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Educação e Pesquisa

versión impresa ISSN 1517-9702versión On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.45  São Paulo  2019  Epub 01-Ene-2019

https://doi.org/10.1590/s1678-4634201945184632 

Artigos

Representações de mulheres estudantes de direito sobre direitos reprodutivos: entre saberes e valores

Representations of women students of law about reproductive rights: between knowledge and values

Eder Fernandes Monica1 
http://orcid.org/0000-0002-7645-5912

Ana Paula Antunes Martins2 
http://orcid.org/0000-0002-4406-5434

Márcio Henrique B. Rocha Júnior1 
http://orcid.org/0000-0001-7123-9025

1- Universidade Federal Fluminense. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Contato: ederfm@gmail.com; marciohbrj@gmail.com

2 - Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil. Contato: anapaulaantunesmartins@gmail.com


Resumo

O presente artigo consiste em análise interdisciplinar dos resultados obtidos em uma pesquisa empírica realizada com as graduandas da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense a respeito das suas representações sobre direitos reprodutivos no processo de formação universitária. Os dados coletados foram analisados com base em teorias sociais contemporâneas sobre relações de gênero e sobre ensino jurídico. Pretendeu-se, com isso, compreender as tensões entre saberes disciplinares e valores individuais no processo de formação universitária. O texto visa a contribuir para a produção de conhecimentos sobre o ethos profissional dos juristas, produzido desde as etapas iniciais de formação. Com isso, podem-se identificar tendências no que diz respeito ao tratamento jurídico de controvérsias ligadas aos direitos reprodutivos, uma vez que as representações de estudantes têm potencial efeito sobre a atuação dos atores do Sistema de Justiça em curto ou médio prazo. As intersecções entre representações sobre direitos reprodutivos, o ensino jurídico e a criminalização desta prática evidenciam as restrições para o exercício dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos das mulheres, bem como assinalam os limites para o aprofundamento dos direitos humanos e das mulheres e da democratização da sociedade brasileira. A partir dos resultados da pesquisa, é possível refletir a respeito da adequação dos currículos dos cursos de direito e problematizar acerca de diretrizes nacionais para a formação jurídica universitária.

Palavras-Chave: Ensino jurídico; Direitos humanos das mulheres; Direitos reprodutivos; Direito ao aborto

Abstract

The present article consists of an interdisciplinary analysis of the results obtained in an empirical research carried out with undergraduates of the Law School of the Fluminense Federal University regarding their representations on reproductive rights in the process of higher education. Upon collection data were analyzed based on contemporary social theories on gender relations and on legal education. The aim was to understand the tensions between curricular knowledge and individual values in the basic training on the university level. The text aims to contribute to the production of knowledge about the professional ethos of legal experts, produced since the early stages of formation. As a result, one can identify trends regarding the legal treatment of controversies related to reproductive rights, because students´representations have a potential effect on the performance of the stakeholders within the Court System. The intersections between representations on reproductive rights, legal education and the criminalization of this practice highlight restrictions on the exercise of women’s sexual rights and reproductive rights, as well as the limits on advancing human and women’s rights and the democratization of women in the Brazilian society. The outcome of the research, makes it possible to think over whether the curriculum in Law courses are suitable and problematize the national guidelines for higher-education legal training.

Key words: Law teaching; Women´s human rights; Reproductive rights; Right to abortion

Introdução

Os temas da sexualidade e da reprodução humana ganham, nas últimas décadas, intenso destaque na arena política, tanto no âmbito nacional como no internacional. Esse processo ocorre em consonância com a atuação crescente dos movimentos feministas, a partir dos anos 1960 e 1970, que produziram um alargamento da agenda pública e afirmaram as mulheres como sujeitos de direitos (VENTURA et al., 2003).

No campo do direito internacional, a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, realizada em 1994, impulsionou mudanças significativas na afirmação de direitos ligados à sexualidade e à reprodução. Desse evento resultou a Plataforma de Cairo, que vem pautando, nos últimos vinte anos, os debates sobre avanços e retrocessos em relação ao tema. A Conferência deslocou o debate sobre reprodução do âmbito do controle populacional para a esfera dos direitos das mulheres. A Plataforma situou, desse modo, os direitos reprodutivos dentre os direitos humanos, decorrendo daí a ideia de que a garantia da saúde reprodutiva representa uma estratégia fundamental para a igualdade de gênero.

Com semelhante direcionamento, a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em Beijing, em 1995, contribuiu para ampliar a definição dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos. Enfatizou a autonomia sexual, defendeu a proteção contra o estupro e contra a mutilação genital e retirou da família o lugar de exercício dos direitos ligados à sexualidade. Assim, assegurou a liberdade pessoal na decisão de se casar, de ter filhos e de se relacionar sexualmente.

Os textos decorrentes das conferências, os tratados ou convenções, ganham status de normas sobre direitos humanos básicos, dentro de um complexo sistema de formação de direitos no contexto da pluralidade democrática contemporânea. Segundo Piovesan (2007), a ampliação da agenda dos direitos humanos foi resultado de tentativa de superação de uma concepção genérica e abstrata desses direitos, o que representa a superação da ideia de um sujeito universal, típica da primeira fase de afirmação desses direitos. Com isso, firma-se um sistema geral de proteção em que se opera a coexistência complementar de direitos gerais e especiais, na tentativa de uma melhor percepção sobre os destinatários de tais proteções jurídicas.

Em decorrência da influência do direito internacional no âmbito nacional, principalmente em questões relacionadas à saúde, reprodução e combate à violência de gênero, a sexualidade entrou no debate jurídico com a exigência de atualização do sistema protetivo de direitos individuais e sociais. Como explica Mattar (2008), os direitos sexuais e os direitos reprodutivos são inseridos na ordem internacional e exigem dos Estados nacionais a instauração de instrumentos de proteção e concretização do direito de exercer a sexualidade e a reprodução de modo livre, sem discriminação, coerção ou violência. No caso brasileiro, com o término do período ditatorial e com a promulgação da Constituição de 1988, um amplo processo de influência política exercido pelos movimentos sociais, grupos políticos organizados e ações da sociedade civil formataram uma nova pauta para a adoção dos direitos reprodutivos e sexuais na ordem jurídica nacional.

