Algumas obras morrem porque nada valem; estas, por morrerem logo, são natimortas. Outras têm o dia breve que lhes confere a sua expressão de um estado de espírito passageiro ou de uma moda da sociedade; morrem na infância. Outras, de maior escopo, coexistem com uma época inteira do país, em cuja língua foram escritas, e, passada essa época, elas também passam; morrem na puberdade da fama e não alcançam mais do que a adolescência na vida perene da glória. Outras ainda, como exprimem coisas fundamentais da mentalidade do seu país, ou da civilização, a que ele pertence, durando tanto quanto dura aquela civilização; essas alcançam a idade adulta da glória universal. Mas outras duram além da civilização, cujos sentimentos expressam. Essas atingem aquela maturidade de vida que é tão mortal como os Deuses, que começam mas não acabam, como acontece com o Tempo; e estão sujeitas apenas ao mistério final que o Destino encobre para todo o sempre.
Fernando Pessoa
Educação popular e ensino superior em Paulo Freire será decerto o último texto de Celso Beisiegel a vir a público, uma vez que, em novembro de 2017, seu autor, nosso querido mestre, nos deixou. O texto reitera a potência de sua escrita cuidadosa, evidenciando a competência dos argumentos, bem como a abertura para a controvérsia acadêmica e suas decorrências plurais. Ao mesmo tempo, oferece novos itinerários para a pesquisa em face dos desafios contemporâneos que envolvem o processo de democratização da educação pública no Brasil, por meio da instigante e quiçá inesperada relação que estabelece entre a educação popular e o ensino superior, tendo como referência os escritos do educador pernambucano. 2
O legado que esta última reflexão apresenta dá continuidade a uma rica trajetória intelectual, acadêmica e política vivida pelo querido professor. Impõe-se, assim, uma breve retomada de momentos de sua biografia de modo a ressaltar a importância desta publicação, viabilizada pelos esforços coletivos empreendidos pelos editores da Revista Educação e Pesquisa . Espera-se, ainda, que as últimas reflexões do professor possam alcançar um conjunto diversificado de leitores/as, em especial das novas gerações, que enfrentam desafios relevantes diante dos dilemas que dilaceram a sociedade brasileira na segunda década do século XXI. Se tais desafios não são de pequena monta, eles se tornam significativamente mais complexos diante da rara presença de intelectuais e pesquisadores universitários capazes de oferecer, por meio da escrita, um conjunto de ideais que alimentem o espírito investigativo e plural marcado por um estilo competente, respeitoso e elegante, como o de Celso Beisiegel.
Um brevíssimo atalho
Domingo de sol, novembro de 2017. Estávamos reunidos – familiares, amigos e alunos – para prestar nossas últimas homenagens ao mestre Beisiegel.
Compartilhávamos nossa tristeza em face da realidade inexorável das transições que marcam o percurso de nossas vidas e que, mais cedo ou mais tarde, nos conduzem ao momento de separação. Sóbrio e discreto, o ritual de despedida espelhou o modo como o querido mestre construiu sua vida pessoal e acadêmica, com as máximas generosidade, colaboração, seriedade, dedicação e competência – marcas indeléveis de sua trajetória como professor da Faculdade de Educação da USP.
Naquele momento, trouxe-nos conforto a lembrança da cerimônia que marcou o reconhecimento público de sua importância para a instituição: a outorga do título de Professor Emérito, atribuído pela Congregação da Faculdade de Educação da USP em 2006, um ano após sua aposentadoria compulsória. O evento prestou-se a ser um agradecimento coletivo genuíno presenciado pelo mestre, oportunizando o reencontro com amigos e amigas, colegas e estudantes de várias gerações.
Nos interstícios da tristeza da despedida última, afirmava-se, entretanto, a certeza reconfortante de que, ainda em vida, foi possível a todos/as nós exprimir e proporcionar ao mestre o reconhecimento público de nossa gratidão.
Em seu discurso na cerimônia de outorga do título, o professor explicitou, novamente, sua disponibilidade: “Embora aposentado, continuo, e, se possível, espero continuar atuando na instituição” (BEISIEGEL, 2009, p. 244). 3
Ao reiterar o propósito de permanecer colaborando na pós-graduação como docente e orientador, exprimiu naquele momento solene uma inequívoca valorização do oficio do ensinar, materializada na permanente atenção com a formação dos profissionais na área da Educação e dos futuros pesquisadores.
