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Educação e Pesquisa

versión impresa ISSN 1517-9702versión On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.45  São Paulo  2019  Epub 31-Mayo-2019

https://doi.org/10.1590/s1678-4634201945193081 

Artigos

Estudo comparado: fundamentos teóricos e ferramentas de investigação

Fabiany de Cássia Tavares Silva1 
http://orcid.org/0000-0002-7106-690X

1- Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Campo Grande (MS), Brasil. Contato: fabiany@uol.com.br


Resumo

Este texto expõe os fundamentos teóricos e as ferramentas de investigação de um programa de pesquisas que toma, como objeto e fontes de estudos, documentos curriculares (reconhecidos como currículo prescrito) produzidos para os espaços da educação básica, nas etapas da educação infantil, ensino fundamental e na modalidade de educação especial. Os fundamentos teóricos e as ferramentas de investigação não se constituem em uma simples apresentação, mas no reconhecimento de seus papéis estratégicos na retomada das discussões metodológicas sobre a comparação no desenvolvimento de pesquisas em educação, bem como no registro dos resultados em uma escrita mais rigorosa e menos híbrida, no campo dos estudos de currículos prescritos. Entendemos dar forma a uma versão da comparação fortemente deslocada para um plano teórico e metodológico, nominada estudo comparado. Tal plano inscreve-se em uma perspectiva local, isto é, determinada por uma localização geográfica reconhecida pelos estados e municípios, na investigação dos processos educativos e dos sentidos dos fenômenos curriculares nesses processos. Utilizamos a noção de versão por recorrermos ao cruzamento da educação comparada, da história comparada da educação e das ciências sociais comparadas. Em conclusão, o estudo comparado sobre documentos curriculares explicita processos de relativização cultural e ideológica no campo dos estudos curriculares, promotores de novas formas de escrita de outra história sobre/da prescrição.

Palavras-Chave: Estudo Comparado; Programa de Pesquisa; Documentos Curriculares; Currículo

Abstract

This text exposes the theoretical foundations and the research tools of a research program that takes, as an object and sources of studies, curriculum documents (recognized as prescribed curriculum) produced for the spaces of basic education, in the stages of early childhood education, elementary school and in the special education modality. The theoretical foundations and the research tools do not constitute themselves in a simple presentation, but in the recognition of their strategic roles in the resumption of the methodological discussions about the “comparison” in the research development in education, as well as in the results record in a more rigorous and less hybrid writing, in the field of the studies of prescribed curricula. We comprehend to form a comparison version highly shifted to a theoretical and methodological plane, named comparative study. Such a plane is part in a local perspective, that is to say, determined by a geographical location recognized by the states and municipalities, in the investigation of the educational processes and of the meanings of the curricular phenomena in these processes. We use the notion of version by resorting to the intersection of comparative education, comparative history of education, and comparative social sciences. In conclusion, the comparative study on curriculum documents clarifies processes of cultural and ideological relativization in the field of curricular studies, promoting new forms of writing of another history about / of the prescription.

Key words: Comparative study; Research program; Curriculum documents; Curriculum

Introdução

Este texto expõe os fundamentos teóricos e as ferramentas de investigação de um programa de pesquisas que toma, como objeto e fontes de estudos, documentos curriculares (reconhecidos como currículo prescrito) produzidos para os espaços da educação básica, nas etapas da educação infantil, ensino fundamental e na modalidade de educação especial. Fontes e objetos, por serem:

[...] entendidos como impressos, que selecionam, legitimam e distribuem conhecimentos, mobilizam discursos na produção das verdades do processo de escolarização. E, nesse sentido, operam na seleção e distribuição dos conhecimentos que chegam às escolas e no modo como estes devem ser recebidos. Esse entendimento permite a análise de sua materialidade, isto é, suporte material da construção de práticas nos espaços educativos. […] particularmente escritas e dialógicas, ocupam, de um lado, espaço privilegiado de reconstituição das ideologias ou mentalidades educativas subtraídas a uma projeção particular, oficial; e, de outro, diferenciam-se de outras fontes por contemplar propósito muito particularizado, isto é, o cumprimento de funções determinadas pela difusão e o desenvolvimento prático dos processos de escolarização, com base em uma rede de intertextualidades que se alimenta da política educativa ao desenvolvimento dos processos educativos nas escolas e nas salas de aulas, respectivamente. ( SILVA, 2016 , p. 214).

Os espaços são apreendidos de duas formas: a) como instâncias de formação escolar, com objetivos educativos explícitos e ação intencional institucionalizada, estruturada e sistemática; e b) como uma possibilidade de produção, seleção e distribuição do conhecimento nas estruturas curriculares do ensino tradicional.

Os fundamentos teóricos e as ferramentas de investigação, nos limites deste texto, não se constituem em uma simples apresentação, mas no reconhecimento de seus papéis estratégicos na retomada das discussões metodológicas sobre a comparação no desenvolvimento de pesquisas em educação, bem como no registro dos resultados em uma escrita mais rigorosa e menos híbrida 2 , no campo dos estudos de currículos prescritos. Tal escrita é apreendida como um ensaio de crítica ao questionamento acerca da importância da pesquisa com/sobre o currículo prescrito, visto que ele parece circunscrever-se à simples imposição dos grupos dominantes sobre os grupos dominados e menos favorecidos da sociedade.

Dessa forma, desconstruímos certa configuração discursiva acerca da relevância de se pesquisarem documentos curriculares prescritos para o sistema formal de ensino, uma vez que materializam projetos de escolarização, transmitem conhecimentos, socializam valores, normas e padrões culturais do grupo ou da classe dominante, isto é, ‘‘um conteúdo prefigurado, previsto e controlado por uma força externa preexistente’’ (WILLIAMS, 2010, p. 45).

Dito de outro modo, pesquisamos documentos curriculares prescritos, interessados em reafirmar que a relação entre conhecimentos, escolas e indivíduos, descritos em seu interior, também informa sobre a ‘‘inesgotabilidade da prática e da intenção humana’’ (WILLIAMS, 2011, p. 59).

