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Educação e Pesquisa

versión impresa ISSN 1517-9702versión On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.45  São Paulo  2019  Epub 28-Jun-2019

https://doi.org/10.1590/s1678-4634201945201342 

Artigos

Universalidade e essencialidade: elementos de um discurso matemático

Lucas dos Santos Passos1 
http://orcid.org/0000-0002-5181-1765

José Pedro Machado Ribeiro2 
http://orcid.org/0000-0002-9227-3908

Vânia Lúcia Machado2 
http://orcid.org/0000-0003-3486-0837

1- Instituto Federal Goiano, Urutaí, Goiás, Brasil. Contato: lucassantospassos@gmail.com.

2- Universidade Federal de Goiás, Goiânia, Goiás, Brasil. Contato: zepedroufg@gmail.com, vania_machado@ufg.br.


Resumo

O presente artigo decorre de dados obtidos de nossa investigação de mestrado, finalizada em 2017, que buscou, na maior parte do tempo, estudar as tipologias de discursos no contexto de um subprojeto de matemática do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência. Na investigação, constituiu-se um agrupamento específico de enunciados, em desenhos e comentários, de cinco alunos e alunas bolsistas, caracterizados pela referência efetiva às figuras do universo, do mundo e/ou da natureza. Assim, a partir desse recorte do corpus , este trabalho busca rastear o funcionamento discursivo das referidas formulações, tomando-se a matemática mesma como objeto referencial dos discursos. Para tanto, filiando-se a pressupostos foucaultianos, pretende-se realizar uma análise enunciativa do efetivamente dito por meio de uma descrição dos domínios verticais das produções enunciativas a fim de expor suas regras de formação a partir de sua dispersão matemática. No final, ver-se-á que os enunciados estudados se reportam a uma exterioridade regida por uma historicidade estrita, em que as figuras da natureza, do mundo e do universo funcionam em meio à disseminação dos vetores de essencialidade, totalidade e universalidade matemática. Desde tal dispersão, os enunciados são caracterizados por um exaustivo monismo e estruturalismo, em que os objetos sempre facultam absolutidade e universalidade e, nessas linhas, o fechamento estrutural do jogo discursivo mesmo.

Palavras-Chave: Discurso matemático; Absolutismo-logocentrismo; Universalidade da matemática; Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência; Educação matemática

Abstract

The present article resulted from data collected during our Master’s Degree investigation, which was concluded in 2017. Most of the time, this investigation assessed the discourse typologies in the sub-project in Mathematics of Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Institutional Program of Scholarships to Professors). The investigation gathered specific sets of utterances, drawings and comments from five students granted with scholarships, which featured effective references to images of the universe, the world and/or nature. Thus, based on the research corpus, the aim of the present study is to track the discursive functioning of the referred formulations, by taking mathematics itself as the referential object of the discourses. In order to do so, and based on Foucauldian concepts, the idea is to make an enunciation analysis of what was actually said by describing the vertical domains of enunciation productions to expose their formation rules based on their own mathematical dispersion. One can see that the assessed utterances concern an externality ruled by a written historicity in which images of nature, world and universe work among the mathematical dispersion essentiality, totality and universality vectors. Starting from such dispersion, the utterances are featured by an exhausting monism and structuralism whose objects always regard absoluteness and universality, as well as the structural closing of the very discursive game.

Key words: Mathematical discourse; Absoluteness-logocentrism; Universality of mathematics; Institutional Program of Scholarships to Professors; Education in Mathematics

Considerações primeiras

Rastrear o funcionamento das categorias do universo, do mundo e da natureza, no interior do discurso matemático, desde um contexto matematicamente dado e desde a própria matemática é o objetivo deste trabalho. Para tanto, partimos de nossa investigação de mestrado realizada entre 2015 e 2017 em um contexto do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid/Capes)3 , subprojeto de matemática, contando inicialmente com treze alunos e alunas bolsistas, duas professoras supervisoras e uma professora coordenadora de área. Tal investigação se inseriu em uma proposta geral de descrever as tipologias de discursos nesse contexto, tomando-se a matemática enquanto objeto do discurso, bem como de vislumbrar um campo de expectativas estritas na formação inicial de professores de matemática, especificamente em termos etnomatemáticos e discursivos. Desse modo, a maior parte de nossa investigação se deteve em formular ações sobre ações4 , isto é, ações planejadas a partir das ações desse contexto específico, a fim de traçar os discursos que compõem o próprio contexto. Dado que nossa investigação se centrou no aspecto comunal do grupo, e não no individual, essas ações se deram em meio a seus encontros semanais, especificamente, das discussões do grupo de livros de educação (matemática). Quando chegamos nesse contexto, o grupo estava iniciando as discussões do livro Pedagogia do oprimido , de Paulo Freire, compondo o socius textual do qual tratamos de nos aproximar e integrar.

Assim, a análise que sucede parte da primeira atividade tecida em meio a esse socius , intitulada O que a matemática significa para mim? , que continha a seguinte proposta: faça um desenho que expresse da melhor maneira possível a ideia que você tem do que significa a matemática; depois dê um título ao desenho que esteja de acordo com a ideia expressada (desenhada). Como tal, essa ação partiu do pressuposto freireano sobre os círculos de cultura e as palavras geradoras ( FIORI, 2014 ; FREIRE, 2014 )5 , que circularam imediatamente nas discussões do grupo. Ao observar os desenhos produzidos pelos sujeitos da investigação, bem como seus adjacentes títulos e comentários (quando existiam), constituímos um agrupamento específico composto por aqueles desenhos que, para efetuar sua devida significação/representação, tematizam as figuras do universo, do mundo e/ou da natureza. Dos dezesseis participantes totais, doze se sentiram provocados por nossa atividade e fizeram seus respectivos desenhos, sendo que, destes, cinco compõe o agrupamento investigativo em questão, coincidentemente todos os alunos e alunas bolsistas, desde aqueles com mais de um ano de participação no grupo (geralmente cursando o 4º período do curso de licenciatura em matemática ou posteriores) àqueles com menos de um de ano de participação no grupo (geralmente cursando o 3º período do curso de licenciatura em matemática ou anteriores). Vale ressaltar que a investigação foi aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Goiás (CEP/UFG) e a utilização neste trabalho de todo material produzido tem o consentimento de seus respectivos sujeitos. Os nomes informados são fictícios, respeitando-se os princípios éticos e morais da investigação.

