógica nesses cursos. Por esse motivo, é indispensável compreender a importância de integrar o conhecimento específico ao metodológico, não incumbindo a responsabilidade quanto à abordagem de métodos de ensino e situações didáticas somente aos componentes curriculares didático-pedagógicos.

Ainda, consoante a Fiorentini e Oliveira (2013), pesquisadores, professores formadores, egressos e licenciandos têm tecido críticas abundantes sobre os cursos de licenciatura – não apenas os de Matemática – e os currículos propostos. Tais desaprovações concernem “[...] às disciplinas específicas, às metodologias de ensino das aulas, ao distanciamento ou desconexão entre as práticas de formação e as práticas de ensinar e aprender na escola básica, à falta de diálogo ou interrelação entre as disciplinas específicas e as de formação didático-pedagógica [...]” (FIORENTINI; OLIVEIRA, 2013, p. 919).

Desse modo, indaga-se a posição e o prestígio que os conhecimentos matemáticos específicos e pedagógicos devem reclamar para si nos cursos de formação inicial. Ao refletirem sobre o lugar da Matemática na formação acadêmica, Moreira e Ferreira (2013) argumentam que é primordial ter em mente os diferentes saberes mobilizados na prática docente, além das abordagens que conectam a matemática escolar com as demais.

Haja vista que as mudanças curriculares demandam o emprego de mecanismos alternativos, lança-se uma discussão quanto aos demais conhecimentos imprescindíveis ao exercício profissional. Pautados no modelo de Shulman (2019), Harris, Mishra e Koehler (2009) destacam o conhecimento tecnológico como necessário à docência desde que seja articulado com os conhecimentos disciplinares e pedagógicos, perspectiva que requer uma compreensão profunda e essencial acerca do domínio da tecnologia e de suas vantagens na disseminação de informações e resolução de problemas (COLLING; RICHIT, 2019).

Não obstante, Caldatto e Ribeiro (2020) acentuam a inevitabilidade de compreender-se que o CPC não pode ser restringido ao caráter pedagógico. Em função disso, é indispensável estabelecer uma relação equilibrada entre forma e conteúdo a fim de que não ocorra uma predisposição à supervalorização somente da dimensão pedagógica, assim, defende-se uma proposta formativa que prestigie todos os componentes do CPC e promova situações para a construção e desenvolvimento de tais dimensões.

Em síntese, nota-se que o Conhecimento Pedagógico do Conteúdo desempenha um papel e um significado distinto de acordo com o perfil delineado por cada curso de Licenciatura em Matemática. Portanto, o licenciando pode construí-lo ao longo da vivência em disciplinas específicas, didático-metodológicas e teórico-práticas ao passo que o professor em exercício o constitui e aprimora no decorrer de sua experiência profissional.

Percurso metodológico

Com a finalidade de desenvolver um estudo a partir dos conhecimentos formativos presentes no currículo prescrito para a formação de professores de Matemática, propõe-se uma abordagem de Pesquisa Qualitativa por meio de Análise Documental. Esse tipo de análise vale-se de materiais que representam uma fonte valiosa de dados, os quais são sistematizados com vistas à compreensão do fenômeno central estudado (LÜDKE; ANDRÉ, 2013).

A Análise Documental favorece a identificação, organização, descrição e discussão de informações. Em vista disso, neste estudo, tomou-se como foco os currículos dos cursos de Licenciatura em Matemática (LM) das Instituições de Educação Superior (IES) públicas da cidade de Manaus: Universidade Federal do Amazonas (UFAM); Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas, câmpus Manaus Centro (IFAM-CMC); Universidade do Estado do Amazonas (UEA).

A escolha por mais de uma IES sucedeu-se pela possibilidade de analisar alguns elementos – perfil do licenciando, competências, habilidades, objetivos dos cursos, disciplinas ofertadas, dentre outros – intrínsecos a cada instituição e como podem promover a mobilização do Conhecimento Pedagógico do Conteúdo. Com o propósito de prevenir e amenizar os riscos procedentes da investigação, esta pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da UFAM e aprovada conforme parecer consubstanciado.

Isso posto, foi realizada uma leitura profunda nesses documentos a fim de verificar aspectos relacionados ao processo formativo do licenciando. Assim, foi possível analisar a consonância entre as propostas presentes nos documentos oficiais que norteiam os cursos de LM, as metas correntes nos Projetos Pedagógicos de Curso (PPCs), as Matrizes Curriculares (MCs) e as respectivas ementas das disciplinas.

A partir disso, foram considerados os seguintes documentos disponibilizados pelas coordenações dos cursos ou encontrados nos sites das instituições: na UFAM, a Matriz Curricular (MC) (versão 2011) e o PPC de LM (versão 2019); no IFAM, a MC (versão 2014) e o PPC de LM (versão 2019); na UEA, as MCs (versão 2005 e 2013). A escolha pelas MCs decorreu em razão das restrições para o acesso de alguns PPCs, seja pela ausência de resposta ao contactar virtualmente as coordenações por e-mail ou inviabilidade de dirigir-se pessoalmente às instituições devido ao cenário pandêmico.

Desse modo, as análises e discussões fundamentaram-se em seis documentos: dois PPCs que já incluem suas duas MCs; quatro MCs nos demais casos em que não se acessou o PPC. Em termos de códigos, cada documento refere-se a um Curso de LM, os quais foram denominados de A até F, além disso, seguiu-se um critério para agrupá-los: tomando os Cursos A e B como exemplo, ambos pertencem a mesma IES, contudo, o segundo representa a versão corrente seguida pela instituição e, analogamente, o mesmo preceito vale para os Cursos C e D e Cursos E e F.

