Introdução
A educação superior no Brasil e no mundo passa, nas últimas décadas, por profundos processos de transformação. Esse nível educacional tornou-se massificado e diversificado e sua relevância é destacada cultural, econômica e politicamente por todo o globo. No entanto, ainda é fortemente impactado pelas desigualdades sociais e demográficas de um modo geral, como mostra uma larga e diversificada literatura na área. Como diz Prates e Collares (2014 , p. 57): “não há uma relação linear entre a ampliação do acesso e a redução da iniquidade no sistema [de educação superior]”. Ou Silva (2003 , p. 105), para quem um dos paradoxos mais observados hoje é a expansão dos sistemas educacionais nas sociedades modernas e a resistência desses ao aumento de equidade.
Nesse cenário, a democratização da formação na educação superior aparece como uma meta nos mais variados discursos e estratégias de agentes políticos e civis: a busca por maior igualdade e equidade nas condições do acesso, permanência e qualidade marca, em grande medida, a justificativa das propostas e políticas de reestruturação desse setor do sistema educacional. Esse esforço contemporâneo busca romper com os laços de reprodução entre a desigualdade do mundo social e o universo educacional, que caracterizam o sistema educacional moderno em sua histórica função conservadora de posições, hierarquias e prestígios sociais diversos, dissimulada, sobretudo, pelo discurso meritocrático ( BOURDIEU; PASSERON, 2009 ).
Concomitantemente, o advento e proliferação das Novas Tecnologias da Informação e Comunicação (NTICs) reforçaram esse ideário e agenda política. O uso do ambiente virtual para práticas educacionais mostra, dentre outras funções, um poderoso instrumento para reduzir barreiras de espaço-tempo, bem como de recursos, colaborando para uma democratização desse nível do sistema. Localidades, pessoas e grupos sociais historicamente excluídos ou sub-representados nas instituições presenciais poderiam, a partir dessa mudança de paradigma, ser inseridas com mais facilidade.
Em especial no Brasil, após um longo histórico descontínuo e uma posição ainda muito marginal no sistema, a Educação a Distância (EaD), hoje baseada em ambientes virtuais online , cresce vertiginosamente como modalidade e metodologia de ensino-aprendizagem. Na educação superior, é uma das responsáveis por manter a expansão das matrículas nos últimos anos, como também traz pretensões democratizantes. Um olhar debruçado acerca dessa modalidade esclareceria o atual quadro da educação superior no país e suas tendências e realidades no tocante à superação da reprodução.
A Universidade Aberta do Brasil (UAB) é uma política pública, articulada com um conjunto de políticas educacionais que tem modificado a educação superior. Na prática, essa política forma um sistema que, desde 2006, dentre outras funções, articula nível federal, estadual e municipal na oferta de educação a distância de nível superior em convênio com IPES (Instituições Públicas de Ensino Superior)4. Diferentemente de outros modelos de Universidades Abertas do mundo, como a pioneira Open University (RU), que é uma instituição especializada em EaD, a UAB age sob a sigla e status de uma IPES, estimulando a bimodalidade desta. A UAB não é uma instituição, mas um sistema que interioriza os cursos das IPES pelo país para atingir “camadas da população que têm dificuldade de acesso à formação universitária” ( CAPES, 2015 ). Age por meio de polos de apoio presenciais e plataformas virtuais, articulando diferentes níveis federativos e políticos, e tem foco nas licenciaturas. Sua coordenação geral tem sido realizada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), do Ministério da Educação.
Utilizando-se da imagem de Filarte (2003 apud GRIPP; BARBOSA, 2014 , p. 41), a UAB faz com que uma IPES se torne uma “universidade-mãe” que se ramifica, física e virtualmente, entre antenas que atingem regiões e grupos antes pouco assistidos.
Esse programa leva consigo, além de diferenças no nível de modalidade, um modelo institucional muito diversificado, em partes para além e independentes das IPES, e exigindo uma cooperação entre os vários níveis político-administrativos. Essa configuração complexa em busca da democratização da educação superior pública possibilitaria a pretendida democratização? Ou seja, tornaria as IPES acessíveis a setores sociais até então excluídos destas? Ou a diversificação institucional e de modalidade educacional geraria uma dualidade intrainstitucional com desnível entre o presencial e o a distância? Em última instância: estaríamos diante de uma reprodução por outros meios mais sutis que a mera exclusão de setores sociais do sistema?