Tomando-se esse agrupamento do corpus , o trabalho que ora se apresenta pretende lograr seu objetivo, promovendo uma análise dos discursos do referido conjunto. Existem, é claro, várias maneiras de se analisar discursos. No presente artigo, fazemos uma filiação teórica com o pensamento de Michel Foucault e aquilo que ele apontou como uma análise enunciativa, em sua famosa obra A arqueologia do saber ([1969] 1995). Nesses termos estritos, esse tipo de análise recusa levar a cabo uma hermenêutica, mas, ao contrário, empreende uma descrição dos discursos. Para isso, tal analítica só pode partir do efetivamente dito, seu objeto é o que realmente foi falado, escrito, traçado ou gravado. Partindo do efetivamente dito, busca-se a unidade mínima do discurso, o enunciado: uma função que excede qualquer unidade estrutural, seja ela uma proposição lógica, uma frase ou um ato de fala, e as tornam possíveis. Trata-se de:

[...] uma função de existência que pertence, exclusivamente, aos signos, e a partir da qual se pode decidir, em seguida, pela análise ou pela intuição, se eles “fazem sentido” ou não, segundo que regra se sucedem ou se justapõem, de que são signos, e que espécie de ato se encontra realizado por sua formulação (oral ou escrita). [...] [o enunciado] não é em si mesmo uma unidade, mas uma função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz com que apareçam, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço. ( FOUCAULT, 1995 , p. 99).

Desse modo, a análise enunciativa supõe descrever os sistemas de dispersão dos enunciados, quer dizer, as formas de repartição e regularidade desses elementos, o que “não significa isolar e caracterizar um segmento horizontal, mas definir as condições nas quais se realizou a função que deu a uma série de signos (não sendo esta forçosamente gramatical nem logicamente estruturada) uma existência [específica]”. ( FOUCAULT, 1995 , p. 125). Segundo Foucault (1995 , p. 43):

No caso em que se puder descrever entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso, entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva. [...] Chamaremos de regras de formação as condições a que estão submetidos os elementos dessa repartição (objetos, modalidade de enunciação, conceitos, escolhas temáticas).

Assim, o estudo descritivo das regras de formação deveria levar a uma individualização dos discursos e das formações discursivas que eles inscrevem e/ou definem, e vice-versa ( FOUCAULT, 1995 , 2010 ).

Valorosamente, a descrição dessas regras de formação de objetos dos discursos aponta para um campo normativo e produtivo, por meio do qual os discursos se tornam possíveis. É a descrição dessa possibilidade normativa que está em jogo na análise enunciativa e não uma consideração do discurso como estrutura final. Como tal, são essas regras que se pretende expor no presente artigo, quer dizer, as regras discursivas desde a própria matemática em que as figuras da natureza, do mundo e do universo aparecem desde sempre com usos limitados e específicos, compondo um jogo a mais do que o proposicional e gramatical. Com efeito, o derradeiro jogo vai do linguístico ao extralinguístico, situado no que chamamos de uma exterioridade constitutiva. Descrever os enunciados significa, em grande medida, descrever a dispersão que os mesmos ganham em relação a essa exterioridade desde o objeto situado, a matemática. É nesses termos específicos que este artigo pretende recorrer e contribuir com o campo transdisciplinar da educação em ciências e matemática, abordando um elemento sempre prometedor analiticamente para a área como é o discurso. Em sua própria dispersão crítica, ver-se-á que o trabalho leva a uma problematização incipiente sobre a formação de professores de matemática a partir de um contexto pibidiano da matemática institucionaliza.

Representações da matemática: o universo, o mundo e a natureza, uma riqueza sem fim?

No conjunto do corpus introdutoriamente mencionado, o Desenho 1 , feito pela aluna bolsista Andrea, ganha materialidade imagética ao produzir, a partir do centro, um jogo de luminosidade entre linhas definidas e partes esfumaçadas, bem como por meio de tons escuros e claros. A disposição desses elementos evidencia que a representação gráfica se dá por meio da recuperação, no próprio nível da imagem, daquilo que, na memória discursiva científica, poderíamos considerar como a representação do universo — ou, pelo menos, de parte significante dele. Desse modo, iconograficamente, a representação traz aqueles elementos cristalizados como espaço sideral, poeira interestelar, assim como estrelas, planetas, tudo isso ao redor de uma galáxia central. Ao associar a produção imagética às formulações explicativas, veja-se que a função enunciativa da representação está dada em dizer que desde a mais remota poeira cósmica, a matemática está presente em todos os lugares do universo total, inclusive desde o lugar mais amplo ou mais distante (ou que seja o melhor lugar) que se possa observá-lo. Não por acaso, o referido desenho, intitulado “O universo da matemática”, ocupa toda uma face de uma folha de papel em branco, de forma que o título e o nome da autora são escritos no verso. Repare-se que o desenho se move, então, a partir de uma disseminação exaustiva, não permitindo nenhum espaço vazio na página: o traço se estende, contorna e preenche até chegar aos limites de sua superfície de inscrição. Também, o emprego verbal da preposição “em”, do verbo transitivo “englobar” e do advérbio “dentro”, com seus respectivos complementos “todos os lugares”, “o mundo” e “todos os cantos” atesta a impossibilidade de uma referência ao externo, ao fora e até mesmo ao relativo.

