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Ciência & Educação

versión impresa ISSN 1516-7313versión On-line ISSN 1980-850X

Ciência educ. vol.29  Bauru  2023  Epub 06-Nov-2023

https://doi.org/10.1590/1516-731320230054 

Artigo Original

Representações artísticas e científicas: os Átomos de Hilma af Klint

Artistic and scientific representations: The Atoms by Hilma af Klint

Carlos Jorge da Silva Correia Fernandes1 
http://orcid.org/0000-0003-4934-6267

Bruno Michael da Silva Pereira2 
http://orcid.org/0000-0001-7426-7574

Wilmo Ernesto Francisco Junior3 
http://orcid.org/0000-0003-4591-4490

1Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Museu de História Natural, Maceió, AL, Brasil

2Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Programa de Pós-Graduação em Educação, Maceió, AL, Brasil

3Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Campus Arapiraca, Arapiraca, AL, Brasil


Resumo

Este artigo analisou pinturas da série Átomos, de 1917, da artista sueca Hilma af Klint em termos das representações artísticas e científicas. Metodologicamente, apoiou-se em princípios da gramática do design visual. A discussão se ancorou na psicologia da arte e nos perfis conceituais sobre átomos. As representações artísticas dos Átomos de Klint demonstram complexidade e diversidade conceitual, incluindo visões sobre a natureza contínua e particulada da matéria, característica dual das partículas, interconversão energia-matéria, princípio da incerteza, níveis de energia e o éter como parte constituinte da matéria. As características artísticas se interconectam e produzem uma coexistência das zonas de perfis conceituais sensorialista, clássico e quântico, sendo o substancialista menos observado. As aproximações entre as aquarelas e as concepções científicas de átomos a partir da análise semiótica fornecem possibilidades de mediação artística, científica e histórico-social, podendo-se explorar a rota genética do desenvolvimento conceitual do átomo, comparando-se e contrapondo-se as representações.

Palavras-chave Arte e educação; Pinturas; Semiótica social; Psicologia da arte; Perfil conceitual; Átomos

Abstract

The purpose of this article is to examine paintings in the Atoms series by Swedish artist Hilma af Klint in terms of artistic and scientific representations. The discussions were anchored in Psychology of Art and conceptual profiles about atoms, and the interconnections between science education and art were woven based on the role of representations as material artifacts. Methodologically, it is based on the principles of visual design grammar, as well as the textual and visual composition of the works. Klint's works are artistic representations of conceptual complexity and diversity, including views on the continuous and particulate nature of matter, particle duality, energy-matter interconversion, the uncertainty principle, energy levels, and ether as a constitutive element of matter. The relationship between the watercolors and scientific conceptions of atoms, based on semiotic analysis, provides opportunities for artistic, scientific, and sociohistorical mediation, allowing us to explore the genetic route of the conceptual development of the atom by comparing and opposing them to representations.

Keywords Art and Education; Paintings; Social Semiotics; Psychology of Art; Conceptual profile; Atoms

Introdução

Hilma af Klint pintou para o futuro - e o futuro é agora! (KLINT, 2018).

O conhecimento científico é produzido mediante complexas práticas sociais que envolvem aspectos técnicos e objetivos circunscritos em dimensões pessoais, históricas e socioculturais. Nesse sentido, vários autores apontam que aprender ciências envolve um processo social de adentrar um novo domínio cultural, em que os aprendentes apropriam-se de sua linguagem, modos de operação e de produção para construir significados (DRIVER et al., 1994; MORTIMER, 2000). Pozo e Crespo (2009, p. 20) afirmam que “[...] aprender e ensinar, longe de serem meros processos de repetição e acumulação de conhecimentos, implicam transformar a mente de quem aprende, que deve reconstruir em nível pessoal os produtos e processos culturais com o fim de se apropriar deles”. Assim, as linguagens passam a ocupar um papel central na mediação das interações socioculturais a partir das quais o conhecimento é produzido socialmente e internalizado pessoalmente, em um processo pelo qual as experiências sociais se convertem em conhecimento (HALLIDAY, 1993; KRESS et al., 2001; LEMKE, 1990).

Nesse contexto, ampliar as experiências e os processos pelos quais os aprendizes significam o mundo pode criar caminhos para se ensinar e aprender. Arte e ciência, por exemplo, como produções culturais que constituem a espécie humana, são práticas sociais que ampliam as possibilidades de desenvolvimento humano, seja como espécie ou indivíduo. Segundo Bronowski (1998, p. 89):

Há um fio que une continuamente todas as culturas humanas que conhecemos, um fio duplo: não há cultura, por mais primitiva pelos nossos padrões, que não pratique de algum modo o tipo de explicação que chamei de ciência e que de alguma forma não se expresse artisticamente [...]. Essa dupla e indispensável presença revela sem dúvida uma unidade essencial existente na mente humana evoluída. [...] Deve haver uma razão, enraizada profundamente na mente humana - especificamente, na imaginação humana -, que se exprime naturalmente em qualquer cultura, sob a forma tanto de ciência como de arte [...].

Logo, buscar as aproximações e entender as especificidades das relações entre arte e ciência permitiria ampliar sentidos e significações. Nesse ínterim, este trabalho se debruça sobre representações artísticas influenciadas por temas científicos, buscando tessituras que podem se estabelecer entre a arte e a educação em ciências, particularmente para o fortalecimento de uma compreensão dos modelos como representações possíveis de uma realidade. Para tanto, o objeto de análise foi a série de aquarelas Átomos, da pintora sueca Hilma af Klint (1862-1944). Pioneira na arte abstrata e surrealista, fundiu em seu trabalho influências religiosas, filosóficas e científicas, antecipando tendências do futuro em desenhos, manuscritos e pinturas que permitem infinitas possibilidades de interpretação ainda hoje (SOUZA, 2019). Suas obras trazem uma multiplicidade de representações, com símbolos e textos que lançam luz sobre mensagens que a artista buscou comunicar, constituindose como convites para reflexões acerca de questões espirituais, existenciais e científicas (PARDO, 2017).

