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Educação e Pesquisa

versión impresa ISSN 1517-9702versión On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.45  São Paulo  2019  Epub 12-Abr-2019

https://doi.org/10.1590/s1678-4634201945186330 

Artigos

A pedagogia artesã como práxis educativa em culturas populares tradicionais 1

Sonia Carbonell Alvares2 
http://orcid.org/0000-0003-2488-8772

2 - Universidade de São Paulo , São Paulo , SP , Brasil . Contato: soniacarbonell@terra.com.br


Resumo

Este artigo é fruto de uma pesquisa sobre o patrimônio cultural da cerâmica tradicional e a pedagogia artesã. O principal problema que se buscou enfrentar diz respeito à práxis educativa do ofício cerâmico em uma comunidade tradicional e os modos de ensino e aprendizagem em territórios de trabalho artesanal. O estudo compreendeu uma investigação fenomenológica do dia a dia dessa sociedade, teve por objetivos descortinar e compreender como os conhecimentos da cerâmica são partilhados pelas gerações, as metodologias que contribuem para perpetuar os antigos segredos de ofício, de que modo formas manuais de criação artística convivem com tecnologias contemporâneas. A base etnográfica da pesquisa localiza-se na comunidade tradicional de Maragogipinho, pequeno distrito da cidade de Aratuípe, na Bahia, ambiente genuíno da cerâmica, onde, desde o século XVII, homens e mulheres dedicam-se cotidianamente à produção de objetos de barro. Os dados foram coletados a partir de observação direta, diário de campo, entrevistas gravadas e registros fotográficos entre 2012 e 2015. Os resultados obtidos evidenciam o incomensurável acervo imaterial de conhecimentos individuais e coletivos que coexistem nessa aldeia de mestres, de guardiões da cerâmica. A pedagogia dos mestres-artesãos, ou pedagogia artesã, fundada em valores ancestrais, se efetiva na prática, transcendendo-a para as esferas da ética e da estética, no sentido de alimentar nos sujeitos o senso de pertencimento a um corpo social reconhecido, por meio de um ofício artístico que dialoga constantemente com a tradição e a emergência da modernidade.

Palavras-Chave: Cerâmica; Educação Artesanal; Pedagogia Artesã; Mestria; Culturas Populares

Abstract

This article is the result of my researches on the cultural heritage of traditional ceramics and the artisan pedagogy. The main problem faced was the educational praxis of the ceramics craft in a traditional community and the ways of teaching and learning handicraft work in artisanal communities. The study comprised a phenomenological investigation of the daily life of this society, and its aims were to reveal and understand how the knowledge of pottery is shared by successive generations; which are the methodologies that contribute to perpetuating the ancient secrets of the craft; how manual forms of artistic creation coexist with contemporary technologies. The ethnographic basis of the research was the traditional community of Maragogipinho, a small district in the city of Aratuípe, in Bahia, a genuine environment of ceramics handicraft, where, since the 17th century, men and women are daily engaged in the production of clay objects. The data were collected from direct observation, field diary entries, recorded interviews and photographic records between 2012 and 2015. The results obtained evidenced the immensely immaterial collection of individual and collective knowledge that coexist in this village of masters and guardians of the ceramics craft. The pedagogy of master craftsmen, or artisanal pedagogy, based on ancestral values, is effective in practice, transcending it towards the spheres of ethics and aesthetics, in the sense of fostering in the subjects the sense of belonging to a recognized social body, by means of an artistic craft that constantly converses with the tradition and the emergence of modernity.

Key words: Ceramics; Artisanal Education; Artisan Pedagogy; Mastery; Popular Cultures

Fonte: Fotografia de Carol Dantas.

Figura 1 Oleiro de Maragogipinho torneando um prato 

Introdução

O artista que corta a madeira, martela o metal, molda a argila, talha o bloco de pedra, traz até nós um passado do homem, um homem antigo, sem o qual não estaríamos aqui. Não é admirável vê-lo em pé, entre nós, em plena era mecânica, esse sobrevivente obstinado da era das mãos? Os séculos passaram por ele sem alterar sua vida profunda, sem fazê-lo renunciar a seus modos antigos de descobrir o mundo e de inventá-lo.

Henri Focillon. (2012 , p. 19).

No vasto território latinoamericano, desde a conquista até os dias atuais, uma grande diversidade de culturas espraiou-se originando uma realidade de amplitude simbólica multifacetada, rica em expressões artísticas, transmitidas especialmente pela tradição oral. Dessas manifestações, destacamos o artesanato como atividade portadora de valores que marcam e distinguem traços identitários nas sociedades tradicionais, em que desempenha um importante papel de coesão no tecido social.

O artesanato comumente praticado nos pequenos povoados consagra a partilha de conhecimentos entre as gerações, a atividade manual fortalece as relações sociais, engendrando princípios de solidariedade. Do esteio na família, da cooperação na vizinhança ao pertencimento à comunidade como um todo, a constituição da vida é tecida nas práticas do fazer artesanal.

Entretanto, o modelo urbano-industrial da sociedade contemporânea, centrado no consumo de bens e serviços, depredador dos recursos naturais, ávido pelo progresso tecnológico, põe em perigo as formas de vida que permanecem dependentes exclusivamente do trabalho com as mãos. Às vezes valorizado, às vezes desprezado, o artesanato transita por um espaço instável entre o turismo, o consumo das classes desvalidas e os gostos da elite.

Os artesãos 3 são pessoas simples que, sem tomar parte ativa nas políticas econômicas, acabam sorvidos pelos desarranjos econômicos que os apartam das próprias raízes e do sentido sócio-cultural de seu trabalho. Para sobreviver e atender ao mercado, muitos deles abandonam práticas ancestrais, deixam de criar para produzir objetos vazios, extrínsecos, sem personalidade, como tão bem expressa o artesão brasileiro Zé do Carmo:

Hoje existe essa mania de igualar tudo. Antes as pessoas diziam: “veja o que você tem de melhor e traga”. Agora, você deixa de ser autor para ser uma máquina. (LIMA, B.; LIMA, V., 2008, p. 173).

Empobrecidos, os artesãos trabalham incansavelmente para obter um exíguo provento, que mal dá para o sustento de suas famílias. Para quem depende do artesanato hoje, no Brasil e na América Latina globalizada, as formas de sobrevivência repousam em horizonte nebuloso, incerto, a produção artesanal ainda penetra timidamente nos nichos do mercado global, fazendo frente aos produtos industriais.