Na perspectiva moral, os maiores obstáculos ao reconhecimento dos direitos sexuais e direitos reprodutivos na esfera do direito brasileiro estão nos conflitos com a compreensão religiosa dominante no país, principalmente o cristianismo católico, protestante e pentecostal. Um dos desafios mais importantes para a afirmação dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos está na persistente tentativa de desnaturalização das compreensões sobre a reprodução e a sexualidade, tendo por base um novo paradigma. Tal paradigma pensa tais conceitos como fenômenos da construção social, denunciando a naturalização como um estratagema ideológico que encobre as políticas religiosas tradicionais de controle da sexualidade e da reprodução (CORRÊA; ÁVILA, 2003, p. 50).

Há, nesse contexto político, distintas éticas em disputa. Os direitos sexuais e os direitos reprodutivos, articulados com os direitos humanos na segunda metade do século XX, fundamentam-se nos princípios da autonomia das pessoas para decidir sobre a própria vida reprodutiva; o direito à integridade corporal; a igualdade no acesso a políticas públicas de saúde e educação destinadas à capacidade de tomar decisões sobre o próprio corpo (JANNOTI; SOARES, 2015). Tais princípios confrontam-se com perspectivas religiosas, especialmente com as de tradição cristã brasileira, que mantêm a sexualidade no domínio privado e familiar sob regulação dos dogmas e das autoridades das igrejas.

Ao longo do século XX, a Igreja Católica investiu esforços significativos na oposição ao aborto, à camisinha e à pílula anticoncepcional, valorizando uma concepção convencional de família baseada no casamento e na complementariedade entre homens e mulheres (BIROLI, 2014). Novas dinâmicas de controle da corporalidade feminina estão presentes hoje na ascensão política das igrejas evangélicas, em alinhamentos com a política que já vinha se desenvolvendo pela Igreja Católica no Brasil.

Problematização e notas metodológicas

Diante dessa conjuntura de intensos debates e pesquisas sobre sexualidade e reprodução e das tensões entre relações entre religião, política e laicidade, é importante conhecer as representações de futuros agentes do Sistema de Justiça3, por estarem implicados no processo de atualização do sistema de direitos fundamentais ao serem compreendidos como as próximas gerações que assumirão a função jurisdicional. A ideia da presente pesquisa é tentar compreender alguns aspectos das representações de estudantes de direito sobre os direitos sexuais e reprodutivos, para pensar sobre o futuro da sexualidade e desses direitos enquanto institutos normativos fundamentais.

O conhecimento acerca do ideário de um grupo social em relação a um tema específico permite uma noção mais precisa sobre o ethos produzido na fase de formação profissional e traz elementos para pensar o lugar do ensino jurídico na concretização dos novos direitos. Interessa compreender como estudantes de direito articulam saberes (técnicos, dogmáticos, principiológicos) e valores (religiosos e sociais) no que diz respeito a direitos reprodutivos e sexuais.

Amparada na teoria das representações sociais (MOSCOVICI, 2003; JOVCHELOVITCH, 1995), a pesquisa busca compreender as dinâmicas no interior do campo jurídico – e seus potenciais efeitos sociais – a partir da ideia de que toda história se faz pelos sujeitos. É comum que os manuais e livros de história do direito narrem as transformações dos institutos jurídicos na forma de uma linha do tempo, em que a evolução se daria de modo pretensamente natural. Tais narrativas supõem uma espécie de ontologia dos direitos a explicar a substituição de leis e interpretações obsoletas por outras pretensamente mais avançadas. Há nas explicações evolutivas dos institutos jurídicos a invisibilidade dos sujeitos e dos conflitos, o que dificulta a compreensão dos motivos que ensejaram determinadas alterações legislativas e jurídicas.

As representações sociais, portanto, permitem captar uma perspectiva das tensões entre indivíduos e a sociedade; entre os sujeitos e as instituições. A partir desse recorte é possível identificar o caráter criativo e transformador dos sujeitos sociais em relação às normas sociais do espaço público. Além disso, é importante ressaltar a adjetivação sociais conferida às representações. Significa que os “processos que engendram representações sociais estão embebidos na comunicação e nas práticas sociais: diálogo, discurso, rituais [...] em suma, cultura” (JOVCHELOVITCH, 1995, p. 79). Longe de revelarem posições individuais, essa proposta teórico-metodológica apresenta-se como a produção de discursos socialmente informados, capazes de promover a dinâmica das instituições e organizações da sociedade. A perspectiva adotada concebe, portanto, as representações como expressões da intersubjetividade e, no presente estudo, contribui para pensar as dinâmicas dos direitos relacionados à sexualidade e à reprodução a partir de processos de constante ressignificação.

É importante considerar que as representações das estudantes ocorrem no interior de dois campos sociais que, no caso do direito, estão imbricados de modo particular. Trata-se do campo jurídico e do campo científico que, de acordo com Bourdieu (1998; 1983), são espaços de luta concorrencial pelo monopólio de dizer o que é o direito, no primeiro caso, ou pelo monopólio da competência científica, no segundo. A especificidade da relação entre esses dois campos, no caso do direito, refere-se ao papel desempenhado pelas obras jurídicas na definição das decisões jurídicas possíveis.

Desse modo, a compreensão dos processos decisórios passa, necessariamente, pela compreensão do conteúdo daquilo que se costuma denominar doutrina jurídica. As lutas por definição no campo jurídico são orientadas tanto por relações de força específicas, em que prevalece o entendimento dos mais altos extratos na hierarquia dos tribunais, como pelas racionalidades das obras jurídicas (BOURDIEU, 1998). Vale observar que, no caso brasileiro, parte significativa dos membros das cortes superiores do poder judiciário também são autores de manuais e livros jurídicos em geral, o que limita de modo mais relevante as possibilidades de entendimento diverso. Assim, compreender representações de estudantes de direito dentro desses campos (científico e jurídico) tem a importância de refletir sobre o modo como saberes e valores influenciam no processo de formação jurídica e sobre as possibilidades de transformação futura dos entendimentos ora dominantes sobre o tema dos direitos reprodutivos.