Contemporânea de importantes avanços científicos, Hilma af Klint se interessou pelos átomos, criando aquarelas nas quais demonstrou uma visão ampla e profunda acerca de suas estruturas cujo entendimento havia sido ampliado nas primeiras décadas do século XX. Essa aproximação de Klint com a ciência possibilita igualmente questionar a questão de gênero que perpassa o papel da mulher na ciência e na arte, cujas marcas de iniquidades são fortemente denunciadas desde o início do século XX até os dias atuais.

No entanto, Hilma af Klint, por medo da reação do público frente ao seu trabalho, devido às ideias progressistas que apresentava, como divindades femininas (LEÓN-RÍO, 2016), optou, em testamento, por autorizar a publicação de suas obras somente vinte anos após a sua morte, de maneira que suas pinturas foram conhecidas pela primeira vez apenas em 1986, quando parte de seu trabalho compôs a exposição The spiritual in art: abstraction painting (1890-1985), no Museu de Arte do Condado de Los Angeles (BARCENILLA; UNIBERTSITATEA, 2014). Para os autores, a visibilidade que Hilma af Klint recebeu desde então pode ser verificada pela exposição de suas obras em diferentes museus, com retrospectivas de seus trabalhos tanto como um reconhecimento da sua importância para a história da arte quanto como um esforço para inscrever seu nome nas classificações que relacionam os cânones das vanguardas artísticas (BARCENILLA; UNIBERTSITATEA, 2014).

É nessa contextura que o objetivo deste trabalho foi analisar a série Átomos, de Hilma af Klint, em termos de suas representações artísticas e científicas, vislumbrando um diálogo entre arte e ciência com desdobramentos para o processo educativo. Como questão de pesquisa, se propõe: quais aproximações podem se estabelecer entre a série de aquarelas Átomos e as concepções de átomos para a ciência? Problematiza-se, de tal modo, as representações artísticas em face às científicas, bem como o papel das representações na educação em ciências como meio de potencializar esse diálogo. Outro debate que este artigo inspira é a necessidade de se ampliar o reconhecimento das mulheres nas produções humanas, tanto artísticas quanto científicas.

Arte e ciência: confluências entre representações

O pensamento humano vem sendo historicamente construído e expresso por meio de variadas formas, sendo arte e ciência duas das mais importantes, as quais, sustenta Bronowski (1998), constituem um fio duplo de todas as culturas humanas. Para Paiva (2015, p. 157), é possível identificar que “[...] desde sempre a Arte esteve muito implicada na relação que o Homem foi estabelecendo com o conhecimento”.

Apropriar-se dessas expressões é, portanto, desenvolver-se como ser humano, como indivíduo, pela objetivação das culturas socialmente construídas. Segundo Vigotski (2001, p. 320): “[...] a arte é antes uma organização do nosso comportamento visando o futuro, uma orientação para o futuro, uma exigência que talvez nunca venha a concretizar-se, mas que nos leva a aspirar acima da nossa vida e o que está atrás dela”. Sob tal ponto de vista, o diálogo entre arte e ciência potencializa o desenvolvimento social e intelectual do ser humano. Ao se pensar esse diálogo no processo educativo, emerge a possibilidade de gerar novas e significativas experiências que podem promover uma relação de permuta, que toca e atinge o ser humano por meio dos sentidos, produzindo outras relações com o mundo. Tal argumento se sustenta na proposição de Vigotski (2010, p. 342) sobre a atitude sensível para o processo de significação:

Uma obra de arte vivenciada pode efetivamente ampliar a nossa concepção de algum campo de fenômenos, levar-nos a ver esse campo com novos olhos, a generalizar e unificar fatos amiúde inteiramente dispersos. É que, como qualquer vivência intensa, a vivência estética cria uma atitude muito sensível para os atos posteriores e, evidentemente, nunca passa sem deixar vestígios para o nosso comportamento.

Entre os pontos que conectam essas duas expressões da humanidade, Bronowski (1998) destacou a imaginação. Para o autor, esta é uma capacidade essencialmente humana, com a qual se podem produzir imagens e representações, movendo-as e rearranjando-as dentro da mente. Este é um processo criativo do qual emergem tanto a ciência como a arte, em especial as suas representações como materialização do pensamento. A expressão do conhecimento por meio de uma materialidade representativa se constitui em outro ponto a ser enfatizado na relação entre arte e ciência. De acordo com Paiva (2015), a história mostra que essa materialidade representativa dos conhecimentos relacionados à arte e à ciência tem se efetivado particularmente por meio da articulação entre escrita e formas visuais, sendo “[...] inegável que a aquisição de conhecimento pela via verbal sofreu uma grande transformação com a disseminação da gravura, dos livros, de modelos, da pintura a óleo, pelo cinema e, hoje mais que nunca, pela televisão e meios digitais” (PAIVA, 2015, p. 160). Para Zhu e Goyal (2019), embora os artistas e cientistas situemse geralmente em diferentes esferas culturais, ambos encontram motivação para seus projetos em atitudes de observação, análise e comunicação. Tal processo, que se dá tanto por acaso quanto intencionalmente, inspira e/ou fundamenta as criações que realizam, permitindo o desenvolvimento de formas e estratégias de expor as suas ideias ao mundo de tal modo que permita ao visualizador/leitor de suas obras uma conexão com as ideias que desejam comunicar.

Verifica-se, portanto, as representações como meio fundamental das artes e das ciências em seus esforços de produção e comunicação do conhecimento. Sob a ótica deste artigo, tais representações, artísticas e científicas trazem como um ponto de diálogo os modelos científicos, que são elementos fundamentais do trabalho da ciência e formam a base de raciocínio de cientistas, podendo ser vistos como uma representação de objetos, fenômenos ou situações (JUSTI, 2006).