No processo de objetivação dessa reafirmação, circunscrevemos os documentos curriculares na perspectiva de “documentos-problema” 3 que, de algum modo, ampliam as possibilidades de identificação dos possíveis contrastes (e também dissensos) na apreensão da prescrição, como parte de nossa noção de liberdade contingenciada no campo dos estudos curriculares.

Fundamentação do exercício de exposição das ferramentas de investigação

No meio acadêmico e nas pesquisas em educação, o reaparecimento dos estudos comparados, na última década do século XX, parece estar centralmente determinado pela investigação da política educacional, com diferentes propósitos e alinhamentos teórico-metodológicos. Tal centralidade já se verificava nos séculos anteriores, com o uso precoce de diários de viagem como meio de troca de informações sobre práticas educativas, bem como o envio de funcionários do governo e especialistas em educação para outros países, a fim de observar outros sistemas educacionais, com o objetivo de prestar apoio a um sistema já existente.

Na proposição de melhoria dos sistemas educativos, encontramos em Hans (1961) 4 observações acerca das condições para o desenvolvimento de tal processo, fundado na concepção de estado nacional e na compreensão das diferenças entre valores existentes nas mais diversas constituições sociais, culturais, geográficas e sobre as tradições das crenças da Europa, que influenciam processos educativos e formas de institucionalização. Tais constatações acerca da educação comparada preocupam-se com as configurações existentes no período pós-guerra, desde as formações dos Estados e suas responsabilidades na proposição de novas políticas públicas e as relações entre essas políticas e os sujeitos.

No Brasil, o conhecimento das comparações de Hans (1961) está acompanhado da leitura da obra de Lourenço Filho 5 , no estudo das súmulas descritivas de sistemas de ensino de dez países, apontando diferenças e semelhanças constitutivas. As dimensões analíticas dessas súmulas são objetos de uma compreensão mais vinculada à psicologia. Enfatiza-se o que se identifica como os fundamentos da educação comparada, isto é, conceito, método e tendências.

Partimos do pressuposto de que tanto o pensamento de Hans quanto o de Lourenço Filho, na escrita e na divulgação de suas respectivas proposições de estudos comparados, contêm a intencionalidade de delimitar o campo disciplinar da educação comparada e, consequentemente, elencar referências racionalistas para os estudos educacionais.

A essas perspectivas de comparação, consideradas consensualistas por perenizarem o poder de controle dos países desenvolvidos, geralmente as antigas potências coloniais, sobre os países menos adiantados, Carnoy (1974) , Noah (1984) e Malet (2004) propõem o comparatismo crítico como uma ruptura ideológica. Esses estudos estabelecem-se como uma reação contra:

a) as condições objetivas e fechadas dos fenômenos educativos e culturais que o funcionalismo tende a promover;

b) as perspectivas de evolucionismo social que, cegadas por uma concepção continuísta da história e uma abordagem pragmática dos fatos educativos, tendem a descuidar dos processos de mudança social;

c) o consensualismo, que impede a empreitada científica de questionar seus fins, o que constitui o melhor meio de elidi-los, sobretudo quando os espaços de intervenção ultrapassam as fronteiras nacionais. ( MALET, 2004 , p. 1311).

No atual contexto, a perspectiva parece incidir sobre diferentes unidades e objetos, determinados pela cultura e pelo discurso, o que, para Schriewer (2009) , é indicador de que a análise:

[...] transforma-se em argumento explanatório na medida em que ela consegue identificar por meio de reconstruções conceitualmente informadas, soluções de problemas historicamente realizados como realizações particulares daquilo que nos diferentes cenários – ou configurações – socioculturais é estruturalmente possível. ( SCHRIEWER, 2009 , p. 95).

Para compreendê-la dessa forma, temos assistido a um processo de construção de configurações que colocam em tela a perspectiva do cruzamento entre teorias do conflito e do consenso, abordagens descritivas e conceituais (cf. NÓVOA, 2009 ), teoria da reflexão ligada à reforma e teoria científica ligada à compreensão das diferenças entre sistemas educativos ( MADEIRA, 2009 ) e/ou diferenças e semelhanças no encontro do sentido para os processos educacionais ( FERREIRA, 2009 ).

O que parece mais significativo, nesse processo, é a capacidade de o estudo comparado instituir-se em uma pluralidade de perspectivas, abordagens e metodologias e, ao mesmo tempo, indicar limites para a compreensão dos fatos ou dos fenômenos educativos que compara, impondo-se como relevante instrumento de conhecimento e análise da realidade educativa. No caso dos limites, as críticas estão constituídas a partir de um processo que identifica

A implantação de toda uma série de mecanismos para corrigir e pausar o fluxo de tempo, de modo que um objeto de corte transversal possa ser estabilizado e discernido - para ser equilibrado com o reconhecimento de que esse trabalho analítico ocorre dentro desse fluxo contínuo de tempo, um fluxo que é marcado por transformações, continuidades e descontinuidades entre passados, presentes e futuros possíveis. 6 ( SOBE, 2013 , p. 95, tradução nossa).

Na esteira das críticas, deparamo-nos com a proposição de Warde (2013) acerca do conceito de rede intelectual

[...] como alternativa à ideia de influência e a aplicação de procedimentos resultantes dessa utilização, o que implica, pelo menos, relações unidirecionais, constantes no espaço e no tempo, entre indivíduos, grupos e até mesmo entre sociedades inteiras; mais do que isso, a ideia da influência trazida a partir das ideias mais antigas baseia-se no pressuposto (psicológico) de que um polo é superior ao outro. O primeiro polo é adulto, desenvolvido e civilizado e o outro é infantil, subdesenvolvido e primitivo. ( WARDE, 2013 , p. 113, tradução nossa) 7 .

