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Educação e Pesquisa

versión impresa ISSN 1517-9702versión On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.45  São Paulo  2019  Epub 28-Jun-2019

https://doi.org/10.1590/s1678-4634201945205167 

Artigos

O discurso sobre tecnologias nas políticas públicas em educação

Bruna Damiana Heinsfeld1 
http://orcid.org/0000-0003-1824-7282

Magda Pischetola1 
http://orcid.org/0000-0001-6697-2118

1- Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Rio de Janeiro, Brasil.Contatos: brunadamiana@gmail.com; magda@puc-rio.br.


Resumo

Na chamada era da informação, a temática das tecnologias digitais se consolida no discurso pedagógico e nas pesquisas em educação, pelos quais perpassa a denúncia da necessidade de paradigmas educacionais que dialoguem com as inovações tecnológicas de nosso tempo. Assim, numerosos investimentos, públicos e privados, vêm sendo feitos buscando viabilizar a incorporação das tecnologias digitais no cotidiano escolar. Contudo, percebe-se uma lacuna quanto às indagações sobre o que se entende por tecnologia no âmbito educacional e sobre de que maneira esse entendimento influencia o campo. Posto isso, este trabalho propõe identificar e analisar as percepções de tecnologia que perpassam o discurso das políticas públicas em educação no Brasil. Para tanto, é utilizada a análise crítica do discurso, aplicada aos documentos das políticas públicas em educação que deliberam parâmetros e diretrizes para a incorporação das tecnologias digitais no âmbito escolar. Especificamente, opta-se pela análise do Plano Nacional de Educação 2014-2024 e do Programa de Inovação Educação Conectada, política mais recente no que tange à temática. Propõem-se duas categorias de análise sobre as percepções de tecnologia: artefato técnico e artefato sociocultural. Considera-se, por fim, que, embora haja apontamentos em direção a perspectivas socioculturais quanto à tecnologia no âmbito educacional, a percepção preponderante se relaciona mais fortemente aos aspectos da tecnologia como artefato técnico.

Palavras-Chave: Tecnologias digitais; Políticas públicas em educação; Análise crítica do discurso; Artefato

Abstract

In the so-called information age, the topic of digital technologies is an integral part of educational discourse and research, which have pointed to the need for teaching methods and programmes that deal with the technological innovations of our time. With this aim, numerous investments, both public and private, have been made in order to make it feasible to incorporate digital technologies into everyday school activities. However, we noticed a need to investigate what is meant by technology within the scope of education and how this understanding influences the subject. That said, this paper proposes identifying and analysing the perceptions of technology that run through the discussion of public policies on education in Brazil. For this, we used critical discourse analysis, applied to government policy documents on education determining the parameters and guidelines for incorporating digital technologies into schools. Specifically, we opted for the analysis of the 2014-2024 National Education Plan and the Connected Education Innovation Programme, the most recent policy on the topic. We propose two analytical categories on the perceptions of technology: technical artefact and socio-cultural artefact. Lastly, we consider that, although there are references to socio-cultural views on technology in the educational field, the predominant perception relates more strongly to the aspects of technology as a technical artefact.

Key words: Digital technologies; Public policies on education; Critical analysis of the discourse; Artefact

Introdução

Na era da informação, frente a um cenário no qual é possível acessar, aprender, colaborar e trocar informações via redes digitais, a temática das tecnologias digitais se consolida no discurso pedagógico. O modelo educacional contemporâneo, cujas bases remontam as da era industrial, é considerado por muitos não só ultrapassado, mas essencialmente inadequado para a formação dos jovens. E, conforme essa nova tendência, a solução apontada para a adequação e o desenvolvimento do sistema educacional recai, muitas das vezes, sobre a adoção das tecnologias digitais.

Em face a esse quadro, emergem grandes desafios para a educação escolar. Dentre os mais marcantes na literatura estão a necessidade de a escola propiciar o desenvolvimento das habilidades imperativas para a cidadania no século XXI e a indispensabilidade de serem exploradas as potencialidades das redes digitais. Nos últimos vinte anos, destaca-se o esforço global na elaboração de políticas públicas com objetivo de ampliar o uso das tecnologias digitais no cotidiano escolar, traduzido em numerosos investimentos visando garantir a infraestrutura apropriada ao acesso às tecnologias digitais e à internet, bem como a formação de professores e o ajuste do currículo escolar ( SELWYN, 2011 ). No Brasil, aponta-se para um movimento de consolidação das tecnologias digitais como eixo central das questões relacionadas ao desenvolvimento e à modernização dos sistemas educacionais tanto nas políticas públicas quanto na literatura especializada.