Para analisar, estruturar, interpretar e compreender os dados coletados, utilizou-se a Análise Textual Discursiva (ATD) (MORAES; GALIAZZI, 2011). A ATD é compreendida como um processo auto-organizado direcionado à construção da compreensão de novos conhecimentos concernentes a um objeto de estudo e apoiado na análise de materiais textuais.

No tocante aos seus procedimentos, segundo Moraes e Galiazzi (2011), estão estruturados em um ciclo composto de três etapas descritas como desmontagem dos textos, estabelecimento de relações e captando o novo emergente. Tomando os PPC e as MCs como corpus da análise, na primeira etapa, também descrita como processo de unitarização, os documentos foram avaliados e esmiuçados para identificar enunciados e formular as unidades de significado; na segunda fase, também conhecida como o processo de categorização, ocorreu a articulação e combinação entre as unidades de significado; na última etapa, realizou-se o aprofundamento dos materiais da análise dos dois momentos anteriores, originando metatextos que viabilizaram o nascimento de uma nova compreensão sobre o todo.

Para tanto, elaborou-se um protocolo prévio quanto aos aspectos pertinentes para análise nesses documentos, tais como: organização e objetivos dos cursos; perfil a ser formado; competências e habilidades do licenciado; núcleos de conhecimento; ementas das disciplinas; Prática como Componente Curricular; estrutura do Estágio Curricular. Em vista disso, cada fase da ATD foi pensada em consonância com esses pontos, o que orientou a seleção de unidades de significado, a categorização de termos semelhantes e a produção de metatextos com vistas à disseminação de discussões sobre a temática desse estudo.

Resultados e discussão

Com o propósito de lançar luz a aspectos, características, convergências e divergências explícitas e/ou implícitas nas propostas formativas delineadas por cada IES, apresenta-se a Análise Documental realizada nos currículos de LM. Nesse sentido, como o acesso restringiu-se aos projetos dos Cursos B e D, ambos foram evidenciados com mais recorrência nas discussões e proporcionaram uma compreensão mais efetiva acerca do objeto de estudo.

Sendo assim, realizou-se uma comparação para possíveis reflexões acerca do perfil disposto em cada documento, paralelamente verificando-se o cumprimento perante as orientações e normativas oficiais vigentes que regem os cursos de formação inicial de professores e, especificamente, daqueles que ensinam Matemática. Em vista disso, a análise foi organizada a partir de dois grandes temas: configuração curricular dos cursos de Licenciatura em Matemática; construção do repertório profissional do licenciando em Matemática.

Configuração curricular dos cursos de Licenciatura em Matemática

Com a finalidade de caracterizar os cursos de LM, foram consideradas as ementas anexadas aos PPCs, de modo que os componentes curriculares foram agrupados em cinco categorias (quadro 1) intituladas da seguinte forma: Conhecimento Específico; Conhecimento de Ciências Afins; Conhecimento Didático-Psicopedagógico; Conhecimento Integrador; Conhecimento Político.

Quadro 1 Configuração curricular dos cursos de LM das IES públicas de Manaus 

Organização curricular Carga Horária (h)
Subcategoria Componentes Curriculares Curso A Curso B Curso C Curso D Curso E Curso F
Conhecimento Específico Matemática Elementar 120 260 60 120
Matemática Aplicada 140 300 240 240 150 60
Álgebra 320 240 240 240 270 210
Análise 520 480 300 360 420 390
Geometria 400 300 120 120 270 240
Total 1.500 1.580 900 900 1.170 1.020
Conhecimento de Áreas Afins Língua Portuguesa 60 60 60 60 60 60
Física 160 160 90 90 270 270
Química 60
Probabilidade e Estatística 80 60 60 60 60 60
Computação 80 60 60 60 120
Total 440 280 270 270 450 510
Conhecimento Didático-Psicopedagógico Didática Geral 60 60 60 60 60 60
Didática das Ciências 60
Psicologia da Educação 60 60 120 120 60 60
Educação Especial 60 60 60 60 120
Língua Brasileira de Sinais 60 60 60 60 - 60
Total 300 240 300 300 240 180
Conhecimento Integrador Metodologia do Trabalho Científico e da Pesquisa em Educação 60 100 60 60 60 120
Ensino Teórico-Metodológico-Prático da Matemática 220 220 345 420 360 225
Atividades Acadêmico-Científico-Culturais 200 200 200 200 200 200
Prática como Componente Curricular 420 400 465 420 420 420
Estágio Curricular Supervisionado 400 400 405 420 420 420
Trabalho de Conclusão de Curso 20 20 120 240 120
Total 1.320 1.340 1.595 1.760 1.460 1.505
Conhecimento Político Legislação do Ensino 40 60 60 60 60 60
História da Matemática 40 60 60 60 60 60
História e Filosofia das Ciências e da Educação 80 60 60 105
Educação, Cultura e Sociedade 80 160 30 60 45
Total 240 340 150 180 180 270

Fonte: Elaborado pelas autoras.

A categoria Conhecimento Específico diz respeito às disciplinas com conteúdos técnico-científicos, puros da Matemática, que englobam desde os conceitos mais elementares, próprios da Educação Básica, até os mais avançados, os quais são estudados apenas no Ensino Superior e designados conforme as grandes e demais áreas da Matemática sinalizadas no Parecer CNE/CES nº 1.302/2001 (BRASIL, 2001b). Ao encontro dessa ótica, os componentes curriculares desse eixo foram subdivididos em: Matemática Elementar; Matemática Aplicada; Álgebra; Análise (Cálculo Diferencial e Integral; Análise Real e Complexa); Geometria.