Algumas questões gerais poderiam ser levantadas como contextualizadoras da problematização deste trabalho. Qual é o lugar dos temas relacionados aos direitos reprodutivos na formação acadêmica de estudantes do curso de direito? Como as estudantes se posicionam, do ponto de vista valorativo, em relação aos direitos reprodutivos e, especificamente, sobre o direito ao aborto? De que forma articulam valores e saberes diante do tema?

Tendo em vista essa problematização, a pesquisa poderá contribuir para compreender de que modo a difusão de estudos científicos e saberes relacionados aos direitos das mulheres amplia a compreensão do tema por parte das discentes. Com isso, será possível obter algumas inferências sobre as representações sociais de estudantes de direito sobre os direitos reprodutivos e compreender os limites das tensões entre valores e saberes no processo de formação profissional. Além disso, a pesquisa poderá contribuir para analisar as tendências da concretização dos direitos – o que inscrevemos em uma agenda mais ampla de pesquisa destinada a investigar qual o futuro da sexualidade no direito (FERNANDES; MARTINS, 2017) - especialmente àqueles relacionados com demandas de sujeitos notadamente emergentes na contemporaneidade.

Considerando o caráter protagonista dos novos sujeitos, bem como a importância dos feminismos – como teoria, ética e ação política – nas dinâmicas atuais, a pesquisa destina-se a compreender as representações sociais de pessoas que se identificam como mulheres, a fim de analisar justamente sua perspectiva sobre um tema que lhes é atinente. Por isso, a população investigada foram as discentes4 do curso de graduação em direito da Universidade Federal Fluminense, do campus de Niterói, no Estado do Rio de Janeiro. Durante duas semanas de dias letivos foram aplicados questionários5 com um total de 268 discentes (com participação de 38,4% do total de alunas). A fase empírica da pesquisa foi dividida em três segmentos: levantamento e estudo bibliográfico; coleta e análise de dados. Inicialmente, foram consultados artigos de pesquisadores que realizaram trabalhos de cunho metodológico similar, de modo a desenvolver um projeto dotado de máxima validez e eficácia.

No que tange ao trato quantitativo dos dados, abaixo descrito, foram utilizadas como norte metodológico duas obras. A primeira, intitulada Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna, de Debora Diniz e Marcelo Medeiros (2010), permitiu compreensão do esquema de método e metodologia que se pretendia aplicar no presente estudo, ainda que aquele tivesse sido realizado em proporções mais abrangentes, com o intuito de mapear dados em âmbito nacional. Como segundo marco teórico-metodológico, o artigo Estimativas de aborto induzido no Brasil e grandes regiões (1992-2005), de Mario Francisco Giani Monteiro e Leila Adesse (2007), foi utilizado a fim de, igualmente, enriquecer os mapeamentos quantitativos, já que a pesquisa-referência tem enfoque de atualização no mapeamento dos números de aborto na Grandes Regiões do Brasil. Por fim, de modo a compreender a técnica de urna (ballot-box technique) e desenvolver um método adequado para formulação dos questionários, houve consulta à obra Recomendações para inquéritos sobre aborto usando a técnica de urna, de Debora Diniz e Marcelo Medeiros (2012).

A elaboração do questionário e a coleta dos dados foram realizadas durante o segundo semestre de 2015 e primeiro semestre de 2016. A partir de prévia investigação teórica sobre temas que tocam diretamente os direitos reprodutivos, foram elaboradas 27 questões objetivas. Quatro indicadores de perfil de respondentes foram mobilizados, com o objetivo de organizar quantitativamente os dados obtidos com os questionários respondidos: período letivo (do primeiro período da graduação ao décimo período), faixa de renda (de acordo com os parâmetros do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE), idade (18 a 23 anos, 24 a 29 anos, e mais de 20 anos) e orientação religiosa (possui ou não possui). Esses indicadores foram coletados por meio de identificação impessoal e anônima das respondentes, o que foi reiteradamente enfatizado no momento de sua apresentação às discentes.

Durante a etapa inicial de elaboração do questionário, foram separados cinco axiomas que serviriam como variáveis temáticas às questões, bem como direcionamentos para análise conjunta com os indicadores: opiniões pessoais e interlocução com o senso comum; religiosidade; juridicidade; saúde pública e vivências. Em relação ao primeiro tema, as questões estabelecidas foram sobre autonomia corporal, razões para a legalização do aborto, a necessidade da opinião masculina a respeito da problemática e se a proibição dos abortamentos prejudica as mulheres de classes socioeconômicas mais vulneráveis.

As questões acerca da religiosidade quantificavam a opinião sobre o quanto as crenças devem influenciar no âmbito jurídico da discussão e a inclinação religiosa das respondentes no geral. Outros temas significativos foram a intensidade com que a religiosidade influencia sua opinião referente à temática do aborto e o quanto o procedimento de abortamento é contrário aos dogmas e preceitos de sua crença.

Dado o enfoque jurídico, questionou-se a respeito da concordância das estudantes com as hipóteses de direito ao aborto previstas no Código Penal e pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Questionou-se, ainda, se concordam com a legalização do aborto, isto é, com a prestação do serviço na rede pública de saúde; sobre a hipótese da influência da criminalização nas taxas de abortamento em território nacional e na mortalidade das gestantes que a ele se submetem; sobre a eventual influência da formação acadêmica no posicionamento a respeito da temática e do sentido de autonomia corporal e propriedade dos direitos de sexualidade; e, por fim, sobre o instituto da objeção de consciência entre os profissionais de saúde como justificativa para não tratar gestantes que abortaram.