Esse questionamento acerca de em que medida e como a complexificação do sistema educacional e a diversificação do seu público causam uma ruptura ou não no aspecto reprodutor da educação é algo presente na literatura da sociologia da educação contemporânea, que visa a consolidar e a refinar um eixo estruturante do campo que é a teoria da reprodução social ( VILELA; COLLARES, 2009 ). Para essa teoria, a exclusão e segregação “precoce e brutal” dariam lugar a novos e complexos mecanismos de reprodução internos ao sistema, mais sutis, “brandos” ( BOURDIEU, 2010 , p. 219-222). Surgiriam, dessa forma, oximoros como a clássica “exclusão do interior”, nos termos de Bourdieu.
Assim, as transformações de aparência democrática no sistema educacional contemporâneo poderiam vir para a conservação e a manutenção das desigualdades e hierarquias sociais. Para Bourdieu (2010) , essa atualização faz com que o sistema educacional expandido e:
[...] no entanto, estritamente reservado a alguns, consiga a façanha de reunir as aparências da “democratização” com a realidade da reprodução que se realiza em um grau superior de dissimulação, portanto, com um efeito acentuado de legitimação social. ( BOURDIEU, 2010 , p. 223).
Ou seja, fundamenta-se sob os signos do engodo e do simulacro. Derouet (2002 , 2004 ), no mesmo sentido, comenta que as classes privilegiadas diante da complexificação do cenário articulam uma “nova distinção correspondente a sua posição” ( DEROUET, 2004 , p. 139), continuando, por outras vias (seleção de estabelecimentos e carreiras, por exemplo), a reprodução socioeducacional. Também para Dubet (2001 , p. 8-9), “a igualdade cresceu porque a educação não é mais um bem raro, beneficiando a todos, mas ela se tornou um bem muito mais hierarquizado quando as barreiras foram substituídas pelos níveis”, e, com isso, classes e setores sociais superiores continuariam a ter monopólio dos melhores e mais rentáveis ramos formativos.
Prates (2007) , seguindo a teoria da desigualdade efetivada de Samuel Lucas e demais pesquisas empírico-quantitativas ( PRATES; COLLARES, 2014 , p. 66-67), demonstrou que a diferenciação institucional dos sistemas educacionais de nível superior no mundo, que possibilitou sua expansão, tornou a educação superior cada vez mais fundada em uma estratificação institucional-funcional. Com isso, continuar-se-ia a reproduzir posições socioeducacionais desiguais, apesar de um aumento geral na escolaridade:
[...] a diferenciação interna [ao sistema] é exclusiva, porque instituições de pior qualidade atraem as classes trabalhadoras e os estudantes de grupos minoritários, levando-os a ocupar posições inferiores no mercado de trabalho ( PRATES; COLLARES, 2014 , p. 69).
O modelo e a categoria administrativo-institucional (universidade ou instituto tecnológico; público ou privado) são fundamentais para definir não só a qualidade da formação dos agentes, mas também o peso e o prestígio social de suas credenciais e da própria condição estudantil. Assim como é sabido a existência de uma estratificação entre cursos e carreiras dentro de uma mesma instituição ( SETTON, 1999 ).
Para Vitale (2010 , p. 52), a EaD é uma das principais formas diferenciação institucional da educação superior no atual cenário e uma tendência das universidades tradicionais para se expandir e buscar traços mais equânimes do seu público ( VITALE, 2007 , p. 46). Então, seria possível e necessário trazer para esse debate da sociologia da educação a variável modalidade (a distância). Nesse sentido, questionamos de forma mais fundamentada: quando nos deparamos com mesmos cursos , em uma mesma instituição , porém, em modalidades-metodologias educacionais diferentes - EaD/presencial , como se presencia no modelo UAB – se verificaria essa estratificação? Nesse caso, poderíamos falar de uma estratificação intrainstitucional , no caso, dual, via modalidade educacional? É possível lembrar-se da advertência de Bourdieu (2010 , p. 224) para analisar o sistema educacional contemporâneo “a identidade das palavras esconde a diversidade das coisas”. Ora, o mesmo poder-se-ia falar do sistema UAB sob o signo de uma IPES? No sentido de uma inclusão que acoberta uma exclusão ( KUENZER, 2007 ), da criação de excluídos do interior, no sentido de Bourdieu?