Como exemplo, a disciplina Geometria I do Curso D (UFAM, 2019, p. 43) estabelece em seus objetivos “[...] conhecer as definições formais de diversos entes geométricos; demonstrar teoremas e aplicá-los na resolução de problemas conceitos formais; mostrar a conduta adequada no tratamento dos assuntos estudados [...]”. No construto de Shulman (2015a, 2019), essas ações referem-se ao conhecimento do conteúdo a ser ensinado mediante suas definições, regras e propriedades, já Carrillo-Yañez et al. (2018) o reconhecem como o conhecimento das matemáticas, que requer a compreensão da origem histórica dos assuntos, além de procedimentos, fatos, teoremas, conjecturas, relações e aplicações adjacentes.

Em consonância com Ball, Thames e Phelps (2008), torna-se pertinente sublinhar que, nas disciplinas do Curso B, principalmente, esse conhecimento ainda se demonstra como comum do conteúdo, ou seja, as ‘operações’ propostas nas ementas relativas a conteúdos específicos são generalizadas a outros profissionais de Ciências Exatas que dominam conteúdos matemáticos. Por esse motivo, argumenta-se em prol do desenvolvimento do conhecimento especializado do professor de Matemática, de maneira que compreenda o conteúdo e, essencialmente, se preocupe com as formas de transpô-lo segundo grau de complexidade e momento oportuno.

A categoria destinada ao Conhecimento de Áreas Afins corresponde aos componentes com conteúdos provenientes das demais áreas do conhecimento, cuja Matemática também está evidenciada direta e/ou indiretamente, como na Língua Portuguesa, Física, Química, Estatística e Computação. Na Física I, o acadêmico “[...] deverá ser capaz de aplicar os conhecimentos de cálculo nos fenômenos físicos em estudo” (UFAM, 2019, p. 59). No caso do licenciando em Matemática que cursa o componente de Estatística no Curso B, espera-se que possa “[...] planejar, dirigir e executar análises estatísticas bem como desenvolver o pensamento estatístico e probabilístico a fim de compreender e possivelmente resolver diversas situações” (IFAM, 2019, p. 99).

Em concordância com as demandas do Parecer CNE/CES nº 1.302/2001 (BRASIL, 2001b), tal cenário pode possibilitar uma interação entre esses campos do conhecimento. Além disso, revela ao educador alternativas para estabelecer uma conexão com as dimensões multifacetadas de determinado objeto de estudo, perspectiva associada ao conhecimento curricular (SHULMAN, 2015a). Nesse sentido, o conhecimento estrutural da Matemática (CARRILLO-YAÑEZ et al., 2018) permite que o educador matemático reconheça as relações entre diferentes conteúdos de sua área de formação ou de outros cursos e níveis de ensino.

Por sua vez, a categoria Conhecimento Didático-Psicopedagógico versa sobre as disciplinas que auxiliam o licenciando no desenvolvimento de técnicas para o ato de ensinar os diversos temas e temáticas, dado que as Resoluções CNE/CP nº 1/2002 e CNE/CP nº 2/2015 (BRASIL, 2002, 2015) recomendam a familiaridade com conteúdos concernentes à Ciência da Educação. Em vista disso, esse núcleo abarca disciplinas como Instrumentação, Didática Geral e Didática das Ciências, que competem às formas de gerir e avaliar o processo de ensino e aprendizagem e relacionam-se ao conhecimento curricular e pedagógico geral (SHULMAN, 2015a, 2019).

Como constatação dessa categoria, cumpre mencionar alguns tópicos da ementa da disciplina de Instrumentação no Ensino da Matemática do Curso D: análise de currículos do Ensino Médio conforme a BNCC; avaliação de programas, projetos e livros didáticos; ludicidade e tecnologia como proposta alternativa para o ensino e aprendizagem da Matemática. Nesse contexto, destaca-se o conhecimento de padrões da aprendizagem matemática, isto é, percepção quanto aos documentos curriculares educacionais pertinentes para gerenciar a aprendizagem, além do ensino de conteúdos com recursos e materiais didáticos apropriados (CARRILLO-YAÑEZ et al., 2018).

Essa categoria também circunscreve o conhecimento sobre crianças, jovens e adultos uma vez que a atuação profissional é preconizada principalmente para a Educação Básica segundo os currículos analisados, na qual o educador matemático engendrará atividades que demandam o conhecimento das características dos estudantes (SHULMAN, 2015a, 2019). Para Carrillo-Yañez et al. (2018), esse caso traduz-se no conhecimento das características da aprendizagem matemática, ou seja, saber identificar as maneiras usuais de raciocínio dos alunos, suas dificuldades e os elementos mais compreensíveis, complexos e atrativos.

Nesse sentido, a Didática Geral do Curso B pretende “[...] desenvolver competências e habilidades próprias da docência que favoreçam a organização do trabalho pedagógico e a aplicação de procedimentos eficientes para o ensino, envolvendo estratégias, métodos e técnicas” (IFAM, 2019, p. 88). Já, a ementa da Psicologia da Educação I do Curso D contempla, dentre outros aspectos, “[...] o desenvolvimento da criança e do adolescente no contexto sociocultural (físico, cognitivo e socioemocional); fundamentação teórica da aprendizagem: abordagens comportamentalista, cognitivista, psicanalítica, humanista e sociointeracionista [...]” (UFAM, 2019, p. 38).

