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Educação e Pesquisa

versión impresa ISSN 1517-9702versión On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.45  São Paulo  2019  Epub 08-Mar-2019

https://doi.org/10.1590/s1678-4634201945184736 

Artigos

O sagrado e o profano no pensamento pedagógico de Émile Durkheim

1- Universidade Regional de Blumenau (FURB), Blumenau, Santa Catarina, Brasil. Contato: tiagoribeiro@furb.br.

2- Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. Contato: ione.valle@ufsc.br.


Resumo

O artigo analisa dois cursos de Émile Durkheim (1858-1917) inscritos no domínio da educação, A evolução pedagógica e A educação moral, postumamente publicados em 1938. Estes cursos, como formas de exposição do pensamento pedagógico durkheimiano, permitem observar uma perspectiva tanto sócio-histórica, sublinhando permanências e descontinuidades do ensino no Ocidente, quanto sócio-antropológica da educação baseada na realidade contemporânea do sociólogo. O artigo, contando com essa díade constitucional do pensamento de Durkheim, apresenta a partir das noções de sagrado e de profano um conjunto de tensões sociais que revelam uma perspectiva conflituosa da realidade educacional. Essas tensões contemplam uma visão sociológica menos consensual acerca da educação, conferindo a práticas como a leitura, o exercício moderado da punição e a difusão do conhecimento papeis ambíguos próprios ao dualismo sagrado-profano. Durkheim deixa ver, assim, atributos dramáticos e dinâmicos de seu pensamento, ao mesmo tempo, sem abrir mão da natureza moral da educação.

Palavras-Chave: Durkheim; Sagrado; Profano; Educação moral

Abstract

The article analyzes lectures Émile Durkheim (1858-1917) prepared for two courses in the field of education, “Pedagogical evolution” and “Moral education”, which were posthumously published in 1938. As forms of exposition of Durkheim’s pedagogical thought, these lectures present a perspective of education that is both historical, emphasizing continuities and discontinuities of teaching in the West, and anthropological, based on the contemporary reality of the sociologist. Considering this constitutional dyad of Durkheim’s thought, based on concepts of the sacred and profane the article presents social tensions that reveal a conflictive perspective of educational reality. These tensions involve a less consensual sociological view of education and confer to practices such as reading, the moderate exercise of punishment, and the diffusion of knowledge, ambiguous roles particular to the duality of sacred and profane. Durkheim thus simultaneously reveals dramatic and dynamic attributes of his thought, without neglecting the moral nature of education.

Key words: Durkheim; Sacred; Profane; Moral education

Introdução

O ano de 2017 rememorou os centenários da morte do sociólogo Émile Durkheim (1858-1917), marcando um período de diversas atividades acadêmicas em torno de seu pensamento. No Brasil, o ciclo de eventos Cem anos sem Durkheim, organizado pelo Centro Brasileiro de Estudos Durkheimianos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, promoveu debates sobre a posteridade da obra do sociólogo; assim como um dossiê da revista Sociologias apresentou uma “diversidade de leituras possíveis”, entre elas, a de um Durkheim “interlocutor de teorias sociais, que tem sido constantemente atualizado e apropriado enquanto fonte de inspiração ou mesmo matéria-prima de sínteses teóricas originais” (WEISS; BETHIEN, 2017, p. 28), em especial medida, focadas sobre a obra As formas elementares da vida religiosa [1912], último livro do sociólogo publicado em vida.3

O fato de que o legado de Durkheim conte com interpretações inovadoras ou que tenha sido incorporado aos cânones da sociologia, entretanto, não o isenta de fortes críticas. Raymond Aron (2000, p. 280), por exemplo, atribuía certa “ingenuidade professoral” a Durkheim, que acreditava ser “necessário instaurar uma moral inspirada no espírito científico”, assim como Theodor Adorno (2008, p. 118), que se opunha ao sociólogo que “reverenciava a qualidade coisificada da sociedade até mesmo como algo positivo”. Durkheim, por isso, talvez mais do que clássicos como Weber, Marx ou Simmel, ocupa um lugar controverso na história do pensamento sociológico e cujas (in)definições têm a virtude de fazer efervescer, ainda hoje, vivos debates em torno de sua obra.

A própria elaboração do pensamento do autor não deixou de participar de um contexto polêmico e de fortes disputas políticas. Jones (2001, p. 44) escreve que é “somente no contexto da Terceira República e da história do século XIX francês que debates sobre as posições políticas de Durkheim podem ser julgadas” ao abrigo de certas confusões, sobretudo, em se tratando de um suposto conservadorismo latente em sua obra. O conservadorismo do pensamento de Durkheim, para Jones, diz respeito antes à conservação da República, ou seja, à conservação de uma forma político-democrática, capaz de contemplar tanto republicanos quanto de socialistas, em um estado dinâmico e moderno de relações sociais. Esse dinamismo, talvez tão implícito quanto menos lembrado no pensamento do sociólogo, por sua vez, opõe-se ao conservadorismo que prevê a manutenção das hierarquias, das desigualdades sociais e da tradicional burguesia de privilégios historicamente herdados.4 As contínuas hesitações em torno da obra de Durkheim possivelmente poderiam ser melhor compreendidas a partir de um escrito seminal, O dualismo da natureza humana e suas condições sociais, publicado em 1914. Retomando princípios explicativos de As formas elementares, a obra apresenta uma perspectiva menos harmoniosa da vida social, prenhe de aspectos conflituosos, dramáticos e irresolutos, que fariam parte de tensões inerentes aos indivíduos. Esse dualismo poderia ser traduzido em termos de sagrado e profano como uma “dualidade constitucional da natureza humana” (DURKHEIM, 2013, p. 292) e tão logo pertencentes à própria vida em sociedade. O acento sobre essa tensão seria tão forte que Durkheim atribuiu a ela um fator motivador do desenvolvimento social, dizendo que tudo faz crer “que o lugar do esforço crescerá sempre mais com a civilização” (DURKHEIM, 2013, p. 307) à medida que os indivíduos procurassem remediar seus conflitos, exercendo formas particulares de sacrifícios.