Diferentes conceituações para o que é um modelo científico são apresentadas na literatura, como a de Gilbert e Ireton (2003, p. 1, tradução nossa) que sugerem o modelo como “[...] um sistema de objetos ou símbolos que representa algum aspecto de outro sistema”. Windschitl e Thompson (2006, p. 784) destacam os modelos como representações de como algum aspecto do mundo funciona. Além disso, é válido destacar que essas representações são múltiplas (inclusive para representar a mesma coisa, como os átomos), sua aceitação é provisória e fornece imagens simbólicas que correspondem a idealizações e simplificações acerca do fenômeno que se está a representar. Gilbert e Justi (2016) ampliam a ideia de modelos como representação, argumentando que estes se configuram como artefatos humanos, de alguma forma materializados, que estão no bojo do desenvolvimento e apropriação das práticas e dos conhecimentos científicos.

Todo modelo é construído com um objetivo (JUSTI, 2006). Deste, desdobram-se, observações iniciais, perpassando a seleção de fontes e criação de modelos mentais iniciais que são submetidos a novas fases de verificação e de validação frente ao objetivo estabelecido. Por fim, tais construções são socializadas e podem sofrer novos ajustes ou até mesmo serem rechaçadas. Para que esses processos ocorram a contento, a criatividade e a imaginação fazem-se presentes para a mobilização de conceitos abstratos e esquemas que expliquem pontos específicos da problemática enfrentada pelo modelo em questão (SAYÃO, 2001). Tais etapas, inerentes à construção de modelos científicos, assemelhamse, por sinal, com as criações artísticas, as quais também se utilizam de modelos e esquematizações para dar vida a obras realistas ou abstratas.

Como a obra de arte, o modelo [...] coloca à nossa frente algo que nos faz ver para lá do que está à vista, descreve objetos que não existem (retas infinitas, velocidades constantes, pêndulos absolutamente regulares, planetas perfeitamente esféricos) mas cuja densidade, profundidade, dinamismo, cuja luz interna permite compreender melhor o mundo que nos rodeia e de que fazemos parte. Por outras palavras, como a obra de arte, o modelo oferece um vislumbre vertiginoso de verdade. Tal é a visão efêmera, mas certeira, da linha reta que une quaisquer dois pontos, por mais próximos ou afastados que estejam, no modelo geométrico desenhado pelo primeiro postulado de Euclides. Tal é o aroma inesgotável que se desprende das flores tombadas sobre uma toalha branca nas naturezas mortas de La Tour, ou o som sem esperança do grito silencioso do quadro de Munch (POMBO, 2019, p. 2161).

Além das abstrações, para Pombo (2019, p. 2161), ciência e arte compartilham também o fato de todos os modelos “estabelecerem algum tipo de relação analógica com aquilo que pretendem modelizar”. De fato, as analogias, entendidas como instrumentos de mediação conceitual, são comumente adotadas no desenvolvimento e ensino de conceitos científicos (FRANCISCO JUNIOR, 2010) e nas diferentes formas de expressões artísticas (KRESS; VAN LEEUWEN, 2006).

Sabe-se que uma obra de arte é um sistema especialmente organizado de impressões externas e/ou interferências sensoriais sobre o organismo. Entretanto, essas interferências sensoriais estão organizadas e construídas de tal modo que estimulam no organismo um tipo de reação diferente daquela ocorrida habitualmente, e essa atividade específica, vinculada aos estímulos estéticos é o que constitui a natureza da vivência estética (VIGOTSKI, 2010).

Justi (2006, p. 174), por sua vez, defende que a criação de modelos permite essa (re) construção dos conhecimentos, tornando os estudantes aptos a “[...] analisar situações e tomar decisões sobre assuntos que têm a ver com conhecimentos científicos ou habilidades técnicas” de forma adequada, responsável, efetiva e criativa. Nessa perspectiva, argumentase que as expressões artísticas podem ser aliadas na construção de conhecimentos, pois os artistas e seus trabalhos, “cuja sensibilidade costuma intuir os padrões ocultos do drama humano” (DAMÁSIO, 2018, p. 13), podem servir de inspiração nesses processos de apropriação ou elaboração dos modelos científicos.

Não se pode olvidar, portanto, que o pensamento humano é configurado simultaneamente por razão e emoção, plenamente biológico e plenamente cultural (MORIN, 2011). Por outro lado, “os sentimentos não têm recebido o crédito que merecem, como motivos e monitores das proezas culturais do homem” (DAMÁSIO, 2018, p. 11). Assim, faz-se salutar uma educação que contribua com o rompimento da oposição natureza e cultura ao superar falsas dicotomias como os embates entre o lugar e a vez que a razão e a emoção ocupariam nos processos de ensino e aprendizagem (MORIN, 2011). Pensar em emoções, sentimentos e cultura faz lembrar da arte, de seus signos e significados múltiplos com os quais se pode aprender sobre as percepções e sentidos que atribuímos a nós mesmos, aos outros e ao mundo como um todo (POMBO, 2019).

Metodologia

Este trabalho se estrutura a partir da análise de 22 aquarelas de Hilma af Klint (quadro 1) componentes da série Átomos, apresentadas pela primeira vez na América Latina em 2018 pela Pinacoteca de São Paulo, no contexto da exposição Hilma af Klint: mundos possíveis, que reuniu um conjunto de 130 obras da artista (HILMA..., 2018).

Fonte: HILMA... (2018, p. 180-205).