Do ponto de vista da saúde pública, foram elaboradas três questões: a primeira abordando a validade do abortamento como método de auxílio no controle de natalidade; a segunda questionando a pertinência de encarar abortamentos como métodos contraceptivos; e, a terceira, a respeito da opinião das discentes no que concerne à viabilidade de o Sistema Único de Saúde atender satisfatoriamente os pedidos de abortamento voluntário decorrentes de hipotética legalização. Como já enunciado, o último tema dizia respeito à vivência fática das respondentes em relação ao procedimento, mais especificamente, se já tinham realizado algum abortamento.

O questionário foi elaborado em três blocos distintos, cada um organizado de acordo com o direcionamento dos questionamentos. O primeiro pretendia instigar as discentes a dividirem com a comunidade acadêmica suas opiniões a respeito do tema, com perguntas direcionadas a assuntos específicos que, não raramente, são objeto de crítica e debate tanto em meio acadêmico como no restante da sociedade. As opções de resposta foram organizadas com base nas discussões de Rosental; Frémontier-Murphy (2001), em escala de Likert, modalidade de escala psicométrica que visa a medir a opinião da população pesquisada através de organização gradual de respostas (chamados itens de Likert) que se iniciam com conotações extremas (em sentido negativo ou positivo), passando pela neutralidade opinativa e finalizando, no outro extremo, com conotações diretamente contrastantes às primeiras. As possibilidades de resposta, portanto, costumam seguir o seguinte padrão: concordo totalmente; concordo parcialmente; indiferente; discordo parcialmente; discordo totalmente.

O segundo bloco de perguntas analisava o nível de correlação entre os dois elementos mobilizados, sendo esses mais diretamente relacionados com as questões jurídicas ou religiosas. As opções de resposta eram cinco, por grau de correlação: alta, média, baixa, nenhuma, não sei, sendo esta última opção presente em todas as questões não opinativas, uma vez que nenhuma das respondentes deveria se sentir forçada a responder. O terceiro e último bloco de respostas questionava, em sua primeira parte, a respeito de temáticas em que as discentes poderiam responder nas modalidades sim, não e não sei. A segunda parte inquiria se a respondente já havia realizado algum abortamento, sendo as modalidades de resposta da questão sim, não e nada a declarar. Caso respondesse sim, deveria considerar a questão referente às condições sanitárias do local onde foi realizado o procedimento, poderia escolher entre muito boas, boas, ruins e muito ruins, sem uma opção neutra. Com isso, esperava-se uma opinião mais contundente por parte da respondente; e deveria considerar a questão referente à quantidade de abortamentos não espontâneos, onde eram possíveis as opções um, dois, dois ou mais e nada a declarar. Caso respondesse não, haveria uma única pergunta adicional a respeito da possibilidade de a respondente realizar um abortamento, tendo como opções de resposta sim, não e nada a declarar.

A análise dos dados foi iniciada pela tabulação da complexa rede de dados advinda dos questionários preenchidos. Utilizando os quatro indicadores previamente elencados (faixa de renda, religiosidade, idade e período letivo), foi elaborada a seguinte categorização: a primeira seção foi delimitada pelo indicador faixa de renda, o qual tinha 7 opções de enquadramento (2 a 4, 4 a 10, 10 a 20, acima de 20, até 2 salários mínimos, sem definição e sem renda), cada uma representada por uma categoria; dentro de cada uma dessas se encontravam subcategorias, referidas a um indicador secundário, a idade, que tinha 4 opções de enquadramento (18 a 23, 24 a 29, acima de 30 e sem definição); no interior dessas opções de idade encontrava-se o indicador terciário, a orientação religiosa, dividido também em subcategorias e com 3 subdivisões (possui, não possui e sem definição); por fim, para cada uma destas últimas, foram elaboradas 10 planilhas, cada uma referente a um período letivo de graduação (do 1º ao 10º, portanto), cujo conteúdo documental físico era uma cópia digital do questionário apresentado às discentes, mas preenchido conforme as respostas obtidas, correspondentes àquela planilha6.

Análise dos dados

O primeiro axioma – opinião sobre os direitos reprodutivos e interlocução com o senso comum – leva-nos à questão sobre o sentido do aborto e sua relação com a autonomia das mulheres sobre o próprio corpo.

Fonte: elaboração dos autores.

Gráfico 1 – Opinião sobre a autonomia corporal como fundamento do direito ao aborto 

A questão perguntou se o direito ao aborto é expressão da autonomia corporal da mulher, a despeito de qualquer moral (social e religiosa) ou da opinião de terceiros. A maioria, 55% das respondentes, concordou integralmente com a afirmativa e 26% delas concordaram parcialmente. Essa questão pode ser contrastada com a que perguntava se a vida acadêmica da respondente lhe forneceu o sentimento de direito à autonomia corporal e de propriedade dos seus direitos de sexualidade. A expressiva maioria, 88,4%, respondeu afirmativamente à questão. Desse modo, pode-se depreender uma vinculação forte entre formação acadêmica e opinião sobre o direito ao aborto entre as respondentes. Esse conhecimento pode gerar efeitos práticos na vida profissional das discentes de direito, aprofundando o sentido de concretização dos direitos reprodutivos dentro de uma noção laicizada e plural.

Fonte: elaboração dos autores.

Gráfico 2 – Influência da vida acadêmica no senso de autonomia corporal 

Questões mais técnicas sobre direito e aborto foram levantadas no sentido de compreender as opiniões e percebê-las dentro de outras pesquisas semelhantes já realizadas por outros/as pesquisadores/as. Perguntou-se se as normas jurídicas são essenciais na restrição dos abortamentos. É comum que em debates públicos sobre o aborto surja o argumento de que a necessidade de controle por parte do Estado é fundamental para evitar baixas taxas de natalidade. No caso da pesquisa deste trabalho, 45,9% das respondentes discordaram totalmente da questão e 28,3% discordaram em parte, demonstrando uma desvinculação do senso comum.

Outro ponto levantado pela opinião pública e foco de outras pesquisas é o de que a legalização dos abortamentos oneraria os contribuintes contrários à prática, já que o Estado iria custear os procedimentos médicos por meio do sistema de saúde. Na questão relativa a esse ponto na pesquisa aqui realizada, 56,7% das respondentes discordaram totalmente da afirmação e 18,6% discordaram parcialmente, expressando uma compreensão um pouco mais condizente com a proposta do sistema de saúde público, de acesso universal e igualitário e de ação integral de proteção à saúde.