Tal alternativa parece ser ignorada pelos pesquisadores em educação que utilizam a comparação, uma vez que, nos estudos de transferência, permanece a ideia de influência 8 , afastando-os da originalidade. Parte dessa permanência está delineada na premissa de que o pensamento atua sobre o pensamento, a maneira pela qual os objetos se transformam mutuamente, o que cada um deles instiga analiticamente e o que cada um deles recebe de análise, ou melhor, o efeito do perpétuo intercâmbio entre a universalidade e as particularidades.

A escrita histórico-social do currículo passa a ser tomada como parte de um universo discursivo que existe, conforme Peters (2006) , sob duas formas necessariamente articuladas:

a) como um espaço objetivamente estruturado de relações entre agentes diferenciadamente posicionados segundo uma distribuição desigual de recursos materiais e simbólicos, isto é, de capitais múltiplos, que operam como meios socialmente eficientes na concorrência pela apropriação de bens materiais e ideais escassos, ainda que bastante diversificados, nos casos das sociedades altamente diferenciadas, em vários “campos” de atividade que caracterizam o Ocidente moderno;

b) como um conjunto de esquemas simbólicos subjetivamente internalizados (via socialização) de geração e organização da atividade prática mental e corporal dos agentes individuais, esquemas que tomam a forma de disposições ou modos potenciais socialmente adquiridos e tacitamente ativados de agir, pensar, sentir, perceber, interpretar, classificar e avaliar. ( PETERS, 2006 , p. 53-54).

Assim, criam e recriam lugares, estabelecendo um mundo educacional, econômico e social por meio de um conjunto organizado de significados e práticas, relacionado a um processo central, efetivo e dominante desses significados, desses valores e dessas ações, vividas no e pelo acesso ao conhecimento.

Do discurso e da prática de comparação

O diálogo com as humanidades, particularmente a História e as Ciências Sociais, tem configurado o que chamamos de guinada crítica, uma vez que excedemos o campo da educação comparada. Tal ampliação está fundada na perspectiva de que a proposição de qualquer estudo, em comparação, necessita considerar, na explicação de qualquer fato ou fenômeno educativo, as relações com as convicções políticas, econômicas e/ou filosóficas da sociedade a que servem, no sentido histórico do período em que se deram.

Diante disso, temos constituído discursos e práticas de pesquisas alimentadas por escolhas teórico-metodológicas, que assumimos como uma versão intitulada estudos comparados, fortemente deslocada para um plano metodológico. Tal plano inscreve-se em uma perspectiva local, determinada por uma localização geográfica reconhecida pelos estados e municípios, na investigação dos processos educativos e dos sentidos dos fenômenos curriculares nesses processos.

Utilizamos a noção de versão por recorrermos ao cruzamento da educação comparada, da história comparada da educação e das ciências sociais comparadas. A educação comparada é tomada como resultado de um duplo movimento. De um lado, é marcado por uma presença crescente das questões educativas na criação de identidades escolares, definidas não tanto sob uma perspectiva geográfica, mas no sentido de pertença a certas comunidades discursivas. De outro, deslocando-se da referência tradicional interpaíses para dimensões simultaneamente intra e extranacionais, isto é, centradas nas comunidades disciplinares, formadas por agentes locais e nos processos de regulação em níveis nacional e internacional.

Apreendemos o primeiro movimento como produto de interesses político-educativos, apresentados por repertório de argumentos da ordem da globalização, da mundialização e da internacionalização, para os quais as análises dos contextos educativos produzem os desenvolvimentos institucionais desejados. A comparação justifica reformas educativas, inovações curriculares e modernização do capital humano.

As inovações, hipoteticamente organizadas com as reformas educacionais, desenvolvidas no período de 1980 e 1990, destacam o cunho conservador, que combate o declínio educacional e social promovido por educações progressistas ( APPLE, 2005 ). Tais reformas estão assentadas na perspectiva de libertar a escola para a sua entrada no mercado competitivo e, ao mesmo tempo, recompor a cultura tradicional e revisitar valores considerados fundantes da sociedade (ética, moral, disciplina). Afasta-se, assim, do Estado, a unidade mais comum de análise e recupera-se a centralidade de um Deus nos direcionamentos da vida cotidiana, inclusive no espaço escolar, aguçando estratégias de influências recíprocas e limítrofes entre contextos religiosos, de controle do processo educativo, por meios mais rigorosos de regulamentação e avaliação.

Dessa maneira, as reformas inauguram um novo momento para o desenvolvimento curricular 9 , delineado por novos formatos para os processos de seleção e distribuição de conhecimentos, ancorados em decisões macropolíticas influenciadas pela lógica do mercado do mundo globalizado. As decisões macropolíticas repercutem em micropolíticas: “[...] que se realizam no cotidiano das escolas, nas salas de aula, nas relações entre os diferentes sujeitos que interagem no espaço escolar e no espaço circundante à escola”. ( APPLE, 2005 , p. 10).

O desenvolvimento curricular, sob a perspectiva prescritiva, parece reorganizar o processo de releitura, ou modernização, da teoria do capital humano, ancorado na lógica da formação de sujeitos flexíveis para a empregabilidade. Tal modernização alça a educação, ou o processo de escolarização, ao lugar de protagonista na formação do cidadão eficiente e competente.

As investigações que desenvolvemos, a partir da educação comparada, buscam instrumentos analíticos que permitam, além da hipotetização da relação entre o poder e o conhecimento, como expressão da educação do final do século XX e início do XXI, a apreensão do processo de autolegitimação do conhecimento escolarizado e do poder educativo. Isto é, o poder reconhece as formas de produção e disseminação do conhecimento e utiliza-o para o seu exercício.

Além disso, o conhecimento propicia o exercício do poder pela perspectiva da sua capacidade de resolução dos problemas, tensões e conflitos sociais. Esse exercício define os valores distintivos, cuja especificidade se concretiza no frequente consumo de saberes e de práticas culturais em seus diversos segmentos de produção, entre eles, a escola. Dito de outra forma, embora o conhecimento escolar seja disponibilizado aos diferentes grupos sociais, o acesso a ele não implica a igualdade ou a qualidade de consumo ou uma plena compreensão dos conteúdos que agregam.