No cotidiano escolar, nas políticas públicas em educação e nas pesquisas científico-acadêmicas, fala-se em tecnologias educacionais, tecnologias da informação e da comunicação, tecnologias digitais, tecnologias sociais, novas tecnologias, entre outras variadas nomenclaturas. Observa-se, todavia, uma lacuna na discussão a respeito do que se entende, de fato, por tecnologia, sendo essa uma interpretação de significações múltiplas, variando de acordo com cada discurso. A partir dessa compreensão emerge este trabalho, que objetiva analisar o discurso das políticas públicas em educação com vistas a identificar as percepções de tecnologia que os perpassam.

As percepções de tecnologia no campo educacional

Em sua origem grega, o termo tecnologia é composto pela palavra techné , acrescida do sufixo -logia. Techné diz respeito a uma habilidade, arte ou ofício, enquanto -logia remonta a conhecimento. Embora muitas vezes associada à ferramenta, a palavra tecnologia traz, em suas origens, uma relação intrínseca com a compreensão e com o desenvolvimento de conhecimentos, para além da ideia dos processos de se fazer alguma coisa ou mesmo de seu produto ( MILLER, 2012 ; SELWYN, 2011 ).

Na contemporaneidade, o termo tecnologia contempla uma definição ampla, que se refere tanto à forma como seres humanos utilizam ferramentas quanto como aplicam seus conhecimentos para controlar e adaptar o meio em que vivem. Hoje, observa-se que as aplicações cotidianas do termo estão associadas aos aspectos sociais e culturais tanto da produção quanto do uso desses objetos.

A dinâmica das visões contemporâneas sobre a tecnologia é muitas vezes revelada a partir de duas abordagens dicotômicas: a ideia de tecnologia como uma ferramenta, adaptável pelo uso feito pelos seres humanos, e a ideia de tecnologia como configuradora da cultura e da sociedade, sendo possível identificar a existência de pelo menos três ângulos para se olhar a tecnologia: os objetos físicos em si; as atividades humanas que estão relacionadas a esses objetos; e o conhecimento que permeia essas atividades (PEIXOTO; ARAÚJO, 2012; SELWYN, 2011 ).

Adotando essa perspectiva, as tecnologias passam a ser encaradas sob seu viés cultural, ou seja, como parte de conhecimentos, ações, ritos e memórias que são construídos e transmitidos através das gerações. Dessa forma, as interações humanas que perpassam os processos tecnológicos tornam-se elementos fundamentais, pois é a partir delas que emergem possíveis transformações.

Optou-se, neste trabalho, por detalhar as visões de tecnologia como artefato técnico e como artefato sociocultural com o intuito de buscar uma base inicial de entendimento para seus desdobramentos e nuances. Pontua-se, contudo, que não é possível afirmar a existência de apenas duas visões, uma vez que cada nova técnica carrega consigo esquemas imaginários e implicações sociais e culturais variadas, cujos entendimentos e linhas limítrofes podem variar de acordo com cada sujeito, experiência e crença.

A tecnologia como artefato técnico

Ao levantar a categoria de tecnologia como artefato técnico, dialoga-se com a proposta de Miller (2012) acerca dos artefatos tecnômicos, definidos a partir da infraestrutura técnico-econômica da sociedade e cuja utilização se dá de maneira acrítica, com objetivo pragmático de lidar com o ambiente físico que se coloca diante do indivíduo. A alteração desse tipo de artefato se dá de acordo com a disponibilidade de materiais e técnicas para seu desenvolvimento.

Essa visão se interconecta à noção utilitarista dos avanços científicos, partindo de uma tríade divisível das entidades tecnologia, sociedade e cultura, de maneira independente. Nessa divisão, a cultura é vista como uma dinâmica de representações; a sociedade, como o conjunto de seus atores; e a tecnologia, como seus artefatos. Percebe-se a técnica como algo dissociado do ser humano, força autônoma, passível de impactar a cultura e a sociedade, tidas como alvos passivos. Observam-se também julgamentos de valor que permitem que a tecnologia seja responsabilizada pelos resultados de seus usos ( LÉVY, 2014 , 2016 ).