Com a preocupação de entender o universo de formação acadêmica das discentes de Direito, esta pesquisa quis entender qual a intensidade da influência da formação acadêmica no posicionamento das respondentes em relação ao aborto. Quase metade das respondentes (48,5%) entendeu que há uma alta influência da formação acadêmica no posicionamento a respeito da prática do aborto e 41% entendeu que a influência é média. A existência de ampla correlação positiva entre formação acadêmica e posicionamento sobre o aborto sugere que a educação universitária é decisiva para a formulação de valores éticos e políticos, independentemente de serem favoráveis ou contrários ao direito ao aborto.

No que diz respeito à dimensão religiosa da vida das estudantes, o questionário indagou se o procedimento de abortamento seria contrário aos dogmas e preceitos da orientação religiosa da respondente e 83% delas responderam que sim. Em comparação com a questão que indagava sobre a intensidade da devoção religiosa das respondentes, em que 43,4% declararam ser média e 23,3% declararam ser alta, percebe-se a significativa incidência da moral religiosa no ambiente universitário.

Segundo Diniz e Medeiros (2010, p. 963), em uma outra pesquisa realizada, a variável religiosa não modifica a incidência de aborto entre as mulheres, pois acaba refletindo a composição religiosa do país: “a maioria dos abortos foi feita por católicas, seguidas de protestantes e evangélicas e, finalmente, por mulheres de outras religiões ou sem religião” (DINIZ; MEDEIROS, 2010, p. 964).

No que toca à opinião sobre o aborto e a concordância a respeito de sua descriminalização ou legalização, há um amplo debate acerca da possibilidade de que o aumento da escolaridade leva a uma apropriação crítica da própria religiosidade e, dada a vinculação profunda entre posicionamento sobre aborto e moralidade religiosa, fatores que explicitam essa relação ajudam a compreender se a escolaridade influencia nessa opinião.

Para as conclusões de outra pesquisa, sobre a opinião dos magistrados e promotores brasileiros (DUARTE et al., 2010), os argumentos religiosos não devem ser negligenciados no debate sobre a necessidade de ampliação dos permissivos. Assim, em consonância com essas outras pesquisas e conclusões realizadas, se o objetivo é uma compreensão mais aprofundada sobre as implicações do sistema legal atual sobre o aborto e sua relação com a democracia, é possível destacar neste trabalho a importância de um ensino jurídico que se atente para os estudos sobre direitos reprodutivos.

Nesse sentido, a presente pesquisa preocupou-se em conhecer a intensidade da influência entre religiosidade pessoal e a opinião sobre o aborto. Assim, 26,9% das respondentes entenderam que não há nenhuma influência, enquanto que 28,3% entenderam que a influência é baixa, o que corresponde à maioria das respondentes. Por outro lado, 22,6% respondeu que a influência é média e 19,8% entendeu que a influência é alta, o que indica certa polaridade diante do tema. Em continuidade, foi perguntado às respondentes se elas entendiam que a religiosidade deveria influenciar no debate sobre o direito ao aborto. 74,2% das respondentes disseram que não deveria haver influência alguma e 14,5% que a influência deveria ser baixa. Em correspondência, quando indagadas se os profissionais de saúde poderiam se negar a cuidar de gestantes que sofreram abortamento, com a escusa de objeção de consciência, 92,5% das respondentes responderam que não, revelando uma compreensão específica de que a objeção, neste caso, não pode ser usada como elemento de não prestação de cuidado médico, mesmo que isso vá contra sua crença religiosa.

Em relação à ligação entre aborto e saúde, trabalhou-se na pesquisa com a hipótese de uma vinculação entre informação especializada, adquirida principalmente em decorrência de um ensino jurídico especializado em direitos reprodutivos, e opinião discente condizente com os dados de pesquisas atuais. No caso do questionário, foi levantada a questão de que um ensino especializado ajudaria uma formação que se sensibilizasse para a garantia dos direitos reprodutivos, na tentativa de se perceber a opinião das discentes sobre a importância desse ensino. A terceira questão do questionário perguntava à discente sua opinião a respeito de se o abortamento é válido como método de auxílio no controle de natalidade. No caso, a maioria das discentes (58,2%) entendeu que o abortamento não é método de controle de natalidade, embora 17,9% concordem com a sentença. Diante disso, há indícios de que parte das discentes apresentam um desconhecimento técnico do tema, mostrando a relevância dos debates mais especializados sobre a temática dentro dos cursos de direito.

Na quinta questão foi perguntado se a legalização dos abortamentos levaria à invalidação dos métodos anticoncepcionais. A expressiva maioria das respondentes (70,9%) entendeu que não, em consonância com pesquisas atuais sobre o tema7. Já a questão 6 tem ligação com a recente decisão do Supremo Tribunal Federal de permitir o abortamento nos casos de fetos anencéfalos. Ao serem questionadas se o abortamento de fetos com má formação denotaria um descaso com a vida do nascituro, devendo ser juridicamente coibido, 53,7% das respondentes discordaram totalmente; 23,1% discordaram em parte e 12% concordaram em parte.

Em uma pesquisa nacional sobre opinião de magistrados e promotores (DUARTE et al., 2010, p. 410-411), os índices são correspondentes: nos casos de anencefalia e de feto com qualquer malformação congênita grave incompatível com a vida extrauterina, 83,1%, 81,8%, respectivamente, foram as percentagens de respostas favoráveis à permissão do aborto.

Segundo pesquisa de Diniz; Medeiros (2010), cerca de metade das mulheres que fizeram aborto recorreram ao sistema de saúde e acabaram internadas por problemas relacionados ao ato. A inferência é que, sendo alto o nível de internação pós-aborto, ele se torna um problema de saúde pública, pois boa parte dos casos de internação teriam sido evitados se o aborto não fosse uma atividade clandestina e se fosse garantido o acesso a medicamentos seguros (DINIZ; MEDEIROS, 2010, p. 964).