Quadro 1 Conjunto de aquarelas da série Átomos, de Hilma af Klint, realizadas em 1917 

A análise foi pautada nos princípios da gramática visual, um conjunto teórico proposto por Kress e van Leeuwen (2006), capaz de orientar a análise de imagens e textos que se combinam no processo de comunicação. Para estes autores:

Assim como as gramáticas da língua descrevem como as palavras se combinam em orações, sentenças e textos, nossa gramática visual descreverá a maneira como os elementos representados - pessoas, lugares e coisas - se combinam em ‘enunciados’ visuais de maior ou menor complexidade e extensão (KRESS; van LEEUWEN, 2006, p. 1, tradução nossa).

A semiótica social é basilar nos princípios da gramática visual, havendo dois níveis importantes: a representação e a comunicação. A representação é atinente ao processo de produção do signo, estando este diretamente conectado à história, meio cultural, social e psicológico do produtor. Por isso, a dimensão histórica, particularmente científica e dos interesses da pintora foram consideradas para as análises empreendidas. Particularmente se considerou a gênese histórica do atomismo para servir de base ao debate que interrelacionasse as obras e a ciência.

Na comunicação considera-se o signo, sua articulação a este contexto e sua composição. Para van Leeuwen (2005, p. 179, tradução nossa), a “[...] composição fornece coerência e estrutura significativa a arranjos espaciais”. A composição refere-se à disposição dos elementos visuais - pessoas, coisas, cores, objetos etc. - no espaço, bem como ao modo em que se articulam para produzir mensagens e contemplação estética (VAN LEEUWEN, 2005). Buscou-se, então, tecer reflexões sobre essas representações artísticas criadas por Hilma af Klint com base na composição visual e disposição dos elementos constituintes das obras (quadro 1). Tal caracterização visual fornece informações para a interpretação das representações artísticas, as quais dão pistas para se traçar aproximações com a ciência.

Para auxiliar a análise em dimensões científicas, recorreu-se ao perfil conceitual de átomos proposto por Mortimer (2000), que considera quatro zonas: sensorialista, substancialista, clássica e quântica (quadro 2). Esse perfil representa concepções predominantes sobre as características dos átomos e estão em íntima relação com o seu desenvolvimento científico ao longo da história.

Quadro 2 Perfil conceitual para os átomos 

Zonas Características
Sensorialista Concepção contínua da matéria que nega a existência de espaços vazios entre as partículas materiais, inviabilizando o próprio conceito de átomo.
Substancialista Atribui propriedades macroscópicas aos átomos por meio de analogias com substâncias, não representa as partículas como um modelo, mas como realidade.
Clássica Concebe o átomo como a unidade básica de constituição da matéria, sendo regido pelas leis da mecânica, como qualquer outro corpo.
Quântica Concebe o átomo como um objeto quântico mais bem descrito por equações matemáticas do que por modelos ou analogias com a realidade macroscópica.

Fonte: Adaptado de Mortimer (2000).

Assim, as zonas supracitadas foram empregadas como categorias analíticas a priori para se entender as representações artísticas acerca dos átomos realizadas por Hilma af Klint em termos de suas características científicas. Outrossim, a discussão dos resultados considerou o diálogo entre arte e ciência com base em Vigotski e o papel das representações como mediadoras das relações entre esses campos do conhecimento.

Os átomos de Hilma af Klint

A série Átomos, produzida em 1917 e analisada neste artigo, situa-se em um período que, segundo a própria Hilma af Klint, “[...] ninguém segurava mais sua mão e suas próprias interpretações já começavam a aparecer nas pinturas” (VENTRE, 2018, p. 167). Trata-se, pois, de um importante registro da confluência entre ciência e arte aventada anteriormente. Particularmente, as obras em questão trazem inter-relações de seu momento histórico, quando em um prazo de aproximadamente duas décadas a compreensão da estrutura atômica foi ampliada e totalmente modificada por novos conhecimentos sobre o elétron, o núcleo e fenômenos a eles interligados (NOGUEIRA, 2019).

Em todas as representações de átomos criadas para a série em análise (quadro 1), com exceção da aquarela A, está presente a característica multimodal. A combinação texto-imagem atua na produção de sentidos (MARTINEC; SALWAY, 2005; RIBEIRO, 2016), por conseguinte, nas possibilidades de interpretação das ideias que a artista busca exibir acerca dos átomos, provocando reflexões sobre as semelhanças e diferenças entre as palavras e as imagens: aquelas, puramente simbólicas, estabelecem relações arbitrárias entre o dito e o objeto a que se referem; estas, ao contrário, principalmente icônicas, exibem muitas semelhanças com o tema que representam, embora sejam também simbólicas, posto que estão sujeitas à interpretação (HART, 2014). Outra característica semiótica recorrente diz respeito à composição visual, sempre pautada por divisão de planos (superior e inferior, esquerda e direita), assim como simetrias duais caracterizadas por quadrantes maiores e menores e divisões internas dos quadrados. No quadro 3 estão descritas algumas das características semióticas centrais do conjunto de aquarelas.

Quadro 3 Principais características semióticas das aquarelas 

Características semióticas Aquarelas
Combinação visual/textual Todas, exceção de A
Planos de simetria Todas (sendo A e B diferentes em termos de composição)
Simetria com quadrantes internos A, B, 1 a 4 e 9 a 20
Simetria com círculo central 5, 6, 7 e 8
Simetria com círculos de fronteira posicionados de modo diametralmente oposto Quadrados concêntricos internos 9 a 20

Fonte: Elaborado pelos autores.

De um modo geral, há um padrão na forma e divisão dos planos entre superior e inferior e esquerdo e direito, com uma diferenciação na composição interna e nas cores. A artista inicia a série Átomos com um padrão entre as aquarelas n. 1 a 4, caracterizado por uma simetria que usa quadrados subdivididos em outros quatro quadrados internos (quadro 1). Já nas obras de n. 5 e 8 estabelece novas formas com um círculo central que gera triângulos retângulos internos. Especialmente nas aquarelas n. 7 e n. 8 há uma espécie de ruptura de formas e cores. A partir da aquarela 9 até a 20, o padrão de quadrados com quadrados concêntricos internos permanece, também sendo empregados círculos externos que criam uma espécie de área compartilhada entre os quadrados.