Dessa forma, concebemos que:

[...] a ideia de conhecimento poderoso possa ser o início de um recurso para a comunidade educacional tanto na construção de novos currículos, em nível nacional e escolar, como também para persuadir os governos de todos os partidos sobre as condições necessárias para que o princípio do “direito ao conhecimento para todos” se torne realidade. ( YOUNG, 2016 , p. 4).

Nesse ideário, a reinstituição de um passado se faz necessária, sob a perspectiva da história comparada da educação ou, como diriam Eckstein e Noah (1969) , a insistência na indagação do contexto histórico-cultural de cada sistema educativo.

A busca da inteligibilidade que almejamos com nossas práticas assenta-se na reconciliação entre a história e a comparação, no esforço de organizar uma investigação baseada em fundamentos históricos, pelos referentes do método histórico. Esse método tem levado-nos a buscar as diferenças e semelhanças do/no particular, a partir dos processos históricos amplos (compreender a história como processo), e reconstruí-las como parte de uma determinada realidade, que é sempre complexa e aberta às transformações, sob a ação dos sujeitos sociais (utilizando a história como método).

Contudo, a busca das diferenças e semelhanças, como adverte Groux (1997) , não caminha para a consideração dos conceitos como universais, ou a coleta de dados apartada da análise que os relacione ao seu contexto. O visível e o explícito constituem somente uma parte da realidade; a história da educação comparada, como modalidade historiográfica, incursiona pelo exame recíproco de dois ou mais recortes de tempo e espaço de produção e consumo do produto (nesse caso, os documentos curriculares).

A esse propósito, acessamos as ideias de Zimmermann e Werner (2003) acerca da História Cruzada, que:

[...] ambiciona tratar objetos e problemáticas específicas que escapam às metodologias comparatistas e aos estudos de transferências. Ela permite apreender fenômenos inéditos a partir de quadros renovados de análise. Assim fazendo, ela fornece a ocasião de sondar, por um viés particular, questões gerais como escalas, categorias de análise, relação entre sincronia e diacronia, regimes de historicidade e de reflexividade. Enfim, ela coloca o problema de sua própria historicidade a partir de um triplo procedimento de historicização: do objeto, das categorias de análise e das relações entre o pesquisador e o objeto. ( ZIMMERMANN; WERNER, 2003 , p. 90-91).

Ao anotarmos esse procedimento de historicização, voltamo-nos à ferramenta metodológica proposta, para a qual nossas fontes e objetos materializam um campo novo de análise, isto é, não só da prática de comparação, mas daquilo que toma forma nas discussões, tidas como necessárias, sobre o currículo, seus estudos e suas verdades. Isto é, como atuam os sistemas de ensino, como são influenciados pelas políticas educativas nacionais, internacionais e locais, como influenciam todas essas políticas e como reagem/adaptam-se às mudanças.

Ressaltamos que, na busca por tais discussões, não nos aproximamos somente da história, sob a perspectiva dos setores dominantes, tampouco incursionamos pela busca do hegemônico ou do uniforme. Ao contrário, interessa-nos outra história. Ou seja, não se trata de reconstruir um outro currículo, mas dar lugar ao outro do próprio currículo. Tal interesse apoia-se na premissa da figuração, a qual, segundo Elias (1980 , p. 142):

[...] serve como instrumento conceitual para modificar a visão antagônica e contraposta de indivíduo e sociedade; entendido como um padrão mutável no jogo das relações, cuja interdependência entre os atores sociais, forma um entrelaçamento flexível e com tensões.

Isso favorece o reconhecimento da relação entre indivíduo e sociedade como uma relação reciprocamente determinada e determinante de complexos processos sociais que definem, sob uma perspectiva de longa duração, a direção das diferentes sociedades humanas.

Ao introduzirmos o conceito de figuração, escapamos das dicotomizações que opõem indivíduos e sociedades, ao mesmo tempo em que expomos a importância de transitar por três tempos historiográficos: o tempo das mudanças socioeducacionais ou curriculares de longa duração; as tendências de médio prazo, que definem um determinado período da história do currículo, à época; e o curto prazo, que determina as escolhas atuais.

Assim, aproximamo-nos do processo de apreensão das dinâmicas, das transições e das relações socioculturais como diferentes textos, que levam à compreensão dos discursos que alimentam situações de dependência e lógicas de discriminação construtoras de maneiras de pensar e de agir. Esse exercício, próprio das ciências sociais comparadas, vincula-se a uma espécie de Sociologia Histórica, apontada por Pereyra (1990) como um dos instrumentos promissores na construção de conhecimento crítico acerca da realidade educacional.

A realidade educacional em comparação operacionaliza a descoberta, ou não, de regularidades, a percepção de deslocamentos e transformações, a construção de modelos e tipologias e a identificação de continuidades e descontinuidades, semelhanças e diferenças, explicitando as determinações mais gerais que regem os fenômenos sociais.

Tal descoberta, nos limites da descrição do que chamamos versão particular, salienta as características do que pretendemos em uma ferramenta de investigação, assumidamente uma metodologia mista, mas que ainda incorre na tentativa de superação das críticas apresentadas às pesquisas que utilizam a comparação como método, a saber: mecanismos que corrigem e interrompem o fluxo de tempo para que um objeto de corte transversal possa ser estabilizado e discernido ( SOBE, 2013 ) e/ou a manutenção da ideia de influência ( WARDE, 2013 ).