A questão 12 do questionário aplicado às discentes interrogou a respeito da influência da criminalização dos abortamentos nas taxas de mortalidade das gestantes que o realizam. No caso, 80,97% das respondentes entenderam que a influência é alta, guardando correspondência entre a resposta e os índices inferidos pela pesquisa nacional.

Gráfico 3 – Opinião sobre a influência da criminalização do aborto na mortalidade de gestantes 

Fonte: elaboração dos autores.

Mesmo sendo compreensível enquanto problema de saúde pública, a questão 21 revela que, segundo a opinião das respondentes, não é satisfatório o atendimento oferecido pela rede pública de saúde no Brasil: 60% das respondentes responderam que a legalização do aborto não seria amparada satisfatoriamente pelo Sistema Único de Saúde. No mesmo sentido, apesar da legislação brasileira não punir o aborto em alguns casos, o acesso à interrupção da gestação tem vários obstáculos, sendo o caso das vítimas de estupro o que menos encontra proteção nas redes hospitalares, levando à realização de abortos clandestinos. Em outras pesquisas, percebe-se que nos casos legalmente permitidos de realização de aborto, há muita burocracia nas exigências do poder judiciário, da polícia e dos médicos para que a interrupção da gravidez aconteça (OSIS et al., 1994).

No tocante à percepção das discentes sobre o sentido de autonomia corporal e liberdade de decisão, o questionário levantou algumas perguntas que expressam certo conhecimento especializado das noções de autonomia e liberdade. Em relação ao estado atual da legislação brasileira, que permite o abortamento nos casos de violência sexual, de risco para a gestante e de antecipação terapêutica nos casos de fetos anencefálicos, a presente pesquisa perguntou, dentre esses três casos, com quais as respondentes concordam, tendo elas a possibilidade de marcar mais de uma opção: 229 das respondentes concordaram para o caso dos fetos anencefálicos; 226 respondentes concordaram para o caso de violência sexual e 215 concordaram para o caso de risco para a gestante, com 5 abstenções e duas respostas indicando nenhum dos casos citados.

Em uma pesquisa de opinião das mulheres sobre as circunstâncias em que os hospitais deveriam fazer abortos, as maiores proporções de opiniões favoráveis encontram-se nos casos de risco de vida para a mulher, estupro e malformação fetal, sendo que as menores se encontram nos casos de falta de condições econômicas satisfatórias, falha do método anticoncepcional, trabalho e mulher solteira (OSIS et al., 1994).

Há um processo de constante provocação por mudanças normativas que exige dos/as juristas e dos atores do Sistema de Justiça uma sensibilidade específica para o enfrentamento do aborto. É relevante o estudo da forma como agem esses atores no processo de discussão e aplicação das leis. Aliado a isso, também é significativo o debate acerca do modo de formação do estudante de direito sobre os direitos sexuais e reprodutivos, enfrentando o desafio amplo de “transformação das premissas dos direitos reprodutivos em norma jurídica” (DUARTE et al., 2010, p. 409).

Como comparação às respostas encontradas na pesquisa realizada, a pesquisa sobre a opinião de magistrados e promotores de justiça brasileiros (DUARTE et al., 2010) teve o objetivo de analisar a opinião desses atores institucionais sobre a “legislação brasileira e as circunstâncias em que o aborto induzido deveria ser permitido”. A conclusão dessa pesquisa foi a de que se observa uma tendência de se considerar a necessidade de mudanças na atual legislação brasileira, no sentido de ampliar as possibilidades de aborto e até a sua descriminalização. 78% dos participantes entenderam que as circunstâncias em que o aborto não é punido deveriam ser ampliadas ou que a legislação brasileira deveria descriminalizar o aborto. 9% entenderam que o aborto deveria ser proibido em qualquer circunstância e 13% entenderam que a legislação deveria permanecer como está. Circunstâncias em que o aborto deveria ser permitido e que receberam maior proporção de respostas positivas: risco de morte da gestante, 84,5%; anencefalia, 83,1%, feto com qualquer malformação congênita grave incompatível com a vida extrauterina, 81,8%; gravidez resultante de estupro, 80,6%; prejuízos graves à saúde física da mulher, 59%; prejuízos graves à saúde psíquica da mulher, 41,9% (DUARTE et al., 2010).

Por último, a questão 19 indagava se a possível descriminalização do aborto deveria ser sucedida por sua legalização. Tal questão exige das respondentes conhecimento específico para diferenciar o que seria a descriminalização e a legalização do procedimento de abortamento. 73,5% das respondentes responderam sim à questão; 14,2% responderam não, 10,4% responderam que não sabiam e 1,9% se abstiveram.

O objetivo da pesquisa não foi o de produzir estimativas de casos de aborto, mesmo constando no questionário perguntas dessa natureza. Sua inserção deveu-se ao fato de que pesquisas anteriores auferiram que a experiência pessoal com o aborto se associou a posicionamentos favoráveis à descriminalização/legalização do ato (DUARTE et al., 2010, p. 410-411). Na presente pesquisa, essa hipótese não pode ser testada em virtude do insignificante número de estudantes que confirmaram ter realizado aborto (2,7% das respondentes). Esse quantitativo não corrobora com resultados da pesquisa nacional sobre aborto segundo a qual, em 2010, nas regiões urbanas do Brasil, 15% das mulheres respondentes relataram ter realizado aborto alguma vez na vida. Além disso, certamente o número de abortos é maior do que o número de mulheres que afirmam ter feito aborto (DINIZ; MEDEIROS, 2010, p. 962).

O fato de o método de coleta de dados incluir registro por escrito das respostas (muito embora o questionário não fosse identificado) pode ter sido um elemento inibidor de eventuais respostas positivas, tal qual ocorre em entrevistas face a face.