Sabe-se que no início do século XX as modificações na compreensão da estrutura da matéria foram muitas. As recentes compreensões produzidas, e inovadoras, para aquela época, foram recebidas por grupos e indivíduos como ruptura com uma realidade de mundo, modificando o paradigma construído até então pela mecânica clássica (KUHN, 2017). O paradigma dual trazido na perspectiva quântica encontrou eco em artistas da época, como Salvador Dalí (ANDRADE; NASCIMENTO, GERMANO, 2007). Também foi o caso de Hilma af Klint, que, na série de aquarelas, buscou desenvolver ideias e princípios acerca da dualidade dos planos existenciais (SOUZA, 2019).

Essa dualidade pode ser percebida tanto nos planos superiores e inferiores quanto nos da esquerda e da direita, em cada aquarela. Pode ser verificada que a divisão de planos ocorre em todas as aquarelas da série (sempre com um quadrado menor à esquerda na parte superior e um quadrado maior à direita na parte inferior, bem como divisões em diagonais nos quadrados). Especialmente no caso da aquarela A (figura 1), isso se expressa pelo uso das cores preta e vermelha. Na aquarela n. 1 da mesma figura 1, notase planos que separam dois quadrados na parte superior e inferior, assim como, cortes geométricos dentro de cada quadrado, representativos das demais obras. As divisões podem ser interpretadas como as divisões do átomo em suas subpartículas. As simetrias internas também apresentam dualidade, seja pelas cores (aquarelas 1 a 4 e 12 a 20), círculo interno-quadro (5 a 8) ou posicionamento oposto dos círculos externos (aquarelas 9 a 20). A separação de planos, do ponto de vista da semiótica social, engendra realidades diferenciadas, sendo o plano superior àquele idealizado e o inferior o mais próximo do real (VAN LEEUWEN, 2005). Tal fato pode ser interpretado pelas diferentes realidades produzidas pela mecânica clássica e quântica, bem como a partir do paradigma dual. A explicação de Klint para as suas representações do átomo (figura 2, aquarela n. 8) reforça a incerteza dual de tais estruturas que estariam em constante mudança entre o repouso e a atividade. Essa dualidade nas aquarelas de Átomos causa uma impressão de que se pode rotacionar o átomo, vê-lo através de um outro plano de simetria, uma vez que as imagens sempre continuam para um outro lado, trazendo cores que ora se complementam, ora se contrapõem.

Fonte: HILMA... (2018, p. 181; 184).

Figura 1 Aquarelas A (esquerda) e n. 1 (direita) da série Átomos 

Fonte: HILMA... (2018, p. 190, tradução nossa).

Figura 2 Aquarela n. 7 da série Átomos, com destaque para o texto que compõe a obra traduzido para o português 

De acordo com Ventre (2018, p. 169), em toda a série Átomos, Hilma af Klint, de fato, “[...] explora as dinâmicas do micro e do macrocosmo em composições geometricamente abstratas”. Assim, ‘positivo’, ‘negativo’ e ‘neutro’, conceitos que dialogam com o que ainda é aceito para os átomos e suas partículas, podem ser observados quando se analisa os planos dessas aquarelas, nos quais se verifica regiões centrais neutras entre campos contrapostos: um positivo, outro negativo.

Nota-se um paralelo dualístico entre repouso e movimento, energia e matéria, tanto para o comportamento onda-partícula, quanto em termos do princípio da incerteza, estabelecido para o elétron por Heisenberg em 1927. Tais características permitem inferir que há um perfil quântico presente na obra de Klint que considera a incerteza e a dualidade sobre a matéria, ainda que a artista não tenha pintado seus átomos estando ciente dos conceitos e princípios mencionados, quiçá, antecipando-os por intuição. A artista também exibe uma percepção de que os átomos irradiam energia, ganham materialização e depois se tornam energia novamente, em correlação ao princípio da interconversão entre energia e matéria de Einstein.

Hilma af Klint ainda concebe o átomo como a unidade básica de constituição da matéria, mesmo que por muitas vezes ela se aproxime de uma via espiritual. Além disso, a artista parece demonstrar que a combinação entre átomos diferentes produz substâncias compostas (aquarelas n. 9, 10 e 11) e, ainda, átomos de mesma natureza que são representados por padrões de formas, tamanhos e cores (aquarelas n. 14, 15 e 16) regulares. Ao mesmo tempo, tal concepção é atravessada por outras características, que tornam a descrição do átomo uma representação complexa da artista. Nas aquarelas em análise, por exemplo, há descrições de Hilma af Klint sobre os átomos, como as encontradas na aquarela n. 7 (figura 2): “[...] o átomo tem ao mesmo tempo limites e capacidade para se desenvolver. Quando o átomo se expande no plano do éter, a parte física do átomo terrestre começa a brilhar”; e na aquarela n. 8 (figura 3): “[...] em repouso, move-se para dentro. Isso afeta o átomo terrestre com uma liberação de força”.

Fonte: HILMA... (2018, p. 190-191, tradução nossa).

Figura 3 Aquarela n. 8 da série Átomos, com destaque para o texto que compõe a obra, traduzido para o português 

Aqui, nota-se uma perspectiva fortemente sensorialista, que considera ao mesmo tempo uma natureza corpuscular (“o átomo tem limites”) e contínua da matéria (“o átomo se expande no éter”). Os planos superior e inferior também estariam ligados um ao outro por meio do éter. Verifica-se, ainda, a negação do vácuo, uma concepção que prevaleceu desde o mundo antigo até meados do século XVII, por meio da existência do éter. O éter teve um papel importante, sobretudo para a física no final do século XIX. Todavia, desde a antiguidade, o éter foi considerado uma entidade física à qual foi atribuída centralidade em fenômenos cujos corpos não se tocavam. Assim, este adquiriu um papel de intermediário em fenômenos de movimentos, rotações, atrações de campo, dentre outras propriedades mecânicas, segundo Martins (2005). Como pontua o autor, o éter precisa ser compreendido para além de uma entidade desnecessária para a ciência, pois, a partir desta crença e do estudo de suas supostas propriedades foi possível o desenvolvimento da dinâmica relativística e outros construtos.