Procedimentos metodológicos
Nosso campo de estudo foi a Universidade de Brasília, uma das IPES que integram o sistema UAB. Para averiguar a institucionalização da modalidade a distância via esse sistema, a pesquisa em questão utiliza técnicas de produção e análise de dados qualitativa: análise bibliográfica, documental e das entrevistas. No entanto, a principal produção de dados e foco de análise serão entrevistas semiestruturadas inéditas com coordenadores do curso de graduação a distância. Esse cargo é chave na articulação entre os vários níveis do programa e atualmente um dos principais atores da institucionalização deste.
A escolha específica desse cargo para a pesquisa se dá por diversas razões: 1- é uma figura pouco explorada nas pesquisas anteriores, em contraposição a figuras de cargos mais superiores na UnB ou no Ministério da Educação; 2- o coordenador do curso, na maioria das vezes, já foi ou ainda é professor no sistema UAB, então, além de experiência de gestão, tem experiência didática e maior contato com alunos; 3- é um cargo articulador de diversos níveis do programa: polo presencial-município, instituição e coordenação geral da UAB, estando no centro de uma rede de atores e processos; 4- o coordenador hoje representa um papel chave na institucionalização do programa na UnB dada a descentralização da gestão para as unidades acadêmicas; e, por último, 5- o coordenador poderá trazer um conhecimento mais prático e informal, complementando assim os dados dos documentos oficiais e de gestão que, de certa forma, já sintetizam a ação e visão do grupo da coordenação geral do programa e da administração superior da universidade.
Utilizamos o critério de disponibilidade e de no mínimo um semestre no cargo para realização das entrevistas com os coordenadores. De um público alvo de 8 pessoas - coordenadores gerais dos cursos de graduação da UnB-UAB em funcionamento à época -, foram entrevistadas 6 pessoas - Pedro, Miguel, Bruno, Bernardo, Felipe e Antônio (nomes fictícios). Em uma das entrevistas, o entrevistado, no caso, Miguel, preferiu incluir a participação de um coordenador pedagógico, Jorge, por ser uma pessoa com mais tempo na coordenação do curso. Logo, uma entrevista teve caráter de grupo. Sendo, no total, 7 entrevistados, de 6 cursos/coordenadorias. Apenas um deles não está atualmente no cargo de coordenação, mas esteve na coordenação anterior, por 4 anos consecutivos.
A posição do pesquisador estará ativa na produção e análise dos dados, seja explicitamente a partir dos axiomas teóricos elencados e construídos acima, seja pelas hipóteses decorrentes desses e da própria vivência e visão do pesquisador com o objeto em questão. Concordamos, por fim, com Haguette (2010 , p. 77) quando diz que, em uma entrevista:
[...] temos que reconhecer que estamos recebendo meramente o retrato que o informante tem de seu mundo, cabendo a nós, pesquisadores, avaliar o grau de correspondência de suas afirmações com a ‘realidade objetiva’, ou factual. [...]. Ponto-chave no controle de qualidade dos dados em todos os casos situa-se no uso sistemático de dados de outras fontes relacionadas com o fato observado a fim de que se possa analisar a consistência das informações e sua validade.
Por outro lado, o controle do jogo simbólico através de uma reflexividade reflexa, por parte do entrevistador, também foi colocado como um esforço na busca de, no momento da entrevista, uma “escuta ativa e metódica” ( BOURDIEU, 2007 , p. 695) que domine os efeitos de enviesamento da relação, fundamentando-se nas bases dadas pela teoria que guia o entrevistador.
Breve histórico da EaD na UnB
A EaD na UnB é uma realidade hoje, seja na extensão e pós-graduação lato sensu , principalmente através de centros como o Centro de Educação a Distância (CEAD), nas práticas semipresenciais com o software livre Modular Object-Oriented Dynamic Learning Environment ( Moodle ) em cursos presenciais, ou pela oferta de cursos de graduação centrada no sistema UAB.