Parece consenso entre os autores da educação, história da educação e ciências sociais comparadas, a ideia de que, para a construção do conhecimento considerado científico, a comparação é fundamental e inerente ao processo epistemológico. Isto é, não seria possível produzir conhecimento sem o emprego da comparação, pois:

[...] desenvolvemos nossas interpretações tendo em mente uma série de problemas específicos ou de questões pré-existentes – não de dados – às quais queremos responder. A iluminação da resposta – ou das respostas – não é o resultado de um ‘experimento’ nem das propostas de interpretação e explicação que fazemos, senão que ‘experimento’ e ‘teoria’ se constroem mutuamente. ( PEREYRA, 1990 , p. 45, tradução nossa). 10

Dessa forma, estamos diante de uma nova epistemologia do conhecimento, de cunho sócio-histórico, que define perspectivas de pesquisa centradas não apenas na materialidade dos fatos educativos, mas também nos mercados simbólicos que os descrevem, interpretam e localizam em um dado espaço-tempo (cf. POPKEWITZ, 1998). Tais mercados são habitados por grupos que produzem e/ou fazem circular discursos que podem ou não implicar uma política de não isenção na escrita da história, o que, para Fendler (2013) , significa que são dadas, aos historiadores educacionais,

[...] a oportunidade e a obrigação de questionar todas as variáveis como potenciais candidatas para a análise historiográfica minuciosa. Afinal, como podemos isentar de nossas investigações históricas as ferramentas históricas de pesquisa e as linguagens que utilizamos para escrever a história? Todos os nossos cuidados metodológicos, processos de avaliação, classificações analíticas e tradições narrativas são infestadas por, vinculadas a, e (até certo ponto) dependentes, implacavelmente, das flutuantes contingências históricas de tempo, espaço e poder. ( FENDLER, 2013 , p. 228, tradução nossa) 11 .

O que se deseja, em última instância, é a possibilidade de “fazer ver e fazer crer” como parte da construção da realidade, ou melhor, do poder simbólico ( BOURDIEU, 1989 ). Essa possibilidade per se gera tensões internas, pois interessa, sob essa perspectiva, a percepção que os agentes sociais têm do mundo social. Para eles, a nomeação contribui para constituir a estrutura desse mundo, de uma maneira um tanto mais profunda quanto mais amplamente reconhecida (isto é, autorizada).

A investidura consiste em sancionar e em santificar uma diferença, fazendo-a conhecer e reconhecer, fazendo-a existir enquanto diferença social, conhecida e reconhecida pelo agente investido e pelos demais. ( BOURDIEU, 2008 , p. 99).

Ademais, os espaços-tempos históricos que materializam a diferença são abordados como portadores de uma lógica própria, uma lógica social que os transforma em um lugar em que se manifestam as intenções humanas. Se antes, no modelo marxista, a sociedade constituía o espaço de referência, no modelo liberal parece não se configurar como tal, uma vez que se torna um componente, entre outros, de um sistema global de regulação do capital financeiro, intelectual, cultural e educacional (cf. CASTELLS, 1996 ).

No âmbito dos estudos comparados, especialmente os envolvidos com o campo educacional, questionamos a validade da materialidade das diferenças, principalmente porque o estabelecimento de diferenças e semelhanças sobre contextos históricos marcados por características econômicas, sociais, políticas e culturais distintas tem-se mostrado um procedimento de pesquisa muito pouco fecundo na produção de conhecimento.

Em primeiro lugar, ancoramo-nos nas categorias espaço e tempo como pressupostos dos estudos de caráter histórico, por considerarem os contextos específicos nos quais transcorrem os seus respectivos processos educativos. Outro cuidado é não buscar, pelo estudo do outro, soluções para problemas que se enfrentam, nos limites das nossas proposições de análise, isto é, neste ou naquele estado ou município, ou considerar que o outro seja melhor. Isso porque as interdependências mútuas acabam por definir a especificidade e o nível de complexidade das figurações que os indivíduos e/ou grupos sociais, pertencentes a limites geográficos, estabelecem entre si, exprimindo os nexos das diferentes tensões, em constante mudança.

Da ação política aos valores e às explicações sobre os documentos curriculares, essa ferramenta metodológica evidencia como eles promovem a reinstituição de práticas de ensino e aprendizagem, como parte de um instrumental de processos regulatórios específicos, que adquirem sentido nos desenhos das reformas curriculares. Reformas propostas pelo Estado aos entes federados, a partir de mecanismos de interdependência e inter-relação que sustentam um novo padrão de escolarização.

Áreas de comparação: unidades de análise

A procura por inteligibilidades do estudo comparado, nos limites desta versão, assenta-se, além do cruzamento entre educação e história-social, no esforço de organizar uma abordagem comparada baseada em fundamentos históricos que representem, segundo Schriewer (1992) , o melhor instrumento para a separação analítica entre o geral e o particular, necessária a uma interpretação histórica portadora de sentido.

Assim, demos forma às áreas de comparação eleitas por determinação de sua configuração, intimamente ligada ao movimento de investigação conjuntural e estrutural dos documentos curriculares, que parecem fundamentar às prescrições, seguidas de orientações pedagógicas.

Entendemos a investigação conjuntural ligada ao aprendizado das dificuldades expressas pelas histórias de cada região do país, alimentadas pelo reconhecimento dos conflitos, interesses e anseios ligados à arquitetura curricular, a partir de ideias reformistas dos anos 1990, com a qual o sistema educativo parece assumir novas finalidades em novas práticas e contornos destinados ao processo de distribuição de conhecimentos. Em relação à investigação estrutural, a publicação do conjunto de documentos curriculares (parâmetros, referenciais e diretrizes) assume extrema relevância, sob a perspectiva de organização e qualificação dos processos de escolarização ou de acesso aos conhecimentos considerados valiosos.

Contudo, retomamos duas perguntas enunciadas por Valensi (1990, apud HAUPT, 1998 , p. 211): Que escala de comparação adotar? E por que comparar? Nessa retomada, exploramos uma segunda razão, para a projeção das áreas de comparação, no caso deste estudo, uma vez que não se limitam à descrição, mas intencionam expor argumentos relacionados aos conceitos teóricos, hipóteses ou modelos explanatórios, pelos quais escolhemos estabelecer a comparabilidade entre os movimentos investigativos anteriormente referendados.