De Maxwell a Lorentz e Poincaré, passando por Thomson, Heaviside, Poynting, Abraham e muitos outros, a crença no éter como o substrato físico fundamental dos fenômenos eletromagnéticos guiou o estudo de suas propriedades dinâmicas. Sem essa crença, [...] ninguém pensaria em atribuir energia, momento e massa ao espaço vazio (MARTINS, 2005, p. 23).

Da mesma forma que se aproxima das concepções científicas mais modernas, as representações de átomos de Hilma af Klint estão atravessadas por opções filosóficas e religiosas. O éter, no momento da produção de suas obras, ainda estava fortemente arraigado no pensamento físico. O próprio Einstein, que, inicialmente, não faz menção ao éter em sua proposição relativística, volta a adotar o termo em um texto de 1920 (MARTINS, 2005). Vale destacar que a negação do vácuo encontra eco no pensamento filosófico e científico desde o mundo antigo até meados do século XVII. Enquanto alguns pré-socráticos, especialmente os atomistas como Epicuro, defendiam a existência do nada, ou da natureza intangível, Platão e Aristóteles opunham-se a tal concepção, pensamento que vigorou por bastante tempo (MARTINS, 1989). Controvérsias sobre a existência do vácuo seguiram por séculos e ocuparam o trabalho e pensamento de cientistas como Torricelli, Pascal e Boyle. Até hoje, uma das principais concepções espontâneas é a negação dos espaços vazios da matéria e a elasticidade das partículas, o que recai a uma concepção substancialista como se verifica na afirmação de Klint de que “o átomo se expande no éter”.

Outra característica científica da obra é percebida entre as aquarelas 9 e 20, em que se observam círculos utilizados nos quadrantes, conforme pode ser visto mais detalhadamente na figura 4.

Fonte: HILMA... (2018, p. 191, tradução nossa).

Figura 4 Aquarela n. 15 da série Átomos 

Tais círculos são associados a uma espécie de estabilidade adquirida pelo átomo, como descreve Klint no texto associado à pintura: “O átomo alcança sua segunda propriedade, “Ordem e Clareza”. Isso evita a perda de energia” (HILMA..., 2018, p. 191, tradução nossa). A pintora parece exibir uma visão de estabilidade em termos de níveis de energia do átomo, que pode apresentar correlação com o modelo mecânico-quântico de Bohr, o qual estabelece a existência do átomo a partir de diferentes níveis de energia dos elétrons, sendo que no estado estacionário não poderia haver perda de energia por parte do elétron. Por outro lado, o elétron poderia alcançar um nível de energia mais elevado ao receber um quantum, que seria emitido na forma de luz para seu retorno ao estado energético inicial.

Nessa direção, percebe-se que a série Átomos carrega concepções que variam desde uma perspectiva sensorial, contínua e pautada no éter, até o caráter quântico, com aproximações ao próprio desenvolvimento das teorias atômicas. Mortimer (2000) acena para uma

[...] rota genética na construção do atomismo. A visão contínua da matéria é seguida, nessa construção genética, por uma visão substancialista, [...] esse modelo substancialista é um estágio intermediário na construção do atomismo científico. (MORTIMER, 2000, p. 346).

O autor ainda pontua que tal “rota genética é reforçada pelo exame da história”, bem como são universais, prevalecendo em concepções espontâneas. Considerando-se, portanto, os perfis conceituais de átomos propostos por Mortimer (2000), pode-se inferir que a concepção de átomo nessas obras de Hilma af Klint transita entre todas as zonas, sensorialista, substancialista, clássica e quântica, sendo menos comuns, as características substancialistas (quadro 4).

Quadro 4 Perfil conceitual para os Átomos de Klint em termos das representações artísticas 

Perfil conceitual Aquarelas Características artísticas
Sensorialista Todas Representações contínuas, sem espaços vazios, caracterizados por quadrados. O plano inferior está ligado ao superior por meio do éter.
Substancialista A, 1 a n. 11 Representações com atribuições de propriedades macroscópicas aos átomos, como cores e brilho.
Clássica Todas Todas as obras consideram a natureza particulada do átomo.
Quântica (dualismo e incerteza) Todas Representações duais com formas geométricas e objetos com esquemas reticulados que lembram planos cartesianos.
Quântica (níveis de energia) 9 a 20 Círculos externos conferem à noção de níveis de energia para os átomos.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Em termos gerais, verifica-se, portanto, que as características artísticas se interconectam e produzem uma coexistência de perfis conceituais. O caráter sensorialista é marcado pela continuidade das representações, sobretudo os quadrados. Estes, por sua vez, conferem uma natureza particulada aos Átomos de Klint, típico da noção clássica da matéria. A análise das explicações textuais, que acompanham algumas aquarelas, evidencia uma compreensão do átomo carregada por uma forte perspectiva corpuscular com ausência do vácuo. Hilma af Klint associa essa caracterização tangível dos átomos ao conceito de éter, como uma força que manteria essa estrutura. A visão substancialista foi menos notada, por implicar numa relação entre propriedades atômicas e materiais. Ainda assim, se fez presente na descrição sobre o brilho e cores dos átomos. Já características quânticas também se fizeram presentes em todas as representações, por meio da divisão de planos, uso de cores e formas geométricas que conferem um caráter dual. Além disso, as aquarelas de 9 a 20 apresentam círculos entre os quadrantes que, intrincadas a descrição textual da artista, podem se associar a noção de níveis de energia. Logo, infere-se que as representações trazidas pela artista permitiriam debater também a rota genética do próprio atomismo, conforme proposto por Mortimer (2000).