Por que tais esforços não seriam representados pelo próprio Durkheim, enquanto estudioso incansável, que preparou seminários magistrais, entre os quais um afresco sobre a educação no Ocidente e uma espécie de tratado de antropologia social da educação? Essa pergunta nos serviu como pano de fundo para a exploração de dois cursos do autor, postumamente publicados como livros: L’évolution pédagogique en France e L’éducation morale,5 ambos oferecidos na Sorbonne às portas do século XX a estudantes que seriam responsáveis pelo ensino das gerações seguintes. A relação de Durkheim com o ensino deixa ver aí não apenas uma forma ideal de tratar a educação, mas, de maneira mais tácita, uma diversidade de dramas acerca do seu complexo lugar na sociedade. O caráter dramático da educação, quando considerado em termos de uma relação tensa, de forças e de esforços, por sua vez, apenas parece fazer mais sentido quando vinculado a questões morais em torno das quais os indivíduos se engajam diferentemente. O item a seguir apresenta as balizas metodológicas que servem a uma perspectiva moral e durkheimiana da educação.

Do método de abordagem: a educação como fato ambíguo

As questões de método são fundamentais para se definir as formas de abordagem de um objeto de estudo. Os cursos de Durkheim, aqui, muito provavelmente, não teriam algo a dizer sobre o sagrado e o profano se a educação não fosse tratada como um fato essencialmente moral. Os fatos morais, do ponto de vista durkheimiano, distinguem-se pela dualidade de inspirarem, em um só movimento, uma relação de proximidade e de distância: ao mesmo tempo em que prevêm coerções, às vezes, acompanhadas do sentimento de respeito ou inclusive de medo, também inspiram desejo e busca pelo aperfeiçoamento de si. Essa dualidade, apesar de aparentemente contraditória, Durkheim também encontra nos objetos sagrados não apenas devido às características acima mencionadas, mas, sobretudo, devido à difícil dissociação entre vida moral e religiosa que, na história, estiveram “intimamente ligadas e absolutamente confundidas assim como, ainda hoje, seríamos obrigados a constatar que esta união estreita subsiste na maior parte das consciências” (DURKHEIM, 1967, p. 54).

A educação, por sua vez, não permanece isenta do mesmo sentido conflituoso, de modo que Durkheim precisaria enfrentar, conceitualmente, a própria antinomia do par sagrado-profano ao tratar do ensino tanto em A evolução pedagógica quanto em A educação moral. Essa é a hipótese central do artigo que, consequentemente, confere à educação no pensamento durkhemiano um caráter também ambíguo e antinômico. A mesma pode ser observada quando o autor trata do espírito a disciplina – como elemento da educação moral – que age como uma forma particular de violência contra a natureza humana a partir de coerções, limites, normas etc. O fato é que esse aspecto violento da ação educativa no pensamento de Durkheim, ao mesmo tempo, cria as próprias condições sociais de existência dos indivíduos. A escola, nesse sentido, poderia ser pensada como uma entre outras instituições responsáveis por estabelecer uma separação entre essas partes, na medida em que, por meio de suas próprias qualidades – conteúdos, autoridades, métodos, punições etc. – procura se conservar ao abrigo de interferências profanas, como poderia ser o caso do ensino da gramática via leitura de poetas latinos, e não da Bíblia.

Essa tensão poderá ser observada tanto em A evolução pedagógica, pelas formações e lutas que estimulam transformações sociais (CHERKAOUI, 1976), como em A Educação moral, quando Durkheim se engaja cientificamente em propor uma moral laica à educação francesa. A evolução pedagógica e A educação moral, respectivamente, podem ser observadas assim como obras que contém tanto a duração da educação desde a Idade Média até a Modernidade do final do século XIX quanto a profundidade em matéria de bases sócio-antropológicas que sustentam o pensamento educacional do sociólogo. A educação se apresenta, então, como fato social que conta com uma natureza e uma evolução. A educação moral, nesse sentido, que se serve de uma moral laica para ser efetivada, poderia ser entendida como culminação de um pensamento tanto mais sofisticado quanto mais contemporâneo ao contexto de Durkheim, sobretudo, vinculado à dignidade humana como forma secularizada de valor sagrado. A educação assim concebida permite trabalhar com Durkheim mantendo, ao mesmo tempo, as necessidades e as virtudes que constituem a ambiguidade do seu pensamento. Durkheim notadamente se serviu de registros historiográficos e etnográficos para se definir como sociólogo, de modo que sua sociologia da educação não permaneceria isenta aos mesmos recursos. A tensão entre o sagrado e profano é, pois, uma forma estratégica de introduzir certo drama, ao que parece, inerente à própria realidade social quando sondada a partir de dimensões multidisciplinares. Essa realidade, composta de fortes dimensões morais, torna-se mais clara quando a própria religião se inscreve no domínio dos fenômenos sociais. A religião é, assim, uma forma de solidariedade social, ainda que o termo religio não signifique aquilo “que une homens e deuses, mas, aquilo que cuida para que se mantenham distintos” (AGAMBEN, 2007, p. 66). Essa definição, cuja gênese histórica ultrapassaria os objetivos do artigo, é, todavia, instrutiva, posto que o sagrado e o profano podem ser compreendidos como formas de uma separação essencial que define não apenas religiões, mas também interesses, costumes, morais etc. Esse predicado é que faz tanto das religiões quanto de diferentes formas de organizações sociais um contexto que prevê dramas, esforços e sacrifícios que se inscrevem em uma determinada ordem social.