Fonte: arquivo de dispositivo próprio do autor (2015).

Desenho 1 – O universo da matemática (desenho feito pela aluna bolsista Andrea) 

Do espaço sideral à atmosfera terrestre, o Desenho 2 , que leva o título de “A matemática move o mundo! A matemática move você!!!”, produzido pela aluna bolsista Florzinha, e o Desenho 3 , intitulado como “Matemática: um mundo de possibilidades”, feito pelo aluno bolsista Álvaro, se centram, cada qual a sua maneira, no planeta Terra propriamente dito. De fato, as representações recorrem a uma figurativização planificada do globo terrestre, evidenciada pelo desenho circular, pelos limites geográficos e pela referência textual ao substantivo mundo. Junto a isso, verificam-se objetos matemáticos nos dois desenhos que preenchem o espaço interior circular, tais como: os sinais das quatro operações básicas, números, letras gregas, o símbolo da integral, o símbolo da derivada, a fórmula de Bhaskara, os símbolos dos conjuntos numéricos, a notação para domínio e imagem de uma função f , uma matriz qualquer do tipo 2 por 2 e algumas figuras geométricas. No segundo desenho, esses objetos estão trançados em menor grau e sobre os continentes e oceanos do planeta terrestre, produzindo os mesmos efeitos de sentido de totalidade do conhecimento matemático. No terceiro desenho, é clara a repetição dessa mesma regularidade sobre a materialidade discursiva, sendo que, de forma semelhante, os signos produzidos se dispersam para o globo terrestre, ocupando e oferecendo uma (re)escrita do mesmo. Essa reescrita, claramente, é a da matemática total, que fecha e dá conta da totalidade.

Fonte: arquivo de dispositivo próprio do autor (2015).

Desenho 2 – A matemática move o mundo! A matemática move você!!! (desenho feito pela aluna bolsista Florzinha) 

Fonte: arquivo de dispositivo próprio do autor (2015).

Desenho 3 – Matemática: um mundo de possibilidades (desenho feito pelo aluno bolsista Álvaro) 

Os desenhos 2 e 3, portanto, dão lugar a uma materialidade segundo a qual a matemática está no mundo, em cada canto dele, em cada parte dos continentes e oceanos, é a potência que move o mundo e o ser humano e, enfim, a matemática é e abre um mundo de possibilidades. Como no primeiro desenho, a matemática é inscrita na ordem do exaustivo, daquilo que pode ocupar o todo como sua condição necessária e, no fim das contas, como aquilo que capacita toda condição necessária. Assim, recorrendo a um elemento semelhante à figura do universo, esses desenhos, fazendo uso do mundo, também dão à matemática uma mesma dispersão de objeto totalizador e absoluto, de uma essência autoidêntica e fundadora. Essa mesma dispersão emerge na materialidade do Desenho 4 e do Desenho 5 , logo em seguida, como suas condições de existência. O primeiro é intitulado “A ideia de matemática no mundo por um bom professor”, do aluno bolsista Gustavo, e o seguinte, é “The queen” , da aluna bolsista Nina.

Fonte: arquivo de dispositivo próprio do autor (2015).

Desenho 4 – “A Ideia de Matemática no Mundo por um bom professor” (desenho feito pelo aluno bolsista Gustavo) 

Fonte: arquivo de dispositivo próprio do autor (2015).

Desenho 5 – “The Queen” (desenho feito pela aluna bolsista Nina) 

De fato, na quarta produção imagética, a feitura de um sujeito-professor objetiva recuperar uma matemática presente em todo o mundo (repare-se, como nos casos anteriores, a marcação de advérbios de lugar e de tempo nos enunciados-explicações, especificamente aqui, “na natureza” e “em todos os momentos”) e, ao mesmo tempo, fazer dessa figura humana o transmissor (veja-se o emprego do verbo “passar”) da mesma matemática tornada transparente. Perceba-se que, em seu nível imagético, setas ligam cada parte desse mundo a seus correlatos matemáticos (relações numéricas, das operações matemáticas, das formas geométricas etc.), indicando justamente a presença incontestável da matemática — uma presença ad infinitum — em todo o mundo/natureza/universo. Na quinta produção imagética, desde o título, a matemática recebe a investidura de uma genuflexão que a coroa, por assim dizer, e a apresenta como o comando do universo. O título “ The queen ” (a rainha, em português) recupera especificamente no caso do conhecimento matemático os dizeres de Gauss de que a matemática seria a rainha das ciências, que, depois, foram tomados de empréstimo por Gilberto Geraldo Garbi para nomear seu importante livro de história da Matemática6 . Não por acaso, a frase aparece ao lado de uma coroa. Junto a isso, observe-se também que o desenho, assim como seu antecessor, segue inserindo o humano no nível de sua materialidade. Com efeito, é dado lugar para uma jovem no canto inferior da folha, provavelmente uma personificação da autora, que repete a pergunta para si mesma, sendo que a resposta se esboça dentro de um círculo que, a sua vez, representa o todo, o universo, matematicamente dado. Tal como nas últimas produções apresentadas, novamente verificam-se os símbolos das quatro operações básicas, alguns números, algumas fórmulas, nomes de matemáticos etc., no espaço do todo e do universo.