Entre as modalidades artesanais, a cerâmica constitui um ofício imemorial, presente desde sempre no fazer cotidiano das sociedades. Civilizações inteiras, em todas as partes do planeta, produziram e produzem artefatos de cerâmica para as mais variadas funções, das simples às complexas: a construção de paredes, piso e telhado das moradas, contenção e armazenamento de água, cozimento dos alimentos, oferendas aos deuses, enterro dos mortos. Para além da funcionalidade, a atividade cerâmica nutre o homem dos sonhos mais elementares da terra, da água, do fogo e do ar. Plasmar formas no barro reaviva e contenta o inexorável desejo terreno da criação original ( BACHELARD,2003 ).

Este artigo reflete sobre o acervo de saberes artísticos de uma comunidade brasileira tradicional da cerâmica e como se perpetuam por meio de processos informais de ensino e aprendizagem. Evidencia e valoriza a produção de conhecimentos através de práticas pedagógicas não convencionais, com objetivo de reconhecer a sua relevância e valor, preservar a sua continuidade. Pretende trazer elementos e contribuir para o debate sobre a salvaguarda de patrimônios culturais imateriais, no que tange à educação artesanal, mais especificamente aos processos pedagógicos da cerâmica tradicional.

O estudo de doutorado ( ALVARES, 2015 ) que fundamenta esta discussão reuniu uma investigação qualitativa, orientada pelos pressupostos da Fenomenologia ( BACHELARD, 2001 ; MERLEAU-PONTY, 1999 ) e da Etnografia ( GEERTZ, 1989 ), a partir de uma pesquisa de campo articulada à bibliografia sobre o tema, nas áreas de Arte ( ANDRADE, 1938 ; PAZ, 1991 ; YANAGI, 1972 ), Ciências Sociais ( CANCLINI, 2003 ; LIMA, 2010 ; TUROK, 1988 ) e Educação ( DEWEY, 1976 ; FERREIRA-SANTOS; ALMEIDA, 2011 ; FREIRE, 2001 ; GUSDORF, 2003 ; RUGIU, 1998 ).

Embora a pesquisa tenha sido realizada com um grupo social apenas, Maragogipinho pode ser considerado como um caso emblemático de comunidade tradicional que se constitui no trabalho com a cerâmica. O povoado tem mais ou menos três mil habitantes e 150 olarias, ou seja, cerca de uma olaria para cada 20 pessoas. Um aspecto de distinção nessa produção artesanal é que as peças são construídas por no mínimo quatro mãos: a atividade cerâmica é totalmente compartilhada entre homens e mulheres. Eles extraem o barro, amassam-no, confeccionam os artefatos em tornos de madeira seculares, movidos com os pés, e os queimam em fornos à lenha, enquanto elas produzem o acabamento, dão polimento e pintam.

Os registros históricos da atividade cerâmica na região de Maragogipinho reportam ao século XVII, quando começaram a ser instaladas olarias junto aos engenhos de açúcar do Recôncavo Baiano e aos colégios dos jesuítas para o provimento de louças, tijolos e telhas ( PEREIRA, 1957 , p. 12). Atualmente, os artesãos se orgulham em divulgar que Maragogipinho foi considerado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) como um dos mais expressivos centros da produção artesanal de cerâmica da América Latina.

Maragogipinho, patrimônio cultural da cerâmica

Maragogipinho é um bairro afastado do município de Aratuípe ( fig. 2 ), na Bahia, localizado a 130 quilômetros de Salvador. Está situado no Recôncavo Baiano, região de vasta riqueza cultural e tradições. O Recôncavo corresponde à extensa área em torno da Baía de Todos os Santos, inclui a capital Salvador e não só o litoral, mas também o interior. O termo Recôncavo foi dicionarizado como brasileirismo e significa extensa e fértil região da Bahia. Sobre seu solo de massapê — uma terra preta argilosa —, prosperaram outrora fazendas imponentes de lavoura de cana-de-açúcar, onde o senhorio fundiário fincou raízes profundas. Para a produção açucareira, o Recôncavo recebeu milhares de escravos, o que originou um alto grau de ancestralidade africana na região.

Fonte: Fotografia da autora, 2014.

Figura 2 Placa de entrada do povoado de Maragogipinho (BA) 

Maragogipinho está próximo a Nazaré das Farinhas, importante cidade da região, com a qual se comunica intensamente por via fluvial ou terrestre. O povoamento do bairro iniciou-se na beira de um braço do rio Jaguaripe, o Rio Maragogipinho, em que correm pequenos e serpenteantes cursos d’água, beirados pelo mangue e pela mata, conservando ainda aspectos nativos. O lugarejo preserva características tipicamente rurais. Arruados irregulares, alguns já com calçamento, convergem para o largo da Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceição ( fig. 3 ), construída no ponto mais alto do terreno em 1710, e reformada em 1930.

Fonte: Fotografia da autora, 2013.

Figura 3 Vista da Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceição desde a praça principal 

No processo de colonização do Brasil, a representação social e a visão de mundo do indígena, do africano, do português e, na sequência, do mestiço, vão aparecer significativamente na produção simbólica no decorrer dos séculos seguintes. Na cerâmica de Maragogipinho, as formas e os temas pintados remetem explicitamente à hibridação4 do povo brasileiro.

No apuro estético das obras, na beleza das formas torneadas e na delicadeza das pinturas transparece o esmero e a sabedoria dos artesãos e artesãs. A maior parte da produção é de peças utilitárias grandes e pequenas ( fig. 4 ), que servem ao uso doméstico, decorativo e a fins religiosos, mas fabricam também objetos antropomorfos e zoomorfos ( fig. 5 ).

Fonte: Fotografia da autora, 2015.

Figura 4 Moringas em uma olaria 

Fotografia disponível em: <https://br.pinterest.com/pin/484066659918092981/>.