O sagrado, assim como sua contrapartida, o profano, não significa, então, uma superstição a serviço de uma ilusão compartilhada pelos indivíduos – como poderia ser a concepção de Hume acerca das religiões – mas uma manifestação de reciprocidades coletivas que define valores em comum. Segundo Durkheim (1990, p. 588), em As formas elementares, existem “duas formas de sagrado: um fasto e outro nefasto”, de modo que é na “possibilidade de transmutação que consiste a ambiguidade do sagrado”. Paul Veyne (2011) com relação às transmutações religiosas (e para ilustrar aqui a ambiguidade do sagrado), conta acerca do Cristianismo que, menos de dez anos após a morte de Cristo, alguns pregadores e o mesmo São Pedro ousadamente batizavam não circuncidados, pagãos. Esse fato, um escândalo na época, não impediu que São Paulo seguisse o mesmo exemplo, de modo que, em três décadas, a abertura aos não judeus do judaísmo cristianizado levou a uma separação entre uma seita de judeus-cristãos circuncidados e uma religião nova, o Cristianismo. O sagrado, aí, profana-se sem negar outra forma de sacralidade que passa a conquistar um lugar na sociedade.

Sagrado e profano, ainda, como conceitos que “são sempre comuns a uma pluralidade de homens” (DURKHEIM, 2013, p. 294), logo, não devem ser estranhos à pluralidade de questões educacionais encontradas ao longo dos conteúdos dos cursos de Durkheim. As potencialidades e ambuiguidades da perspectiva do sagrado e do profano, nesse sentido, passam a ser vistas não apenas como componentes cruciais do pensamento educacional durkheimiano, mas, também, como formas fortes de (re)inserir a educação em uma relação dinâmica e efervescente inerente à condição humana. Por que seu dinamismo não seria compatível com as tensões morais que a própria educação é capaz de colocar em jogo em nome do sagrado e do profano?

A título, então, de administrar a prova de que essas tensões dinamizam as reflexões de Durkheim convém extrair de A Evolução e a de A Educação elementos, no mínimo, dramáticos acerca da realidade apresentada pelo sociólogo francês. A vida social como um drama não dispensa, aí, performances cuja definição de sucesso ou malogro permanece sujeita a uma moral mais ou menos instituída e historicamente variável. Os indivíduos, como será o caso de Abélard no século XII a seguir e do professor que educa moralmente para o século XX mais à frente, estão sujeitos a forças coercitivas que obedecem às correntes de ideias de seus tempos. Durkheim deixa ver assim uma miríade de questões sociais da educação que devem se equilibrar entre um sagrado que condensa valores em comum e um profano que não ignora esses mesmos valores, mas, que se opõe, confirmando a próprio caráter moral da sociedade.

Das separações pedagógicas

Na perspectiva do sagrado, a história do ensino na Evolução pedagógica poderia ser entendida como uma história das separações. Expliquemos: Durkheim compreende desde o início que havia algo de profano na embrionária missão católica de educar o Ocidente. Esse algo era, pois, a aprendizagem da leitura que permitiria aos povos pagãos conhecer Deus a partir do acesso à divina Escritura. O fato é que os jovens noviços, sujeitos à educação religiosa, naturalmente poderiam vir a amar mais as letras do que a Deus propriamente; ou mais a gramática e os poetas latinos do que o texto sagrado. A história do ensino e dos indivíduos responsáveis por ensinar estaria, assim, no coração de um jogo de delimitações e, portanto, de separações, acerca do que deveria e do que não deveria ser ensinado aos pupilos da Igreja. A evolução pedagógica se vê, assim, prenhe de aspectos dramáticos na medida em que a transmissão de uma educação poderia perturbar seus próprios objetivos.6

A propagação da religião judaico-cristã, afinal, não seria tributária de traduções inauguradas pela devoção de São Jerônimo, que vertera a Bíblia do hebraico para o latim no século VI?7 O que importa sublinhar aqui são seus mediadores, tradutores ou, mais tarde, professores, indispensáveis à propagação de uma tradição e consequentemente da educação. Durkheim (1938a, p. 44), logo, atento a uma organização social sujeita às tensões do sagrado e do profano, sublinha que o Papa Gregório reprimia um arcebispo de Viena por ter se encarregado de ensinar a gramática a jovens laicos. “As louvações a Júpiter e as louvações a Cristo não podem sair de uma mesma boca”, escrevia Gregório em uma carta ao arcebispo no século VII. O que convém agora é apresentar tensões como estas que, por meio de outros modos de separação, marcam a história do ensino do ponto de vista durkheimiano.