No grupo de enunciados apresentado, o universo, o mundo e/ou a natureza são figuras recuperadas no nível das representações e, mais do que isso, emergem desenhados em termos estritos e com contornos determinados. Poderíamos começar destacando, por exemplo, que quando o mundo é desenhado, ele recupera uma representação específica, que não é, por exemplo, uma representação do senso comum ou religiosa, já que a disposição dos continentes e do próprio globo terrestre reatualiza uma versão moderna, possibilitada pela ciência e pela tecnologia e, nesse sentido, pelas ciências e pelo cartesianismo matemático. Assim, desde uma vantajosa e imponente visão de satélite, centrando-se no planeta Terra (o que pode denotar certo geocentrismo e, inclusive, certo antropocentrismo), esses enunciados tratam de apresentar uma releitura do globo matematicamente articulada: embora a folha possibilite trabalhar três dimensões, a terra é planificada e colocada como um círculo, o que parece sugerir que ela seja esférica em seu formato real; ao mesmo tempo, ela é circunscrita (talvez, para dar conta também de tudo que a cerca) e ocupada, sobretudo, por símbolos matemáticos, como se estes fossem sua expressão natural. Mesmo no caso do primeiro desenho, em que o universo sideral se mantém como elemento central, o desconhecido não é efetivamente lido em sua materialidade textual, por exemplo, como mito7 , pois a ideia é de um todo organizado matematicamente e, portanto, explicado racionalmente. Assim, o universo representado pode até ser infinito, mas não é indefinido no nível de sua materialização enunciativa, que dispersa para uma racionalização matemática.

Da mesma forma, o mundo que se trata de representar no grupo de desenhos recortados não é mais uma Pangeia, mas a versão contemporânea dos continentes — cujo elemento unificador, aliás, segue sendo apenas a matemática. É certo, então, que o conjunto de desenhos invariavelmente emprega conceitos advindos do campo da matemática e das ciências para reforçarem a ideia desse logos organizado: as linhas, as curvas, os pontos e os símbolos matemáticos são bem claros; mas também se pode rastrear como certas explicações científicas em torno da terra e do universo estão, mesmo que de forma tênue e inconsciente, em funcionamento nesses enunciados. Seja seguindo um modelo matemático euclidiano e/ou cartesiano para dar forma às produções imagéticas, assim como um modelo científico aristotélico, ptolomaico, copernicano ou galileano (que nem sempre estão muito claros) sobre o universo, o planeta Terra (que soa como mundo) e a natureza, os enunciados não podem ser entendidos de forma separada desses mesmos modelos que os engendram e os possibilitam, quer dizer, os vários modelos matemáticos e científicos que tomam o mundo e o humano tanto como objeto quanto como sujeito de um saber. Nessas últimas linhas, perceba-se que, mesmo que a figura do humano apareça como um elemento a mais no Desenho 4 e do Desenho 5 , ela não escapa a esse circuito estrito, regulado por uma dispersão matemática. Isso mostra que a própria categoria do humano só pode ocupar uma posição específica no interior das ciências e da matemática e estar em uma relação específica com as unidades do universo, do mundo e/ou da natureza.

A natureza, o mundo e o universo (que, às vezes, podem significar a mesma coisa) parecem ser desde sempre objetos das ciências e da matemática, se tornando cada vez mais centrais nesses mesmos campos como aquelas grandes unidades que eles amiúde afirmam descobrir. Para começar, parece que o ser humano está sempre tentando compreender e agir sobre a natureza, o mundo e o universo, e, logo, esses elementos se tornam objetos do conhecimento científico, mesmo que em diferentes perspectivas ao longo do tempo (cf. ANDERY et al., 2014 ). Assim, vejamos que o modelo de racionalidade que preside e engendra a ciência moderna é altamente marcado pelos estudos dos movimentos da natureza e do espaço, e, mais do que isso, em um paradigma cada vez mais definido em termos totalitários, em termos de um único método e tipo de conhecimento considerado verdadeiro ( SANTOS, 1988 ). A ciência moderna coloca um novo paradigma dominante que, por sua vez, apresenta uma nova visão do mundo e da vida e é cada vez mais distanciada da observação e experiência imediata, ao mesmo tempo em que ocorre uma severa separação entre natureza e humano:

A natureza é tão-só extensão e movimento; é passiva, eterna e reversível, mecanismos cujos elementos se podem desmontar e depois relacionar sob a forma de leis; não tem qualquer outra qualidade ou dignidade que nos impeça de desvendar os seus mistérios, desvendamento que não é contemplativo, mas antes ativo, já que visa conhecer a natureza para a dominar e controlar. Como diz Bacon, a ciência fará da pessoa humana “o senhor e o possuidor da natureza”. ( SANTOS, 1988 , p. 49).

De acordo com Santos (1988) , toda essa trajetória particular da ciência é cada vez mais reificada no que, historicamente, se entende como o determinismo mecanicista, culminado no século XVIII. Baseado principalmente na mecânica newtoniana, o determinismo mecanicista postula que o mundo material funciona como uma grande máquina, isto é, de forma mecânica, sendo que suas operações podem ser desvendadas por leis matemáticas e físicas. Assim, o mecanicismo aposta “[n]um mundo estático e eterno a flutuar num espaço vazio, um mundo que o racionalismo cartesiano torna cognoscível por via da sua decomposição nos elementos que o constituem” ( SANTOS, 1988 , p. 51). Essa ideia de mundo-máquina, é claro, está assentada na “idéia de ordem e de estabilidade do mundo, a idéia de que o passado se repete no futuro” ( SANTOS, 1988 , p. 51). Ou seja, o mundo (ou ainda a natureza ou o universo) representa uma unidade estática e imutável no interior da ciência e da matemática, mecanicamente funcional, estável e repetível. Como resultado, o mundo representa o mesmo, sempre idêntico a si mesmo, sobretudo porque portador de leis incapazes de serem modificadas e, a sua vez, universais. Como vimos, a ciência, por meio da matemática, restitui a coerência interna do mundo mediante a tradução rigorosa dessas leis, isto é, quando apresenta o mundo em sua estabilidade e eternidade por meio da poderosa linguagem matemática.

