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Ciência & Educação

Print version ISSN 1516-7313On-line version ISSN 1980-850X

Ciência educ. vol.29  Bauru  2023  Epub Nov 06, 2023

https://doi.org/10.1590/1516-731320230048 

Artigo Original

Uso de um inventário de conceitos de meiose para identificar concepções alternativas entre calouros e licenciandos de Ciências Biológicas

Lorrayne Evangelista de Sousa1 
http://orcid.org/0000-0001-7607-8144

Marina de Lima Tavares2 
http://orcid.org/0009-0003-3273-8958

Adlane Vilas-Boas1 
http://orcid.org/0000-0001-7026-5539

1Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Instituto de Ciências Biológicas, Genética, Ecologia e Evolução, Belo Horizonte, MG, Brasil. Autora correpondente:

2Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Faculdade de Educação, Belo Horizonte, MG, Brasil


Resumo

A meiose é considerada um tópico persistentemente difícil para estudantes de diferentes níveis de ensino, sendo objeto de muitos relatos de entendimentos incorretos e concepções alternativas. Este é o primeiro trabalho a utilizar um Inventário de Conceitos de Meiose com estudantes de Biologia brasileiros para analisar a compreensão de conceitos genéticos elementares associados à meiose entre calouros e licenciandos veteranos. O desempenho geral no inventário foi semelhante para ambos os grupos, variando de baixo a médio. Observou-se que os estudantes compartilham concepções alternativas, especialmente sobre a disposição dos alelos gênicos nos cromossomos, estrutura dos cromossomos, ploidia celular, replicação do DNA e produtos da meiose. Entrevistas cognitivas com estudantes selecionados possibilitaram analisar como estes construíram suas respostas e explicações. Os resultados apontam para a necessidade de se enfatizar os conceitos discutidos neste trabalho no ensino de genética e citologia, bem como desenvolver novas estratégias de ensino.

Palavras-chave Ensino de genética; Ensino de biologia; Ciclo celular; Formação inicial do professor

Abstract

Meiosis is regarded as a consistently challenging topic for students across various educational levels, constituting a domain within the field of genetics that has been extensively documented to elicit misunderstandings and alternative conceptions. The present study deals with elementary genetic concepts associated with meiosis among undergraduates in their first year (freshmen) and in their senior year (pre-service teachers). Overall performance on the inventory was similar for both groups, ranging from low to medium. The research revealed that students present alternative conceptions, particularly pertaining to the organization of gene alleles on chromosomes, the structure of chromosomes, cellular ploidy, DNA replication, and the products of meiosis. By conducting cognitive interviews with a chosen cohort of students, it was possible to analyze the way they formulated their responses and explanations. The results point to the need to emphasize the concepts discussed in this work in the teaching of genetics and cytology while concurrently devising novel instructional methodologies.

Keywords Ensino de genética; Ensino de biologia; Ciclo celular; Formação inicial do professor

Introdução

Apesar da importância da Genética, incluindo sua contribuição para o enfrentamento de problemas nas esferas econômicas, ambientais, sociais e na área da saúde (CEZAR; GOMES; NIEDERAUER, 2020), consta na literatura uma variedade de relatos de entendimentos incorretos sobre temas dessa área, como a meiose, que há mais de 30 anos é documentada como um tópico desafiador aos estudantes (BROWN, 1990; KINDFIELD, 1994). Ainda nos dias de hoje, os estudantes não estabelecem relações associativas entre a meiose e outros temas da Genética, como no estudo do mendelismo (CARVALHO; SANTIAGO, 2020), e compartilham concepções alternativas (CA) sobre conceitos básicos dessa área, desde a etapa de escolarização obrigatória ao ensino superior, mesmo após a instrução formal (DIKMENLI, 2010; GUERRA; TAVARES; VILAS-BOAS, 2022; INFANTE-MALACHIAS et al., 2010; RODRÍGUEZ GIL; FRADKIN; CASTAÑEDA-SORTIBRÁN, 2019).

Desde a década de 1970, observa-se nas pesquisas sobre Ensino de Ciências, a respeito de um mesmo conteúdo específico, que as CA (conceito entendido aqui como entendimentos prévios assegurados pelos estudantes que contradizem o conhecimento científico) são bem consolidadas e resistentes ao ensino, embora os estudantes pesquisados sejam de diferentes culturas, tenham diferenças individuais e níveis de escolarização distintos (DRIVER, 1989).

As pesquisas sobre CA culminaram no fortalecimento da teoria construtivista, uma vez que conhecimentos novos são construídos a partir da transformação e ampliação de conhecimentos anteriores e o estudante assume o protagonismo do processo de construção do conhecimento (MORTIMER, 1996). Nesse sentido, as CA não devem ser reduzidas a erros que devem ser superados ou prevenidos, pois, quando ativadas, podem servir como recursos de aprendizagem, guiando o ensino e sendo úteis em processos metacognitivos (LARKIN, 2012).

Inventários Conceituais (IC) são instrumentos de avaliação úteis para revelar CA, além de orientar o ensino e tomadas de decisão em nível programático ou curricular. Os IC são instrumentos validados, cuja elaboração inclui um processo sistemático de múltiplas etapas e que conta com a participação de especialistas na área e um número considerável de estudantes (ADAMS; WIEMAN, 2011). IC, de forma geral, se assemelham a testes típicos de múltipla escolha, mas os distratores (as respostas 'erradas') são baseados em descobertas de pesquisas que indicam CA comumente compartilhadas pelos estudantes. Os distratores diagnosticam ou mapeiam um nível específico de compreensão conceitual do estudante, além de revelar em que ponto o entendimento deste se desviou ou ficou estagnado (GARVINDOXAS; KLYMKOWSKY; ELROD, 2007).