Professor de Sociologia da Educação a partir de 1970, acompanhou o nascimento da Faculdade de Educação da USP em dezembro de 1969, no epicentro dos tempos sombrios e conturbados da ditadura militar, caracterizados pelo cerco à Universidade pública e pelas dezenas de aposentadorias compulsórias e precoces dos melhores quadros intelectuais, pela diuturna repressão aos estudantes e seus movimentos, pela proliferação de esquemas de vigilância e de denúncias, pela gana, enfim, de ceifar a atividade docente e sua necessária autonomia.
Ressalte-se que os compromissos com a escola pública e sua democratização, confirmados na prática docente por mais de quatro décadas, eram anteriores ao exercício do magistério superior na USP, quando foi convidado para ministrar a disciplina Sociologia da Educação no curso de Pedagogia.
Em 1958, Beisiegel assumiu a direção do ginásio estadual noturno em Vila Anastácio, bairro popular da periferia paulista, criado no interior da primeira expansão desse nível da escolaridade na cidade de São Paulo 4 . Conciliou, assim, a formação em Ciências Sociais com as atividades inerentes à direção de escola pública e estágio, iniciado em 1957 no Centro Regional de Pesquisas Educacionais, este instalado no espaço que deu origem ao complexo de construções que constituem até os dias atuais a Faculdade de Educação da USP.
No início da década de 1960, Beisiegel participou do programa de construções escolares do governo Carvalho Pinto. Na área de planejamento, buscou a consolidação dos recentes processos democratizadores do acesso à escola pública estadual na capital paulista, os quais demandavam infraestrutura adequada a uma rede que começava a se expandir. A criação dos novos ginásios como seções noturnas ocorreu mediante o uso dos edifícios destinados até então aos grupos escolares, caracterizando o improviso e a provisoriedade das respostas dos gestores públicos às demandas populares. Afastou-se dessa função no início de 1963, quando Adhemar de Barros assumiu um segundo mandato no governo do Estado e as possibilidades de uma intervenção coerente com seus princípios se esgotaram.
Beisiegel retornou ao CRPE em 1963, sob a batuta de Florestan Fernandes, a fim de realizar o treinamento em atividades de pesquisa nos cursos de formação ali oferecidos. Duas bolsistas, alunas de Paulo Freire em Recife, solicitaram sua colaboração em um projeto de alfabetização de adultos que seria realizado na cidade de Osasco, como experiência-piloto de aplicação do método Paulo Freire.
A partir desse encontro, Beisiegel também enveredou por caminhos que o levaram a conhecer movimentos inspirados em Paulo Freire que, após o golpe de 64, se voltavam para a alfabetização de adultos em meios populares, tendo como marco sua participação em uma experiência na cidade litorânea de Ubatuba.
Em meio a orientações ideológicas divergentes, algumas vezes conflitantes, as iniciativas desse período podem ser traduzidas como um amplo esforço de valorização da cultura popular e de reconhecimento dos direitos educativos dos homens e mulheres das classes subalternas, sobretudo os não alfabetizados excluídos dos direitos políticos no período.
Conviveu com o grupo de ativistas da denominada esquerda católica, mantendo, como sempre, elegantes e ponderadas controvérsias sobre o horizonte da Educação Popular. De modo fraterno, honrou a diversidade, atitude diversa do sectarismo que estimula a dissidência, esmorecendo as possibilidades da harmonização dos esforços para o enfrentamento das grandes batalhas.
Nesse momento de encontro e de práticas em diálogo com o educador Paulo Freire, Beisiegel considerou o paradoxo que o constituía: certamente Paulo Freire inaugurou uma nova condição para a reflexão sobre o ato educativo em sua dimensão política. Há sim, diz ele, um antes e um depois de Paulo Freire, mas este intelectual é, ao mesmo tempo, fruto de uma época rica e criativa ( MORAES, 2009 ).
De início recusado na USP, o pensamento e a prática de Paulo Freire encontraram morada no belíssimo trabalho de livre-docência de Beisiegel: Política e educação popular: a teoria e a prática de Paulo Freire, no Brasil ( BEISIEGEL, 1982 ).
Há de se sublinhar, igualmente, o fato de que, na Faculdade de Educação da USP, desde sua criação, os conteúdos das disciplinas sob sua responsabilidade constituíram os marcos fundadores da atual área de Sociologia da Educação. Preocupado com a formação das novas gerações, sempre ofereceu um amplo quadro teórico que apresentava os grandes pensadores das Ciências Sociais, mesmo que, nos idos dos anos 1970, alguns deles fossem tratados de modo indireto mediante as cotidianas ameaças da repressão. Wright Mills, Peter Berger, Karl Mannheim, Thomas Marshall e Rodolfo Stavenhagen eram abordados, anunciando as matrizes teóricas fundantes da Sociologia: Emile Durkheim, Max Weber e Karl Marx. Este último, rigorosamente apresentado e discutido nas aulas, era tratado de modo indireto por meio da leitura de Ralf Dahrendorf, à sombra das previsíveis e perversas consequências advindas do momento político. Beisiegel era, em suma, o professor que na sala de aula buscava despertar nos alunos a imaginação sociológica (MILLS, 1965).