A UnB é um marco na história da EaD no país. E a história da EaD na UnB já está em grande medida documentada e estudada por autores como Martins (2006) e Gomes e Fernandes (2014) . Desde a década de 1970, em vários momentos, a UnB realizou esforços originais nessa modalidade e foi polo de especialistas e experiências de relevância nacional. As primeiras experiências de EaD foram realizadas ainda sob o regime ditatorial, quando UnB assinou um convênio com a Open University do Reino Unido, a fim de desenvolver atividades de caráter extensionista, com tradução de material impresso daquela, com destaque para a atuação da editora universitária.
A redemocratização em 1985 não deu continuidade ao foco do convênio com a Open University - por demais identificado ao regime ( MARTINS, 2006 ). Uma forma de educação aberta e quase informal, menos ligada à linha do regime, tomou seu lugar, fazendo uso de materiais impressos. O CEAD (antes Centro de Educação Aberta, Continuada, a Distância) surgiu nesse período e é, junto com a Faculdade de Educação (FE) e posterior cátedra da UNESCO, um dos órgãos pilares da EaD na UnB. Aquele, criado em 1989, sob a gestão de Cristovam Buarque, estava vinculado ao Decanato de Extensão. Pelo seu pioneirismo, ainda é um órgão de destaque nacional e hoje utiliza a plataforma Moodle como ambiente virtual de aprendizagem, além de outras mídias.
Na década de 1990, a UnB começou a sofrer pressão exógena para realizar cursos para estatais e participar de convênios e editais específicos ( GOMES; FERNANDES, 2014 ). Foi a década em que houve os convênios e esforços mais concretos de inserir a educação a distância no sistema da educação superior nacional.
A partir desse período, a EaD começou a tornar-se institucionalizada e fomentada nacionalmente e a UnB, até os dias de hoje, continua reestruturando-se internamente. Em 2001, a instituição lançou uma instrução da Câmara da Graduação para criação e oferta de disciplinas de graduação ministradas a distância. Em 2004, foi efetivado o Moodle na UnB, que hoje atende não só cursos a distância, mas largamente o presencial, em milhares de disciplinas - sendo um dos centros de mais “encontro” entre as duas modalidades.
Mesmo antes da UAB, a EaD na UnB já tinha um histórico consolidado na formação de docentes para a educação básica, seguindo também traços da modalidade a nível nacional. Moura e Imbriosi (2012 , p. 28-29) lembram do convênio com a Secretaria de Educação do DF em 2001. De 2005 para 2006, programas nacionais como o Pró-Licenciatura e a própria UAB fomentaram uma nova e mais avançada fase da modalidade na instituição até então.
Por fim, assentamo-nos na síntese crítica realizada na conclusão do trabalho de Martins (2006 , p. 157) cuja pesquisa terminou exatamente no início da implementação da UAB na UnB:
Os fatos levantados nessa pesquisa referentes a EaD, ocorridos no período de 1979 a 2006 na UnB, demonstram a ausência de uma política institucional para essa modalidade de ensino. Nesses 27 anos, a Universidade como um todo não chegou a discutir uma política da universidade para essa modalidade de ensino. A dimensão histórica apresentada demonstrou que muito dos esforços despendidos pelos diferentes atores institucionais resultaram em baixo grau de apropriação dessas experiências pela Instituição. Os esforços ficaram circunscritos aos atores diretamente ligados à questão da EaD, com isso as técnicas e os conhecimentos desenvolvidos nos cursos realizados não foram repassados para outros órgãos da Universidade. [...] Isso fez com que [...] iniciativas ficassem fragmentadas e fossem realizadas em espaços fechados sem interlocução com a comunidade acadêmica da Universidade.
Sendo assim, o mesmo autor defende uma institucionalização parcial até 2006:
Defendemos a ideia de uma institucionalização parcial por identificar, na história da EaD na UnB, ora conflitos de interesses entre unidades da Universidade, ora consensos construídos pelo compartilhamento de significados comuns. Esse comportamento bipolar impediu a plena institucionalização da EaD na Universidade como um todo. No caso de uma institucionalização plena a UnB poderá adotar a EaD como alternativa para seus projetos de expansão dos cursos da Graduação e da Pós-Graduação. ( MARTINS, 2006 , p. 123).