Neste estudo foi utilizado o Inventário Conceitual de Meiose (ICM) adaptado, desenvolvido na University of British Columbia, no Canadá (KALAS et al., 2013). No Brasil não há relatos de trabalhos desenvolvidos com a utilização de IC na área de Biologia. Ademais, trabalhos internacionais que utilizaram o ICM objetivavam contrastar a eficácia de metodologias de ensino distintas para abordar o tema meiose em sala de aula (NEWMAN; WRIGHT, 2017), objetivo que difere deste trabalho, que foi investigar a compreensão de conceitos associados ao processo de meiose entre graduandos em Ciências Biológicas em diferentes momentos do curso e identificar e analisar possíveis CA comuns a ambos os grupos de estudantes: calouros e licenciandos veteranos.

Embora em determinados contextos as CA possam servir como recursos para o ensino, a persistência destas entre professores em formação, após sucessivas exposições ao tema desde a escola básica e no ensino superior, requer reflexão. Nesse caso, é fundamental que tais concepções sejam detectadas e compreendidas, para que estratégias educacionais sejam implementadas, evitando que CA se tornem obstáculos para o exercício da profissão docente no futuro. Complementarmente, a pesquisa com estudantes calouros permite identificar as demandas de aprendizagem sobre meiose ao ingressarem no ensino superior e, ao informar professores da educação básica e docentes universitários sobre tais demandas, oportuniza a adoção de um conjunto de métodos de ensino que viabilizem desenvolvimento de concepções científicas do tema.

Percurso metodológico

Este estudo possui caráter quantitativo e qualitativo. Os dados quantitativos foram coletados a partir de questionário respondido por 70 estudantes do curso de Ciências Biológicas de uma universidade federal brasileira, dentre os quais 12 indivíduos foram selecionados para coleta de dados qualitativos por meio de entrevistas. Esta pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (CAAE: 88856618.6.0000.5149).

Os estudantes foram divididos em dois grupos: (i) calouros que não haviam cursado a disciplina Genética, na qual o conteúdo de meiose é abordado; (ii) veteranos que haviam optado pela modalidade licenciatura e cursado a disciplina Genética. O questionário utilizado neste estudo foi baseado no Inventário Conceitual de Meiose (ICM) (KALAS et al., 2013), que consiste em 17 itens projetados para avaliar o conhecimento dos graduandos sobre as seguintes categorias conceituais: ploidia, relação entre quantidade de DNA, número de cromossomos e ploidia, cronologia dos principais eventos da meiose, e representação pictórica dos cromossomos. Os itens do ICM são classificados segundo a Taxonomia de Bloom do Domínio Cognitivo, uma estrutura para classificar objetivos de aprendizagem, os quais são estruturados hierárquica e cumulativamente em níveis crescentes de complexidade, partindo da aquisição de habilidades mentais mais simples, como conhecimento e compreensão, ao alcance de habilidades mentais mais complexas, como aplicação e análise do conhecimento (BLOOM et al., 1956; FERRAZ; BELHOT, 2010).

Foram selecionados 12 itens do ICM adaptado para compor o instrumento de coleta de dados. Os links de acesso ao ICM e a um vídeo explicativo sobre a pesquisa foram encaminhados ao e-mail dos estudantes do curso de Ciências Biológicas e a adesão voluntária se deu após preenchimento do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido por 70 estudantes. A aplicação do formulário ocorreu de forma remota devido à pandemia de COVID-19 em 2020. A análise dos dados foi feita utilizando o programa Excel, visando identificar o percentual de estudantes que responderam corretamente ao item, padrões de respostas incorretas e itens cuja distribuição de respostas selecionadas mais se aproximava da visão cientificamente aceita.

Para comparar o desempenho geral das duas amostras independentes de estudantes no ICM adaptado, após o teste de normalidade dos dados, decidiu-se utilizar o teste não paramétrico de Mann-Whitney. Já para verificar se a proporção de acertos entre os veteranos foi maior que a proporção de acertos entre os calouros em cada item foi utilizado o Teste Exato de Fisher. As análises estatísticas e os gráficos foram desenvolvidos no programa GraphPad Prism versão 8.

Foram realizadas entrevistas com 12 participantes, selecionados entre os 70 respondentes da fase quantitativa, por meio de uma plataforma de videoconferência. O roteiro de entrevista foi elaborado a partir da seleção de sete itens do ICM, a partir dos quais foram identificadas concepções alternativas entre os estudantes, com desempenho abaixo de 70% no primeiro momento da pesquisa.

Foi aplicada a técnica de entrevista cognitiva (cognitive interviewing), que trata da administração de itens de pesquisa com o objetivo de coletar informações verbais adicionais dos respondentes de um teste. As explicações dos entrevistados sobre como eles construíram suas respostas e explicações de como eles interpretaram os itens foram o material verbal; para obtê-lo foi utilizada a metodologia de ‘sondagem’ (probing), que consiste no uso de questões explícitas, pré-definidas em um roteiro, e o entrevistador é mais proativo, fazendo perguntas diretas solicitando que o entrevistado explique suas respostas (MEDEIROS et al., 2017).