Suas aulas, no ensino de graduação, prolongaram-se até o momento de sua aposentadoria em 2005, ao lado de uma contínua presença na pós-graduação, a qual se estendeu até 2014. A longeva carreira docente possibilitou a formação de várias gerações de profissionais e pesquisadores na área da Educação, espraiando-se pela generosa, rigorosa, competente e solidária atividade de orientação dos mestrados e doutorados.
A docência, ao lado da orientação, consistiu em uma faceta decisiva, mas não exclusiva, de seu compromisso com o caráter público da USP. Beisiegel aceitou o desafio de colaborar, também, com a árdua tarefa da gestão acadêmica, tendo sido Chefe de Departamento, em dois momentos diversos, Presidente da Comissão de Pesquisa, Vice-Diretor, e, depois, Diretor da Faculdade de Educação da USP, além de Pró-Reitor de Graduação da USP no início dos anos 1990.
Seu engajamento institucional, derivado de um irretorquível compromisso político com a democracia, as liberdades civis e a autonomia da Universidade, já era perceptível em sala de aula em 1975, quando participou das manifestações de repúdio ao assassinato de Wladimir Herzog, professor da ECA, nas dependências da polícia política em São Paulo. Beisiegel marcou sua presença combativa na primeira e prolongada greve de professores que mobilizou a Faculdade de Educação em 1979. Virtudes raras nos dias atuais, como firmeza, equilíbrio, ponderação, capacidade de escuta e de negociação, foram aquelas encarnadas pelo mestre e homem público Celso Beisiegel.
Itinerários do pesquisador
Retomando sua trajetória intelectual, no discurso de outorga do título de professor emérito, Beisiegel evidenciou o imprevisto, o não planejado, as contingências que fomentaram os contornos e as preocupações fundantes de seu projeto intelectual. Para ele, a confluência das experiências de trabalho traçaram seu percurso, somando-se à sua formação em Ciências Sociais na USP. Aos poucos, na bricolagem do artesanato intelectual (MILS, 1965), desenhou seu percurso, reiterando a tradição da denominada Escola Paulista de Sociologia ( ARRUDA, 1995 ). Discípulo de Florestan Fernandes e contemporâneo de Luiz Pereira, Octavio Ianni, e Fernando Henrique Cardoso, participou com o seu mestre da Campanha em Defesa da Escola Pública , em 1961, defesa idêntica à que marcou seu combate político e seu percurso intelectual até o fim da vida.
Beisiegel constitui, assim, ao sabor das contingências e do acaso, uma profunda intuição intelectual acerca da relevância do tema central por ele perseguido: o direito à educação pública para todos/as, sobretudo para os segmentos subalternos, os quais representam a imensa maioria da população.
Seus trabalhos sobre o processo de democratização da escola pública no Brasil, traduzido na ampliação das oportunidades de acesso aos degraus mais avançados da escolaridade, exprimem seu projeto intelectual vincado, de modo coerente, à perspectiva de uma sociologia histórica, distante, por sua vez, de um estruturalismo abstrato prevalecente no debate intelectual no início dos anos 1970.
Beisiegel firmou, assim, a originalidade do seu pensamento ao articular as interações entre mudança social e mudança educacional, além das modalidades diversas e muitas vezes conflitantes que orientaram a ação do Estado (BEISIEGEL, 1974). Sob essa perspectiva, os conceitos sociológicos clássicos foram alavancados para a constituição de um amplo conjunto de estudos, os quais permitiram a compreensão dos processos sociais mais amplos: a urbanização e a industrialização, posteriores aos anos 1930, bem como a emergência das classes populares e suas aspirações na interação com a cena política, caracterizada pelo populismo e a consequente disputa das elites pelo voto popular. Enfim, um conjunto de processos sociais e políticos que permitiram compreender os meandros da democratização do acesso ao ensino público.
Para muitos pesquisadores, a abertura de novas oportunidades de acesso à escola pública foi considerada mera massificação ou, de modo apenas descritivo, a expansão do ensino. No entanto, Beisiegel reiterava, por meio de uma polêmica respeitosa e elegante, permeada por toques de humor, o caráter dessa oferta: produtora de novas desigualdades, imperfeita, limitada, contraditória, porém democratizadora.