A transitoriedade e as controvérsias são evidenciadas nas obras de arte analisadas, assim como a multiplicidade semiótica e criatividade. Os modelos científicos, como representações parciais da realidade, se pautam também pela transitoriedade, pela criatividade, pela complexidade e por sua multiplicidade (SEOK OH; JING OH, 2011). Muitas vezes, inclusive, se afastam dessa realidade. A representação estrutural de uma molécula em um quadro branco, com letras e traços bidimensionais, pouco se aproxima do que é a molécula fisicamente. As representações de átomos de Hilma af Klint exibem tais características, permitindo esse diálogo histórico e filosófico sobre representações, artísticas e científicas, e as concepções dos átomos.

Para Vigotski (2001), a superação da dicotomia entre forma e conteúdo seria responsável pela estrutura de uma produção artística capaz do desenvolvimento de funções psicológicas superiores, tais como abstração, criatividade, imaginação, dentre outros. Assim, o desenvolvimento dessas organizações psíquicas se daria no âmbito mediado dessas representações. Não há razões, portanto, que justifiquem a apresentação da ciência e seus conhecimentos como produtos acabados, definitivos. Gilbert e Justi (2016, p. 11-12, tradução nossa) pontuam que:

No processo de aquisição dos conhecimentos e competências, os alunos viriam a apreciar o papel central desempenhado pelos modelos e modelagem na criação e validação do conhecimento científico e tecnológico. Quando essas capacidades são desenvolvidas, os estudantes podem ser capazes não apenas de interpretar dados considerados científicos, mas também de avaliar quaisquer afirmações feitas sobre o significado ou uso desses dados. Essas capacidades são os componentes centrais da alfabetização científica e são particularmente importantes quando modelos científicos são usados como base para o projeto de artefatos tecnológicos.

Do mesmo modo, as representações artísticas são múltiplas, inacabadas e apresentam limitações, refletindo a relação do ser humano com uma materialidade técnica. Vigotski (1998, p. 3, tradução nossa) pontua que o “[...] objetivo central da arte é o reconhecimento da superação do material da forma artística ou, o que dá no mesmo, o reconhecimento da arte como técnica social do sentimento”. Assim, igualmente como os estudantes podem vir a apreciar os modelos, suas representações e técnicas para a ciência, podem apreciar a representação e a técnica artística do sentimento. No bojo desse desenvolvimento psicológico, mediado entre arte e ciência, exigir-se-ia cada vez mais observações e análises capazes de alimentar a curiosidade e a sensibilidade dos indivíduos para estes conhecimentos. De fato, a realização do ser humano está justamente na imersão da cultura, e, ao buscar conhecer o mundo, reconstruindo seus produtos e processos a partir das singularidades e pluralidades (MORIN, 2011; POZO; CRESPO, 2009). Dada essa condição humana, bem como o caráter provisório que o saber científico possui, ele mesmo desemboca, muitas vezes, “[...] em profundos mistérios referentes ao universo, à vida, ao nascimento do ser humano” (MORIN, 2011, p. 15), precisando abrir-se para escutas mais sensíveis, criativas e reflexivas.

Ao conceber como objetivo da contemplação estética a superação material da forma artística (VIGOTSKI, 1998), a análise dessas obras de Hilma af Klint possibilita essa relação dialética, partindo da ideia de se conhecer algo, sob o nível da realidade social e concreta, inspirada pela ciência. Ainda conforme Vigotski:

Uma obra de arte vivenciada pode efetivamente ampliar a nossa concepção de algum campo de fenômenos, levar-nos a ver esse campo com novos olhos, a generalizar e unificar fatos amiúde inteiramente dispersos. É que, como qualquer vivência intensa, a vivência estética cria uma atitude muito sensível para os atos posteriores e, evidentemente, nunca passa sem deixar vestígios para o nosso comportamento (VIGOTSKI, 2010, p. 342).

O autor atribui a essa vivência da arte um efeito pós-cognitivo. No caso das aquarelas em questão, poderiam suscitar pensar a ciência como um saber histórico e provisório, inspirando a compreensão do processo de elaboração do conhecimento enquanto algo atravessado por dúvidas e incertezas, mas também pela criatividade e imaginação para contornar os problemas e dúvidas. Para Güney e Seker (2017), a correlação entre a dimensão estética da ciência e da arte com o conteúdo científico e artístico potencializaria o processo da educação científica. Os autores propõem que a análise histórica seria uma das formas para essa correlação.

Assim, vale destacar que Hilma af Klint mescla interesses pessoais com temas científicos em suas obras, o que resulta em abstrações geométricas de modo orgânico, muitas das quais se aproximando do surrealismo, em configurações dinâmicas de construções e reconstruções intensas que fazem lembrar o próprio processo de produção social do conhecimento científico, tendo em vista que a voz da ciência não é monolítica, mas sim uma ilimitada gama de possibilidades conceituais e imaginativas de criar (SOUZA, 2019).

Considerações finais

Com o objetivo de analisar a série de aquarelas Átomos de Hilma af Klint, o presente estudo buscou responder a seguinte questão de pesquisa: quais aproximações podem se estabelecer entre a série de aquarelas Átomos e as concepções de átomos para a ciência? Para tanto, se apoiou na gramática do design visual e perfil conceitual de átomos. Em um primeiro plano, pode-se destacar que, assim como o conceito de átomo é caracterizado pela complexidade e multiplicidade de representações científicas, os Átomos de Klint também são complexos, demonstrando diversidade de representações e conceitos. Nessa multiplicidade se incluem visões sobre a natureza contínua e corpuscular da matéria, natureza descontínua e dual da matéria, interconversão energia-matéria, princípio da incerteza, níveis de energia, bem como o éter como parte constituinte da matéria.