Diante de toda essa leitura, lembremos aqui também que D’Ambrosio (2001) situa o mecanicismo como responsável pelo que ele chama de um empobrecimento ideológico sobre as concepções de universo e de homem. Segundo o autor, o determinismo mecanicista produz uma visão mecânica do universo enquanto condicionado de forma rígida por leis mecânicas, ao passo que o homem aparece apenas como uma engrenagem dentro de uma grande máquina e não como ser livre e criativo, ligado ao universo como um todo. É mister ressaltar que D’Ambrosio (1998 , 2001 , 2011 ), ao propor em suas obras uma análise crítica da constituição da matemática no Ocidente (e enquanto produção ocidental) nos oferece também um valioso entendimento sobre como as figuras da natureza, do mundo, do universo e do humano são implicadas nesse processo. De acordo com a crítica d’ambrosiana, dado que a matemática é um tipo de conhecimento resultante da expansão da civilização ocidental, ela não pode ser compreendida como separada das estruturas de poder que a possibilitaram e, portanto, de uma história de dominação geopolítica. Aqui, a matemática não é apenas consequência dessa dominação, mas segue sendo um de seus instrumentos: no processo de expansão ocidental — que não está no passado de uma vez por todas —, a matemática delimita uma visão de universo e de mundo, em que os seres humanos podem ter um poder total de exploração da natureza e dos bens materiais.

Segundo D’Ambrosio, um mesmo modelo de racionalidade (aquele provido pela matemática institucionalizada) faz parte do processo de globalização, racionalizando valores éticos, assim como as variáveis de propriedade, produção e divisão do trabalho. A sua vez, a história da matemática se liga a e torna possível a história do capitalismo, do colonialismo e do imperialismo cultural e, portanto, é parte constitutiva e ativa de uma história de expansão e invasão das fronteiras territoriais, da representação e exploração da natureza, do mundo e do universo, e da colonização e reificação dos povos ao longo do planeta. Santos (1988) oferece também uma perspectiva de como o paradigma científico se encaixa num modelo burguês, ao afirmar:

Pode parecer surpreendente e até paradoxal que uma forma de conhecimento, assente numa tal visão do mundo, tenha vindo a constituir um dos pilares da idéia de progresso que ganha corpo no pensamento europeu a partir do século XVIII e que é o grande sinal intelectual da ascensão da burguesia. Mas a verdade é que a ordem e a estabilidade do mundo são a pré-condição da transformação do real. ( SANTOS, 1988 , p. 51).

Bishop (1990) parece também compartilhar desse ponto de vista e se aproximar ainda mais da perspectiva d’ambrosiana na medida em que situa a matemática em meio a e como resultados de processos do imperialismo cultural.

De forma geral, como todo esse historicismo serve para pensar uma historicidade que é própria do discurso e se manifesta por meio de enunciados apresentados como parte de sua materialidade mesma? Como é possível, a partir desse historicismo, pensar um domínio associado8 , ocupado por uma memória específica, com os enunciados estudados? A natureza, o mundo e o universo são, em grande medida, os elementos de que a ciência, por meio da matemática, se ocupa e os quais procura descrever, ao mesmo tempo em que se afirma como a única capaz de realizar essa descrição e oferecer um metaconhecimento sobre os mesmos. Entretanto, observe-se que, para além de elementos de uma pura descrição — e como elementos dentro de um mecanismo que faz mais do que uma descrição —, a natureza, o mundo e o universo seguem sendo sempre os objetos de operações textuais e discursivas exaustivas, ao mesmo tempo em que funcionam como os signos daquilo que Foucault (2012) , retomando Nietzsche, chamou de vontade de verdade. Em outras palavras, esses elementos são concebidos dentro de uma matriz centralizada em saber a verdade, isto é, de produzir e deter a verdade unilinear e unívoca da natureza, do mundo e do universo, fazendo do homem o agente fundamental desse saber. Não é por acaso, então, que, quando a matemática e a ciência são representadas, os referidos elementos sejam desenhados na cena de representação. Além disso, na maioria das vezes, em toda a cena e como toda a cena de representação, eles representam mais do que objetos do conhecimento científico e matemático, eles representam uma pulsão historicamente dada de dominar e controlar, de escrever — mediante uma linguagem essencial e universal — a verdade exaustiva e total desses elementos nesses referidos campos. Para a ciência e para a matemática, o natural e imediatamente material, encarnado pelas unidades da natureza, do mundo e do universo, são, a uma só vez, o tropos e o topo para produzir e reiterar repetidas vezes o absolutamente fundamental e central: a ciência e matemática mesmas.

Discursivamente falando, a figura do mundo e do universo (ou ainda da natureza) não são, como dissemos, somente objetos de uma pura descrição — uma descrição, aliás, acidental —, se bem que é isso (e apenas isso) que o modelo de racionalidade hegemônica afirma fazer. Eles não são apenas objetos de um puro ato cognoscente ou de um conhecimento ilimitado. Todavia, também pode ser que sejam apenas objetos que refletem apenas as ideologias, as ideias, as lutas de classes, as mentalidades e, seja como for, não fazem parte e constituem uma totalidade integrada, ligada a dialética entre natureza e cultura, sobrevivência e transcendência. As leituras anteriores, quando cada vez mais distanciadas de uma lógica dialética e cada vez menos efetuadas como uma simples história das ideias ou das representações, servem muito bem para evidenciar um domínio associado em que tanto a natureza, quanto o mundo e o universo são colocados em funcionamento articulando uma matemática e uma ciência (muitas vezes, no singular também) natural e essencial, total e universal. Mais do que objetos do conhecimento — sítios que o humano ocupa, enfrenta e procura conhecer —, os referidos elementos são objetos de um campo adicional, cujos próprios objetos são a essencialidade, a totalidade e a universalidade. Consequentemente, seus objetos seguem sendo também a verdade absoluta, linear, estável, estática, eterna e imutável. E, além disso, um saber final e autossuficiente, o único capaz de ascender à verdade, a única verdade de todas as coisas.