Figura 5 Boi-bilha, peça emblemática de Maragogipinho, criado originalmente por Mestre Vitorino, hoje com 96 anos de idade. O boi-bilha recebeu Menção Honrosa das Organizações das Nações Unidas (ONU) no Festival de Artesanato dos Países da América Latina e do Caribe, em 2004 

A cerâmica de Maragogipinho é tradicionalmente pintada com pigmentos feitos do próprio barro. São utilizadas como tintas a tabatinga e o tauá. A tabatinga é um engobe 5 branco e o tauá um engobe vermelho. Essa minuciosa técnica de pintura com o fundo vermelho e os grafismos em branco, ou vice-versa, remete a representações indígenas, assim como os motivos florais a representações portuguesas. Os pincéis utilizados pelas pintoras mais idosas são ainda confeccionados com pelo do lombo de gato, amarrados a um talo fino de palmeira. Constituem verdadeiros instrumentos de precisão, em que o caimento do pelo se atenua, gradativamente, até a ponta, para garantir uma pincelada fina e meticulosa.

Nas ruas e ruelas de Maragogipinho, por onde se caminha, enxergam-se vestígios da atividade cerâmica. A cultura do barro está impregnada na paisagem do vilarejo. A visão de objetos cerâmicos por todas as partes, a fumaça dos fornos e o cheiro da argila úmida transportam o visitante para outra dimensão. Nas praças, em frente das olarias e das casas, mulheres dão polimento e realizam a pintura de peças de barro, antigos hábitos que ainda perduram no século XXI.

As olarias mais antigas situam-se ao lado do rio, em um amplo terreno de mangue. Olarias são galpões de construção típica com estrutura de madeira, paredes de palha de piaçava e cobertura de telhas cerâmicas. Essa concepção arquitetônica ancestral facilita a circulação de ar e a iluminação natural do espaço, aspectos essenciais para a secagem das peças e o conforto ambiental dos trabalhadores, em região de calor tropical. Nas trilhas sinuosas entre as olarias, avistam-se objetos secando ao sol e feixes de lenha empilhados, futuro fogo que lamberá as peças.

As olarias ( fig. 6 ), com sua arquitetura peculiar, representam uma parte do patrimônio cultural da cerâmica de Maragogipinho. Entretanto, sem o reconhecimento oficial do Estado, os bens que integram esse patrimônio sofrem transformações constantes, alguns deles vêm se extinguindo. Em 2014, por exemplo, verifiquei que as trilhas haviam recebido calçamento e algumas olarias de madeira e piaçava deram lugar a galpões de alvenaria.

Fonte: Fotografia da autora, 2013.

Figura 6 Caminho entre as olarias 

O torno de roda ( fig. 7 ) é a ferramenta de excelência para a confecção das peças cerâmicas em Maragogipinho, geralmente fica localizado no melhor lugar da olaria para que o oleiro se beneficie da ventilação e da iluminação natural. Via de regra, os tornos são de madeira, movidos pelos pés. A aprendizagem do ofício é centrada no manuseio desse instrumento milenar, que exige habilidade das duas mãos. A assimetria manual é algo a ser superado quando se trabalha no torno.

Fonte: Fotografia de Carol Dantas.

Figura 7 Torno de roda sendo movido pelos pés do oleiro 

Os fornos alimentados à lenha também constituem instrumentos elementares para a produção da cerâmica e integram o patrimônio cultural de Maragogipinho. Basicamente, são construídos dois tipos de fornos: o caieira , com o teto aberto (para peças pequenas ou para pouca quantidade) e o capela , fechado, com o teto abobadado (para peças maiores e grandes quantidades).

O transporte das peças para Salvador e adjacências é também outro aspecto que merece atenção quanto às mudanças. Por mais de três séculos, os artefatos foram transportados em saveiros ( fig. 8 ) movidos à vela. Nesses barcos, a qualidade do transporte das louças é inigualável porque não sofrem atrito e não se expõem facilmente à quebra. O saveiro é uma embarcação típica, também faz parte do patrimônio cultural baiano, porém vem desaparecendo já há algum tempo. Depois da pavimentação da estrada que dá acesso a Maragogipinho, os caminhões praticamente substituíram os saveiros no transporte da cerâmica, o que encareceu significativamente o comércio dos produtos.

Fonte: Fotografia de Ferraz (2009 , p. 23).

Figura 8 Peças de cerâmica sendo embarcadas em saveiro no cais de Maragogipinho 

As feiras onde são comercializadas as peças de Maragogipinho igualmente compõem o patrimônio cultural imaterial da cerâmica. Há algumas delas nos arredores, mas a principal é a Feira dos Caxixis ( fig. 10 ), em Nazaré das Farinhas que, segundo relatos orais, ocorre há mais de 200 anos, sempre na semana santa. A Feira dos Caxixis é famosa na região, funciona como uma espécie de vitrine de Maragogipinho. Nela, os artesãos da comunidade depositam altas expectativas de escoamento da produção.

Fonte: Fotografia da autora, 2013.

Figura 10 Artesão em barraca na Feira dos Caxixis 

Caxixis são pequenos objetos cerâmicos que deram nome à feira. Sua confecção é originalmente relacionada ao processo de aprendizagem das crianças: os meninos confeccionam caxixis no torno e as meninas ensaiam a pintura nessas miniaturas lúdicas ( fig. 9 ).

Fonte: Fotografia da autora, 2013.

Figura 9 Caxixis 

É por tudo isso que Maragogipinho, polo da cerâmica artesanal, reúne um importante patrimônio cultural brasileiro. A sobrevivência desse patrimônio corre sérios riscos. Os conhecimentos tradicionais do ofício da cerâmica vêm desaparecendo com a morte dos mestres e mestras, aqueles que permanecem trabalhando estão cada vez mais idosos. Os filhos e descendentes dos artesãos têm abandonado o povoado em busca de escolarização e de outras oportunidades de trabalho. Há migração de pessoas de fora para trabalhar no barro, mas essas desconhecem segredos do ofício e técnicas ligadas à tradição. As fontes das matérias-primas, o barro e a madeira, vêm diminuindo sem um plano de renovação sustentável. Na balança do tempo, os prejuízos ganham peso: os altos preços do transporte das peças em caminhões oneram muito o valor de venda; o desaparecimento de profissões ligadas à cadeia produtiva da cerâmica, como o amassador, o queimador de forno e até a pintora, sobrecarrega os artesãos, que deixam de produzir à maneira tradicional; as condições precárias de subsistência econômica, de aposentadoria e previdência dos artesãos não estimulam as novas gerações à continuidade do ofício. É importante observar, também, como as transformações físicas e culturais do espaço, orientadas predominantemente pela hegemonia do agenciador, pautadas pelos princípios do capital, provocam a decadência da produção artesanal da cerâmica.