Em torno de Abélard

A atenção de Durkheim à figura de Pierre Abélard (1079-1142) não é menos estratégica. Este último poderia ser considerado um dissidente corporativo em virtude da demasiada “confiança em seu gênio” e da “impaciência natural” que o levaram a ensinar na cidade de Laon sem o título de mestre (DURKHEIM, 1938a, p. 103). O que poderia ser considerado hoje exercício ilegal da função, para Abélard, custou a pena de ter de deixar a cidade, atendendo assim às normativas de uma corporação de professores já instituídas na época.8 Abélard, malgrado seu importante papel na história da filosofia medieval, era mais precisamente um grande alvo de estigmas. Régine Pernoud (1977, p. 112) conta que ele havia sido recebido na cidade de Soissons, em 1121, “à base de pedradas oriundas de uma multidão indignada”, acusando o mestre teólogo de herético.

Durkheim, evidentemente, não vira nas qualidades de uma pessoa como Abélard uma força motivadora de evoluções sociais. O que importa sublinhar é que interesses semelhantes aos de Abélard, como a livre discussão dialética, apenas encontraria abrigo na constituição da universidade. A evolução pedagógica, seja representada pela universidade ou pela escola, ao longo de sua obra, consagra assim soluções sociais que prevaleceram em determinados contextos. A universidade que, na forma de corporação, soluciona em Paris a existência de espaços favoráveis a discussões dialéticas, seria então homóloga ao collège, que procurou neutralizar educacionalmente condições de pobreza e de baderna de jovens estudantes. A separação que, enfim, livrara os mestres da vigilância de um bispo preocupado com possíveis heresias é a mesma que oferecia aos estudantes um lugar de educação livre de precariedades próprias à sociedade da época.

As poucas linhas que Durkheim consagra ao collège de Robert de Sorbon no século XIII – que se tornaria mais tarde La Sorbonne – provavelmente se devem ao fato de que este ocupava uma posição menor face à universidade na época. A história da Universidade de Paris, lembremos, não é primeiramente a história da Sorbonne, que se inicia como um internato disposto a acolher jovens pobres ao mesmo tempo em que ensinava teologia, como um quadro exterior da vida universitária (DURKHEIM, 1975). A complexidade do sistema de ensino superior francês, cujas nuances entre “centros de excelência” e universidade não pode ser negligenciada, poderia ser ainda aqui somada à formação do Colégio dos Leitores Reais, criado em Paris em 1530 pelo rei Francisco I (CHARLE; VERGER, 1996, p. 65), que séculos mais tarde, após a revolução, viria a se chamar o que ainda hoje se conhece como Collège de France.9A história do ensino expressa, assim, seus aspectos profanos sempre que, separados, constitui pequenos grupos que se definem graças à autonomia que historicamente conquistam.

Durkheim, por sua vez, lança mão do termo corporações a fim de evidenciar as formações sociais embrionárias que exercem influências sobre a evolução pedagógica.10 As corporações ou grupos profissionais ocupam um lugar privilegiado no pensamento do sociólogo, posto que nem a sociedade política em seu conjunto e nem o Estado podem exercer suas funções. “A atividade de uma profissão apenas pode ser eficazmente regulamentada por um grupo suficiente próximo de sua própria profissão, conhecendo com minucias seu funcionamento, sentindo todas as necessidades e podendo seguir todas as suas variações” (DURKHEIM, 1999, p. X). Le Goff (1992, p. 99), acrescentemos, sublinha as dificuldades historiográficas acerca das corporações na Idade Média posto que “suas origens são quase sempre obscuras” e “sua evolução é desigual, conforme as cidades e os ofícios”. O que importa reter é que “a organização corporativa é uma espécie de polícia no interior do ofício e entre ofícios, onde entram os citadinos e os estrangeiros” assim como “lugar da solidariedade profissional” (LE GOFF, 1992, p. 99) que pode reunir grupos de açougueiros, moleiros, peleiros e igualmente professores.

A corporação de professores, para Durkheim, representa tão logo um movimento em direção à conquista da autonomia. No século XIII, por exemplo, essa corporação lograra tanto independência da Chancelaria de Nôtre Dame, que mantinha monopólio sobre a outorga de títulos de mestre, quanto prerrogativas sobre excomunhões às quais poderiam estar sujeitos. O sacrifício em nome do ensino era representado assim por uma separação compensadora que, por sua vez, era ignorada por Abélard em sua época.

Confinação e finalidade

As corporações até aqui citadas não estariam, contudo, livres de desconfianças. Estas poderiam desvirtuar aspectos doutrinários do ensino esperados pelo bispado. As disputatios, discussões lógicas que, ao fim, deviam consagrar um vencedor, ocupavam um lugar na sociabilidade dos jovens. Esse fato, ainda que estimulasse espíritos sagazes e lógicos ou fornecesse espetáculos públicos de retórica, ganhava também direito à cidade, produzindo agitações e certo colorido social. Os séculos XVI e XV, por sua vez, seriam palco de outra invenção que ocorre em paralelo à formação das universidades: o collège, isto é, uma instituição de confinamento, que separava os estudantes de uma maneira dupla.

Em primeiro lugar, num contexto em que estudantes representavam um perigo maior à ordem social das cidades. Roger Bacon contava que “os estudantes percorriam as ruas de Paris armados, incomodando com seus gritos o sossego da pacata burguesia, maltratando passantes inofensivos” (DURKHEIM, 1938a, p. 147). Em segundo lugar pelo fato de se encarregarem de envolver crianças e jovens em uma educação incessante e livre do resto do mundo. Essas mutações, logo, teriam tudo para alterar as formas de sociabilidades. Os estudantes nos collèges não mais se deslocavam até os professores – em geral, na margem esquerda do rio Sena em Paris, ou na rua do Fouarre.11 Os professores é que agora iam encontrar seus alunos, que habitavam o interior dos próprios collèges. A vida escolar se concebe assim como uma vida também de internato, centralizando a ação pedagógica sobre os estudantes por um regime que combatesse dispersões e más influências.