Resultados e discussão

A análise das respostas obtidas no ICM adaptado dos 70 estudantes participantes da pesquisa mostrou que ambos os grupos, calouros (n=25) e veteranos (n=45), tiveram um desempenho geral de médio a baixo no ICM (figura 1). Por meio do cálculo da pontuação média de cada grupo, observou-se que os calouros alcançaram 31,6% de acerto e os veteranos 35,6%, embora estes já tivessem estudado meiose no ensino superior com maior profundidade comparado ao ensino médio, como nas disciplinas Genética I, Biologia Celular, Embriologia e Genética II, segundo a estrutura curricular vigente consultada dessas disciplinas. A partir da análise de cada item, verificou-se que não houve diferença estatisticamente significante entre a proporção de calouros e veteranos que responderam a um mesmo item corretamente (P>0,05). Curiosamente, a similaridade de resultados coletados indica que estudantes novatos e veteranos possuem níveis semelhantes de compreensão a respeito dos conceitos pesquisados.

Nota: Cada círculo representa um indivíduo, e o traço indica a mediana. Por meio do teste não-paramétrico de Mann-Whitney, ao nível de significância de 5%, concluiu-se pela semelhança de desempenho geral entre as duas amostras independentes de estudantes (p=0,28).

Fonte: elaborado pelas autoras.

Figura 1 Distribuição das pontuações individuais obtidas no ICM adaptado pelos calouros (n=25) e veteranos (n=45) 

Distribuição de respostas por item e categorização

Os 12 itens do ICM foram classificados em uma categorização adaptada proposta por Smith e Knight (2012). A classificação foi feita após o cálculo da frequência em que cada alternativa foi selecionada em cada item, ou que combinações de alternativas foram selecionadas em itens do formato multirresposta (de quatro alternativas qualquer número pode ser selecionado); o objetivo foi identificar a preferência por distratores específicos em detrimento da(s) alternativa(s) cientificamente aceita(s): (1) Nenhuma dificuldade óbvia: se 70% ou mais estudantes responderam a determinado item corretamente; (2) Nenhuma ideia incorreta específica: menos de 70% dos estudantes responderam corretamente a um item, mas nenhuma alternativa incorreta específica ou combinação específica de distratores foi selecionada preferencialmente com relação às demais alternativas ou combinações possíveis; (3) Ideia incorreta comum: menos de 70% dos estudantes responderam a um item corretamente e mais de 30% selecionaram preferencialmente um distrator específico ou uma combinação específica de distratores. Essa resposta incorreta específica selecionada por 30% ou mais estudantes foi denominada Concepção Alternativa Comum (CAC).

Análise das Concepções Alternativas Comuns (CAC)

A figura 2 apresenta o desempenho dos dois grupos amostrais deste estudo (calouros e veteranos) em cada um dos 12 itens do ICM adaptado. A ligeira superioridade no desempenho dos calouros sobre o de estudantes mais experientes, observada nos itens 1, 2, 3, 4 e 9 (referentes a ploidia e número de cromossomos), não foi significante (P>0,05).

*Calouros e veteranos compartilham as mesmas CAC.

Fonte: elaborada pelas autoras.

Figura 2 Desempenho dos calouros e veteranos nos 12 itens selecionados do ICM (n=70 estudantes) 

Os itens marcados com asterisco são aqueles em que os estudantes de ambos os grupos mostraram preferência por distratores específicos, representando as CAC, as quais estão detalhadas no quadro 1.

Quadro 1 Frequência de escolha de concepções alternativas identificadas nos itens da categoria 3 

Item Concepções Alternativas Comuns (CAC) Frequência de Seleção das CAC
RS MR Calouros Veteranos
1 x O número absoluto de cromossomos determina a ploidia da célula. 40% 60%
2 x (i) Células haploides não podem ter cromossomos compostos por cromátides-irmãs; (ii) Confusão entre os termos cromátides-irmãs e cromossomos homólogos. 60% 71%
3 x Uma célula é considerada diploide se seus cromossomos são compostos por cromátides-irmãs. 56% 71%
4 x Duas cromátides-irmãs são dois cromossomos. - 31%
5 x Compreende a relação entre cromossomos e cromátides-irmãs, mas desconhece a relação disso com a replicação do DNA. 48% 47%
7 x O DNA antes da replicação é de fita simples, o diagrama é após a replicação. Se houver duas fitas complementares, o DNA torna-se de fita dupla. 40% -
11 x Cromossomos homólogos aparecem pareados tanto na metáfase da mitose como na metáfase da meiose. 40% -
12 x Confusão entre meiose e mitose: ideia de que, geneticamente, um gameta se parece com uma célula pós-mitótica. 52% 53%

Nota: 30% ou mais calouros (n=25) e veteranos (n=45) selecionaram, preferencialmente, uma resposta incorreta específica, denominada CAC.

RS: itens de múltipla escolha de resposta simples (de quatro opções de resposta, apenas uma deve ser selecionada).

MR: itens de múltipla escolha do tipo multirresposta (de quatro opções de resposta, qualquer número pode ser selecionado).

Fonte: elaborado pelas autoras.

Apesar de se encontrarem em diferentes momentos da graduação, calouros e veteranos compartilharam cinco CAC (asterisco na figura 2 e detalhamento no quadro 1). As concepções alternativas identificadas entre os calouros podem ter se originado no ensino básico e poderão, ou não, ser modificadas em concepções científicas. Já os veteranos, estudantes que, teoricamente, possuem um conhecimento mais profundo sobre temas biológicos, preservam Concepções Alternativas (CA) semelhantes, apesar das sucessivas experiências com o tema no ensino formal, e mesmo após, na instrução em nível superior, com docentes e metodologias de ensino variadas.