Segundo Silva (1993), entrevistas face a face levam a uma omissão de respostas sobre aborto de oitenta em cada cem mulheres respondentes, sendo que os problemas de resistência são praticamente incontornáveis. É importante salientar que, na presente pesquisa, o questionário não foi preenchido diretamente na interação com o pesquisador. Os formulários foram distribuídos em sala de aula e as estudantes anonimamente os preencheram e os devolveram, depositando-os dentro de envelope pardo, juntamente com os demais, ao concluir. No entanto, o ambiente universitário dos cursos de direito, em que a estrita observância à legalidade representa uma espécie de padrão adequado de comportamento no interior do campo jurídico, pode ser um dos fatores explicativos para o resultado obtido. A despeito disso, 42,1% das estudantes disseram que realizariam um aborto e 34% disseram que não. Esse resultado, embora indique uma anuência moral com a prática, não tem correlação direta com a opinião sobre o direito ao aborto, uma vez que há um hiato entre experiências pessoais (ou valores individuais) e opiniões públicas.

Evidências obtidas em pesquisa nacional indicam que o aborto não é feito apenas para retardar o início da vida reprodutiva ou para evitar o nascimento de filhos em idades avançadas, pois cerca de 60% das mulheres fizeram seu último (ou único) aborto no centro do seu período reprodutivo: entre 18 e 29 anos, com pico de incidência entre 20 e 24 anos, sendo que 15% das mulheres não sabem ou não responderam sobre a data do último aborto (DINIZ; MEDEIROS, 2010, p. 962-963).

A proporção de mulheres que fizeram aborto cresce com a idade: de 6% para mulheres com idades entre 18 e 19 anos a 22% entre mulheres de 35 a 39 anos (DINIZ; MEDEIROS, 2010, p. 962). Os recortes entre classe, renda, escolaridade e faixa etária são importantes para uma melhor compreensão sobre a relação entre aborto e nível de formação educacional. Assim, o aborto é mais frequente entre mulheres de escolaridade baixa: 23% entre aquelas com até o quarto ano do ensino fundamental e 12% entre as com o ensino médio concluído. Contudo, Diniz e Medeiros (2010) entendem que a influência da escolaridade no aborto é difícil de ser diagnosticada, por dois motivos: primeiro, os resultados acabam refletindo uma “distribuição etária da educação na qual o nível de escolaridade é menor entre grupos que acumularam mais abortos ao longo do tempo” (DINIZ; MEDEIROS, 2010, p. 963), ou seja, as mulheres mais velhas; segundo, porque entende ser razoável acreditar que:

[...] os efeitos indiretos da educação sobre o aborto – afetando participação no mercado de trabalho e salários, padrões de união conjugal etc. – sejam tão ou mais importantes que os efeitos diretos do nível de informação sobre reprodução e sexualidade que uma maior escolaridade seria capaz de acrescentar (DINIZ; MEDEIROS, 2010, p. 963).

A relação entre aborto, democracia e ensino jurídico como possibilidade conclusiva

O debate a respeito da consolidação dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos no Brasil passa pela análise do estado atual da discussão sobre a legalização do aborto. Considerando que ocorrem, por ano, cerca de um milhão de abortamentos inseguros no país (MONTEIRO; ADESSE, 2007) e que uma em cada cinco mulheres da área urbana já realizou pelo menos um aborto ao longo da vida (DINIZ; MEDEIROS, 2010), percebe-se a relevância da temática como problema de saúde pública.

Os cursos de direito são espaços de produção e de reprodução de saberes, ligados não apenas à tomada de decisão no sentido de adequar normas a fatos concretos, mas também de formulação e reconhecimento de novos sujeitos e direitos. Na medida em que as especificidades dos modos de vida das mulheres são visibilizadas a partir de suas experiências concretas nas relações de gênero e na corporificação de sua vida social, a ciência e a tecnologia tendem a ser lócus de disputa. É no interior do campo jurídico que se pode compreender um espaço de lutas concorrenciais pelo monopólio de dizer o que é o direito (BOURDIEU, 1999). É nele que ocorrem alguns dos mais significativos enfrentamentos sobre a emancipação feminina. Considerado pela teoria dos campos sociais como relativamente autônomo (e, portanto, relativamente poroso) dos demais campos (como o político e o econômico), o campo jurídico tem sido bastante permeável às demandas dos movimentos feministas.

Como visto na introdução deste texto, a articulação das ativistas nos organismos internacionais a partir dos anos 1970 tem gerado transformações decisivas no interior dos estados nacionais, por meio da crescente produção de leis e políticas públicas. As ações globais de enfrentamento à violência contra as mulheres são evidências desse fenômeno8.

Se as leis e práticas destinadas ao enfrentamento à violência contra as mulheres avança, o mesmo não se pode dizer dos direitos reprodutivos9. No Brasil, sequer o aborto legal é prestado com agilidade e respeito à dignidade das mulheres. Muito embora o poder executivo tenha produzido normas técnicas recentes para a humanização do abortamento, as tensões políticas e ideológicas em torno do tema dificultam a prestação do serviço público de forma adequada. Abortos inseguros causam, a cada ano, milhares de internações no SUS para tratamento de complicações, sendo uma das principais causas de morte materna no Brasil (BONAN; SILVA; PERILLO, 2013).

Nesse sentido, pode-se afirmar que a vulnerabilidade a que as mulheres estão submetidas representa a omissão do Estado quanto à garantia do direito à saúde e à vida, o que implica um relevante déficit democrático. Desse modo:

[...] a afirmação da autonomia das mulheres para decidir sobre a interrupção da gravidez é, assim, algo que toca em questões que não se restringem ao aborto, mas ao funcionamento da democracia, aos espaços e formas de regulação do Estado, às hierarquias e formas toleráveis de dominação. (BIROLI, 2014. p. 42).

O déficit democrático caracteriza-se, nesse sentido, pela persistência de instituições estatais que tratem de forma diferente seus cidadãos – ou que não reconheça suas desigualdades. Além disso, as restrições impostas às pessoas adultas sobre decidir autonomamente sobre os seus corpos, bem como as ameaças à laicidade do Estado (BIROLI, 2014), representam significativos empecilhos para a democratização plena das relações sociais e políticas.