Apesar da vanguarda, a instituição, segundo a pesquisa de Martins (2006) , coloca a modalidade como segunda via. Gomes e Fernandes (2014 , p. 89) comentam que uma causa disso seria pela EaD:
[...] ter começado como um tímido processo de institucionalização por meio da extensão universitária, braço considerado menor no tripé da educação superior brasileira, em que a dimensão da pesquisa é mais valorizada do que a do ensino.
O isolamento da EaD notado por Martins (2006) denota a falta de sinergia da modalidade para com a instituição, forte dependência de agentes voluntariosos, assim como a ausência de consenso interno.
UAB na UnB: dimensões da gestão, didático-pedagógica e comunitária
Assim, a UAB na UnB é ao mesmo tempo ponta de ruptura e continuidade desse processo, pois substitui/articula processos já em ação e traz uma nova qualidade dada a magnitude do programa. A UAB trouxe efetivamente, apesar de outras experiências como o Pró-Licenciatura, a modalidade a distância para a graduação, “base da universidade”, segundo um dos entrevistados por Gomes e Fernandes (2014 , p. 90). Como o próprio folder de gestão da UnB/DEGD - Diretoria de Ensino de Graduação a Distância ( 2014 ) – diz, a UAB contribuiu na construção da política institucional de EaD na UnB. Além disso, o Projeto Político Pedagógico Institucional (PPPI) da UnB (2011 , p. 22) afirma:
Nesses últimos anos houve um enorme acréscimo nas atividades de Ensino a Distância na UnB. [...] A Universidade Aberta do Brasil (UAB) surgida de uma política nacional gerenciada pela CAPES, consolidou o processo de EAD na Universidade de Brasília, a partir de 2007, e buscou superar obstáculos da institucionalização da distância física e temporal por meio das mais variadas ferramentas de interatividade e recursos.
Todavia, esse entendimento de um avanço, que inclui a modalidade no planejamento institucional, inclusive, ainda guarda conflitos significativos no atual momento, além dos avanços correrem sérios riscos. Pedro, um dos entrevistados de nossa pesquisa, falou de algumas ações do programa “estarem por um fio”, tendo em vista que várias acontecem sem infraestrutura e recursos necessários, logo, através de um voluntarismo dos agentes da modalidade.
Desde o surgimento da DEGD, em 2009, a gestão do programa passa por um processo de descentralização, o que significa um papel mais atuante das unidades acadêmicas e seus respectivos colegiados. Essa descentralização já é uma realidade, segundo as entrevistas. Todos entrevistados afirmaram ter cadeiras em colegiados, e até mesmo em outros espaços deliberativos em faculdades e institutos. A representatividade nos conselhos superiores é levada via representantes da própria unidade acadêmica ou diretamente por meio da DEGD.
Essa política é vista positivamente de uma forma geral, mas os entrevistados chamaram atenção para diversos limites e aspectos negativos dessa descentralização. Os elementos das condições e vinculação trabalhistas foram os que mais chamaram atenção - todos os entrevistados tinham reclamação quanto a esse ponto, sobretudo em relação ao pessoal de secretaria e tutoria. Felipe fala que é este um problema “fortíssimo”, o “calcanhar de Aquiles”, essa precariedade, rotatividade e instabilidade do trabalho desses servidores não concursados, que incluem técnico-administrativos e tutores. Quanto aos tutores, Bernardo fala que “estão em situação muito ruim, uma situação crítica, eu diria”.
A condição precária e temporária dos tutores também foi um ponto muito problemático apontado nas pesquisas de Martins e Amaral (2011) , Almeida (2014) e Novais e Fernandes (2011 , p. 189). O programa e sua institucionalização são afetados negativamente com esse formato trabalhista via bolsas. Esse cenário é novamente semelhante ao destacado pela pesquisa de Losego (apud GRIPP; BARBOSA, 2014 , p. 41) acerca da descentralização das universidades. Ele chama de “trabalho invisível” o envolvimento dos docentes com os outros centros, que têm poucos funcionários permanentes para as mesmas missões da universidade-mãe.