Os gráficos da figura 3, que segue adiante, apresentam os itens nos quais calouros e veteranos mostraram preferência pelos mesmos distratores. Em cada gráfico correspondente a um item específico, estão representados a opção correta indicada por um asterisco e os distratores, preferencialmente, assinalados. No item um, por exemplo, a opção correta é a letra B* e o distrator, frequentemente assinalado por ambas as amostras, foi a letra A. Os itens abordam conceitos elementares associados à meiose, como ploidia, estrutura dos cromossomos e identificação pictórica das células pós-meiose.

A resposta correta está indicada por um asterisco.

Assuntos por item: ploidia (itens 1, 2 e 3), estrutura dos cromossomos (item 5) e identificação pictórica dos produtos da meiose (item 12).

Fonte: elaborado pelas autoras.

Figura 3 Distribuição de respostas dos itens 1, 2, 3, 5 e 12 entre calouros (lilás) e veteranos (azul) 

A principal CA identificada sobre o conceito de ploidia foi a ideia de que a ploidia celular varia em função da estrutura cromossômica. Kindfield (1994), em um estudo conduzido na Universidade da Califórnia, e Guerra, Tavares e Vilas-Boas (2022), em um estudo conduzido na mesma instituição foco desta pesquisa, constataram que os estudantes compartilham concepção semelhante. Nesse raciocínio, cromossomos não replicados são oriundos de células haploides e cromossomos replicados de células diploides. Ainda, os pesquisados acreditam que o número absoluto de cromossomos determina a ploidia de uma célula e, portanto, todas as células diploides têm sempre mais cromossomos do que células haploides, independentemente a qual espécie refere-se.

Observou-se nos itens 1, 2 e 3, nos quais foram identificadas CAC, e que integram a categoria conceitual Ploidia, que o desempenho dos estudantes cai à medida que são exigidos níveis de habilidades cognitivas de ordem superior (figura 2). No item um, classificado na categoria Compreensão (nível II na taxonomia de Bloom), o desempenho dos estudantes foi melhor, embora não satisfatório (< 70% de aproveitamento). Tal resultado, possivelmente, se deve ao fato de o item apenas requerer do estudante entender e dar significado ao conceito de ploidia celular. Já nos itens dois e três, da categoria Aplicação (nível III na taxonomia de Bloom), o desempenho dos estudantes foi menor, pois os itens exigem aplicação dos conhecimentos sobre ploidia em novas situações, nesse caso, em representações diagramáticas. Embora o item quatro seja da mesma categoria conceitual dos itens um, dois e três, ploidia, o item quatro apresentou para os estudantes uma dificuldade proeminente comparada aos demais, e foram identificadas CA diversas, e não apenas uma específica (figura 2). Isto pode ser explicado pelo fato desse item demandar uma habilidade mais complexa da Taxonomia de Bloom, a análise. O item não exige apenas compreender o conceito de ploidia, mas, também, exige a capacidade de dividir o conteúdo em partes menores e identificar suas inter-relações. Assim, o estudante deveria entender como o conceito de ploidia se associa a outros conceitos, como número de cromossomos, estrutura dos cromossomos (presença ou não de cromátides-irmãs) e disposição dos alelos gênicos. Ademais, a habilidade de análise exige a compreensão da estrutura final do objeto de estudo, como a correta representação de uma célula diploide e haploide (BLOOM et al., 1956; FERRAZ; BELHOT, 2010).

Definitivamente, a ploidia celular se mostrou um conceito desafiador aos estudantes novatos e experientes. Os universitários alcançaram diferentes níveis de habilidades cognitivas sobre esse conceito, muitos compreendem o termo, mas não sabem aplicálo em contextos novos ou relacioná-lo a outros conceitos da Genética. Na Taxonomia dos Objetivos Cognitivos de Bloom, para que o estudante alcance uma nova categoria na hierarquia de habilidades cognitivas, é preciso que este tenha tido um desempenho adequado na categoria anterior, pois as habilidades novas utilizam capacidades adquiridas dos níveis anteriores (BLOOM et al., 1956; FERRAZ; BELHOT, 2010).

O item cinco foi o segundo de menor desempenho entre os estudantes, que aborda a estrutura dos cromossomos, com o percentual de acerto abaixo de 15% entre calouros e veteranos (figura 2). Alguns estudantes apresentaram dificuldades em distinguir os conceitos cromossomos e cromátides, outra parcela demonstrou compreender a relação entre cromossomos e cromátides, mas não estabeleceu relação entre a origem das cromátides, o conhecimento ao nível molecular (replicação do DNA), e a estrutura cromossômica, ou desconhece o fenômeno da intérfase (47% dos veteranos e 48% dos calouros). Esses resultados corroboram achados da literatura, desde trabalhos mais antigos aos mais recentes, com estudantes de diferentes origens. Brown (1990), em 614 representações da meiose feitas por estudantes britânicos, identificou que cerca de metade dos participantes da pesquisa representou incorretamente os cromossomos após a replicação do DNA, como cromossomos com cromátides-irmãs de cores diferentes, cromossomos não duplicados, ou cromossomos com quatro cromátides cada. Guerra et al. (2020) observaram, em diagramas de meiose produzidos por professores brasileiros em formação, que o erro mais frequente era a não representação dos cromossomos duplicados na intérfase, mas, sim, após essa fase, e a representação de cromátides-irmãs com alelos em heterozigose na intérfase, não se atentando para o fato de as cromátidesirmãs serem idênticas nessa etapa. Evidentemente, uma parcela importante dos estudantes não compreende a replicação do DNA ou não a relaciona com a meiose, embora esse processo seja requisito para que a divisão celular ocorra.