Ao encarar a tecnologia pela ótica do artefato técnico, tende-se ao determinismo tecnológico, ou seja, a buscar explicações objetivas de causa e efeito para questões complexas relacionadas à tecnologia e à sociedade. Nesse cenário, a variável binária presença/ausência das tecnologias torna-se a única responsável pelo resultado de mudança esperado. Sob essa perspectiva, encontra-se a ideologia da neutralidade científico-tecnológica, a partir da qual as inovações são entendidas como entidades autônomas, com efeitos previsíveis ( MACHADO, 2004 ; PISCHETOLA, 2011 , 2015 , 2016 ).

Nesse cenário, ao pensar na relação entre educação e tecnologias digitais, pode-se dizer que há a crença de que

A mera exposição a tecnologias específicas seria capaz de desencadear, em um contexto específico, os processos de crescimento já em curso em outro contexto, adotado como referência. Se aceita, desta forma, uma visão linear de desenvolvimento e de inovação, que assume a tecnologia como expressão de benefício universal. ( PISCHETOLA, 2015 , p. 2).

Sob essa perspectiva, identifica-se a preocupação no âmbito escolar com o quantitativo de máquinas, com a existência de velozes conexões com a internet e com a implantação de laboratórios de informática, presenças elencadas como possivelmente revolucionárias para a educação. A meta passa a ser a de equipar as escolas, sem que se questione o uso desses equipamentos, endossando-se um cenário de soluções homogêneas para questões heterogêneas ( BARRETO, 2012 , 2017 ; MACHADO, 2004 ; PISCHETOLA, 2016 ; SELWYN, 2017 ).

Subjacente a essa visão estariam ideias basilares não só de educação, mas de ciência e de desenvolvimento econômico, como a crença de que a utilização de diferentes tecnologias em sala de aula pode ser feita desassociada dos conteúdos dos problemas estabelecidos, sendo as tecnologias encaradas, independentemente do contexto, como um fator de aceleração de desenvolvimento. Essa concepção acaba por relacionar a educação também à neutralidade e à objetividade, desprezando tanto seus aspectos ideológicos quanto metodológicos ( MACHADO, 2004 ; SELWYN, 2017 ).

Ao considerar a tecnologia digital um artefato técnico e, sob esse viés, relacionar seu uso ao âmbito educacional, pode-se incorrer em julgamentos de valor reducionistas, sendo a tecnologia extremamente apreciada, dadas as suas potencialidades de melhorias no cotidiano social, ou subjugada a uma visão pejorativa, uma vez exaltados os perigos equivocadamente considerados de sua natureza ( PRETTO; PINTO, 2006 ).

A tecnologia como artefato sociocultural

Um dos principais elementos na interpretação da tecnologia como artefato sociocultural diz respeito à ideia de que a evolução e o desenvolvimento dos artefatos não refletem somente uma evolução técnico-econômica, mas também as relações entre os sistemas e os ambientes em que se inserem. Nesse sentido, as alterações de artefatos se tratariam do fruto de aprimoramentos tanto das relações entre indivíduos, grupos, macrossistemas e o ambiente em que se inserem, junto a seus focos de interesse ( MILLER, 2012 ).

A partir dessa visão, os desenvolvimentos tecnológicos são entendidos como intrínsecos aos desdobramentos do ser humano e de suas atuações socioculturais. Encarada dessa forma, a tecnologia extrapola os ideais de vilã ou heroína, traduzindo-se em mais uma das manifestações humanas, e, à medida que altera suas técnicas, também é alterada por elas.

O entendimento de cultura aparece aqui alinhado à percepção de Heinsfeld e Pischetola (2017) , interpretando a cultura como o valor simbólico dado pelas sociedades a determinados objetos, crenças e experiências. Esse valor simbólico se constitui por meio de processos de significação e ressignificação social. Dessa forma, a cultura é tudo aquilo o que se estabelece a partir da ação em sociedade — experiências, produções, interações com outros seres e objetos, crenças e valores —, à medida que tais ações (re)produzam significados e propiciem (res)significações.

A partir dessa interpretação, é possível conceber que, por trás das técnicas, há o social e o cultural, traduzidos em ações e reações ligadas a ideias, projetos, ideologias. Nesse sentido, uma tecnologia não pode ser vista como positiva ou negativa, sequer neutra, visto que só pode ser analisada em seus contextos.

Entende-se, então, a tecnologia como um artefato sociocultural, produto das necessidades humanas, e transformadora dessas próprias necessidades. Nas palavras de Bannell e colaboradores (2016, p. 67).