Em decorrência dessas orientações, inaugurou, de modo absolutamente inédito, a discussão sobre a qualidade de ensino, questão que ocupa o debate sobre a escola pública há pelo menos cinco décadas, mas ainda carente do reconhecimento das formulações de Beisiegel, uma vez que a temática não se configura de modo estritamente pedagógico, curricular ou como produto de derivações dos denominados diagnósticos em torno das avaliações internacionais, na esteira dos debates mais recentes.
Suas primeiras formulações, datadas de 1974, sobre a noção de qualidade do ensino , deslocaram as afirmações do terreno estritamente pedagógico ou didático. Sem a discussão dos pressupostos ideológicos e políticos que orientam a defesa da qualidade, o pensamento social corre o risco de voltar ao passado e defender a qualidade da escola destinada a poucos. Sem um ponto de vista sólido que delimite os parâmetros orientadores da aferição da denominada qualidade do ensino, não há discussão séria possível. Daí que a transformação de um ensino de minorias em uma escolaridade tendencialmente aberta e universalizada produz realidades diferentes e incomparáveis.
No entendimento de Beisiegel, o reconhecimento das mazelas da escola atual deve se desdobrar no interior de uma reflexão sobre sua profunda transformação. Se o parâmetro estiver calcado na “ boa ” escola destinada às elites, a única solução possível seria a volta a esse mesmo padrão que excluiu a maioria da população dos direitos educativos. Não obstante o conjunto de mudanças educacionais ocorridas após suas primeiras formulações, o tema da qualidade de ensino permanece atual, sinalizador de uma perspectiva profundamente comprometida com a democracia e os direitos das maiorias.
Sua análise, inspirada na fecunda proposta de Max Weber, da ação do Estado e suas diferentes modalidades típicas de intervenção, traduz uma originalidade passível de compreensão das ações públicas relativas à oferta de serviços educativos que não será facilmente superada, uma vez que oferece novas possibilidades de investigações-chave para estudos posteriores.
A inequívoca formação teórica de Beisiegel, fortemente ancorada na obra de Marx, não impediu a abertura para os estudos da sociologia da ação de Max Weber, e para as contribuições advindas da fenomenologia expressas no belíssimo trabalho de Peter Berger e Thomas Luckman, A construção social da realidade (1974). A historicidade dos processos sociais consolidou os parâmetros da reflexão de Beisiegel, ao tomar parte de um grupo de intelectuais que optaram por uma sociologia enraizada , na acepção cunhada por José de Souza Martins (MARTINS, 1997). O diálogo atento com a sociologia produzida fora do Brasil a partir dos anos 1970 permitiu, também, a incorporação do que melhor havia da produção internacional em suas análises. Mas Beisiegel sempre alertava para as devidas cautelas a serem tomadas, defendendo as necessárias mediações entre os quadros teóricos e as realidades históricas concretas, ingredientes imprescindíveis para uma produção sociológica de qualidade.
Educação popular e Paulo Freire
Ainda nos anos 1970, Beisiegel estabeleceu os marcos conceituais que definiriam o seu entendimento do que seria a Educação Popular. Sempre considerou as possibilidades múltiplas de tratamento desse tema complexo, mas, para facilitar os termos da análise e constituir o núcleo do seu pensamento, estabeleceu dois recortes. O artigo Cultura do povo e educação popular , publicado inicialmente em 1979, exprime com clareza as diferentes orientações que marcaram os debates (BEISIEGEL, 2009).
Para um conjunto respeitável de atores e intelectuais, a Educação Popular seria aquela que, ao ser praticada, se tornaria capaz de responder aos autênticos interesses dos grupos populares. Assim, grande parte do ideário que aglutinava ativistas, intelectuais e pensadores, desde o início dos anos 1960 até os dias atuais, localiza-se nesse conjunto de ideias, não obstante sua heterogeneidade interna. Mas o querido mestre apontava: quem define os interesses do povo?
É coisa muita natural para esses que se envolveram existencialmente nessa atividade junto às classes populares, que a educação popular seja aquilo que eles praticam, aquilo que eles fazem. O que é a educação popular? É esta educação que nós fazemos.
E eu venho de uma linha um pouco diferente. Eu trabalhei com Fernando de Azevedo, Florestan Fernandes, gente que já trabalhava com educação popular até antes que esses quadros tivessem se formado. Para mim, educação popular é a educação que chega às classes populares. (apud MORAES, 2009 , p. 130, grifos meus).