Durkheim (1938a, p. 158) não deixou de criticar, porém, a sociedade francesa que, segundo ele, havia perdido “o gosto pela vida livre, diversa, com acidentes e irregularidades que ela mesma implicaria”. A ordem particular do espírito francês, que havia centralizado na universidade poderes que deram origem à organização dos collèges, seria, pois, uma constante histórica. Essa seria também uma forma de sublinhar que este espírito de ordenação condiciona severas violências disciplinares no interior dos muros e cujo chicote (fouet) representava, entre outros, um instrumento pedagógico de regulamentação moral. A Renascença é que seria responsável agora por construir uma nova forma de separação social, à qual o sociólogo não poderia se mostrar indiferente.

Críticas ao renascimento pedagógico

O termo Idade Média não é tão justo assim do ponto de vista histórico. Ele representa tanto um vão entre a Antiguidade e as civilizações modernas quanto uma construção do ponto de vista das Luzes – daí a expressão idade das trevas –, que ofusca importantes invenções como os óculos, a bússola e a própria universidade. A questão gira em torno de diferentes classificações em relação às quais Durkheim (1938a, p. 220) não permanece isento: a Idade Média seria para ele o período da infância a caminho da plena juventude, representada pelo Renascimento. A “admirável fecundidade em matéria de organização escolar” (DURKHEIM, 1938a, p. 44) não seria então uma forma de ensino amadurecido pelo medievo, como foram as corporações e os collèges?

A estratégia de Durkheim passa agora pela análise de doutrinas pedagógicas cujo acesso empírico é facilitado pela vulgarização do livro. Durkheim pode, assim, debruçar -se sobre a obra de Rabelais, encontrando um ensino gigantesco baseado numa apropriação insaciável do conhecimento. A obra de Rabelais, aos olhos de Durkheim, é um estímulo sem medida à erudição, em que o livro se reveste de uma autoridade sagrada não diferente da aura que ele mantinha no ensino universitário. O que importa reter é tanto a crença na assimilação de conhecimento quanto uma aspiração renovada por desfazer as fronteiras de especializações representadas pelos cursos universitários clássicos, tais como teologia, medicina, direito e artes liberais.

Erasmo, como Rabelais, para Durkheim, pertenceria às “correntes de opinião” (DURKHEIM, 2009, p. 40) do Renascimento pedagógico como uma “força dotada de intensidade capaz de variar de acordo com períodos, países” e que, por sua vez, cristalizam-se no gosto pelo conhecimento enciclopédico. Essa força, que consiste em crenças e práticas constituídas, compreendia, por exemplo, preceptores que deveriam ter erudição não tanto em virtude do prazer, como em Rabelais, mas, em virtude de atuarem por meio da seleção de obras que seriam lidas pelos seus pupilos. Erasmo desenvolve, assim, uma espécie de ética da censura, na medida em que livrava jovens da necessidade de ter o mesmo nível de consumo cultural que seus mestres. A posição de Erasmo não é estranha se consideramos que escritos sobre etiqueta também estavam entre suas ocupações, perpetuando uma divisão clássica entre elites culturais dispostas a favorecerem elites políticas.

O fato é que para Durkheim (1938a, p. 67) o século XVI era um período de “niilismo pedagógico” representado pela figura de tais pedagogos. Durkheim compreendera que a transmissão de códigos de civilidade – aqueles mesmos que serviriam de material de análise para Norbert Elias (1994) mais tarde – era destinada a tão poucos indivíduos quanto aqueles pertencentes aos círculos mais nobres e privilegiados da sociedade de seu tempo. Erasmo, segundo Durkheim, ao valorizar o refinamento do espírito e o diletantismo, fechava os olhos às condições de universalidade do mesmo ensinamento. A educação perdia seu caráter prático e se tornava, assim, mais um vício que uma virtude. Durkheim, por isso, curiosamente, não deixou de creditar à Escolástica, a que Erasmo se opunha, algo mais realista e social vinculado às necessidades de existência da própria sociedade de seu tempo. As relações entre a sociologia clássica e o medievo, como escrevia Nisbet (1984), aparecem aí sob a forma de recolhimento a um passado relativamente mais plausível acerca da sociedade. As transformações legadas pela Modernidade traziam algo de arrepiador, e sociólogos como Durkheim não passavam imunes a elas.

Da ordenação pedagógica

A análise percorrida até aqui apresentou três casos em que os valores sagrado e profano se manifestam do ponto de vista durkheimiano. Abélard, o collège, Rabelais e Erasmo foram, assim, representantes de contra-movimentos de insubordinação que tensionam as forças morais de diferentes épocas. Durkheim, entretanto, não deixa de ser um componente das forças morais de seu tempo e, por isso, convém destacar sua emersão como um pensador disposto a conceituar a educação, em A educação moral, em nome do sagrado de uma sociedade.

O “mal do infinito” ou ponto de partida trágico

A vontade tem algo de misterioso. Ela se manifesta como potência, ânimo, energia etc. de que, para Durkheim, convém neutralizar menos sua força que seu aspecto contingente e irracional. A disciplina serve a essa tarefa, na medida em que se exprime mediante normas socialmente reconhecidas, regularizando a vida em grupo. Todavia, o caráter repressor da disciplina, já apresentado a partir dos collèges, seria uma face demasiadamente pobre da mesma. O que interessa a Durkheim são as virtudes de uma disciplina que consegue estabelecer relações coletivas e solidárias. A disciplina comporta aí algo de essencialmente bom, ao tornar a vida social possível a partir de regras coletivamente compartilhadas. Ela poderia, ainda, continuamente ser mantida, à medida que os indivíduos sacrificassem seus interesses individuais em nome de ideais de grupo. Esses mesmos grupos, em contrapartida, ofereceriam formas de existência desejáveis justamente porque podem ser limitadas e objetivas. Assim, os limites são positivos, porque dão forma às coisas de modo que se tornam também intercambiáveis em um regime de trocas materiais e simbólicas diferenciadas.