Constataremos, a seguir, a necessidade do resgate e da documentação dos saberes e processos pedagógicos da cerâmica tradicional de Maragogipinho para contribuir com a preservação e a salvaguarda desse patrimônio.

Saberes que têm a força de fontes

As árvores velhas quase todas foram preparadas para o exílio das cigarras. Salustiano, um índio guató, me ensinou isso. E me ensinou mais: que as cigarras do exílio são os únicos seres que sabem de cor quando a noite está coberta de abandono. Acho que a gente deveria dar mais espaço para esse tipo de saber. O saber que tem força de fontes.

Manoel de Barros (1998 , p. 12).

A cerâmica artesanal congrega um conjunto de conhecimentos não institucionais, iletrados, relacionados, de um lado, aos processos de criação artística e, de outro, aos ciclos da natureza; aos elementos: ar, água, fogo e terra; aos estados da matéria. Os saberes da cerâmica circunscrevem conteúdos culturais e se mantêm ao longo do tempo pela tradição oral, mas se recriam no contato com as tecnologias e os modos de vida contemporâneos.

No universo singular dos artesãos de Maragogipinho podemos compreender aspectos intrínsecos da cadeia produtiva da cerâmica artesanal; dos fundamentos da divisão social do trabalho entre homens e mulheres, às próprias etapas da produção: extração do barro, processamento, amassamento, torneamento e modelagem das peças, acabamento, queimas, comercialização dos objetos.

A singularidade de cada povo, expressa por meio de sua produção artística, exibe tanto os signos que o identificam quanto os que o distinguem. Tião Rocha (2010) afirma que fazer bordados, cestos e potes é atividade universal, mas não são universais as maneiras do fazer, nem o material com que se faz e nem as formas ou os padrões utilizados para fazê-los. As particularidades do fazer e do ensinar a fazer, as ferramentas, as propriedades constitutivas dos materiais utilizados, as distinções de estilo são aspectos que conferem marcas de identidade às peças, aos autores e às suas culturas.

Os saberes desses artesãos possuem uma concretude, originam-se nas práticas sociais, no trabalho e nas atividades diárias. Constituem saberes da pele, dos ossos e músculos, dos sentidos, da mente. Enfatizamos aqui a experiência do corpo como campo criador de sentidos, isto porque a natureza da sabedoria artesanal não advém da ação exclusiva do intelecto, mas ocorre como um acontecimento da corporeidade.

Para elucidar a concepção de sapiência do corpo, recorremos a uma passagem do romance A caverna , em que Saramago reflete sobre o acúmulo de conhecimentos que possui um oleiro, no caso o personagem Cipriano Algor:

[...] não se pode mais trabalhar a olho nem a palmo, por apalpação ou farejando, segundo os atrasados procedimentos tecnológicos de Cipriano Algor, que acaba de comunicar à filha com o ar mais natural do mundo. A pasta está boa, úmida e plástica no ponto, fácil de trabalhar, ora, perguntamos nós, como ele poderá estar tão seguro do que diz se só lhe pôs a palma da mão em cima, se só apertou e moveu um pouco de pasta entre o dedo polegar e os dedos indicador e médio, como se, de olhos fechados, todo entregue ao sentido interrogador do tato, estivesse a apreciar, não uma mistura homogênea de argila vermelha, caulino, sílica e água, mas o urdume e a trama de uma seda. O mais provável, [...] é saberem-no os seus dedos, e não ele. ( SARAMAGO, 2000 , p. 148).

Os saberes corpóreos dos povos constituem seus patrimônios culturais imateriais. Na América Latina e no Brasil, os conhecimentos assentados nos ofícios manuais ainda permanecem pouco valorizados. As práticas artesanais, quando reconhecidas e consagradas, recebem um matiz folclórico de exotismo, às vezes são enaltecidas em função de sua ancestralidade, o que, certamente, reconecta as sociedades tradicionais com as suas raízes, mas não as legitima no presente. O mais comum é que essas culturas sejam consideradas como antigas e subalternas, quando confrontadas com a modernização cultural que se impõe como meta para as sociedades latino-americanas.

O desprestígio da sapiência do corpo vem se acentuando em nosso planeta globalizado. A vida cotidiana urbana, as tecnologias digitais, os processos de educação e o trabalho se distanciam cada vez mais do contato com as matérias-primas, dos fenômenos mutantes da natureza e do próprio corpo. Contudo, não é o que ocorre em Maragogipinho:

Nosso trabalho aqui é todo manual. A gente não tem aquela tecnologia, é um trabalho todo braçal, é um trabalho pesado, desde a preparação da argila bruta. A gente prepara a argila primeiro pisando com o pé, depois amassando com a mão. [...] O pessoal aqui não precisa de academia para ficar musculoso, este trabalho depende muito do corpo, o corpo precisa estar bem. (oleiro Nelinho).

No mundo contemporâneo, várias sociedades dependem exclusivamente do corpo para executar o trabalho produtivo e da palavra falada para compartilhar conhecimentos. Os corpos das pessoas que trabalham com o barro são moldados pelas ações repetitivas, pela exposição ao sol e às intempéries, pelo contato direto com a natureza. Em Maragogipinho, a matéria barro desempenha uma função estruturante nas pessoas. Ela atua como extensão do próprio corpo, organiza o tempo, articula a sociabilidade, dá lastro à vida familiar. O bailado dos pés e das mãos no torno, a cadência do corpo na pisa, o tônus dos braços no amassamento e a delicadeza dos gestos das mãos na pintura constituem movimentos corporais extremamente expressivos, estéticos, que imprimem dignidade e beleza a quem os executa.

Muitos maragogipinianos, ainda pequenos, aprenderam o ofício da cerâmica com a mãe, pai, tio, avô, vizinha. Alguns desses artesãos e artesãs apresentam capacidades e disponibilidade para ensinar, espraiam habilmente o legado de seus antepassados e formam discípulos no lugar. O valoroso patrimônio cultural imaterial que a comunidade detém encontra nos processos educativos da cerâmica, na pedagogia dos mestres-artesãos, um manancial metodológico a ser evidenciado, no sentido de garantir a continuidade e a sustentação desses conhecimentos tradicionais.