No processo de tensões protagonizadas por grupos antagônicos quanto ao projeto de sociedade, a educação e os espaços escolares desempenham lugar fundamental de afirmação de direitos e valores. Os dados coletados na presente pesquisa referendam a ideia de que a formação universitária influencia tanto na opinião sobre o aborto quanto na ampliação do sentimento de autonomia corporal e dos direitos ligados à sexualidade. Genericamente, pode-se dizer que as universidades (especialmente as públicas) tendem a ser espaços de ventilação de demandas sociais.

No que diz respeito aos direitos reprodutivos, as problematizações crescentemente propostas pelo movimento feminista tendem a impactar na dinâmica das relações educacionais, impulsionando a inserção de temáticas ligadas aos direitos das mulheres nas disciplinas e demais atividades pedagógicas no interior dos cursos de direito. Esse movimento ocorre a despeito das Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Direito (BRASIL, 2004) que, embora prevejam a necessidade de adequação da dogmática às mudanças sociais, não menciona os estudos de gênero e o enfrentamento às desigualdades como elementos constitutivos de uma educação jurídica voltada para a consolidação da democracia10.

Esse movimento global de afirmação dos direitos das mulheres requer, para sua internalização e efetividade, mudanças substanciais na estrutura dos órgãos públicos e na formação dos agentes do Estado. Diante disso, os saberes partilhados sobre os direitos reprodutivos, formal ou informalmente, entre as pessoas que compõem (e comporão) o Sistema de Justiça constitui um indicador de promoção dos direitos e garantias fundamentais das mulheres. Nesse sentido, nesta pesquisa, a adesão bastante significativa das estudantes não apenas à descriminalização, mas à legalização do aborto, denota a percepção do direito como um campo permeável às dinâmicas políticas e sociais. Ainda que persistam diversos entraves, expressos especialmente pelos desafios à manutenção da laicidade do Estado, a maioria das respondentes assinala a importância de que as crenças religiosas não interfiram na prestação dos serviços públicos, o que indica potenciais mudanças no ideário de futuros atores do Sistema de Justiça brasileiro.

Por fim, ao indicarmos uma relação entre os debates sobre aborto, o sentido atual de democracia e ensino jurídico, indicamos que o futuro dos direitos reprodutivos enquanto direitos fundamentais depende, de modo significativo, de um ensino jurídico sensível às discussões políticas e debates teóricos sobre sexualidade, principalmente por meio da inclusão dos direitos sexuais e reprodutivos como conteúdo obrigatório das grades curriculares das faculdades de direito no Brasil.

Referências

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3- O termo Sistema de Justiça refere-se às instituições e órgãos que compõem um sistema mais amplo do que apenas o poder judiciário brasileiro. São todos os responsáveis pela solução de controvérsias do ponto de vista institucional, seus mecanismos de operacionalização dos procedimentos jurídicos e seus operadores e agentes que executam a função judiciária.

4- Uma fase mais avançada da pesquisa já está em desenvolvimento e busca a percepção dos estudantes de direito do sexo masculino a respeito do assunto. Um debate amplificado, incluindo também os homens nessa discussão, já que o sistema de justiça brasileiro não faz distinção de julgadores por tema e gênero, é importante para uma conclusão mais realista sobre como devemos melhorar o ensino jurídico para a sexualidade.

5- Optou-se pela metodologia de levantamento quantitativo de dados por meio de aplicação de questionários semiestruturados em virtude da escassez de informações sobre o ideário de estudantes de direito a respeito do tema. Nesse sentido, entendeu-se ser necessário utilizar abordagem quantitativa em um primeiro momento para, em etapa posterior da pesquisa, a ser realizada, desenvolver abordagem qualitativa por meio de entrevistas e grupos focais.

6- Cabe exemplificação para mais bem esclarecer o aqui exposto. Suponha-se que se deseje saber quantas alunas sem renda, com idade de 18 a 23 anos, possuem orientação religiosa, do 9º período letivo, que já realizaram abortamento. Para tanto, basta seguir a sequência de categorias correspondentes e, ao final, abrir a planilha digital dentro da qual constará quantas participantes responderam a cada opção possível no universo de uma das questões, bem como o número total de respondentes.

8- Atualmente, cerca de 125 países têm legislações destinadas a essa finalidade, o que representa mais de 2/3 dos 186 países signatários da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher – CEDAW, da ONU, em 2011.

9- Em relação ao processo legislativo federal, há pesquisa realizada por Rogério Sganzerla em que, de 1949 até 2014, foram apresentados 129 projetos na Câmara dos Deputados e 9 projetos no Senado, sendo que 55% deles foram apresentados após 2003. O autor apresenta dados significativos para concluir o caráter repressivo nos projetos legislativos atuais, sendo poucos aqueles projetos que visam a regulamentar ou permitir práticas de aborto no país. Em que pese o objetivo deste artigo não ser o de debater o estado atual do processo legislativo em relação ao aborto, é essencial para a discussão sobre o ensino jurídico que se conheça sobre esse contexto legislativo. Confira: Sganzerla (2017).

10 - Para uma análise de uma experiência inovadora em direito e sexualidade, conferir Fernandes (2015).

Recebido: 28 de Agosto de 2017; Revisado: 19 de Março de 2018; Aceito: 25 de Abril de 2018

Eder Fernandes Monica é professor adjunto da Faculdade de Direito e professor permanente dos programas de Pós-Graduação em Sociologia e Direito e de Pós-Graduação em Direitos, Instituições e Negócios, da Universidade Federal Fluminense. Coordenador do Grupo de Pesquisa Sexualidade, Direito e Democracia (www.sdd.uff.br). Doutor em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense.

Ana Paula Antunes Martins é doutora em sociologia pela Universidade de Brasília (UnB). Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre as Mulheres (NEPeM/CEAM/UnB) e professora substituta do Departamento de Gestão de Políticas Públicas da UnB, pesquisadora do Grupo de Pesquisa Sexualidade, Direito e Democracia Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Márcio Henrique B. Rocha Júnior é graduando em direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF). Membro do Grupo de Pesquisa Sexualidade, Direito e Democracia (PPGSD/UFF).

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