Diante desse quadro, sem negar o caráter fecundo das iniciativas, Beisiegel consolidou, de modo original, outra perspectiva da Educação Popular e, ao mesmo tempo, integrou em suas análises a relevante contribuição de Paulo Freire. Não só porque foi necessário reconhecer no interior da academia a inequívoca contribuição de um intelectual que certamente foi um divisor de águas no pensamento educacional brasileiro, mas também porque as formulações ético-políticas deste pensador foram interpretadas de modo criativo por Beisiegel, ao encontrar em Paulo Freire elementos inspiradores para o exame de temas tão distantes e aparentemente desconexos.
Por essas razões, para todos nós, a leitura do seu último texto – Educação popular e ensino superior em Paulo Freire – provoca reflexão, traça inquietações e descortina novas possibilidades. De início, reconhece a pouca presença, nas reflexões do educador, de menções ao ensino superior, mesmo tendo passado pela experiência da docência universitária no Recife, na Suíça, no Chile, nos Estados Unidos, na Unicamp e na PUC paulista. Mas o reconhecimento do pesquisador atento não impede a recuperação de momentos importantes de uma reflexão ético-política. Em um dos momentos do artigo, Beisiegel aponta que Paulo Freire
[...] afirma, enfaticamente, que a aproximação da universidade aos interesses das classes populares não poderia ser entendida como ausência de compromisso com o rigor e a competência. Pelo contrário, envolvia rigorosa preocupação com a qualidade da docência e da pesquisa científica.
A sugestão de novas pesquisas que possam reconstituir as reflexões do educador sobre o ensino superior poderia percorrer uma rica variedade de fontes – livros, artigos, entrevistas, cartas 5 , depoimentos de contemporâneos –, vindo a constituir um rico acervo para recuperar essa dimensão oculta e pouco conhecida do pensador.
Mas uma outra chave se abre na esteira das reflexões empreendidas por Beisiegel sobre a educação popular: as recentes e incompletas transformações observadas no ensino superior e a expansão, ainda que incipiente, da oferta de vagas na Universidade pública nas primeiras décadas do nosso século.
Para Beisiegel, a partir de sua compreensão da Educação Popular, estaríamos diante de uma conjuntura histórica que ampliou as aspirações e o acesso à escolarização, uma vez que segmentos das classes populares começaram a ter presença mais efetiva no ensino superior.
Decorrentes de um conjunto de ações governamentais empreendidas na primeira década de nosso século, as denominadas políticas afirmativas conformaram um conjunto heterogêneo – é forçoso reconhecer – nem sempre voltado para a consolidação do caráter público da educação, mas apontaram novos dilemas para o ensino superior, sobretudo aqueles enfrentados pelas Universidades públicas.
O acesso de egressos do ensino médio público e dos segmentos populares, bem como de negros e de indígenas, a um degrau novo da escolaridade, tornando o contingente discente universitário mais diversificado, suscita o desafio de compreender o sentido de tal presença, resultando no necessário enfrentamento do tema da qualidade do ensino e da permanência daqueles que nela ingressem até a conquista da titulação. Em síntese: do que se trata a defesa da democracia e do direito à educação pública nos dias de hoje, sob o ponto de vista ético-político? Trata-se de uma nova dimensão da Educação Popular concebida como uma oferta da escolaridade que alcança as classes populares? As contribuições de Paulo Freire poderiam inspirar um conjunto novo de problemas a serem investigados?
As análises de Beisiegel, é certo, nos convidam a realizar um amplo programa de investigações e uma cartografia aprofundada dessa nova configuração histórica. Estaríamos, assim, diante de novos desafios para a Educação Popular.
Por outro lado, é temerosa a incorporação empobrecida, meramente discursiva e ritualista das ideias de Paulo Freire nos currículos dos cursos de formação universitária. Daí ser relevante indagar: não seria desafiador examinar as iniciativas institucionais e informais que tentam responder a essa nova quadratura? Não seria mais provocador examinar nossas práticas na sala de aula? Como os professores são afetados por estudantes oriundos/as das classes subalternas – homens e mulheres negros, brancos e indígenas – em seu fazer cotidiano? Estamos órfãos de orientações que ousem superar a retórica do paternalismo, a fim de realizar imersões e investigar com rigor as práticas, reconhecendo as contingências, seu caráter submerso e limitado, mas, talvez, portador de potências insuspeitas?
Diante de questões que ainda não oportunizaram respostas à altura das questões que as suscitam, tomo a liberdade de remeter o leitor ao texto que ora vem à luz. Ele diz muito, nos inquieta, nos toca. Em tempo: após 40 anos de docência no ensino superior, deparei-me com o inusitado, renovando e ampliando perguntas e perplexidades.
Boa leitura!
Março de 2018