A pedagogia artesã

A educação é o processo de partilha e mediação da experiência social acumulada entre as gerações mais velhas e as mais novas, no qual a sociedade atua constantemente sobre o desenvolvimento do ser humano.

Em sociedades letradas, a escola representa a principal agência na promoção do desenvolvimento humano. A educação escolar convencional privilegia a atividade intelectual e o domínio da linguagem escrita, com vistas ao registro e à conservação da memória social. De modo geral, na pedagogia escolar tradicional, que se espalhou pelo mundo a partir do século XVIII a fim de universalizar o acesso ao conhecimento, o ensino é compartimentado em disciplinas, o professor atua como figura central, domina os conteúdos logicamente organizados e estruturados, veiculando-os aos alunos, predominantemente de forma expositiva oral. A escola convencional concebe a intervenção do professor como imprescindível para desencadear e movimentar os mecanismos de aprendizado nos alunos.

Nas culturas populares de tradição oral, o conhecimento é conceitualizado e verbalizado em referência, maior ou menor, à experiência humana. A sociedade tem em alta conta os anciãos e anciãs, que se especializam em salvaguardar a sua história e os seus saberes. A educação dos mais novos se dá basicamente por meio da palavra falada (ou silenciada), e a aprendizagem ocorre pela ação.

Atualmente, uma nova oralidade vem sendo sustentada pelos meios eletrônicos como o telefone celular, o computador, a televisão e outros que dependem, em parte, da escrita para existirem e funcionarem. No entanto, diversas sociedades iletradas contemporâneas ainda conservam traços marcantes da cultura oral, relacionados essencialmente à função da memória, que sempre foi extremamente desenvolvida nesses grupos sociais. Além disso, perpetuam uma profunda relação entre homem e palavra:

Lá onde não existe a escrita, o homem está ligado à palavra que profere. Está comprometido por ela. Ele é a palavra, e a palavra encerra um testemunho daquilo que ele é. A própria coesão da sociedade repousa no valor e no respeito pela palavra. Em compensação, ao mesmo tempo que se difunde, vemos que a escrita pouco a pouco vai substituindo a palavra falada, tornando-se a única prova e o único recurso; vemos a assinatura tornar-se o único compromisso reconhecido, enquanto o laço sagrado e profundo que unia o homem à palavra desaparece progressivamente para dar lugar a títulos universitários convencionais. (HAMPÂTÉ BÂ, 1982, p. 2).

Nas comunidades artesãs, “os ofícios tradicionais são os grandes vetores da tradição oral” (p. 11). O próprio repertório gestual dos artesãos pode ser considerado uma linguagem, os gestos de cada ofício reproduzem simbolicamente o mistério da criação primeira, ligado, inelutavelmente, ao poder da palavra: “O ferreiro forja a Palavra, o tecelão a tece, o sapateiro amacia-a curtindo-a” (p. 12).

O processo de ensino e aprendizagem do artesanato ocorre, principalmente, no interior da oficina. Muito embora congregue mestre e aprendizes, a oficina artesanal não constitui uma escola, é um local de trabalho onde não há separação entre trabalhar e aprender, ou trabalhar e ensinar, o trabalho se confunde com o fazer artístico. A educação artesanal é eminentemente constituída na prática, por meio do fazer manual, da observação e imitação do mestre-artesão, da conquista, pelo aprendiz, de um percurso poético próprio.

Tão antiga quanto os primeiros artesãos, a pedagogia artesã remete suas origens à era neolítica. Posteriormente, se desenvolveu no interior das corporações medievais de ofício e impulsionou pensadores e educadores a buscar e recuperar nas origens do trabalho artesanal os fundamentos da educação que se desenvolvia nessas oficinas, por meio de um longo exercício de observação e prática.

As ideias de John Dewey (1859-1952), respeitável filósofo americano, referenciam a compreensão epistemológica da pedagogia artesã. Dewey (1976) acreditava que o ensino deve dar-se mais pela ação do que pela instrução, a verdadeira aprendizagem ocorre na prática; referia-se ao aprender fazendo , em que salienta a importância da experiência pessoal ativa nos processos educativos. Defendia que a educação representa um processo de renovação da experiência, em que não existe um fim a ser atingido.

A concepção de que a educação deve ter como eixo norteador a vida-experiência influenciou a Escola Nova, importante movimento de renovação do ensino que foi especialmente forte na Europa, na América e no Brasil, na primeira metade do século XX. Contudo, mais tarde, o aprender fazendo , tão caro aos princípios de Dewey, foi sendo abolido e substituído pela noção oposta de que a verdadeira aprendizagem é aquela que se assimila através do intelecto.

Recentemente, surgiram outros educadores preocupados em resgatar a pedagogia dos mestres-artesãos, como o italiano Antonio Santoni Rugiu (1921-2011), que trouxe à luz, em sua obra Nostalgia do mestre artesão , a importância formativa do artesanato na cultura e na educação. Rugiu (1998) afirma que nas peças artesanais repousa, latente, o gérmen do fenômeno educativo. Exalta o artesão como um trabalhador que é dono do seu tempo e conhecedor de todo o processo de produção em seu ofício. O mestre-artesão pode reconhecer-se e ser reconhecido nos objetos que lhe saem das hábeis mãos.

Na pedagogia artesã, a relação de ensino e aprendizagem estabelecida entre mestre e aprendiz suplanta a mera transmissão de técnicas. Para além da assimilação de conceitos, procedimentos relativos às possibilidades expressivas dos materiais ou manuseio das ferramentas, o discípulo aprende a relacionar-se com a peça artesanal por meio da posse de um repertório cuja partilha de saber implica na tomada de consciência de seu modo de ser e de estar no mundo. O aprender a fazer bem feito, o conquistar um estilo próprio depende, especialmente, do grau de aproximação e de afinidade entre mestre e aprendiz.