Com efeito, decorre a imprescindibilidade de valorizar a diversidade étnico-racial, de gênero, sexual, religiosa, cultural, social e de faixa geracional, nítida no espaço educacional, como bem acentuado nas Resoluções CNE/CP nº 1/2004, CNE/CP nº 2/2015 e CNE/CP nº 2/2019 (BRASIL, 2004, 2015, 2019). Os cursos de LM possuem a responsabilidade de garantir um ambiente formativo que contemple as dimensões fundamentais à relação aluno-professor, como a cognitiva, motivacional e afetiva (SHULMAN; SHULMAN, 2016). Nessa categoria, também foram inseridos componentes direcionados à Psicologia do Desenvolvimento e da Aprendizagem e à Educação Especial/ Inclusiva, como a disciplina de Língua Brasileira de Sinais (Libras) que deve configurar como obrigatória nos cursos de Licenciatura segundo o Decreto de nº 5.626/2005 (BRASIL, 2005b).

Nessa direção, na categoria voltada ao Conhecimento Integrador, foram incorporadas as disciplinas que reservam momentos para a Prática como Componente Curricular mediante as orientações legais do Parecer CNE/CP nº 009/2001 e da Resolução CNE/CP nº 2/2015 (BRASIL, 2001a, 2015), não reduzindo-a apenas ao Estágio Curricular. Após análise das ementas das disciplinas, especialmente daquelas que apresentam procedimentos metodológicos, observou-se que Laboratório e Instrumentação do Ensino de Matemática, Seminário em Matemática, Metodologia do Ensino da Matemática, Metodologia da Pesquisa em Educação, Pesquisa e Prática Pedagógica e Temas Transversais propõem um ambiente de articulação entre teoria e prática, isto é, entre o saber e o fazer docente (SHULMAN, 2015b).

Para a efetivação dessa perspectiva, o componente de Pesquisa e Prática Pedagógica II do Curso B indica a promoção de “[...] trabalhos em grupo; seminários e sistematização de pesquisa na área de formação” (IFAM, 2019, p. 147). Em aproximação, seu componente de Metodologia da Pesquisa em Educação III aconselha a “[...] articulação com as disciplinas do período e o Seminário Interdisciplinar das Licenciaturas (SEMINTER)” (IFAM, 2019, p. 120).

Haja vista que indica a integração de conhecimentos empreendidos no decorrer da formação do professor, esse grupo de capacidades refere-se ao Conhecimento Pedagógico do Conteúdo. As atividades acadêmico-científico-culturais, o Estágio Curricular e o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) também pertencem a essa categoria em razão de acreditar-se que a prática necessita ser fomentada do início ao fim do curso e ao licenciado incumbe-se a sistematização dos conhecimentos construídos ao longo da graduação para mediar o seu futuro campo de atuação (SCHÖN, 2000; SHULMAN, 2015b, 2019). Como exemplo, na ementa da disciplina Estágio Curricular Supervisionado, do Curso B (IFAM, 2019, p. 109), aponta-se a “[...] análise de textos, vídeos, estudo de caso, socialização de experiências vivenciadas nas escolas de estágio”.

Por fim, a categoria relativa ao Conhecimento Político representa um conjunto de conhecimentos dispostos em disciplinas que pretendem lançar mão a reflexões – de cunho socioambiental, cultural, histórico-crítico, epistemológico e político-filosófico – acerca da sociedade contemporânea e das tendências políticas (SHULMAN, 2015a; SHULMAN, 2019). Esse eixo é constituído pelos componentes que estimulam discussões sobre o papel do professor de Matemática na formação de cidadãos conscientes dos impactos de suas ações para os ambientes em que atuam, acentuando-se as seguintes disciplinas: Legislação do Ensino; História da Matemática; História e Filosofia das Ciências; Educação, Cultura e Sociedade.

Por esse ângulo, a disciplina de Educação na Região Amazônica do Curso B centraliza-se em “[...] investigar as relações das variadas políticas em educação com os contextos regional, nacional e internacional, analisando [...] formas assumidas pelo processo de acumulação e de ocupação, da estrutura e luta de classes, bem como dos movimentos sociais” (IFAM, 2019, p. 106). É importante destacar que o professor de Matemática carrega em seu âmago concepções e crenças sobre a Matemática, cujos condicionamentos internos externos à escola perpassam por questões socioculturais e político-econômicas (CARRILLO-YAÑEZ et al., 2018; SHULMAN; SHULMAN, 2016).

Em conclusão e consenso com Shulman (2015a, 2015b), lançam-se reflexões acerca do equilíbrio pertinente aos temas e temáticas trabalhadas nos componentes curriculares desses cursos, dado que reúnem conhecimentos de natureza específica, didático-psicopedagógico, curricular, histórico-filosófica e sociocultural. Tal cenário torna-se essencial para favorecer ao futuro professor de Matemática um meio que o prepare para a o campo profissional a partir de múltiplos vieses correlacionados a sua área de formação.

Na seção a seguir, apresenta-se de que modo os conhecimentos docentes do construto de Shulman (2015a, 2019) manifestam-se em outros aspectos presentes nesses documentos, estabelecendo uma coerência entre a configuração curricular e o perfil profissional delineado pelos cursos de LM analisados. Por essa razão, traçou-se um panorama acerca do professor de Matemática idealizado por cada IES e como pretendem contribuir, inicialmente, para a constituição da bagagem e do repertório desse profissional.

Construção do repertório profissional do licenciando em Matemática

Com o intuito de analisar o currículo prescrito dos cursos de Licenciatura em Matemática (LM) da cidade de Manaus, à luz do Modelo de Formação de Professores de Lee Shulman, foram considerados itens como: objetivos do curso; perfil do egresso; competências e habilidades; núcleos de conhecimento; Prática como Componente Curricular; formato do Estágio Curricular. Isso posto, emergiram as seguintes categorias: Perfil Profissional do Licenciando em Matemática; Articulação e Integração dos Conhecimentos Docentes.