Da mesma maneira que os átomos são representados cientificamente de diferentes formas que coexistem, as obras carregam diferentes representações artísticas que se correlacionam com representações científicas, algumas aceitas em um determinado momento da história e abandonadas, outras ainda vigentes. Ao mesmo tempo que são percebidas aproximações de concepções científicas mais modernas, as representações de átomos de Hilma af Klint estão atravessadas por opções questões espirituais, tal qual a presença do éter. Tais concepções são representadas simultaneamente, conferindo além da complexidade, a noção de incerteza e provisoriedade ao conhecimento. A análise das aquarelas, no que tange às representações artísticas, demonstrou que o perfil conceitual de átomos coexiste e transita entre as zonas sensorial, clássica e quântica, sendo a substancialista a menos evidente. Da mesma forma que os indivíduos apresentam um perfil conceitual com diferentes zonas (MORTIMER, 2000), cada aquarela também se caracteriza por um perfil com zonas múltiplas.

As aproximações entre as aquarelas e as concepções científicas de átomos fornecem possibilidades de mediação artística, científica e histórico-social dentro de uma perspectiva de ensino. As representações trazidas por Klint podem ser exploradas em conjunto a rota genética do desenvolvimento do conceito de átomo. Sob o ponto de vista vigotskiano, vivenciar a arte amplia a concepção de um dado campo de fenômenos, levando-nos a “ver esse campo com novos olhos, a generalizar e unificar fatos” (VIGOTSKI, 2010, p. 342). Correlacionar as representações artísticas com as científicas permitiria a (re)construção das ideias históricas dos modelos atômicos científicos, fomentando a construção de um olhar que vai para além de ambas. A multiplicidade de concepções, associada à provisoriedade, criatividade e limitações que uma representação carrega, pode servir para ampliar o horizonte da visão de ciência, também provisória e limitada. Essas são possibilidades concretas ligadas ao ensino e que o binômio ciência-arte descortina. Todavia, sublinha-se a importância de um olhar para a linguagem multimodal e para a construção histórica dos conceitos, que conforme Mortimer (2000), possuem papel fundamental e, nesse caso, possibilitam a superação entre forma e conteúdo colocada por Vigotski (2001). As representações artísticas inspiradas em conceitos científicos podem dialogar com processos históricos de produção da ciência e suas representações, auxiliando os processos de produção e apropriação de saberes. Propõem-se, aqui, que a análise das aquarelas da série Átomos, com base na gramática do design visual e perfil conceitual, poderia contribuir para os processos educativos desses conceitos.

Nesses termos, a dimensão artística é criativa, ao oferecer oportunidades de construir imaginários diversos sobre a ciência e própria arte. Em termos pedagógicos, é possível criar espaços de aprendizagem dialógicos propondo-se interpretações e debates entre os estudantes, em coerência com as características multimodais e históricas das representações artísticas. O espaço para vivenciar e modelar interpretações científicas das obras poderia fomentar até mesmo (auto)indagações e (auto)regulação acerca das zonas do perfil do átomo. Quais comparações os estudantes fariam ao se deparar com as representações científicas dos átomos e as artísticas de Klint? Como retratam um mundo intangível a partir delas? Por que elas são modificadas e ainda coexistem? Qual a influência do contexto histórico e social na produção das representações artísticas e científicas? Essas são algumas problematizações pedagógicas possíveis, mas que o presente trabalho não tem condições de ora responder. Ao mesmo tempo, espera-se problematizar novas possibilidades da utilização, análise e criação de representações (sobre as obras artísticas e modelos científicos) como formas discursivas multimodais potencialmente capazes de nutrir a imaginação e a criatividade no âmbito da educação em ciências. Por conseguinte, as representações de átomos, elaboradas por Hilma af Klint, configuramse em oportunidades de diálogo concreto entre representações artísticas e científicas, pautadas na história dos modelos científicos atomísticos.

Tal diálogo é fortalecido pela análise multimodal empreendida, que parece ser fundamental para se estabelecer as conexões entre a obra de arte e a ciência. O potencial da pintura na correlação com o desenvolvimento do conceito de átomo é mais bem aproveitado a partir do conhecimento do contexto histórico, tanto da produção dos conceitos quanto das obras e dos agentes humanos e não humanos que se fizeram presentes. Além da criatividade e imaginação, fios que interconectam as representações da ciência e da arte, a história é também fio condutor desse diálogo. Entretanto, o campo da prática pedagógica em que ciência e arte dialogam ainda precisa ser trilhado no âmbito do ensino de ciências. Ainda não é possível vislumbrar como esse processo se concretizaria no plano cognitivo do estudante, ou mesmo do professor. Esse talvez seja um caminho a ser explorado em investigações futuras, que o presente trabalho fornece.

Por fim, ao sustentar reflexões com base em obras de uma artista mulher, este texto não poderia ser encerrado sem antes sinalizar a dimensão histórico-social e a posição de seus autores acerca da necessária ampliação da inserção e do reconhecimento do trabalho artístico e científico de mulheres, em particular, tendo em vista as persistentes condições de desigualdades de gênero que, infelizmente, ainda são encontradas nas diferentes áreas de atuação profissional. Logo, trazer para a sala de aula a análise das obras de Hilma af Klint possibilita ainda a discussão de questões de gênero nos processos de ensino, particularmente das questões históricas e sociais que influenciam a representatividade e a participação das mulheres em diversos setores da sociedade, como a ciência e a arte.

Agradecimentos

W. E. Francisco Junior agradece ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela bolsa de produtividade em pesquisa. B. M. S. Pereira agradece à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela bolsa de doutorado.

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Recebido: 19 de Janeiro de 2023; Aceito: 07 de Junho de 2023

Autor correpondente: wilmo.junior@arapiraca.ufal.br

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