Para o encontro de respostas a tais questões, desenvolvemos procedimentos de categorização e análise de temas identificados, com o propósito de revelar os múltiplos enfoques e perspectivas dos documentos estudados. A primeira das tarefas, organizada pelo procedimento de categorização, é o exame das informações disponíveis, a partir do exercício de rastreamento, e a identificação das informações sobre as condições de produção 12 , não limitadas a uma série de fatos observáveis, mas idealizadas de forma elaborada, segundo a qual, na ação da comparação, se detectam modelos de explicação.

Tomamos esses modelos como expressão dos conceitos de campo e habitus . O campo é espaço de relações objetivas, que têm lógica própria, “cuja necessidade se impõe aos agentes que nele se encontram envolvidos” ( BOURDIEU, 2008 , p. 50). O autor continua afirmando:

[...] no interior do qual os agentes se enfrentam, com meios e fins diferenciados conforme sua posição na estrutura do campo de forças, contribuindo assim para a conservação, ou a transformação de sua estrutura ( BOURDIEU, 2008 , p. 50).

As áreas de comparação, quando eleitas, são compreendidas na inter-relação dos campos educativo, social, simbólico e cultural. Assim, encontram-se inseridas em um espaço relacional permeado por lutas de conservação e transformação das suas estruturas. São encaradas como estratégias e táticas e não apenas como expressão da repetição de um discurso simplesmente reproduzido, mas como conjunto de disposições que vem sendo recriado, atualizado e, portanto, continuamente re-produzido (produzido de novo) no decorrer dos estudos sobre documentos curriculares.

O conceito de campo está ligado ao de habitus , definido como:

[...] sistemas de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, como princípio gerador e estruturador das práticas e das representações que podem ser objetivamente “reguladas” e “regulares” sem ser o produto da obediência a regras, objetivamente adaptadas a seu fim sem supor a intenção consciente dos fins e o domínio expresso das operações necessárias para atingi-los e coletivamente orquestradas, sem ser o produto da ação organizadora de um regente. ( BOURDIEU, 1983 , p. 61, grifos no original).

O conceito de habitus mostra-se como uma ferramenta teórica capaz de responder à questão central em relação às áreas de comparação, isto é, disposições estruturadas e estruturantes, que atuam como matrizes de percepção e ação, continuamente recriadas no decorrer das análises, constituindo doxas (um ponto de vista particular, o ponto de vista dos dominantes, que se apresenta e se impõe como ponto de vista universal) e nomos (avalia, rege e regula o que se faz), que orientam as análises curriculares. Dessa forma, as áreas de comparação podem ser concebidas como um habitus incorporado pelos agentes do campo em questão, que orienta as estratégias dos agentes nas relações de força desse campo.

As áreas de comparação passam a ser tomadas como parte da caracterização de um universo discursivo que, de um lado, representa a posição diferençada dos agentes segundo uma distribuição desigual de recursos materiais e simbólicos e, de outro, um conjunto de esquemas simbólicos, que tomam a forma de disposições ou modos potenciais socialmente adquiridos e tacitamente ativados de interpretar, classificar e avaliar.

Dessa forma, tornam-se estratégias e táticas no encontro de respostas às necessidades criadas pelos discursos do outro, aqui, especificamente, o do Estado que, em resposta aos Organismos Internacionais e às necessidades impressas em seus relatórios, publica Diretrizes, Parâmetros e/ou Orientações curriculares, entendidas como documentos curriculares. Isso, per se , cria o argumento da comparação, que equivale ao enriquecimento de sua consistência lógica e empírica para transformar as análises e atender a um recorte mais específico, as microrrealidades ou dimensões culturais, para a superação do predomínio do fator econômico na construção dos documentos curriculares.

Nexos possíveis na pesquisa com documentos curriculares

A proposta de utilização dos estudos comparados como ferramenta de investigação não se assenta em uma pretensão de busca de diferenças e semelhanças entre os universos de análise, ao mesmo tempo que não incorre em microrrealidades educativas, na perspectiva de construir macro conclusões, neste caso, de estudos curriculares. Isso porque nos aproximamos de contextos históricos distintos, de contradições e complexidades inerentes a esses contextos, que sustentam a comparação como uma espécie de renovação metodológica.

Renovação, aqui, significa ancorar-se na determinação de que os estudos comparados são interpretativos, voltados para uma defesa ideológica, baseados em problemas, incorrendo na busca por resultados e respostas às demandas socioeducativas. Operamos com:

[...] dois tipos de questões norteadoras das análises buscadas, de um lado, de que forma a lógica de dominação social na sociedade avançada e os mecanismos por onde ela se disfarça estão profundamente ancorados nas especificidades do sistema de classes, da cultura e da diferença?; e de outro, como o currículo constituído como um dispositivo com marcas de controle, de reprodução e de promessas de inovação, pode responder contra hegemonicamente às necessidades demandadas pela estrutura social? ( SILVA, 2016 , p. 216).

Levamos em conta os contextos históricos distintos, as contradições e complexidades inerentes a esses contextos, como o primeiro passo do estudo comparado. Na sequência, consideramos o processo de renovação mundial dessa metodologia, tal como analisam Cowen e Kazamias (2012) , ao focalizar a crise de identidade pela qual ela passou nos anos 1960, colocando em discussão as visões idealistas, românticas e anti-históricas que predominaram nessa área desde a sua constituição.

Além da renovação teórica, a comparação, nas últimas décadas, renovou-se em termos de temas, já que, desde o fim do século XIX, esteve orientada pelo/no estudo dos sistemas educacionais, nos Estados Nacionais e suas falhas. Hoje, de acordo com essa renovação, alcançamos o estudo comparado como ferramenta de investigação de documentos curriculares, produzidos em estados e municípios, considerando outros protagonistas, como agências internacionais e nacionais, redes de pesquisadores e associações científicas.

Nesse universo, reconhecemos, além das forças culturais e do ambiente social, o pressuposto dialético dentro/fora da construção desses documentos, sob a perspectiva do que determinados conhecimentos representam para o desenvolvimento intelectual de crianças e jovens na escola (os poderes do conhecimento e da ampliação da compreensão do mundo, em bases distintas daquelas que essas crianças e jovens já possuem, construídas nas experiências mais imediatas do cotidiano).