Sobre o resultado do processo meiótico, cerca de 50% dos calouros ou veteranos confundem os produtos da mitose e da meiose, como demonstrado no item 12. Os estudantes presumem que gametas se assemelham a células pós-mitóticas. Tal concepção pode advir do discurso frequentemente disseminado de que a meiose II é semelhante à mitose, o que pode levar à confusão a respeito das células-filhas resultantes de ambos processos.

Reconhecidamente, as concepções que os estudantes trazem à sala de aula sobre os fenômenos científicos desempenham um papel importante no processo de aprendizagem, uma vez que possibilita que os estudantes articulem ou contrastem ideias prévias a tópicos científicos. Nesse sentido, CA não devem ser reduzidas a equívocos que devem ser eliminados ou substituídos, mas podem ser exploradas e utilizadas como recursos de ensino no desenvolvimento de concepções científicas (LARKIN, 2012). Contudo, a preferência pelas mesmas CA entre estudantes novatos e veteranos, estes de um curso de licenciatura, mostra que algumas concepções são bem consolidadas e podem ser particularmente resistentes ao ensino. As CA, que a princípio podem configurar ferramentas úteis em situações de aprendizagem, poderão, em um segundo momento, competir com conceitos cientificamente aceitos. A persistência de CA no esquema mental de professores em formação pode alimentar um ciclo de propagação dessas concepções em sala de aula, dificultar a atualização profissional e a prática docente.

Entrevistas cognitivas

As entrevistas foram efetivadas com 12 estudantes, constituindo-se em uma oportunidade de estudar os caminhos cognitivos que os levaram às escolhas no ICM. Os itens foram a eles apresentados com a solicitação que respondessem novamente, e explicassem o porquê de suas escolhas à entrevistadora. A partir da análise das falas transcritas emergiram quatro categorias: (1) Disposição dos Alelos Gênicos; (2) Estrutura dos Cromossomos; (3) Replicação do DNA; (4) Produtos da Meiose. Para facilitar o entendimento das respostas, apresentamos os itens que integram cada categoria nas figuras 4 a 6. As verbalizações dos estudantes estão destacadas em itálico e cada um deles está identificado com a letra E, seguida de um número.

Fonte: adaptado de Kalas et al. (2013).

Figura 4 Item 4 do Inventário Conceitual de Meiose (ICM) 

Fonte: adaptado de Kalas et al. (2013).

Figura 5 Itens 5 e 8 do ICM 

Categoria 1: disposição dos alelos gênicos

No item 4, a CA identificada na etapa quantitativa era de que cromátides-irmãs contam como cromossomos individuais. Dessa forma, um cromossomo duplicado seria, no entendimento dos estudantes, dois cromossomos. Na etapa de entrevistas, novas concepções alternativas emergiram, como o entendimento de que genótipos Aa significam que uma cromátide-irmã deve conter o alelo A e a outra cromátide-irmã o alelo a, mesmo na ausência de permutação. Nesse sentido, quando apresentados aos estudantes um cromossomo duplicado com um alelo A em ambas as cromátides-irmãs e seu homólogo correspondente com um alelo a em ambas as cromátides, como nos diagramas das letras B e D (figura 4), alguns tendiam a pensar que o genótipo estaria duplicado, descrevendo para esse loco gênico o genótipo AAaa e não Aa:

E4 (Item 4, figura 4): Eu acredito que seja a letra A [...]. Na [letra] B e na [letra] D eles colocam os alelos AA no mesmo cromossomo, como se a informação estivesse tipo duplicada assim. [...] os cromossomos com as duas fitas e nessas duas fitas os alelos são iguais, AA, e tem outra fita com aa, isso não faz muito sentido pra mim.

Outra CA identificada nesta categoria era que genótipos Aa significam que não pode haver uma combinação de alelos dominantes e recessivos no mesmo cromossomo. Portanto, em um dos cromossomos deveriam estar dispostos os alelos dominantes A, B e D e no homólogo os alelos recessivos a, b e d, como mostra o diagrama da letra B (figura 4):

E8 (Item 4, figura 4): [...] eu acredito que um dos cromossomos, ele contém esses alelos dominantes, enquanto o outro conteria esses alelos recessivos.

Conceitos genéticos elementares, em geral, são introduzidos nas aulas sobre as Leis de Mendel, como o conceito de alelos gênicos. Contudo, nem sempre o docente aprofunda o ensino desse termo para além da conceituação, como retomar a correta disposição dos alelos nos cromossomos (GUERRA; TAVARES; VILAS-BOAS, 2022). Um exemplo é a utilização do quadro de Punnett, em que os estudantes assumem um automatismo e dispõem os alelos em um quadro mostrando o genótipo dos gametas dos genitores e da prole. Entretanto, a localização desses alelos nos homólogos, bem como o processo de meiose, não são, por vezes, retomados. O estudante pode, consequentemente, assumir um raciocínio mecanizado, com pouca associação entre os conceitos relacionados, como genótipo, loco gênico, cromátides-irmãs, cromossomos homólogos, replicação do DNA e alelos.

Guerra et al. (2020), no estudo de diagramações da meiose produzidas por licenciandos do curso de Ciências Biológicas, identificaram CA sobre os conceitos heterozigose e alelos. Os estudantes representaram células com alelos dominantes e recessivos distribuídos em um mesmo cromossomo, sem a ocorrência de permutação. Esse raciocínio se assemelha ao dos estudantes deste estudo, pois, em ambos os casos, os pesquisados não se atentam para o fato de que a replicação do DNA origina cromátides-irmãs idênticas e que as formas alélicas estão localizadas em um mesmo loco gênico nos homólogos, e não em cromátides-irmãs.