Ao estudar a pedagogia de duas mestras-artesãs ceramistas, Mattar (2010) demonstra que os processos educativos da cerâmica se alternam entre a observação do mestre, o fazer conjunto e o fazer sozinho:

Antes de ser lançado ao fazer propriamente dito, o aprendiz apreende com os olhos os procedimentos a serem desenvolvidos para a consecução de um dado procedimento técnico, ou seja, aprende pela observação das mestras. A aprendizagem pelo fazer sozinho ocorre quando a observação das ceramistas se dá concomitantemente ao fazer do aprendiz, servindo de exemplo prático para as ações desenvolvidas simultaneamente. E, nesse caso, não somente o aprendiz observa as mestras como elas também o observam e fazem pequenas correções em suas peças, se assim for necessário. Após ter vivido experiências de produzir conjuntamente com as mestras e tê-las observado trabalhar, o aprendiz é posto em uma situação na qual tem de aplicar os conhecimentos que adquiriu, fazendo sozinho uma peça, ocasião em que testa seus conhecimentos e adquire outros. ( MATTAR, 2010 , p. 154).

Outra marca de distinção da pedagogia artesã é a ação repetitiva. A repetição é a força motriz do ensino e aprendizagem do artesanato e, neste caso, da cerâmica. Repetir infinitas vezes o mesmo gestual sobre a matéria barro não acarreta, absolutamente, em adestramento. Ao contrário, a repetição incansável proporciona um estado de transcendência, a entrega de um corpo que, em seu fazer estético, pensa através da forma. Por meio da repetição e, consequentemente, do domínio da técnica, o aprendiz alcança a maturidade e consolida um estilo próprio.

É deste modo, portanto, que a pedagogia artesã, articulada na transmissão oral, visa ajudar a emergir o que é singular na pessoa, remetendo à própria etimologia da palavra educação, que se origina do latim educare , educere: “conduzir para fora”. A educação artesanal promove a estruturação das esferas pessoal e social da identidade do sujeito; ancorada no aprender fazendo de Dewey (1976) , possibilita uma experiência formativa que tem um fim em si mesma, ou seja, que auxilia a pessoa a ir ao encontro de sua essência e do reconhecimento do seu lugar na comunidade. Nessa jornada, o papel do mestre é determinante.

A mestria em comunidades artesanais

Os artesãos são os verdadeiros professores de uma educação de classe e, quando se educam a si próprios com a prática de que são parte, fazem avançar a cultura e a consciência de que são guias.

Carlos Rodrigues Brandão (2002 , s. /p.).

 

Nos processos pedagógicos das comunidades populares tradicionais, a mestria não requer diplomas nem certificados. “A afirmação do poder do mestre inscreve-se numa hierarquia ontológica, fora de qualquer sanção administrativa” ( GUSDORF, 2003 , p. 103). A legitimação do mestre se faz no cotidiano, na consagração da qualidade do seu trabalho, na sua experiência, na sua conduta ética. O mestre é geralmente alguém mais velho, que exerce o ofício artesanal há bastante tempo. Como inicia a atividade em tenra idade, na maturidade possui significativo conhecimento, represa em si práticas ancestrais. Outra qualidade do mestre é que faz o seu trabalho com prazer e esmero. Pode-se vir a ser mestre sem o ter desejado ou procurado.

Gusdorf sublinha a diferença entre a pedagogia do mestre e a do professor:

A pedagogia do mestre desenvolve-se, assim, numa espécie de contraponto da pedagogia do professor. O professor ensina a todos a mesma coisa; o mestre anuncia a cada um uma verdade particular e, se é digno de seu trabalho, espera de cada um uma resposta particular, uma resposta singular e uma realização. A mais elevada função da mestria parece ser o anúncio da revelação para lá da exposição do saber. ( GUSDORF, 2003 , p. 70).

O trabalho e os ensinamentos do mestre-artesão se fundem; amalgamados, conclamam valores e condensam um conjunto de conhecimentos intangíveis da sociedade a que pertence. O mestre guarda, recria e socializa saberes que trespassam gerações e reúnem as marcas identitárias de seu povo. Ademais, é dotado de uma exímia destreza no ofício, é disciplinado e, além de tudo, um profundo conhecedor do meio onde vive.

Na cultura quéchua, a figura do mestre é conhecida como el amauta , uma espécie de filósofo-poeta responsável por manter a história viva através de lembranças orais. O amauta, ele próprio, já é o ensinamento, a maneira como vive, como se relaciona com o mundo e com a comunidade. A ação do mestre é pautada pela busca de coerência ( FERREIRA-SANTOS; ALMEIDA, 2011 ).

Em Maragogipinho, encontramos vários artesãos e artesãs reconhecidos e legitimados como mestres pelos seus pares. Vitorino, Padre, Nené, Almerentino, Nelinho, Rosalvo, Miro, Zé Curu, Seu Zé ( fig. 11 ), assim como Rosalina ( fig. 12 ), Dona Santa e Zelita estão entre os mestres e mestras que entrevistamos. Atenciosos, polidos, são pessoas que emanam dignidade e integridade. O curioso é que todos esses entrevistados, sem exceção, revelaram especial delicadeza no trato humano. A docilidade característica do ceramista é bem delineada por Bachelard, ao referir-se ao trabalho com a terra:

Fonte: Fotografia de Dario Narbacci.

Figura 11 Mestre Seu Zé modelando uma boneca 

Fonte: Fotografia de Ferraz (2011, p. 12).

Figura 12 Mestra Rosalina Motta pintando um prato 

A matéria suave suaviza as nossas cóleras. Como a fúria não tem nenhum objeto no trabalho dessa esplêndida moleza, o sujeito torna-se um sujeito de suavidade. ( BACHELARD, 2001 , p. 67).

A candura encontrada nos mestres-artesãos do barro confirma a ideia de que atuam como amautas nessa comunidade. A maioria expressa uma preocupação constante com a continuidade do ofício da cerâmica, denotando a sua inexorável dívida com a tradição, verdadeiro legado que partilham com seus aprendizes.

Durante a pesquisa de campo, não presenciamos crianças trabalhando nas olarias. As poucas que vimos eram bebês ou meninos pequenos junto das mães, que poliam ou pintavam as peças. Hoje em dia, as ações contra o trabalho infantil vêm coibindo a presença de crianças em locais de trabalho. Isto não era o que acontecia em tempos remotos. Alguns artesãos nos relataram que, na infância, viviam praticamente nas olarias, muito embora não lhes fosse permitido tocar nos materiais. Tinham de esperar pacientemente o tempo certo para a iniciação. Sentiam tanta vontade de aprender que, frequentemente, praticavam escondido, quando o adulto se afastava. Gusdorf (2003) confirma que a estrutura desejante sustenta o processo educativo.