Contudo, o discurso dos grupos que constroem esses documentos, nas diferentes redes distribuídas pelo Brasil, elucida-se pelo/no enfrentamento das desigualdades escolares, ainda que proposto em tempos de tentativas de apagamento dos vestígios ideológicos do/no processo de escolarização 13 . Essas desigualdades, per se, dão forma ao processo de reorientação curricular brasileiro, cujas condições de elaboração retratam uma combinação de fatores, entre eles os direitos individuais postulados para todos (o direito à aprendizagem), os conflitos em torno do que venha a ser conhecimento legítimo e as dimensões da formação escolar, problematizadas e/ou defendidas por uma escolarização básica, entendida/apreendida como reforma de estado, incrementada nos mesmos moldes, isto é, em meio a políticas de reajuste econômico, entre outras.

Os discursos curriculares, nesse território, orientam-se por noções de capital escolar, portanto, simbólico e social, cujo lucro (simbólico) pedagógico arquiteta uma situação de comunicação no desenvolvimento escolar. Evidenciamos que tal desenvolvimento se expressa na escolha de conhecimentos oficiais, como meio de operacionalizar o propósito da escola básica e de dar forma às orientações reformistas. Tais orientações fundamentam-se em um conjunto de competências pessoais e sociais, cognitivas e comunicativas, como o conhecimento mobilizado, operado e aplicado em situação, cujo limite está administrado por uma leitura da psicologia do desenvolvimento comprometida com a aprendizagem, o ensino e a avaliação.

Recorremos a Santos (2002 , p. 347) para enfatizar que “um currículo, mesmo quando elaborado por um grupo que compartilha ideias comuns, representa sempre um consenso precário em torno de algumas ideias”. Percebemos que, em sua forma prescrita, representa uma linguagem veiculada por um grupo (das Secretarias de Educação), isto é, uma linguagem autorizada, investida da autoridade desse grupo.

Os mercados simbólicos e seus sistemas de formação de preços delineados nos documentos curriculares estabelecem os parâmetros para analisarmos as primeiras estratégias de comunicação, como dependentes de uma relação de poder desigual, para apreendermos, como poder simbólico, um tipo de poder capaz de fazer coisas com palavras, neste caso, sobre o desenvolvimento curricular. Enfatizamos que, na prescrição, não encontramos apenas trocas de mensagens, mas relações de autoridade, de atribuição de valor, de valorização ou desvalorização dos diversos discursos, que marcam a distância entre o discurso oficial (currículo oficial prescrito) e a sua incorporação nas proposições das redes de ensino e na organização curricular de cada instituição escolar (currículo moldado e currículo real).

Notas finais

Investigar documentos curriculares, em um programa de pesquisa, coloca-nos, per se , diante da relação entre as etapas e modalidades da educação básica, bem como dos componentes disciplinares e dos conhecimentos científicos selecionados e distribuídos. Acresce-se a isso a identificação dos objetivos, que definem as expectativas de aprendizagem dos conteúdos escolares, assim reconhecidos por estarem submetidos à didatização ou ao como ensinar e que, por fim, materializam a avaliação, na perspectiva da sala de aula e em larga escala. Isto posto, formalizam o elenco de metas, das mais genéricas às mais específicas, acompanhadas da perspectiva de sancionar e/ou santificar o desenho curricular em comparação, fazendo-o conhecer e reconhecer-se como objeto de diferença social, conhecida e reconhecida pela/na investidura do pesquisador.

Contudo, destacamos que, no campo do currículo no Brasil, o cruzamento de fronteiras não remete à comparação, e sim ao estabelecimento de diálogos sobre temáticas. Um exemplo disso são os diálogos curriculares formulados entre o Brasil e o México (2014), travados com o propósito de compreender que os significantes circulam e produzem sentidos, discursos e práticas de subjetivação. Esse entendimento incorre no compromisso com o aprofundamento do conhecimento pedagógico e a construção de novas possibilidades de pensar a educação.

Surgem novas possibilidades que, em outras fronteiras, dão forma à comparação como princípio metodológico, alimentando-a de perspectivas histórica, cultural e sociológica, delineadoras dos contextos econômicos, políticos e educativos nacionais e globais, para apreender o currículo como manifestação da identidade nacional, a partir de um enfoque internacional e interdisciplinar.

A par disso, aproximados do estudo comparado, identificamos pontos de consenso e de dissenso ligados, fundamentalmente, à questão do grau de interiorização da dominação política, econômica e social na produção dos documentos. Isso porque as condições formativas dos agentes diretamente envolvidos no processo de seleção e legitimação dos conhecimentos científicos incorrem, ou não, na superação das ortodoxias, dos interesses e das defesas de cada área disciplinar. Agregam-se a isso as artimanhas da razão neoliberal, que esvaziam o debate acerca dos determinantes intrínsecos aos processos de seleção e distribuição dos conhecimentos científicos, parte da identidade dos documentos curriculares.

Dessa forma, os documentos curriculares retratam as intenções políticas e normativas do futuro desejado para a escolarização, ao mesmo tempo que perfilam as técnicas para o governo sobre as práticas educativas/formativas. Tal governo está fundado na individualização como procedimento para criar indivíduos flexíveis para o mercado de trabalho; nas competências como as destrezas e os conhecimentos necessários ao tratamento da mercadoria; e nas avaliações como parte da racionalidade curricular, expressa na clara relação entre os indivíduos e a responsabilidade por seus atos.

Por consequência, ou pela própria razão neoliberal, os processos de seleção e distribuição de conhecimentos, materializados em documentos curriculares, contextualizam os modelos de referência, isto é, o individualizado, o competente e o bem avaliado, uma vez que as escolhas parecem ser expressas por indicativos em vez de imperativos. Dito de outro modo, a existência dessa distinção remete-nos à ideia de que não aprendemos explicitamente; operamos de acordo com os interesses dos interessados na escolarização dos conhecimentos.