Somado ao desconhecimento de alelia gênica entre homólogos, os estudantes podem ter uma dificuldade conceitual, pois a linguagem genética se caracteriza por uma terminologia extensa e reúne conceitos abstratos que são, por vezes, utilizados como sinônimos, como genes, alelos e locos. Um exemplo é o uso frequente do termo gene para designar um alelo gênico específico, por exemplo, gene responsável pela distrofia muscular de Duchenne. Ainda, mesmo que o conceito de alelo seja conhecido e compreendido pelo estudante, este pode não ter se apropriado do nível representacional da genética, em que os conceitos dos níveis molecular e microscópico são representados por diagramas e símbolos.

Categoria 2: estrutura dos cromossomos

A respeito da relação entre cromossomos e cromátides-irmãs, alguns entrevistados entendem que cromossomos ‘verdadeiros’ são compostos por duas cromátides e cromossomos não replicados são apenas cromátides e, portanto, não devem ser considerados cromossomos individuais:

E9 (Item 8, figura 5): Seria só a [letra] C, né?

Fonte: adaptado de Kalas et al. (2013).

Figura 6 Item 12 do ICM 

Entrevistadora: Você acha que aqui [na letra B] tem quantos cromossomos?

E9: Aí não vai ter nenhum, vai ter cromátides.

Essa ideia também foi encontrada entre 18% dos veteranos na etapa quantitativa e está em consonância com o estudo de Dikmenli (2010), conduzido com 124 licenciandos turcos, no qual foi identificada, por meio de diagramações e entrevistas, a CA compartilhada entre os estudantes deste estudo: os cromossomos sempre serão compostos por cromátidesirmãs durante a divisão celular. Segundo a autora, essa concepção não havia sido relatada anteriormente na literatura. Posteriormente, essa mesma concepção foi identificada entre 25% da amostra de 193 universitários canadenses do estudo de Kalas et al. (2013).

Guerra, Tavares e Vilas-Boas (2022) ressaltam que existe uma generalização no ensino da biologia de que cromossomos, necessariamente, seriam estruturas formadas por cromátides-irmãs. Isso ocorre porque a definição de cromossomos, normalmente, refere-se às estruturas altamente condensadas, os cromossomos metafásicos duplicados visíveis ao microscópio óptico. É preciso, portanto, destacar junto aos estudantes as duas formas de representação dos cromossomos, duplicados e não duplicados, igualmente válidas, mas a correta representação dependerá do momento do ciclo celular em que a célula se encontrar.

Ainda, uma parcela dos entrevistados mostra não saber a diferença entre os conceitos cromossomos e cromátides-irmãs. Um pensamento comum, identificado entre aproximadamente 30% dos calouros ou veteranos, é de que em uma representação pictórica cada cromátide conta como um cromossomo particular:

E3 (Item 8, figura 5): Nessa questão eu marcaria a letra A e a letra B, porque na letra A, por exemplo, tem oito cromossomos, apesar de que eles são homólogos, quatro deles estão repetidos. Na B eles não estão repetidos, é uma célula haploide, por exemplo, mas ainda são oito cromossomos. Na letra C e na letra D são 16 cromossomos.

E4 (Item 8, figura 5): Eu marcaria a [letra] A e a [letra] B, pensando o que que é o cromossomo. Cromossomo é a fita, uma fita. Então, se têm oito cromossomos, só olhar quais [células] que têm oito fitas, que são a [letra] A e a [letra] B.

Kalas et al. (2013), desenvolvedoras do ICM, relatam que a distinção entre os dois conceitos foi uma das principais dificuldades apresentadas pelos pesquisados. InfanteMalachias et al. (2010) expõem que quando novatos e veteranos do curso de Biologia da Universidade de São Paulo (USP) eram solicitados a desenhar ou identificar cromossomos homólogos e cromátides-irmãs, os graduandos não eram capazes de diferenciar os dois termos. Muitos universitários, em vez identificar as cromátides separadas, dividiram os braços cromossômicos curtos e longos, gerando uma quebra dentro de cada cromátide e formando figuras em forma de ‘v’. Outrossim, Dikmenli (2010) constatou em desenhos e entrevistas que, aproximadamente, 30% dos graduandos de Biologia consideravam que cromossomos homólogos e cromátides-irmãs têm o mesmo significado.

Percebe-se a necessidade em enfatizar a diferença entre os dois conceitos em aulas sobre o tema, pois, embora sejam termos tratados ainda no ensino básico, as concepções alternativas persistem no ensino superior. A dificuldade em diferenciar os dois conceitos pode estar associada às diferentes representações pictóricas dos cromossomos que os estudantes encontram nos momentos de aprendizagem da Genética e Citologia, como em forma de ‘X’ ou como no item 5 (figura 5). Ainda, a confusão entre esses conceitos também pode ser explicada pela grafia e fonética semelhantes, que se soma à densidade léxica da genética.

Outra confusão compartilhada entre os estudantes é a de que a estrutura dos cromossomos varia em função da ploidia celular. Essa concepção alternativa corrobora os achados da etapa quantitativa deste trabalho, compartilhada entre 71% dos veteranos e 60% dos calouros:

E3 (Item 4, figura 4): Bom, nessa, de primeira, eu eliminaria a alternativa C, porque eu acho que se trata de uma célula haploide e tá falando que a planta ela é diploide.

Entrevistadora: Por que você acha que é haploide?

E3: Como está representado só um pauzinho, eu acho que está representando só um cromossomo, sabe? Porque não está duplicado. [...] eu acho que a letra B e a [letra] D elas demonstram cromossomos diploides, de uma célula diploide.