Como afirma Pêcheux (2015) , o domínio das ciências e das matemáticas busca facultar um universo logicamente estabilizado mediante a produção e regulação de espaços discursivos em que enunciados descrevem, aparentemente, apenas propriedades estruturais, de forma transparente e adequada, do universo mesmo. Para o autor, esses domínios concorrem, então, em reduzir a heterogeneidade do mundo a uma homogeneidade lógica, principalmente empregando termos como rigor, lei e princípio, além de evidências lógico-práticas — isso para não mencionar a construção de autoridades (especialistas, cientistas etc.) e o emprego de técnicas materiais. Ainda conforme Pêcheux (2015) , os referidos domínios estão motivados por uma necessidade de um mundo semanticamente normal, cobrindo massivamente as regiões heterogêneas do real com proposições lógicas, o que, a sua vez, produz um tipo de real.

Nesse sentido, nas formulações apresentadas, longe de serem objetos de uma representação ad infinitum , a natureza, o mundo e o universo são objetos do discurso e, principalmente nesse caso, formam o objeto do discurso matemático e, portanto, de um discurso estritamente específico. Esses objetos produzem o lugar de uma repartição, uma repartição do discurso, num sentido foucaultiano, sendo que, por meio deles, se diz que a matemática está na natureza, no mundo e no universo e, a sua vez, é natural, mundial e universal — ou, ainda, absoluta e total. De fato, quando os enunciados anteriores concorrem em representar a matemática, essa representação só ocorre porque recupera enunciados que, a sua vez, estão vinculados aos discursos de que a matemática está em todo lugar (parte por parte), de que ela é a essência de todas as coisas (elemento por elemento), de que foi descoberta pela humanidade a partir da natureza, de que revela um mundo com funcionamento estável e idêntico. Assim, de forma reiterada, as séries de enunciados apresentados efetuam uma identificação sistemática da natureza com a matemática, no nível de todo o mundo e de todo o universo, reifica-se a grande unidade imperiosa, capaz de lidar com a grande totalidade do universo porque capaz de ordenar um universo logicamente estabilizado e universal. É essa regularidade discursiva que é atestada e atualizada pelos enunciados estudados — uma regularidade que não está na ordem apenas da representação ou dos significados, mas dos discursos.

Com efeito, é certo que os enunciados em questão se relacionam com uma exterioridade histórica, todavia, mais do que isso, com uma exterioridade que excede a mera reflexão histórica e se situa na própria historicidade discursiva9 . Não por acaso, as formulações se inscrevem em uma mesma repartição enunciativa/discursiva, definindo um mesmo agrupamento, ao lado de seus correlatos históricos. Não se pode dizer outra coisa no lugar desses enunciados desde a matemática, pois os dizeres estão sempre regidos por essa dispersão normativa e constitutiva. Assim, essa série de enunciados apresentados definem uma formação discursiva específica em que, como dissemos anteriormente, a matemática é tida como um ente presente em todo o universo, em todo o mundo, em todo lugar e a todo tempo; ela é todo o universo, todo o mundo, todo o lugar e todo o tempo. Assim, o que está em jogo é uma regularidade discursiva em que os enunciados se dispersam para as grandes unidades do universo e do mundo e, ao mesmo tempo, para pequenas unidades como os cantos e, dessa forma, para qualquer lugar do todo, mesmo seus pequenos espaços. O universo, o mundo, cada canto do universo ou do mundo, é sempre um correlato essencial para esses enunciados e a função enunciativa em questão é representar cada espaço como espaço matemático, escrever todo lugar como lugar de presença incontestável da matemática. Como se cada espaçamento, pequeno ou grande, fosse um espaçamento da natureza, do mundo e do universo matemático.

Essencialidade, totalidade e universalidade: conclusões dinâmicas sobre um discurso absolutista e logocêntrico da matemática

A descrição mostrou que, mais do que essa característica coincidente, esses enunciados seguem se inscrevendo em uma dispersão regida pelas mesmas regras enunciativas e discursivas em relação à matemática. Desse modo, nesses enunciados, diz-se que a matemática está (presente) na natureza, no mundo e no universo, que ela está em cada parte dessas grandes unidades e compõe cada momento da história humana, isso quando ela não parece se perder do mundo real e gerar seu próprio mundo. A natureza, o mundo e/ou o universo emergem nesses enunciados quase sempre com marcas de planificação e quantificação, além de serem invariavelmente inseridas no domínio do simbolismo matemático. Assim, tentamos mostrar que a matemática ganha uma dispersão por meio desses enunciados que a inscrevem numa modalidade discursiva, no limite das próprias representações, obedecendo aos vetores da essencialidade, da totalidade e da universalidade. Cruzando domínios possíveis, os objetos desses enunciados e os campos associados dos mesmos não são nem a natureza, nem o mundo e nem o universo, mas, pelo contrário, o natural, o mundial (total) e o universal, de forma que os referidos enunciados estavam regidos por uma função enunciativa de naturalização, totalização e universalização. Ao lado disso, tentamos evidenciar que, na história das ciências e da matemática, os elementos supracitados são sempre objeto de operações textuais e discursivas, que aparecem em um jogo de poder que concorre alcançar e fechar o absoluto e o final. Assim, a natureza, o mundo e o universo, de diferentes formas e com diferentes significados, emergem na matemática e nas ciências como objetos específicos que servem não apenas para serem descritos, mas compõem um processo permanente de recuperação e reatualização de um domínio de relações que visam produzir o totalmente absoluto e universal.