É bem o caso da mestra Rosalina Motta, hoje com 87 anos. Rosalina já não pinta porque ficou cega, mas é referência importante na comunidade. A pincelada delicada e firme marcou a sua mestria na pintura tradicional de Maragogipinho e fez muitas discípulas.

Rosalina recorda que, quando pequena, era curiosa e intrometida, tinha muito desejo de aprender a pintar:

Eu pegava as peças quebradas: moringa, fogareiro e começava a treinar escondido de minha mãe, pois ela falava logo: “Olhe, não vá botar defeito em meu pincel”. Mas eu era desobediente, toda vez que ela saía, eu pegava o pincel e mandava brasa! ( FERRAZ; TEIXEIRA, 2011 , p. 22).

O arquétipo do aprendiz vasculha onde menos se espera, até encontrar algo que possibilite a simbiose com o mestre, para que o mestre, assim, se torne aprendiz do alto de sua maestria ( FERREIRA-SANTOS; ALMEIDA, 2011 ).

Outro entrevistado, mestre Nelinho, também se lembra de que quando começou a tornear, aos dez anos, aproveitava os momentos em que o pai saía do torno. O mestre-artesão alimenta no discípulo a curiosidade e a capacidade de observação:

Meu pai nunca me forçou a trabalhar. Ele só queria que eu estivesse ali, aos olhos dele. E eu sempre fui curioso, encostava aqui e aí começava a mexer, queria fazer e tal, e ele sempre observando. Quando ele saía do torno, eu então sentava no torno dele. Só que as minhas pernas eram curtas e não alcançavam o tripé, o apoio dos pés. Então, eu ficava pendurado. E às vezes eu caía em cima do tambor do torno, e o torno me jogava e eu saía por baixo. (Nelinho).

Quando o garoto manifestou desejo de tornar-se aprendiz, o mestre mandou confeccionar um pequeno torno de madeira para ele:

Ele então perguntou: “Você quer aprender?” Eu disse: “Eu quero”, eu era curioso. Aí ele mandou confeccionar um torno menor, que dava pra mim. Eu era um garotinho ainda, não tinha nem noção do que eu queria da vida. Eu tinha nove pra dez anos. Aí ele começou a me ensinar. Eu aprendi a centralizar o barro, comecei tudo então. (Nelinho).

A marca do mestre manifesta-se na exigência incansável: “Se o mestre pode exigir tudo dos discípulos, é porque nunca deixou de exigir tudo de si mesmo, sem alcançar a plena satisfação” ( GUSDORF, 2003 , p. 109). Mestre Nené aprendeu a tornear com o avô, Cláudio Manuel Nazaré, mestre exigente. O método do avô era radical:

Ele mandava a gente quebrar. Dizia: “Quebre que tá malfeito!” Ele vinha com aquela calma dele: quebre, que tá ruim, tá assim, assim...”, mostrava o defeito. (Nené).

E, apesar do desgosto, Nené quebrava as próprias peças, praticando o desprendimento, lição essencial ao aprendizado da cerâmica. O extravio dos objetos pode acontecer em vários momentos do processo cerâmico: durante a modelagem, a secagem ou na própria queima. O ceramista aprende a conviver com o sentimento de desapego para com a sua obra. Passa a entender que a peça cerâmica não é imortal, está exposta constantemente às intempéries do ambiente e adversidades do processo de produção.

Do mesmo modo que nas guildas medievais, os discípulos da cerâmica aprendem imitando o mestre-artesão, que tem como foco o ensinar a fazer benfeito. Os mestres geralmente orgulham-se da qualidade que transparece em suas peças.

Sempre o importante pra ele [o pai] era qua-li-da-de. Qualidade para ele era que as peças estivessem perfeitas, com bom acabamento. (Nelinho).

Porém, a simples imitação não gera satisfação duradoura no discípulo. O investimento no amadurecimento das habilidades é lento e esse vagar do tempo artesanal é fonte de satisfação porque abre largos espaços para a imaginação e a reflexão. “Maduro quer dizer longo; o sujeito se apropria de maneira duradoura da habilidade” (SENNET, 2009, p. 328). No aprendizado da arte cerâmica, os conhecimentos são apreendidos sem pressa, passando a habitar perenemente o corpo do aprendiz.

Durante o processo educativo artesanal, é importante ser um bom aprendiz para tornar-se um bom mestre.

Ambos [mestre e discípulo] vivem, solidários, a mesma aventura. O mestre foi, aliás, discípulo, e o discípulo, se for digno do mestre, será mestre por sua vez. A educação do gênero humano, no que tem de melhor, prossegue de época para época segundo a exigência renovada desta cultura do homem pelo homem, de mestres para discípulos e de discípulos para mestres. Eis por que, a despeito das especializações que parecem opor as disciplinas técnicas, todo mestre autêntico é um mestre de humanidade. ( GUSDORF, 2003 , p. 193).

Afora todos os aprendizados do ofício, o aprendiz da cerâmica desenvolve a resiliência. Fixar-se à terra natal é condição irrefutável de sua missão. Esta afirmação se exemplifica na história de Nelinho. Nascido em Maragogipinho, com quatro irmãs, ele é o único filho homem da família. Aprendeu a arte do torno com o pai, quando criança. Na juventude, fez uma tentativa para seguir carreira em outra profissão, mudou-se para a capital, Salvador, para trabalhar em um escritório de contabilidade:

Quando concluí o segundo grau, eu disse: “Vou embora”. Falei para o meu pai: “Vou morar em Salvador”. E ele disse: “Você vai fazer o quê lá?” Fui para lá, comecei a trabalhar num escritório de contabilidade. Estava até gostando, eu tinha uns dezoito para dezenove anos. (Nelinho).

Contudo, o pai adoeceu e Nelinho teve que retornar a Maragogipinho para cumprir com os compromissos profissionais do velho mestre:

Ele estava cheio de encomendas aqui pra entregar. Meu patrão disse: “Vá, resolva o problema da sua família que quando quiser você volta, a sua vaga vai estar aqui.” (Nelinho).