Um pensamento semelhante foi descrito por Guerra, Tavares e Vilas-Boas (2022), que detectaram que os graduandos entendem que n se refere às células com cromossomos simples e 2n àquelas com cromossomos duplicados. Com o mesmo raciocínio, universitários finlandeses associam o estado dos cromossomos - replicados ou não - aos conceitos de diploidia e haploidia, respectivamente, mesmo após aulas sobre o tema (MURTONEN; NOKKALA; SÖDERVIK, 2018). CA semelhantes estão documentadas em trabalhos mais antigos na literatura (KINDFIELD, 1994), ressaltando a persistência dessas concepções entre estudantes de diferentes culturas e níveis de ensino.

Considera-se, neste estudo, três possíveis razões que podem contribuir para construção e persistência da CA sobre ploidia e estrutura cromossômica. A primeira é a ideia assegurada por alguns estudantes de que a replicação do DNA eleva a ploidia da célula, como pode-se observar na verbalização do estudante E4:

E4 (Item 6): É porque se eu estou pensando na replicação, que vai dar origem a duas células filhas, uma célula que é 2n teria que ser, temporariamente, 4n, a célula mãe, para que as duas filhas, cada uma, seja 2n.

Dessa forma, antes da replicação do DNA, o estudante reconhece uma célula haploide com cromossomos simples. Após a replicação, o estudante reconhece uma célula diploide com cromossomos duplicados. A segunda razão é a confusão entre os termos cromátides e cromossomos homólogos e, portanto, a presença de cromátides-irmãs, e não cromossomos homólogos, é o que caracterizaria uma célula diploide. Por fim, a CA pode estar associada à etimologia da palavra, por exemplo, diploide vem do grego diplòos, que quer dizer duplo, e haploide vem do grego haplo, que quer dizer único, o que pode contribuir para a associação de cromossomos duplos e simples aos termos diploide e haploide, respectivamente.

Sobre a classificação dos cromossomos conforme a posição do centrômero, alguns estudantes acreditam que cromossomos telocêntricos são incompletos, ou seja, estão faltando partes:

E9 (Item 8, figura 5): [...] [estudante aponta para a letra D] eles [os cromossomos] estão incompletos, né? Alguns.

Essa concepção mostra desconhecimento dos tipos de cromossomos. Há possibilidade de os estudantes estarem familiarizados, sobretudo, à usual representação dos cromossomos metacêntricos. Rodríguez Gil, Fradkin e Castañeda-Sortibrán (2019) encontraram, em representações cromossômicas produzidas por estudantes de uma universidade do México, que estes não desenhavam cromossomos telocêntricos e acrocêntricos, embora fosse solicitado durante a tarefa. Os autores explicam esse resultado salientando que os cromossomos metacêntricos são os mais vistos e estudados, aqueles imobilizados na metáfase da mitose e que têm a aparência clássica de ‘X’. Ainda, os maiores e, portanto, os mais visíveis cromossomos humanos são os metacêntricos, o que explica essa representação universal.

Por fim, foi identificada uma dissociação entre a representação de cromossomos duplicados e o processo a nível molecular subjacente, a replicação do DNA:

E6 (Item 5, figura 5): O cromossomo não tá duplicado, ele só tem as duas cromátides-irmãs dele.

E9 (Item 5, figura 5): Essa aí acho que seria a letra A, duas cromátides-irmãs [...]. Pra mim, não está representando um processo de replicação.

Nota-se uma desconexão entre duas áreas da biologia que se interpenetram, a Biologia Molecular e a Genética. Esse resultado também foi encontrado na etapa quantitativa entre, aproximadamente, 50% dos estudantes, o que confirma a hipótese formulada inicialmente. Guerra, Tavares e Vilas-Boas (2022) relatam dificuldades de visualização de estruturas microscópicas, como os cromossomos, e de relacioná-las aos processos moleculares subjacentes. Lewis, Leach e Wood-Robinson (2000) ressaltam que um grande problema para os estudantes é a relação implícita entre as estruturas básicas da genética, como a relação física entre genes, DNA e cromossomos. Essa dificuldade se agrava pelo uso ambíguo da terminologia no ensino dos tópicos de forma compartimentada e quando a relação entre os conceitos não é enfatizada. Chu e Reid (2012) afirmam que um fator dificultador da aprendizagem na Genética é a necessidade em transitar por níveis de organização biológica distintos (molecular, microscópico, simbólico e fenotípico). Ao ter que racionar sobre conceitos e processos que ocorrem nesses níveis simultaneamente, pode resultar em uma sobrecarga mental aos estudantes.

Categoria 3: Replicação do DNA

Item 6: Em uma célula eucariótica, a replicação do DNA resulta em um aumento no: (a) quantidade de DNA nessa célula; (b) número de cromossomos nessa célula; (c) número de moléculas de DNA nessa célula; (d) ploidia dessa célula (por exemplo, de 2n a 4n). (KALAS et al., 2013).

A hipótese formulada na etapa quantitativa, sobre a relação entre a replicação do DNA e a divisão celular, foi de que os estudantes não se lembram ou desconhecem o processo pelo qual originam-se as cromátides-irmãs. Nesta etapa qualitativa, uma nova concepção alternativa foi identificada, a de que a replicação do DNA origina um novo cromossomo:

E2 (Item 6): [a replicação do DNA] aumenta o número de moléculas e o número de cromossomos. O número de moléculas de DNA, porque vai pegar uma como molde e formar a outra, então, vai dobrar o número de moléculas de DNA. Acho que vai fazer isso com o material todo, né? Acho que vai dobrar o número de cromossomos também.