A categoria Perfil Profissional diz respeito a características, capacidades, princípios, disposições e valores ressaltados nos projetos para o processo formativo dos licenciandos em Matemática. Logo, foram delineadas subcategorias de acordo com os conhecimentos propostos por Shulman (2015a, 2019), cujo quadro 2 é composto por recortes de indícios desses conhecimentos nos PPCs dos Cursos B e D: Conhecimento do Conteúdo; Conhecimento Curricular; Conhecimento Pedagógico do Conteúdo; Conhecimento Pedagógico Geral; Conhecimento dos Alunos e de suas Características; Conhecimento de Contextos Educacionais; Conhecimento dos Fins e Valores Educacionais.

Quadro 2 Perfil profissional dos cursos de LM das IES públicas de Manaus 

Subcategorias Unidades de Significado
Conhecimento do Conteúdo “Explorar situações-problema, levando o aluno a procurar regularidades, fazer conjecturas, fazer generalizações” (IFAM, 2019, p. 16).
“Dominar efetivamente conhecimento matemático específico e não trivial, tendo consciência do modo de produção próprio” (UFAM, 2019, p. 14).
Conhecimento Curricular “Estabelecer relações entre a Matemática e outras áreas do conhecimento” (UFAM, 2019, p. 13).
“Analisar criticamente propostas curriculares de Matemática para a educação básica” (UFAM, 2019, p. 13).
Conhecimento Pedagógico Geral “Participar coletiva e cooperativamente da elaboração, gestão, desenvolvimento e avaliação do projeto educativo e curricular da escola, atuando em diferentes contextos da prática profissional” (IFAM, 2019, p. 15).
Conhecimento Pedagógico do Conteúdo “Estar familiarizado com as metodologias e materiais diversificados de apoio ao ensino, de modo a poder decidir, diante de cada conteúdo específico e cada classe particular de alunos, qual o melhor procedimento pedagógico para favorecer a aprendizagem significativa de matemática por diferentes caminhos e de forma continuada” (UFAM, 2019, p. 15).
Conhecimento dos Alunos e de suas Características “Promover uma prática educativa que leve em conta as características dos alunos e de seu meio social, seus temas e necessidades do mundo contemporâneo e os princípios, prioridades e objetivos do projeto educativo e curricular. [...] Conduzir diferentes estratégias de comunicação dos conteúdos, sabendo eleger as mais adequadas, considerando a diversidade dos alunos” (IFAM, 2019, p. 15-16).
Conhecimento de Contextos Educacionais "Compreender a Matemática como uma atividade humana contextualizada, desenvolvendo atitudes positivas, facilitadoras de inserção na sociedade atual” (IFAM, 2019, p. 13).
“Conhecer e dominar os conteúdos básicos [...] adequando-os às necessidades escolares próprias das diferentes etapas e modalidades da Educação Básica” (IFAM, 2019, p. 15).
Conhecimento de Fins e Valores Educacionais “Ter uma formação de cidadão, ética e moral, que permita o exercício da docência de forma digna e responsável e a percepção do quanto o domínio de certos conteúdos, habilidades e competências, próprias à matemática, importam para o exercício pleno da cidadania” (UFAM, 2019, p. 14).

Fonte: elaborado pelas autoras.

De modo geral, os cursos acentuam uma proposta curricular com o objetivo central de capacitar educadores para atuação na Educação Básica conforme o Parecer CNE/CES nº 1.302/2001 (BRASIL, 2001b). Ao fim da formação acadêmica, o licenciando em Matemática deverá apresentar amplo domínio teórico-prático do conteúdo específico e da práxis pedagógica para o exercício do magistério no Ensino Fundamental II e Médio, dentre outras modalidades de ensino.

Com relação às subcategorias, o Conhecimento do Conteúdo manifestou-se nas competências e habilidades dos cursos, nos quais aconselha-se que os licenciandos possuam conhecimento matemático elementar e avançado. Nas propostas formativas traçadas, o conhecimento específico engloba: a consciência do modo de produção próprio da Matemática; a maturidade para empregar o significado da precisão dedutiva em demonstrações adequadamente; a compreensão das características peculiares dos raciocínios (lógico, algébrico, combinatório e geométrico) típicos da Matemática; a capacidade de perceber as potencialidades de raciocínio em cada faixa etária.

Tal ótica vai ao encontro das convicções de Shulman (2019) sobre essa tipologia de conhecimento, que supera uma simples compreensão dos conteúdos. Com efeito, torna-se necessário ponderar sobre o que deve ser ensinado para não extrapolar as exigências do formalismo matemático a ponto de causar insegurança e/ou aversão nos estudantes. Essa proposição parte do princípio defendido por Ball, Thames e Phelps (2008) quanto ao conhecimento do conteúdo (SHULMAN, 2019), que se torna vantajoso quando contempla desde o conhecimento comum ao especializado do conteúdo, cujo último não se refere somente ao domínio dos objetos matemáticos, já que ensinar requer do professor outras capacidades.

Para o Curso B, é primordial que o egresso formule e resolva problemas na sua área de aplicação, identifique semelhanças e proponha hipóteses, exemplificações e generalizações. Diante disso, incumbe-se a esse profissional decidir sobre a razoabilidade do cálculo, manejando o cálculo mental exato e aproximado, as estimativas e os diferentes tipos de algoritmos e propriedades, averiguando-se, portanto, que esses conhecimentos são peculiares dos professores que ensinam Matemática. Nesse sentido, Carrillo-Yañez et al. (2018) defendem que o conhecimento prático da Matemática exige a compreensão das regras sintáticas da disciplina e de heurísticas para resolução de problemas e situações que demandam o raciocínio indutivo ou dedutivo.