Poderíamos, é claro, colocar os enunciados estudados ao lado de outros acontecimentos discursivos que compõem a história das ciências e da matemática, cujas regras e objetos se apresentam os mesmos, como, por exemplo:

[...] os pitagóricos notaram também um fato que os encantou: apesar de ser a Matemática algo ideal e abstrato, sua presença no mundo físico era percebida por toda parte, nos céus e na Terra. Isso levou-os a considerar Deus o Grande Geômetra do Universo , a dizer que o mundo era feito de números e a nutrir por eles uma veneração verdadeiramente religiosa. ( GARBI, 2007 , p. 27, grifos do autor).

Como Arquimedes e outros, Galileu estava seguro de que o Universo obedecia a leis enunciáveis matematicamente e expressou tal convicção em um célebre pensamento: “ O Universo é um grande livro que não pode ser compreendido a menos que antes se aprenda a entender a linguagem e a ler as letras nas quais ele está composto. Ele está escrito na linguagem da Matemática ”. ( GARBI, 2007 , p. 171, grifos do autor).

Para Galileu, o livro da natureza está inscrito em caracteres geométricos e Einstein não pensa de modo diferente. ( SANTOS, 1988 , p. 50).

Assim, como tentamos mostrar, os enunciados proferidos em um contexto pibidiano da matemática institucionalizada supõem outros enunciados e operações textuais que, longe do contexto dado e como parte do contexto dado, estão dispersos na história das ciências e da matemática. De fato, esses enunciados levam a outros e, nesse ínterim, a uma exterioridade histórica. No entanto, mais do que um historicismo (coercitivo, aliás), e, evidentemente, muito mais do que um nominalismo, um psicologismo e uma genialidade idiossincrática (na verdade, contra esses três últimos), essa série de enunciados e acontecimentos discursivos se disseminam em meio a uma historicidade que se realiza por meio da e na linguagem, uma historicidade que é, afinal, produtiva e constitutiva. Como sublinhamos, essa dispersão leva às próprias regras de formação, mediante as quais as figuras do mundo, da natureza e do universo, desde a matemática, podem se materializar e ganhar contornos específicos, além de compor um jogo estrito. Essas regras atuam no limite do contexto e de forma anônima, escapando inclusive a uma apreensão dialética. Com efeito, as regras evidenciadas podem ser apontadas cada vez mais em um anonimato produtivo e insidioso, num espaçamento em que o universalismo e absolutismo matemático se configuram como um a priori histórico. Assim, evidentemente, essas regras se deslocam em jogo geral, dado por exaustivo monismo e estruturalismo, em que os objetos sempre facultam absolutidade e universalidade e, nessas linhas, o fechamento estrutural do jogo discursivo mesmo.

Veja-se, assim, que se poderia dizer que esses enunciados coletados e os discursos aos quais eles vinculam têm claramente suas continuidades com um movimento histórico geral da matemática, através do qual:

Na tradição da ciência ocidental com suas raízes na Grécia Antiga, os objetos matemáticos são concebidos como tendo existência objetiva e real, como perfeitos e perenes. Essa visão reflete o platonismo e, de maneira simplificada, podem-se estabelecer ligações entre a concepção matemática, o mundo platônico das ideias e o modo de conhecê-las e, por consequência, os objetos matemáticos. A realidade desses objetos pode ser comparada àquela das formas perfeitas, cuja existência independe da ação humana. [...] Essa concepção, denominada também da visão absolutista do conhecimento matemático, subjaz às correntes mais importantes do pensar matemático: formalismo, logicismo e intuicionismo, e persiste ainda entre os matemáticos contemporâneos. ( BICUDO; GARNICA, 2011 , p. 40-41).

É claro, retirando-se o peso fenomenológico de uma pura concepção, poderíamos falar de uma formação discursiva absolutista da matemática. Também, se seguimos Derrida (2001 , 2011 ), poderíamos nomear uma formação discursiva logocêntrica da matemática, tendo em vista sua crítica ao logocentrismo como o signo da história ocidental, mantido pela centralidade na verdade enquanto logos . Evidentemente, a matemática é responsável por um grande projeto que busca uma verdade transcendental na história do Ocidente, sobretudo em caracteres não fonéticos e inaudíveis ( DERRIDA, 2001 , 2011 ). Levando-se em conta as críticas oferecidas pela história, filosofia, sociologia e epistemologia das ciências e da matemática, seria possível considerar que a matemática se apresenta como a versão mais contemporânea e mais insidiosa do logocentrismo. Em todos os casos, não seria errado fazer menção a uma formação discursiva absolutista e/ou logocêntrica da matemática ( PASSOS, 2017 ). Se os enunciados em questão não chegam por si mesmos a definir tal formação, é evidente que, desde o início, tratam-se de enunciados cujos discursos constituintes são discursos absolutistas e logocêntricos da matemática.