Durkheim não estaria longe de reiterar as condições de solidez dos laços sociais que, por sua vez, impediriam a produção da anomia por vezes expressa em taxas de suicídio, interesse maior do sociólogo em O suicídio [1897]. A anomia, representada literariamente pelo sociólogo também como mal do infinito (expressão de Lamartine)12, seria, pois, um sentimento coletivo cuja possibilidade de ocorrência deveria ser evitada pelo sociólogo. Durkheim, para tanto, lança mão de uma hipótese contra-dedutiva baseada no processo de diferenciação social. A diferenciação produziria inevitavelmente a integração, na medida em que as interdependências entre os indivíduos aumentassem em contextos modernos. Os indivíduos precisariam cada vez mais uns dos outros e, por isso, conviria que suas posições sociais fossem ocupadas a fim de responderem às demandas de clientelas materiais e simbólicas sempre emergentes. Esses indivíduos seriam, assim, convocados a exercer suas profissões com excelência (na esfera da medicina, artes, política etc.) ao mesmo tempo em que suas vontades seriam satisfeitas.

Com o mesmo termo, Durkheim investe também contra a possibilidade de certo niilismo, assim como antes se investira contra o niilismo pedagógico da Renascença ao desenvolver uma ideia de sociedade integrada. O mal estaria, portanto, virtualmente presente frente à ausência de integração. Por isso, Durkheim pôde recorrer à educação moral (laica e não mais religiosa) a fim de atribuir um conteúdo mais sólido às formas voláteis da Modernidade. O mal que representa o caráter profano é o mesmo que propulsiona Durkheim à sagrada tarefa de conceituar uma natureza social que se elevaria sobre os indivíduos, estabelecendo fortes balizas. Os homens e as mulheres se reconciliariam com suas naturezas sagradas e profanas sob um estado de vida social e finito, esclarecido pelo saber científico. Eles dispõem, então, de categorias para existir; ordens pelas quais podem ascender e, embora possam renunciar à religião, dificilmente poderiam renunciar a uma forma de devoção à sociedade.

Punições e dignidade humana

Porém, a vida social tem algo de indomável e um conto assombroso sobre o mal do infinito (DURKHEIM, 1938b, p. 35) não bastaria para produzir integração social. Durkheim está seguramente longe de apresentar uma disciplina apoiada no medo, ainda que receie de tudo que possa eventualmente permanecer fora de sua ideia de sociedade. O fato é, que em se tratando de educação, Durkheim não pôde deixar de fazer face a um tema delicado: a punição como um componente sui generis da vida escolar. Os recursos etnográficos que ele mobiliza para tanto servem para definir esse aspecto particular da punição, uma vez que, em documentos sobre a educação dos povos primitivos, “a disciplina aparece com uma grande docilidade em sua maioria de casos” (DURKHEIM, 1938b, p. 154). Essa verificação localiza desde cedo a punição escolar como uma invenção excepcional das sociedades complexas, que tanto se servem da disciplina como uma resposta às urgências temporais de seus contextos (na formação de militares, por exemplo) quanto dispõem de uma opinião pública sensível às violências em geral.

A vida escolar no contexto de Durkheim está vazada de juízos modernos dispostos a condenar as violentações. Esse contexto torna possível a suspeita sobre as punições escolares serem possíveis sem que se desmoralize a própria realidade moral que Durkheim conceituara. O sentido da punição deve ser analisado segundo a perspectiva do sociólogo entre as fronteiras do sagrado e do profano. O que importa é, pois, elaborar ideias de punições despojadas da violência que até então havia logrado um lugar mais ou menos normal no universo escolar. Assim, a escola é concebida visivelmente como um espaço sujeito a forças coercitivas oriundas de outros contextos, grupos ou corporações, em que Durkheim se inscreve como cientista, que reafirmam ideais integradores que constituem sua própria instituição. Essa condição escolar é aquilo que, por sua vez, permite ao sociólogo propor punições baseadas na privação de atividades recreativas e na realização de tarefas suplementares.

O professor subsume, então, ideais integrados à escola, devendo tanto punir sem hesitação, mediante uma prudência que não fira valores sagrados relativos à dignidade dos alunos, quanto impedir que a regra disciplinar perca sua autoridade por meio da imagem respeitosa que ele mesmo representa. Durkheim faz da escola, portanto, um átomo capaz de ser reduzido à imagem do professor que, por sua vez, representa a instituição escolar por meio de seus gestos, corpo e personalidade.13 As conotações mais próximas ao sagrado – humano, moderado, prudente, justo, forte etc. – aderem assim ao seu papel social, que resume uma realidade ideal. As lições da educação moral não servem ora apenas à moralização dos estudantes. O mestre é igualmente um objeto de atenção, afinal, ele seria depositário do que há de mais sagrado.