Quanto à subcategoria Conhecimento Curricular, ambos os cursos defendem a disseminação de conhecimentos matemáticos com as demais áreas de forma lateral, ou seja, articulando a Matemática com componentes curriculares afins e explanando-os nas aulas paralelamente. Nesse sentido, no decorrer do Curso D, o discente presenciará momentos didáticos para que consiga: conectar, constituir relações e trabalhar na interface da Matemática com múltiplos campos do conhecimento; compartilhar conhecimentos com professores de diferentes disciplinas, assim como considerar as contribuições dessas áreas; dominar os conteúdos básicos que respeitam não só a sua formação específica.

Haja vista que o Conhecimento Curricular também circunscreve a análise dos materiais e dos programas viáveis para a aprendizagem na visão de Shulman (2015a, 2019), os PPCs dos Cursos B e D preconizam que os licenciandos analisem propostas curriculares atreladas à Matemática, produzam materiais didáticos e busquem novas tecnologias de informação e comunicação. Nesse sentido, o conhecimento tecnológico (HARRIS; MISHRA; KOEHLER, 2009) evidencia-se como necessário à docência, posto que perpassa pelo domínio de instrumentos tradicionais – lousa, pincel e apagador – até os mais atuais, como programas, softwares, jogos, plataformas digitais e redes sociais (COLLING; RICHIT, 2019).

Por conseguinte, ainda mais pela ampla possibilidade de contextualização e aplicação da Matemática, a orientação do professor é fundamental para que o aluno constate evidências dos assuntos estudados no dia a dia e nos diversos campos do conhecimento. Com isso, é importante dispor de conhecimentos plurais – não conjugados somente com a área de formação inicial – fato ressaltado nos currículos desses cursos, os quais ofertam componentes relativos à Língua Portuguesa, Física, Química, Estatística e Computação.

No perfil profissional proposto nos documentos, foram encontradas habilidades e competências referentes ao Conhecimento Pedagógico Geral, que corresponde à gestão e organização do ambiente educacional como um todo (SHULMAN, 2019). Assim, os projetos pedagógicos chamaram a atenção para a capacitação de profissionais que trabalhem de forma cooperativa e interdisciplinar, exercendo liderança para contribuir com a proposta pedagógica das suas futuras instituições de ensino, ou seja, presume-se que os futuros educadores participarão da elaboração, desenvolvimento e avaliação do projeto educativo e curricular da escola, atuando em diferentes âmbitos além da sala de aula.

Nos currículos, o Conhecimento dos Alunos e de suas Características também foi evidenciado como um princípio inerente ao preparo do licenciando em Matemática, com o intuito de perceber seu papel social e interpretar os conhecimentos e as ações dos alunos com sensibilidade segundo suas realidades singulares (PIMENTA, 2018; SHULMAN, 2015a). A fim de que isso se concretize, o Curso D sinaliza a pertinência de seu egresso adotar uma postura inclusiva no reconhecimento e na superação de discriminações e preconceitos frente à diversidade sociocultural, física, étnico-racial e política dos alunos.

Para o Curso D, uma vertente promissora versa sobre o planejamento de aulas com base em questões problemáticas do mundo contemporâneo. Concomitante à Resolução CNE/CP nº 2/2019 (BRASIL, 2019), constata-se que tais currículos sugerem a aplicação de conhecimentos psicopedagógicos com o uso de rotas alternativas, nas quais o futuro professor recorrerá a diferentes metodologias a partir dos resultados das avaliações e do perfil de cada estudante, argumentando que o conhecimento matemático pode e deve ser acessível a todos.

No tocante ao Conhecimento de Contextos Educacionais, as propostas curriculares salientaram a formação de um profissional que compreende a Matemática como uma atividade humana contextualizada. Logo, segundo o Curso D, torna-se imprescindível que o professor paute sua prática pedagógica em temas/temáticas contextualizadas e desenvolva atitudes facilitadoras, críticas e democráticas para a inserção na sociedade atual.

Em conformidade com Shulman (2015a, 2019), esse conhecimento remete à capacidade de considerar as dimensões que compõem o indivíduo e adequá-las as diferentes etapas e modalidades de ensino. Com base no perfil formado pelo Curso B, concordamos que o educador relacione a Matemática com tendências/fenômenos da atualidade e fatos significativos da vida social e profissional dos alunos, portanto, o processo formativo está inteiramente associado ao meio onde se situam as instituições de ensino.

Por essa razão, o Conhecimento dos Fins e Valores Educacionais demonstra-se um caminho favorável, tomando como princípio a qualificação de um educador responsável, comprometido com a realidade social dos seus aprendizes, ético, moral, crítico e político (PIMENTA, 2018; SHULMAN; SHULMAN, 2016). Assim, tanto o Curso B quanto o Curso D indicam que o egresso contribua com a formação de indivíduos para o exercício da cidadania e disponha de valores inspiradores da sociedade democrática como justiça, respeito, responsabilidade, diálogo e solidariedade.