Possivelmente, a concepção alternativa supracitada emerge dos diversos termos matemáticos utilizados como sinônimos na Genética. Por exemplo, é comum referir-se à replicação do DNA como duplicação cromossômica; essa ambiguidade de termos pode levar os estudantes a pensarem que a replicação do DNA resulta no aumento do número de cromossomos obrigatoriamente, além de ser condição necessária para que a célula mãe distribua o seu material genético corretamente às células filhas. Essa concepção também foi constatada por Kalas et al. (2013) entre 40% dos estudantes participantes da elaboração do ICM, da Universidade da Colúmbia Britânica. É notável, portanto, o desconhecimento dessa fase que precede a mitose e a meiose por parte dos estudantes, suas características, importância e consequências ao nível molecular e microscópico.

Categoria 4: Resultados do processo meiótico

Sobre os produtos da meiose, uma parcela dos estudantes considera que os gametas se parecem com as células resultantes da mitose, isto é, possuem o mesmo conteúdo genético da célula mãe. Essa ideia corrobora com os dados interpretados na etapa quantitativa entre, aproximadamente, 50% de todos estudantes:

E3 (Item 12, figura 6): Eu acho que nessa eu marcaria só a letra A [...]. Na letra B e a letra D, eu acho que tá faltando cromossomos. Eles estão representando alguns dos cromossomos da célula mãe, mas, como falou que sofreu uma meiose normal, acredito que tá faltando um cromossomo. A letra A é uma das representações das possibilidades de células filhas.

A confusão entre mitose e meiose também foi identificada por Rodríguez Gil, Fradkin e Castañeda-Sortibrán (2019). Os autores observaram, em diagramações de divisão celular, que universitários mexicanos desenvolveram esquemas idênticos da meiose II e mitose. Etobro e Banjoko (2017) relataram, por meio de um teste de múltipla-escolha de genética, que 84% de 120 professores em formação da Nigéria entendem que a meiose em uma célula mãe origina células filhas idênticas. Tal concepção pode ser atribuída à similaridade entre os dois processos de divisão e à ideia, frequentemente disseminada durante o ensino e fontes de informação, de que a mitose nada mais é do que uma meiose II. Essa associação pode confundir o estudante sobre os resultados dos dois processos, levando-os a pensar que gametas se parecem com células pós-mitóticas.

Uma possível solução para favorecer a compreensão do processo de meiose é diversificar as estratégias de ensino utilizadas, rompendo com a hegemonia de uma única metodologia, como a tradicional, centrada na transmissão e memorização do saber. É importante a adoção de uma proposta metodológica plural, visto que os estudantes possuem diferentes trajetórias cognitivas, motivacionais e emocionais, o que justifica possíveis preferências em relação a um estilo de ensino (LABURÚ; ARRUDA; NARDI, 2003).

Existe na literatura muitas proposições de formas alternativas de ensinar meiose, para citar algumas, a prática combinar e recombinar com dominós (GUIMARÃES et al., 2008) e Meiose no papel (VILAS-BOAS; TAVARES, 2022) em que, por meio da utilização de modelos didáticos de baixo custo e de fácil preparação, é possível representar cada etapa do processo meiótico onde diferentes alelos são representados. Tais atividades permitem que o estudante entenda a relação da meiose e as Leis de Mendel, reprodução sexual, variabilidade genética, bem como conceitos genéticos básicos, como genótipo, cromossomos homólogos, cromátides-irmãs, ploidia, dentre outros.

Considerações finais

O uso de inventários não tem sido objeto de muitos estudos na área de Biologia no Brasil. Acreditamos que este seja o primeiro estudo a usar um inventário de conceitos de meiose com estudantes brasileiros e as análises nos mostram que foi um instrumento eficaz para revelar CA compartilhadas entre calouros e veteranos de um curso de Ciências Biológicas. O ICM também deu subsídio para a realização de entrevistas cognitivas, que se mostraram complementares para analisar a compreensão sobre a meiose entre os graduandos em estudo. Esse ICM pode vir a ser utilizado em outros trabalhos com propósitos semelhantes aos nossos, seja com estudantes de outros cursos ou mesmo professores em exercício. Pode também ser utilizado para referendar a eficiência da utilização de novas metodologias de ensino sobre o tema e orientar reformas curriculares.

As análises do ICM e das entrevistas cognitivas realizadas neste estudo permitiram identificar que calouros e professores em formação compartilham CA em comum sobre conceitos elementares associados à meiose, como ploidia celular, estrutura e número dos cromossomos, disposição dos alelos gênicos, replicação do DNA e os produtos resultantes da meiose. Em face disto, é premente refletir sobre modos de ensinar e aprender em áreas consagradas da Genética, como a divisão celular e genética mendeliana. Este trabalho chama atenção para que o docente dê ênfase aos conceitos aqui discutidos tenham eles sido ensinados no ensino básico ou superior. A prospecção dos conhecimentos prévios deve se dar de forma mais contundente dentro do plano de ensino para que se possa entender as CA que os estudantes eventualmente possuam e utilizá-las a fim de ancorar conhecimentos novos.

Entendemos que nossos resultados também têm o potencial de incentivar a discussão desses conceitos entre professores e estudantes do Brasil e de outros países e implementação de ações de ensino, como novas práticas educacionais e materiais didáticos que enfatizem, de forma mais precisa, as CA relatadas neste e outros trabalhos semelhantes.

Agradecimentos

Os autores agradecem ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo apoio financeiro.

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Recebido: 28 de Abril de 2023; Aceito: 14 de Julho de 2023

Autora correpondente: lorrayne-biologia@ufmg.br

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