Educação estética e história

A análise até aqui percorrida nos obriga a voltar ao princípio, recuperando de A evolução pedagógica algo que pode ser encontrado também em A educação moral. A primeira obra informa que a leitura de poetas latinos, por um público de jovens iniciados à Bíblia, deveria contar com moderação e forte atenção dos clérigos. Essa prudência é homóloga à do sociólogo acerca da literatura na escola. A separação essencial ocorre entre uma educação estética voltada à vida contemplativa (e, portanto, destacada das necessidades sérias da vida social) e uma educação histórica voltada à vida ativa. Assim, a literatura, que pertence ao domínio do imaginário e do ficcional, deve ser equilibrada com o domínio da realidade social que constitui a própria moral.

Em Da divisão do trabalho social [1893], Durkheim já reconhecia que os grupos artísticos seriam capazes de atingir certa autonomia na forma de corporações, produzindo obras que representariam uma espécie de sobre-excessos desconectados da seriedade da vida. Para o sociólogo, aliás, a arte guarda ainda outros dois significados, segundo Miller (2004): como ação prática (experiência adquirida pelo pedagogo na relação com seus alunos, por exemplo); e como um meio de conexão com a vida religiosa, que envolve dança, pintura, música etc. e, ao mesmo tempo, exprime a seriedade da própria vida social. A função da educação moral consiste em reconectar a arte moderna derivada da divisão do trabalho à integridade da vida escolar. Isso que não impede de situar o professor, mais uma vez, como mediador entre o sagrado e profano.

A divisão social do trabalho impõe à escola, portanto, um esforço de organização. O que convém a ela é encontrar um lugar para a literatura que neutralize suas virtudes profanas e que evite tentações e desconexões da realidade social e histórica. “A arte, digamos, faz-nos viver em um ambiente imaginário e por isso mesmo ela nos retira da realidade dos seres concretos, individuais e coletivos que compõem esta mesma realidade”, escreve Durkheim (2009, p. 333). À escola não cabe então, necessariamente, fazer oposição a essa realidade, mas, de outro modo, lançar mão de uma forma de tratamento sui generis, exprimindo sua própria singularidade como instituição social moderadora da cultura.

As razões pelas quais Durkheim oferece a seus alunos um grande afresco da história da educação no Ocidente parecem, assim, mais claras. A demonstração do real se dá, pois, pelo próprio conhecimento histórico, que ocupa um lugar crucial no pensamento do sociólogo. O real não corresponde, porém, apenas às necessidades sociais – de onde deságua geralmente seu aspecto funcionalista – mas também a elementos residuais do passado. O residual é visto como aquilo que permanece em algum lugar da história e que convém a Durkheim trazer de volta à vida social, dando-lhe um lugar privilegiado. Por isso, as invenções da Idade Média, como a universidade e os collèges, representaram objetos de abordagem genética. Estes foram responsáveis por legar estruturas e modos de pensamento, assim como a educação cristã legou uma aprendizagem baseada em uma cultura letrada que deveria se equilibrar entre leituras sagradas e profanas.

Esse equilíbrio é o que, enfim, poderia ser capaz de conferir ao pensamento educacional algo de essencialmente dramático. Afinal, a difusão da educação, que se manifesta por professores, livros e outros meios, procura justamente se proteger contra uma educação difusa, indefinida, confusa. A educação deixa ver, assim, seu caráter paradoxal a partir de uma tensão própria à sua constituição no Ocidente. Não seria esse paradoxo o mesmo que condenou Sócrates pelo seu suposto desvirtuamento da juventude grega? A imagem conflituosa da educação diz respeito também à uma imagem de professor, apresentada por Durkheim, que modera o uso da literatura por meio da história. O fenômeno educativo no pensamento durkheimiano hesita, assim, entre ações e coerções historicamente observáveis, prevendo tensões entre os indivíduos. Assim, educação se torna a abertura de uma porta para uma sala que, contudo, não sabemos se é clara ou escura.

Notas finais

O pensamento educacional durkheimiano é inerente às tensões entre o sagrado e o profano. Durkheim descobre que, desde as escolas catedrais, a difusão da educação deveria lidar com as contingências (ou mal-entendidos) de uma educação difusa, ou seja, uma educação com finalidades dispersas e heterogêneas. A história da educação poderia ser lida, assim, como uma história das balizas ou das separações que procuram orientar formas de ensino, tornando sua ação sujeita a uma pedagogia pensada à altura das complexidades de seu tempo.

Os cuidados referentes às literaturas latinas profanas – diferentes da leitura da Bíblia – simbolizam, por exemplo, uma entre outras balizas que, repetidamente, poderiam se impor em outros contextos históricos. A atenção concedida aqui ao binômio sagrado-profano pode contribuir para desfazer certos mal-entendidos não apenas acerca da sociologia educacional de Durkheim, mas, sobre uma ideia de natureza humana que assuma um constante vai e vem de balizas, separações, que reafirmam as qualidades plásticas próprias ao ser social.

O pensamento educacional de Durkheim, nesse sentido, dificilmente permanece ao abrigo de confusões quando se ignora seu método particular de observação da história. A disposição intelectual de voltar-se ao passado a fim de pensar o presente e o futuro, ainda que possa soar contraditória, não seria uma contradição sociologicamente fecunda, que conduz às reflexões sobre o papel do profano no aprimoramento e na complexificação da própria educação e da cultura? A história da educação no Ocidente talvez nunca chegaria a ser exaustiva acerca de papéis sociais decisivos, como o das vulgarizações científicas, das traduções (ainda que rudimentares) ou dos professores leigos e iletrados (porque não sabiam o latim) que, embora inadequados do ponto de vista de uma ideia de ordem social, não deixaram de contribuir para a difusão da educação ao deslocarem-na de um lugar para outro.