Como esse conhecimento, de acordo com Shulman (2015a), também respeita à percepção do professor acerca de metas e bases histórico-filosóficas vinculadas ao processo educacional, o Curso B integrou ao seu currículo a competência alusiva à condução de decisões metodológicas alicerçadas em valores democráticos e pressupostos histórico-epistemológicos coerentes. Nesse horizonte, Carrillo-Yañez et al. (2018) afirmam que a prática do professor de Matemática subentende uma filosofia que a alicerça, o que diz respeito aos conhecimentos das crenças desse profissional e como podem influenciar o modo de compreender a Matemática, seu ensino e sua aprendizagem.

Por fim, o Conhecimento Pedagógico do Conteúdo (CPC), que concerne à reunião entre os conhecimentos mencionados e à percepção dos métodos de ensino e avaliação mais fecundos para empregar em sala de aula, destacou-se fortemente nos documentos (SHULMAN, 2015a, 2015b). As propostas dos Cursos B e D sinalizam que os egressos: promovam um espaço de criação e reflexão para o desenvolvimento de estratégias de ensino; familiarizem-se com técnicas e instrumentos para a construção de conhecimentos, potencializando-os em múltiplas situações; variem os métodos de avaliação conforme seus resultados.

Como o CPC é concebido ao longo da experiência docente, o Curso D acredita que seu discente será capaz de pesquisar e formular diferentes modelos para a explanação de conteúdos, bem como selecionar os objetivos adequados para suas aulas e atividades conforme a heterogeneidade dos alunos, as diretrizes curriculares e as normas de sua instituição. Em consonância com Carvalho e Gil-Pérez (2011), é indispensável compreender a prática docente como um processo dinâmico, carregado de incertezas e exercício contínuo de reflexão e remodelação, em que novos conhecimentos são gerados e transformados diariamente.

Nesse quadro, ambos os currículos evidenciaram a inevitabilidade do educador qualificar-se gradativamente, assíduo no refinamento de sua performance, logo, compactuamos com o Curso D ao mencionar a participação em programas de formação continuada. Em outras palavras, o professor em exercício necessita ressignificar seus conhecimentos e adquirir novas ideias mediante as demandas sociais, onde sua prática, sobre a qual tem que refletir diariamente, também representa uma fonte de produção de conhecimento (OLIVEIRA; FIORENTINI, 2018; SCHÖN, 2000; SHULMAN, 2015b).

Em entrevista a Born, Prado e Felippe (2019, p. 5), Shulman reitera que “[...] um professor é alguém que usa o conhecimento, a experiência, a formação e a bagagem cultural que ele ou ela tem para mexer com os corações e mentes de pessoas jovens pelas quais é responsável”. Embora a experiência não seja uma categoria do construto de Shulman (2015a, 2019), configura-se como parte enriquecedora para o desenvolvimento do CPC, como exemplo pode-se observar que o conhecimento de um professor experiente é distinto de um iniciante, cujo primeiro já obteve a oportunidade de testar diferentes abordagens didáticas e alternativas metodológicas que possibilitem a aprendizagem dos seus alunos (CURY; BISOGNIN, 2017; PIMENTA, 2018; TARDIF, 2014).

Na segunda categoria apresentada no início desta seção, Articulação e Integração de Conhecimentos Docentes, buscou-se constatar se há espaços, meios e situações didáticas para o licenciando em Matemática constituir um elo, sistematizar e integrar os conhecimentos engendrados no transcorrer de sua vida acadêmica. O Formato do Estágio Curricular e a Prática como Componente Curricular (PCC) participaram da análise dessa categoria, pois reiteram os momentos para a conexão entre o saber e o fazer docente nas disciplinas ofertadas. Nos projetos, enfatiza-se que a PCC deverá ocorrer do início ao fim dos cursos enquanto os Estágios serão realizados a partir da segunda metade dos cursos

Os currículos dos Cursos B e D compreendem o Estágio Curricular como um campo de conhecimento polissêmico para a formação docente, adotando como referência o vínculo entre teoria e prática, pesquisa, ensino e extensão, especificidades da profissão e a intervenção nas escolas da rede pública e privada da Educação Básica (TARDIF, 2014). Em consonância com a Resolução CNE/CP nº 2/2019 (BRASIL, 2019), foram estruturados com a carga horária mínima de 400 h, modificando-se apenas o formato: no Curso B, está organizado em quatro etapas, cada uma equivalente a 100 h; no Curso D, divide-se em três etapas, as duas primeiras totalizam 300 h e a terceira 210 h.

No Curso D, percebeu-se uma organização que pode possibilitar uma vivência maior com cada idade escolar nos três estágios, respectivamente desenvolvidos com alunos de Ensino Fundamental (EF) II (6º e 7º ano), EF II (8º e 9º ano) e Ensino Médio. Em contrapartida, o Curso B incumbiu ao licenciando a escolha da série de acordo com o nível de ensino. Dessa forma, os estágios foram estruturados com vistas à vivência de relações presentes na realidade e no funcionamento das escolas, culminando na elaboração e socialização de intervenções e projetos segundo a conciliação e a transposição do conhecimento acadêmico no ensino da matemática escolar.

Ao ser entrevistado por Born, Prado e Felippe (2019, p. 4), Shulman reitera que a formação universitária precisa propiciar a inserção dos iminentes professores nas escolas mediante estágios supervisionados, “[...] cercados de artefatos da prática, como estudos de caso e atividades de alunos. Desta forma, a aprendizagem profissional de docentes contempla ciclos de atividades que envolvem compreensão, transformação, instrução, avaliação e reflexão”.