Quanto ao nível didático-pedagógico, a maioria dos coordenadores vislumbra ou demonstra algum nível de hibridização entre modalidades. Atualmente, os Projetos Político-Pedagógico (PPP) e os fluxos dos cursos entre as modalidades encontram-se já ou em vias de convergência. Esse esforço tem sido importante para superação da dualidade, como diz Miguel: “a nossa meta para este ano (2015) é aproximar o EaD do presencial, estão duas coisas distintas. Parece que é uma coisa aqui e outra coisa acolá”. Na mesma entrevista, Jorge falou da perspectiva de desenvolver bacharelado e futuramente a pós-graduação a distância - antes impensável, agora “mais perto” -, pois já há questionamento dos alunos nesse sentido e “no trabalho final eles desenvolvem um projeto muito bom”.
Mas isso não é uma constância. Na unidade acadêmica de Antônio, a Câmara Setorial de Graduação negou a equivalência entre mesmas matérias de modalidades diferentes, sendo simbólica a dualidade: duas matérias iguais, em duas modalidades, não podem se equivaler.
Quanto aos polos e perfis de alunos, encontramos uma diversidade grande. Normalmente os agentes contrastam duas realidades discrepantes nesses pontos. Felipe fala de um resultado bom no polo de Ipatinga, Minas Gerais: boas notas, grupos de estudos, perspectiva acadêmica de formação. Já polos do Acre, em oposição, evasão de quase 70% na última admissão de alunos: “a gente já tem uma visão de que eles não estavam preparados para a EaD”. O mesmo agente fala de uma “diferença qualitativa” entre o perfil das modalidades: “há uma diferença qualitativa, não há como negar [...] O aluno que entra no vestibular da universidade presencial tem um nível qualitativo altíssimo [...], e nosso aluno EaD não tem o mesmo perfil que o presencial. [...] Tiveram outra educação de base”. Além disso, aponta para características já presentes na literatura sobre EaD a nível nacional: diz respeito a alunos mais velhos, inseridos no mercado de trabalho e com família: “a maior parte dos nossos alunos que são desligados, quando eles pedem reintegração, [vemos que] são [por] problemas domésticos”.
Na dimensão comunitária, e suas dinâmicas de reconhecimento próprias, encontramos situações avançadas até realidades como a do curso de Felipe, em que há, no colegiado, um grupo docente “claramente contra” a modalidade a distância. Ou mesmo onde “os alunos [do presencial] nem sabem que o curso [a distância] existe”. Entre esses extremos encontramos perspectivas variadas de resistência-adesão, que se modificaram claramente ao longo do tempo, principalmente através da persistência dos agentes que apoiam o projeto. Bruno fala de resistências de um lado, ao mesmo tempo de uma adesão quase política e ideológica de outros professores, que inclusive rejeitam receber a bolsa.
Usando a imagem de Zabalza (2004, p. 69), encontramos nesse contexto uma fomentação mútua de “filias” e “fobias”: redes de solidariedade do grupo UAB e redes de oposição dos que não aderem ao programa. Dentre essa filia dos apoiadores podemos listar os tutores permanentes e os discentes, que juntos buscam construir suas identidades através dessa modalidade, ou da figura da UAB, defendendo-se do dualismo que emerge.
A respeito do sentimento discente de pertencimento à UnB é unanimidade apontar seus limites. Miguel disse que “o aluno do EaD, pela própria formulação do curso, [...] é um aluno, vamos dizer, segregado”.
Quanto a um projeto de extensão que envolve presencialidade, Pedro fala que, “em relação ao sentimento de pertença deles [discentes], a gente percebe, por exemplo, como um projeto [de extensão] muda completamente essa realidade”. Já Felipe comenta que a vinda dos alunos ao campus é um “evento social, tem uma significação muito especial para eles”; “eles sentem muita falta desse contato [...], a gente sente que eles querem muito alguma coisa presencial”. Antônio, no mesmo sentido, diz de um “deslumbre” dos alunos quando “pisam na instituição, sentem a instituição”.