Diante de tudo isso, uma questão final certamente seria a de saber o que acontece com o contexto pibidiano diante desses discursos. Com efeito, como permanece esse contexto específico em semelhante descrição discursiva? Claramente, as descrições dos enunciados indicam que o contexto funciona ao mesmo tempo em que segue acompanhado de uma formação discursiva estrita. Na medida em que essa formação funciona em uma dispersão, o contexto aparece disperso de si mesmo. Isso mostra que o contexto sempre é levado para fora de si mesmo, a uma historicidade e temporalidade que não é a sua. Evidentemente, os enunciados são proferidos por sujeitos específicos, em um contexto e temporalidade específicos, mas, em si mesmos, esses enunciados seguem funcionando antes e apesar de todos esses elementos, para bem dizer, tornando-os possíveis. Assim, o enunciado excede o contexto, sedimentando-o e fazendo dele mesmo um socius textual que é atravessado por vários textos constitutivos (discursos). Parodicamente, os enunciados seguem dispersos em uma exterioridade, no entanto, ao mesmo tempo, seguem compondo o contexto dado, sendo indiferente a ele e fornecendo parte de sua singularidade. Nesse sentido, embora fosse possível considerar que um contexto pibidiano de matemática institucionalizada se apresentasse sempre como não absolutista e não logocêntrico desde o início, veja-se que, contra seus propósitos, ele se mostra como discursivamente absolutista e logocêntrico. Isso porque, desde a própria matemática, enquanto objeto de dispersão, um absolutismo e um logocentrismo discursivo seguem atuando em uma das formas mais insidiosas (talvez a forma mais insidiosa de todas): por meio de um anonimato constitutivo e produtivo. Todavia, toda transformação discursiva possível só acontecerá a partir desses discursos, inclusive potencializada por um contexto pibidiano de matemática institucionalizada. Descrever e tornar a descrever esses enunciados torna-se, então, parte de uma estratégia que configura uma agência por vir; uma agência que fornecerá outros usos, certamente muito mais produtivos, ao estruturalismo discursivo da matemática.

Em termos gerais da educação em ciências e matemática, estritamente da educação matemática, os resultados aqui obtidos trazem algumas considerações relevantes para o campo. A princípio, a problemática do discurso parece ser sem garantias e pouco pragmática. Todavia, como dissemos anteriormente, é onde o discurso aparece como um objeto menor e residual que ele afirma seu poder e potência: constitui um elemento anônimo e realizador, sendo, por isso mesmo, tão pernicioso e prometedor. Se os enunciados estudados levam a uma dispersão discursiva em relação à própria matemática, então ela mesma atua discursivamente e, como vimos, com vetores absolutistas e logocêntricos. A formação de professores de matemática não pode se livrar dessa constituição de uma vez por todas, inclusive porque ela é produtiva, e o mesmo se dá com seus contextos correlatos. Todavia, um contexto de formação de professores de matemática, bem como seus correlatos, como o contexto pibidiano, não só reflete as normas discursivas do objeto constitutivo, como as cita e as diferencia em outros termos e outras possibilidades diferenciais e igualmente constitutivas. Poderíamos considerar que a própria educação em ciências e matemática, enquanto discurso, se situa nessa problemática. É certo que o campo se constitui na medida em que recupera seus antecedentes discursivos absolutistas e logocêntricos, os reifica em parte, mas também os diferencia residualmente. Embora o discurso signifique essa inflexão, ele aponta para uma questão mais profunda para a educação em ciências e matemática.

Referências

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3- Para saber sobre o regulamento do programa, ver Capes (2013) .

4- Como uma imitação estratégica do poder produtivo foucaultiano.

5- Com palavra geradora, Paulo Freire se refere às palavras pertences ao universo vocabular do estudante que “são significações constituídas ou reconstituídas em comportamentos seus, que configuram situações existenciais ou, dentro delas, se configuram” ( FIORI, 2014 . p. 14).

6- Em A rainha das ciências: um passeio histórico pelo maravilhoso mundo da matemática, publicado originalmente pela Editora Livraria da Física, em 2007, está claro que Gilberto Geraldo Garbi não só recupera a frase apaixonada de Gauss, dita por volta de 1796, como trata de fazer eco a ela e sua genuflexão. Ressaltemos que, não obstante, o livro de Garbi (2007) tem uma circulação significativa no domínio da história da matemática, sobretudo no Brasil. No curso de licenciatura em matemática, correlato ao subprojeto pibidiano em investigação, o livro configura-se como texto-base.

7- O mito pode funcionar como um modelo de explicação que se distancia do científico e matemático. Para saber como parte da civilização grega utilizava o mito, sugerimos ver o texto “O mito explica o mundo”, de Andery, Micheletto e Sério (2014).

8- Em Foucault (1995) , o domínio associado tende a se referir justamente ao espaçamento habitado pelas regras dos enunciados e suas relações, em que um enunciado supõe outros. Navarro (2008) considera que esse domínio, na medida em que assim se apresenta, implica-se com a memória discursiva.

9- Como explica Judith Butler, a historicidade do discurso não tem a ver somente como os discursos podem ser simplesmente localizados na história, mas bem mais como a história constitui o discurso em si, de forma sedimentada e não estrutural (cf. BUTLER, 2002).

Recebido: 29 de Maio de 2018; Aceito: 08 de Agosto de 2018

Lucas dos Santos Passos é licenciado em matemática pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e mestre em educação em ciências e matemática, também pela UFG. Atualmente é professor substituto do Instituto Federal Goiano – Campus Urutaí. Desenvolve pesquisas na área da educação e educação matemática.

José Pedro Machado Ribeiro é bacharel em matemática pela Universidade Federal de Goiás (UFG), mestre em matemática pela Universidade de Brasília (UnB) e doutor em educação pea Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, é professor do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade Federal de Goiás (IME/UFG). Desenvolve pesquisas na área da educação e educação matemática.

Vânia Lúcia Machado é graduada em pedagogia pela Universidade Federal de Goiás (UFG), mestre em educação pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC/GO) e doutora em educação pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Atualmente é professora do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade Federal de Goiás (IME/UFG). Desenvolve pesquisas na área da educação e educação matemática.

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Este artigo foi traduzido para inglês pelo Good Deal Language Consulting. Agradecemos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pelo financiamento da tradução.

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