Tecnologias são, portanto, artefatos culturais, produto das necessidades culturais. Através do desenvolvimento e da implantação de artefatos que encarnam intenções e desejos, os seres humanos obtêm ingerência sobre suas necessidades. Os artefatos se tornam mediadores das relações humanas com o mundo e potencializam as capacidades cognitivas ao atuarem como ferramentas técnicas e psicológicas.

Perceber as tecnologias como cultura significa vê-las muito além da descrição do que são, englobando o porquê são e quais seus usos para, assim, entende-las como objetos e práticas não só materiais e funcionais, mas simbólicos e estéticos, sendo tanto seus significados quanto seus potenciais dados a partir de espaços culturais mais amplos. Sua incorporação ao âmbito escolar passa a dialogar com seu contexto, e aquilo que é considerado primordial com relação à incorporação das tecnologias digitais em sala de aula desloca-se da capacidade técnica e operacional para o engajamento em práticas sociais significativas ( LÉVY, 2016 ; PISCHETOLA, 2016 ; SILVERSTONE, 2014 ).

As visões de tecnologia nas políticas públicas em educação

Neste trabalho, são analisados documentos das políticas públicas em educação em vigência cuja temática se relaciona com a adoção de tecnologias digitais na educação básica, a saber, o Plano Nacional de Educação 2014-2024 (BRASIL, 2014b), a Lei nº 13.005/2014 (BRASIL, 2014a) e o Programa de Inovação Educação Conectada, Decreto nº 9.204/2017 (BRASIL, 2017a).

Entende-se que os discursos não ocorrem em um vácuo social, sendo continuamente orientados por seus contextos interpretativos. Dessa forma, optou-se pela análise crítica do discurso (ACD) como inspiração teórico-metodológica, cujo foco se dá na relação entre a linguagem e o mundo social, investigando a apresentação, a sanção e a crítica da realidade que perpassa os discursos. Sob a ACD, o discurso é uma prática social, compreendida como fruto de articulações de diversos elementos sociais, como ações, relações, objetos e instrumentos, contexto histórico e temporal e os próprios sujeitos sociais, com suas crenças, conhecimentos e valores. Todos esses elementos são relacionados de forma dialética: embora diferentes, não se apresentam de maneira distinta e desconexa, cada um internalizando, de certa forma, aspectos do outro ( BARRETO, 2012 , 2017 ; FAIRCLOUGH, 1989 , 1995 , 2008 ; LUKE, 1995 ; WODAK, 2004 ).

A produção, tratamento e análise dos dados trilhou o seguinte percurso: i) levantamento e seleção de documentos com indicativa relevância para análise, de acordo com o escopo estabelecido; ii) análise crítica do discurso dos textos elencados, tendo como base as percepções de tecnologia já detalhadas: artefato técnico e artefato sociocultural. A partir disso, a trajetória analítica segue conforme as pistas linguísticas identificadas nos documentos. Utilizou-se como ponto de entrada nos textos seus aspectos semânticos, a partir dos implícitos e dos pressupostos que podem ser encontrados como fundação dessas práticas discursivas. Dessa forma, buscou-se destacar os trechos que, embora parecessem transparentes ou neutros à primeira leitura, apresentassem sentidos velados já naturalizados ( BARRETO, 2017 ).

A seguir, destacam-se alguns trechos cujas nuances se mostraram relevantes para essa compreensão. Ressalta-se que os recortes apresentados não contemplam a totalidade dos textos das políticas ou das pistas identificadas.

O Plano Nacional de Educação 2014-2024

O Plano Nacional de Educação 2014-2024 (PNE 2014-2024) (BRASIL, 2014a), instituído pela Lei nº 13.005/2014, é um documento de planejamento do setor educacional que orienta o desenvolvimento das políticas públicas em educação ao longo do decênio. Fruto de intensos debates, é o segundo Plano Nacional de Educação já aprovado por lei no Brasil, sendo referência para a ação pública e atuação do Estado (BRASIL, 2014b).

Ao se analisar as percepções de tecnologia encontradas no documento do PNE 2014-2024 (BRASIL, 2014a), pode-se resumir que as estratégias traçadas no que tange às tecnologias se concentram em algumas frentes:

  • desenvolvimento, seleção, difusão e incorporação de tecnologias pedagógicas e tecnologias educacionais no cotidiano escolar;

  • incentivo à formação continuada docente e à participação dos alunos em cursos de área científico-tecnológicas;

  • informatização de escolas e universalização do acesso à rede mundial de computadores.