Dreyfuss (2009) tem sido um dos autores a defender a importância da presencialidade na dinâmica educacional. Aqui vemos uma “sede de presencialidade”5 dos alunos que, em algum nível, se sentem UnB ou o desejam. Parece claro que o programa, apesar dos encontros presenciais nos polos, previstos em lei, despreza essa dimensão que nos parece essencial através das entrevistas. Tais estudantes, segundo as entrevistas, não passam por um processo completo de rituais para que se insiram na comunidade universitária.
Conclusão
Este estudo teve como objetivo central responder se entre a modalidade a distância (UAB) e presencial no nível da graduação na UnB existiria uma estratificação-hierarquização intrainstitucional, no caso dual. Com isso acreditávamos analisar uma forma concreta da continuidade da complexa reprodução educacional contemporânea em nossa conjuntura, que, como aponta o debate teórico através de autores como Bourdieu (2010) , Dubet (2001) , Prates (2007 , 2010) e tantos outros, possui formatos mais sutis e paradoxais, como uma inclusão excludente ( KUENZER, 2007 ). A originalidade do estudo reside, a nosso ver, em tratar da variável modalidade educacional dentro da problemática clássica da reprodução educacional.
Por meio da análise das entrevistas, vê-se que houve um importante avanço na institucionalização, envolvendo todas as dimensões analisadas, desde o início da participação da UnB no sistema UAB. Elencamos exemplos desses avanços: manutenção de certa estabilidade até 2015; reconhecimento explícito da EaD nos documentos da administração superior, assim como contínuas estratégias de desenvolvimento e aperfeiçoamento; a consolidação da DEGD; maior participação das unidades acadêmicas e reconhecimento da coordenação a distância; algumas convergências no nível didático-pedagógico e da administração acadêmica, como os PPP; permanência de agentes voluntariosos e defensores da modalidade e do programa.
Por outro lado, ficou claro ainda que a institucionalização, de forma geral, encontra tanto barreiras externas, provindas do nível legal-normativo e do próprio formato do programa, além da ausência de recursos diversos, quanto de níveis internos, pela resistência de agentes e estruturas em não reconhecerem e incorporarem o programa e a modalidade enquanto universidade. A vinculação e condição trabalhista dos agentes, principalmente os técnico-administrativos e os tutores, a infraestrutura interna e dos polos também se mostram precários. O currículo e a formação do discente a distância são claramente mais limitados, rígidos, e não incluem de forma satisfatória a extensão, a pesquisa, e a vida comunitária, deixando as dinâmicas de identificação-reconhecimento entre agentes do programa e a universidade extremamente frágeis e pontuais.
Assim, além da institucionalização parcial, também podemos, na linha de Heringer e Honorato (2014 , p. 316), falar de uma inclusão parcial do estudante EaD enquanto membro da IPES como instituição e comunidade, ou o que Coulon (2008 , p. 42) chama de “membro nativo”, no sentido didático e comunitário. Apesar de benefícios quanto a custos, o programa perde por se ausentar da presencialidade e demais dispositivos que ela traz. A UAB, sob a UnB, por meio de nossos resultados, peca na construção de uma cidadania universitária ou ao menos constitui uma muito peculiar e distante da vida acadêmica do presencial. Na mesma via, ainda que oficialmente a UAB oferte, nesse caso, um diploma de uma universidade pública que integre o programa, a configuração em torno da modalidade a exclui de uma gama de recursos que, a princípio, deveriam ser acionados.
As operações institucionais, didáticas e relações comunitárias dos cursos via sistema UAB, na UnB, em vários aspectos, passam ao largo, ou, como diz Lopes de Sousa, Aires e Lopes (2012 , p. 290), são “paralela[s]” da unidade acadêmica e da modalidade presencial, fundando-se assim uma visível dualidade. Mais que isso: uma dualidade desnivelada, hierarquizada, em que o a distância é o polo desprivilegiado. E, daí, torna-se possível afirmar, por meio das entrevistas e sua análise mais ampla, que o programa se mostrou ser nem igualitário, dada as disparidades institucionais entre modalidades, nem equitativo, tendo em vista que não traz maior apoio institucional aos que mais precisam, os alvos da política de inclusão que é a UAB. Isso, para fechar o paradoxo, mesmo que sua imagem esteja vinculada à democratização.