Por esse ponto de vista, a PCC assumiu um papel primordial nos projetos, descrita como a mola propulsora para a formação dos discentes por meio da vivência de situações concretas de trabalho, a qual viabiliza a união entre conhecimentos teórico-práticos em um processo permanente de ação-reflexão-ação (SCHÖN, 2000). No entanto, cumpre esclarecer, em concordância com o Parecer CNE/CES nº 15/2005 (BRASIL, 2005a), que a PCC e o Estágio são espaços formativos distintos e com carga horária reservada a cada um desses momentos, critério cumprido pelo Curso D; em contrapartida, o Curso B mescla a carga horária destinada aos estágios e ao desenvolvimento da PCC.

Segundo a Resolução CNE/CP nº 2/2019 (BRASIL, 2019), ambos os documentos preveem o mínimo de 400 h para atividades alusivas à PCC – laboratoriais ou práticas com observações, entrevistas, aplicação de atividades e/ou projetos – distribuídas ao longo dos períodos. Por intermédio das condições para avaliação, produção e uso de textos, procedimentos e materiais didáticos, espera-se que os cursos subsidiem os discentes frente à diversidade e complexidade do espaço escolar (OLIVEIRA; FIORENTINI, 2018; PIMENTA, 2018)

Em confluência com as proposituras de Shulman (2015a, 2019), por estimular o ato assíduo de aprofundamento de conhecimentos e, ao mesmo tempo, de reflexão e gestão de situações de ensino e aprendizagem, a PCC configura-se como elemento norteador para os licenciandos participarem de momentos propícios à mobilização dos conhecimentos construídos nas disciplinas da Licenciatura em Matemática. No bojo dessas discussões, sublinha-se a importância de confrontar, reestruturar e articular tais conhecimentos dadas as especificidades encontradas no percurso da atuação profissional.

Considerações finais

Frente às discussões ensejadas, os resultados apontam que os cursos de Licenciatura em Matemática participantes da investigação - situados nas Instituições de Ensino Superior públicas da cidade de Manaus - reuniram conhecimentos específicos, didático-pedagógicos, curriculares, socioculturais, histórico-filosóficos, dentre outros, na construção de suas propostas formativas. Tais conhecimentos tangenciam as categorias do construto de Shulman e, consequentemente, favorecem a construção do Conhecimento Pedagógico do Conteúdo.

É importante salientar que o acesso restrito a apenas dois Projetos Pedagógicos de Curso (PPCs) possibilitou uma análise mais profícua do perfil profissional formado pelos Cursos B e D. Por esse ângulo, argumenta-se que o PPC se trata de um documento público e foram impostas muitas limitações para sua disponibilização, principalmente por parte dos Cursos E e F.

Entretanto, mediante as matrizes curriculares dos cursos, cujos projetos não foram consultados, buscou-se traçar um panorama dos conhecimentos evidenciados nos seus componentes. Quanto aos Cursos A e B, o PPC do primeiro estava inacessível e somente acadêmicos ingressantes em anos anteriores a 2019 seguiram esse modelo, logo, o PPC do Curso B representa a versão corrente dessa IES. No caso dos Cursos C e D, observou-se que o PPC do último simboliza o único disponível para a Licenciatura em Matemática nessa IES com implementação no ano de 2019; ademais, os licenciandos de anos antecedentes, discentes do Curso C, foram formados segundo outras matrizes curriculares.

Os fatos apresentados sugerem uma reflexão no que concerne à formação assegurada aos acadêmicos de Licenciatura em Matemática da cidade de Manaus, de modo que o currículo simboliza o passo inicial para guiar esse processo, bem como estabelecer momentos e situações em cada componente curricular para que ocorra a articulação e comunicação entre as temáticas propostas em cada um desses espaços. Essa perspectiva vai ao encontro da construção do Conhecimento Pedagógico do Conteúdo ainda na formação inicial do educador matemático amazônida frente à diversidade posta no exercício profissional.

Embora os PPCs tenham sido delineados segundo a Resolução CNE/CP nº 2/2015 (BRASIL, 2015), atendem, de modo geral, as habilidades e competências propostas pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica (BRASIL, 2019). A fim de cumprir as normativas vigentes que norteiam os cursos de Educação Superior, os documentos analisados passarão por um processo de reformulação.

Dentre outros aspectos em contraposição ao Curso D, o Curso B apresenta elementos na ementa de algumas disciplinas, como conteúdo programático e métodos de avaliação, que permitiram uma visão mais completa de como ocorre a articulação entre conhecimentos. Além disso, apesar de ambos utilizarem referências coerentes com os temas propostos para cada componente, o Curso B demonstra-se mais atualizado nesse ponto de vista.

Esse artigo buscou apresentar a Análise Documental segundo a Base de Conhecimentos proposta por Shulman (2015a, 2019) com atenção a autores que se inspiraram nesse construto e lançaram discussões direcionadas ao Conhecimento Especializado do Professor de Matemática, a exemplo de Ball, Thames e Phelps (2008) e Carrillo-Yañez et al. (2018). Assim, encontrou-se um diálogo entre esses modelos no sentido de direcionar a formação e prática docente segundo a articulação de um complexo de conhecimentos necessários à docência.

Em síntese, os documentos analisados planejam uma formação segundo essa perspectiva, contudo, sublinha-se a pertinência de estudos de aprofundamento acerca de como os professores de Matemática estão sendo preparados para a atuação na Educação Básica. Em vista disso, será possível verificar a consonância entre aquilo que se propõe nos currículos e o que realmente ocorre na interação entre a formação acadêmica e a prática pedagógica escolar.

1Este artigo tem como base uma pesquisa de dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática da Universidade Federal do Amazonas, escrita pela primeira autora e orientada pela segunda.

Referências

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Recebido: 09 de Dezembro de 2022; Aceito: 05 de Junho de 2023

Autora correspondente: izabel.sousa@ufam.edu.br

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