A função da educação de se servir da plasticidade dos próprios indivíduos a fim de estabelecer entre eles um complexo laço de integração social pode ser, ainda, sempre reinterrogada a partir de ideias de sociedade sempre abertas ao debate científico. Sociedades que encarregam a educação, por exemplo, de integrar seus indivíduos a partir de um arbitrário cultural dominante, representam, pois, apenas uma entre outras formas de olhar para o próprio social. O retorno à obra de Durkheim, de outro modo, frente às estritas relações entre educação e sociedade, se torna uma forma de (re)introduzir certo conflito empírico ao consenso científico que pode amiúde fazer tábula rasa de suas virtudes heurísticas. As tensões entre o sagrado e profano não deixam de ser, assim, um convite a explorar a educação a partir de ângulos antropológicos e históricos, domínios aos quais Durkheim não hesitava em recorrer para se definir enquanto sociólogo e, ao mesmo tempo, como pedagogo de seu tempo.

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3- Esta foi também obra de interesse de Lévi-Strauss (1993, p. 56) onde – escreve ele – “pela primeira vez, observações etnográficas, metodicamente analisadas e classificadas, não mais apareceram nem como um amontoado de curiosidades ou de aberrações, nem como vestígios do passado, e se faziam esforços para situá-las no interior de uma tipologia sistemática das crenças e condutas”.

4- A biografia de Durkheim reforça ainda a imagem de um sociólogo constituído em meio a tensões. Durkheim descende de uma longa linhagem familiar de rabinos (FILLOUX, 1976), ingressou na École Normale Superieure, instituição francesa responsável pela formação de quadros docentes, para depois debutar como professor de filosofia, aos 24 anos, na modesta cidade de Sens, a 125 quilômetros de Paris. A vida do jovem Durkheim reúne, por si só, elementos capazes de colocar sob suspeita teorias englobantes da socialização ligeiramente atribuídas à sua própria autoria.

5- Esses cursos, muito possivelmente por força da particularidade de seu gênero textual, não contam com notas documentais de rodapé, em geral e vastamente empregadas em outras obras de Durkheim. Isso particulariza seu texto quanto à forma, assim como ao conteúdo, na medida em que eram escritos para serem ouvidos pelo seu público.

6 - A palavra transmissão pertence ao mesmo grupo etimológico que reúne os termos tradição e traição, por isso um ato de transmissão pode servir tanto à perpetuação de um costume quanto à difusão indevida de um segredo.

7- Arns (2007), em A técnica do livro segundo São Jerônimo, apresenta o meticuloso processo de confecção e publicação da Bíblia.

8- Abélard vai à cidade de Laon, região atual de Hauts-de-France, atraído pela reputação dos cursos de dialética de Anselmo. O que lá encontra quanto ao mestre, porém, é uma “árvore cheia de folhas, mas sem frutos, uma fogueira de onde sai muito fumo e nenhum clarão” (MOULIN, 1994, p. 260).

9- A criação do Colégio de Leitores Reais, escreve Lefranc (1893, p.107), teria acontecido “sem barulho, sem aparatos, quase às escondidas, para não alarmar a Sorbonne” que, ao contrário do Colégio, privilegiava na época um ensino exclusivamente realizado por meio da língua latina.

10- Para uma análise da noção de corporação na obra de Durkheim, sugere-se a leitura do artigo de Jean-Claude Gautier (1994).

11- Assim chamada em virtude do fato de que “os alunos escutavam os mestres sentados em cima de palha, juncos ou fenos, porque os escabelos podiam suscitar formas de orgulho entre os jovens, [...] conforme se diz numa carta dos cardeais Jean de Blandry e Gilles Rycelin, dirigida à Universidade de Paris, com data de 5 de Junho de 1366” (MOULIN, 1994, p. 68).

12- Durkheim (2000, p. 359) se serve do seguinte trecho do romance Raphael, de Lamartine, “A languidez de todas as coisas à minha volta era uma maravilhosa consonância com minha própria languidez. Ela a aumentava, consolando-a. Eu mergulhava nos abismos da tristeza. Mas essa tristeza era viva, bastante cheia de pensamentos, de impressões, de comunicações com o infinito, de claro-escuro em minha alma para que eu não desejasse subtrair-me a ela. Doença do homem, mas doença cujo próprio sentimento é um atrativo em vez de ser uma dor, e em que a morte se assemelha a um voluptuoso desvanecer no infinito. Estava resolvido a doravante entregar-me inteiro a ela, a me sequestrar de toda sociedade que pudesse distrair-me dela e a me envolver em silêncio, solidão e frieza, no meio do mundo que eu encontraria então; meu isolamento espiritual era um sudário através do qual eu não queria mais ver os homens, mas apenas a natureza de Deus”.

13- As qualidades pessoais do professor podem ser entendidas como uma face de autoridade escolar, segundo o artigo de Philippe Foray (2009).

Recebido: 20 de Agosto de 2017; Revisado: 20 de Fevereiro de 2018; Aceito: 03 de Abril de 2018

Tiago Ribeiro Santos é professor visitante na Universidade Regional de Blumenau (FURB) vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação, Blumenau, Santa Catarina, Brasil. Doutor em educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com estágio na Universidade René Descartes, Paris V.

Ione Ribeiro Valle é professora do Centro de Ciências da Educação na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pesquisadora PQ do CNPq – Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações. Coordenadora do Laboratório de Pesquisas Sociológicas Pierre Bourdieu (LAPSB).

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