Embora haja apontamentos relacionados ao que seriam questões pedagógicas, percebe-se que as tecnologias são retratadas no documento como ferramentas estratégicas para que seja possível alcançar as metas estabelecidas, apresentando maior diálogo com uma percepção de tecnologia mais próxima à de artefato técnico.

Com relação ao desenvolvimento, seleção, difusão e incorporação de tecnologias educacionais e pedagógicas, destacam-se os seguintes trechos:

[...] desenvolver tecnologias pedagógicas que combinem, de maneira articulada, a organização do tempo e das atividades didáticas entre a escola e o ambiente comunitário , considerando as especificidades da educação especial, das escolas do campo e das comunidades indígenas e quilombolas. (BRASIL, 2014a, p. 4, grifo nosso).

[...] selecionar, certificar e divulgar tecnologias educacionais para a alfabetização de crianças , assegurada a diversidade de métodos e propostas pedagógicas, bem como o acompanhamento dos resultados nos sistemas de ensino em que forem aplicadas, devendo ser disponibilizadas, preferencialmente, como recursos educacionais abertos. (BRASIL, 2014a, p. 6, grifo nosso).

[...] fomentar o desenvolvimento de tecnologias educacionais e de práticas pedagógicas inovadoras que assegurem a alfabetização e favoreçam a melhoria do fluxo escolar e a aprendizagem dos (as) alunos (as), consideradas as diversas abordagens metodológicas e sua efetividade. (BRASIL, 2014a, p. 6, grifo nosso).

[...] incentivar o desenvolvimento, selecionar, certificar e divulgar tecnologias educacionais para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio e incentivar práticas pedagógicas inovadoras que assegurem a melhoria do fluxo escolar e a aprendizagem, assegurada a diversidade de métodos e propostas pedagógicas, com preferência para softwares livres e recursos educacionais abertos, bem como o acompanhamento dos resultados nos sistemas de ensino em que forem aplicadas. (BRASIL, 2014a, p. 8, grifo nosso).

Embora possam, à primeira vista, parecer trechos de linguagem transparente, os excertos em destaque dizem respeito a questões mais opacas no discurso. Percebe-se, por exemplo, a existência de uma distinção entre tecnologias pedagógicas e tecnologias educacionais, não clarificada no documento. Infere-se a importância dada ao caráter pedagógico das tecnologias, associado à inovação metodológica, embora em grande parte voltada unicamente para a alfabetização, uma das metas da política. Trata-se de uma interessante preocupação com a maneira como as tecnologias serão inseridas no contexto escolar, porém, limitada àquilo que, porventura, seja considerado como uso pedagógico. Essa limitação abre espaço para interpretações múltiplas, dada a existência de divergência de interpretações do que seriam usos pedagógicos das tecnologias digitais, como pontuado por Heinsfeld e Pischetola (2017) e Pischetola e Heinsfeld (2018) , que destacam a influência dessas divergências nos discursos dos professores da educação básica.

Quanto à frente de estímulo à participação dos jovens nos cursos de áreas tecnológicas, destacam-se aqui dois trechos que indicam uma valorização das carreiras científico-tecnológicas, em detrimento das demais possibilidades formativas:

[...] estimular a participação dos adolescentes nos cursos das áreas tecnológicas e científicas . (BRASIL, 2014a, p. 4, grifo nosso).

[...] implementar programas de capacitação tecnológica da população jovem e adulta, direcionados para os segmentos com baixos níveis de escolarização formal e para os (as) alunos (as) com deficiência, articulando os sistemas de ensino, a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, as universidades, as cooperativas e as associações, por meio de ações de extensão desenvolvidas em centros vocacionais tecnológicos , com tecnologias assistivas que favoreçam a efetiva inclusão social e produtiva dessa população. (BRASIL, 2014a, p. 9, grifo nosso).

Esse tipo de reforço aponta para o favorecimento de estratégias que corroborem certos cenários sociais desejados ( RAMOS; HEINSFELD, 2017 ). Há a valorização daqueles conhecimentos que parecem presidir a produção moderna, enfatizando-se o ideal de tecnologia associada ao desenvolvimento e ao progresso, de maneira utilitarista.