Exemplificando essa identificação, apresentamos alguns estudos e análises (na forma de dissertações e teses) construídos sobre três documentos curriculares prescritos para a Educação Básica, organizados/publicados pelas redes de ensino estadual de Mato Grosso do Sul (2012) e municipal de Campo Grande (2008 e 2012 ), que resultam em escritas sobre: o componente Matemática, particularmente para as etapas dos Ensinos Fundamental e Médio; a presença das noções de democracia, cidadania e inclusão social como parte das possibilidades, ou não, de construção da justiça curricular; os princípios, formatos e/ou vestígios da política de distribuição de conhecimentos, como forma de interpretação da melhoria do ensino e de adequação às novas demandas e exigências sociais, assim como a necessidade de repensar o trabalho (ensino aprendizagem) e de introduzir modificações necessárias (avaliação).

Quanto ao estudo comparado do componente Matemática nos documentos curriculares, por meio das áreas de comparação Competência matemática e Estudos de Números, de Geometria e de Medida, conclui-se que os conhecimentos selecionados se traduzem nas competências matemáticas necessárias, no desenho do tipo de aluno a ser formado e, em última instância, dão forma aos conhecimentos dos poderosos, próprios daqueles que dominam a Matemática. No tocante à construção da justiça curricular por meio do estudo comparado das noções de democracia, cidadania e inclusão social, transformadas em áreas de comparação, os documentos curriculares não registram a defesa de um projeto curricular emancipador, ou um currículo contra hegemônico, porque dotam-nas da condição de conteúdos escolares, presentes nos componentes disciplinares de História, Geografia, Língua Portuguesa e Arte. E, engrossando esse contexto, as análises sobre os princípios, formatos e/ou vestígios da política de distribuição de conhecimentos, desenhadas pelas áreas de comparação escola, desenvolvimento curricular e avaliação, informam que as prescrições sobre a reestruturação das escolas pelo/no desenvolvimento curricular, alimentada por defesas neoliberais, neoconservadoras e neogerenciais, disciplinam a forma e a prática de avaliação pelas lógicas do mercado e do capital.

Por fim, essas análises, construídas nos limites do programa de pesquisa, tornam-se reveladoras do alcance de uma escrita mais rigorosa e menos híbrida, determinada pelo estudo comparado, ao mesmo tempo que registra a funcionalidade do recurso ao local como um instrumento de legitimação das opções assumidas na construção de um conhecimento contextualizado, fruto da reestruturação do trabalho científico de pesquisa com documentos curriculares.

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2- Tal escrita é tomada como enfrentamento de análises que se colocam intencionalmente contrárias à noção de método e ao ordenamento sistemático da exposição. Para tanto, aproximamo-nos dos termos propostos por Bakhtin (2003) , de uma possível interpenetração de diversas esferas associadas a determinados gêneros do discurso que, ao se imbricarem, geram complicações para a sua definição, assim como para o claro estabelecimento de categorias de leitura.

3- Referência direta à história-problema, pela possibilidade de recusa da forma narrativa, porque exige a “conceptualização dos objetos de sua investigação”, a sua integração “numa rede de significações”, tornando-os, portanto, “se não idênticos, pelo menos comparáveis num dado período de tempo” (FURET, s./d., p. 84).

4- O livro foi publicado no Brasil, em 1961, pela Companhia Editora Nacional, baseado na 2ª edição inglesa de 1951.

5- Educação Comparada e Testes ABC, publicado pela Editora Melhoramentos em 1961.

6- “[…] the deployment of a whole series of mechanisms to fix and pause the flow of time so that a cross-sectional object can be stabilized and discerned—all to be balanced with the recognition that this analytic work takes place within this ongoing flow of time, a flow that is marked by transformations, continuities and discontinuities between possible pasts, presents and futures” ( WARDE, 2013 , p. 95).

7- “[…] which implies, at least, unidirectional relations, steady in space and in time, between individuals, groups and even entire societies; more than that, the idea of influence brought from the most ancient history of ideas is based on the (psychological) assumption that one pole ascends the other. The first pole is adult, developed, and civilized, and the other one is infantile, underdeveloped, and primitive” ( WARDE, 2013 , p. 113).

8- Eliot (1989) produziu reflexão sobre os conceitos de influência, para a qual delineava a ideia de que tradição não é reprodução, mas uma representação dialética, que envolve um senso histórico permeando o passado e o presente.

9- No caso brasileiro, materializado por meio da implantação de uma política curricular, objetivada nos Parâmetros Curriculares Nacionais para a Educação Básica (Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio) e Diretrizes Curriculares para Educação Básica , com documentos oficiais orientados para o trabalho escolar.

10- Elaboramos nuestras interpretaciones teniendo en mente una serie de problemas específicos o de cuestiones preexistentes -no de datos- a las que queremos dar respuesta. La iluminación de la respuesta -o de las respuestas- no es el resultado de un ‘experimento’ ni de las propuestas de interpretación y explicación que hagamos, sino que ‘experimento’ y ‘teoría’ se construyen mutuamente. (PEREIRA, 1990, p. 45).

11- “[...] an opportunity and obligation to question all variables as potential candidates for historiographical scrutiny. After all, how can we exempt from our historical investigations the very historical research tools and languages we use to write history? All of our methodological safeguards, processes of evaluation, analytical classifications, and narrative traditions are haunted by, tied to, and (to some extent) dependent upon, relentlessly fluctuating historical contingencies of time, space, and power”. ( FENDLER, 2013 , p. 228).

12- As recuperações históricas dos anos 1980 e 1990 apontam uma latente preocupação do governo brasileiro com a economia nacional, como consequência do processo de pertencimento aos padrões dos processos de globalização ditados pelas economias de primeiro mundo, para os quais o crescimento econômico era central.

13- Ver, por exemplo, o Movimento Escola Sem Partido.

Recebido: 18 de Março de 2018; Revisado: 15 de Junho de 2018; Aceito: 07 de Agosto de 2018

Fabiany de Cássia Tavares Silva é pós-doutora em educação pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). É professora na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e bolsista produtividade em pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

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