Nelinho nunca mais voltou a exercer a profissão de contador. Ancorou-se à sua comunidade de origem e deu continuidade ao trabalho do pai. Nelinho hoje é um oleiro. A palavra oleiro , em Maragogipinho, possui um significado amplo, não circunscrito apenas à atividade profissional. Para além de um meio de ganhar a vida, ser oleiro nessa comunidade significa ocupar uma posição de referência, de protagonismo social.

Nelinho cumpriu com o desígnio de ser oleiro, o que pode significar que escolheu ser oleiro. Nesse sentido, desígnio assume o sentido de destino, de historicidade autêntica , segundo Heidegger. Para o filósofo, o destino é a decisão autêntica do homem de voltar a si mesmo, de transmitir-se a si mesmo e de assumir a herança das possibilidades passadas. Existir autenticamente é existir no modo do destino, que designa uma existência fundada na escolha de uma contingência herdada (HEIDEGGER, 1999 apud ABBAGNANO, 2007 , p. 286). Nelinho foi educado para escolher ser ele mesmo.

Em Maragogipinho e em outras comunidades tradicionais, enquanto os jovens partem, os mais velhos se mantêm enraizados. Aceitam a inexorabilidade da dispersão de seu grupo original, porém fixam-se ao lugar de origem protagonizando a resistência de sua cultura. O enraizamento é uma das necessidades humanas mais vitais:

O enraizamento é talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma humana. É uma das mais difíceis de definir. O ser humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro. (WEIL, 2001 apud FROCHTENGARTEN, 2009 , p. 96).

Nessa perspectiva, a educação artesanal reveste-se de um valor inestimável. O mestre-artesão tradicional habita, na contemporaneidade, um território de ambiguidades. Tem consciência do valor histórico e social de seu ofício sem, contudo, conseguir garantir a continuidade dos conhecimentos de que é portador. Diante da dissipação do grupo original, a partilha e a transmissão do ofício cerâmico consolidam um processo educativo voltado tanto para a formação da pessoa, quanto para uma questão identitária maior: o senso de pertencimento a um corpo social em vias de apagamento.

Considerações finais

Este artigo apresentou reflexões sobre o patrimônio cultural da cerâmica artesanal, a pedagogia dos mestres-artesãos e os processos de ensino e aprendizagem do ofício em Maragogipinho, Bahia, comunidade popular tradicional brasileira.

Demonstramos que a pedagogia dos mestres-artesãos se funda na ancestralidade, mas não mira somente para o passado e para a sua preservação, dentro de uma noção linear e unívoca de tempo. Como na tradição quéchua, em que o passado está à frente da pessoa porque lhe conforma o olhar e o futuro está às suas costas porque é desconhecido ( FERREIRA-SANTOS; ALMEIDA, 2011 ), a pedagogia artesã alimenta o constante diálogo entre a tradição e a emergência do novo. No universo dos ofícios artesanais, nos seus modos de ensino e aprendizagem, se acumulam camadas de memória de cotidianos passados e presentes, ao mesmo tempo em que se abrem janelas para vislumbrar o futuro.

Em pleno século XXI, os artesãos e artesãs do barro habitam um mundo cada vez mais individualista, que vem perdendo o sentido de comunidade ( BAUMAN, 2005 ); não obstante, sua existência está fundada na solidariedade com relação aos seus pares. A pedagogia dos mestres-artesãos consolida um processo de educação ética e estética, que promove experiências de ensino e aprendizagem fundamentadas na ancestralidade, na cooperação, na irmandade, valores que emergem da práxis artística, da ação constante sobre a matéria, do encontro estético com a própria criação e, consequentemente, consigo mesmo. “Decência e boniteza de mãos dadas” foi como Paulo Freire batizou a fusão entre a ética e a estética na educação. (FREIRE, 2001).

Para finalizar este artigo, evocamos a poesia de Octávio Paz para exprimir o valor formativo do artesanato:

O artesanato corre junto com o tempo, e não quer vencê-lo. [...] O artesanato não quer durar milênios nem está possuído pela pressa de morrer logo. Transcorre com os dias, flui conosco, desgasta-se pouco a pouco, não busca a morte nem a nega: aceita-a. Entre o tempo sem tempo do museu e o tempo acelerado da técnica, o artesanato é a palpitação do tempo humano. É um objeto útil, mas também belo; um objeto que dura, mas que acaba e se resigna a acabar; um objeto que não é único, como a obra de arte, e que se pode substituir por outro objeto parecido mas não idêntico. O artesanato nos ensina a morrer e, assim, nos ensina a viver. ( PAZ,1991 p. 57).

As histórias da educação se referem pouco ao artesanato e à sua importância formativa. Todavia, na pedagogia dos mestres-artesãos repousa um espelho das culturas tradicionais. A pedagogia artesã reflete as metamorfoses que essas comunidades sofrem para se atualizarem e sustentarem a sua permanência. Resgatar a pedagogia artesã e os seus valores de formação humana, portanto, faz frente à complexidade de uma situação histórica que coloca em risco a sobrevivência de sociedades, de culturas que se recusam a morrer.

Referências

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3- Em diversos trechos do texto utilizo as palavras artesão, mestre e professor para também referir-me à mulher artesã, mestra e professora.

4- Conceito amplamente desenvolvido por Canclini (2003 , p. XXVII) para abranger contatos interculturais originados das fusões étnicas ou raciais, do sincretismo de crenças religiosas e também de outras misturas contemporâneas entre o artesanal e o industrial, o culto e o popular, o escrito e o visual nas mensagens midiáticas.

5- Engobe consiste numa tinta feita do próprio barro, é a mistura de argila com água, de consistência cremosa (como a de um iogurte líquido), à qual se pode acrescentar óxidos corantes e/ou pigmentos para produzir variadas tonalidades.

1- Agradeço à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) (Processo nº 2012/16169-1) pelo apoio financeiro outorgado à Pesquisa de Doutorado.

Recebido: 08 de Outubro de 2017; Revisado: 24 de Abril de 2018; Aceito: 13 de Junho de 2018

Sonia Carbonell Alvares é doutora pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE/USP). Sua linha de pesquisa centra-se na Arte e Educação em Culturas Populares. É artista plástica, educadora e pesquisadora. Participa do Grupo de Pesquisa: Panorama da Cerâmica Latinoamericana - tradicional e contemporânea, ligado à Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

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