Outro implícito relevante diz respeito ao termo capacitação tecnológica utilizado para se referir aos segmentos com baixos níveis de escolarização formal. O uso do termo capacitação, quando se trata do público jovem e adulto em escolarização, contrasta com as demais ocorrências em contextos similares, que surgem acompanhadas pela palavra formação quando o sujeito são os docentes. Capacitar implica tornar alguém capaz de algo, o que pressupõe sua incapacidade. Associa-se, então, a incapacidade de interagir com as tecnologias digitais aos jovens e adultos que pouco frequentaram instituições de educação formal, muito embora seja de amplo conhecimento o contato que esses sujeitos têm com tais tecnologias em seus cotidianos. Questiona-se, mais uma vez, em que tipos de usos das tecnologias digitais se busca capacitar essa população.

A promoção e o estímulo à formação continuada do corpo docente das escolas, incluindo a formação e aplicação de práticas docentes inovadoras, aparece também como uma das estratégias da política:

[...] promover e estimular a formação inicial e continuada de professores (as) para a alfabetização de crianças, com o conhecimento de novas tecnologias educacionais e práticas pedagógicas inovadoras , estimulando a articulação entre programas de pós-graduação stricto sensu e ações de formação continuada de professores (as) para a alfabetização. (BRASIL, 2014a, p. 6, grifo nosso).

O movimento de formação e atualização docente é bastante desejado quando se parte da perspectiva sociocultural das tecnologias. Contudo, observa-se mais uma vez a restrição desse apoio apenas à alfabetização. Essa delimitação pode ser relacionada a uma perspectiva técnica, em busca de solução ferramental homogênea para dado problema, sob a perspectiva de que basta a formação dos professores para utilizar tais tecnologias específicas para que seja solucionada a questão do analfabetismo. Reforça-se a crença de que, quando os resultados não se mostram satisfatórios, o caminho é o uso mais eficiente dessas tecnologias, incorrendo-se, assim, em uma pedagogia de resultados ( BARRETO, 2017 ), atrelada ao determinismo e a racionalidade instrumental, característicos da percepção da tecnologia como artefato técnico.

Para o alcance da Meta 7 do PNE 2014-2024, que diz respeito ao aumento da qualidade da educação básica, foram elencadas três estratégias com relação ao acesso a equipamentos tecnológicos nas escolas:

[...] universalizar , até o quinto ano de vigência deste PNE , o acesso à rede mundial de computadores em banda larga de alta velocidade e triplicar, até o final da década, a relação computador/aluno (a) nas escolas da rede pública de educação básica, promovendo a utilização pedagógica das tecnologias da informação e da comunicação . (BRASIL, 2014a, p. 8, grifo nosso).

[...] prover equipamentos e recursos tecnológicos digitais para a utilização pedagógica no ambiente escolar a todas as escolas públicas da educação básica , criando, inclusive, mecanismos para implementação das condições necessárias para a universalização das bibliotecas nas instituições educacionais, com acesso a redes digitais de computadores, inclusive a internet. (BRASIL, 2014a, p. 8, grifo nosso).

[...] informatizar integralmente a gestão das escolas públicas e das secretarias de educação dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios , bem como manter programa nacional de formação inicial e continuada para o pessoal técnico das secretarias de educação. (BRASIL, 2014a, p. 8, grifo nosso).

A preocupação com a disponibilização e o acesso a equipamentos nos trechos em destaque é necessária, mas não suficiente para a garantia de apropriação e utilização frutífera dessas tecnologias. Recorrentemente, há a tendência a enxergar a informatização e o acesso aos equipamentos digitais como condição suficiente para garantir quaisquer melhorias no sistema educacional. Trata-se de uma visão reducionista, na qual a mera exposição às tecnologias parece capaz de garantir os resultados desejados. Prioriza-se a disseminação do digital no lugar de sua incorporação nas práticas ( BARRETO, 2012 ; PISCHETOLA, 2011 , 2015 , 2016 ; PRETTO; PINTO, 2006 ).

Em suma, é possível inferir que as tecnologias digitais são retratadas no PNE 2014-2014 (BRASIL, 2014a) como ferramentas para alcançar as metas traçadas, não havendo preocupação com um aprofundamento crítico e reflexivo sobre o papel dessas tecnologias no âmbito escolar. Tem-se a indicação de sua incorporação pedagógica, estratégia reforçada em diversos momentos, sobretudo quanto à alfabetização. Entretanto, não consta no documento uma meta sólida quanto a essa incorporação em toda a educação básica, buscando aproximar a realidade escolar da sociocultural que parece externa aos muros da escola. Nessa política, a compreensão das tecnologias digitais se dá majoritariamente sob a perspectiva de artefato técnico. Prevalece o conhecimento da técnica, em vez da compreensão do sentido.

Programa de Inovação Educação Conectada

Instituído em 23 de novembro de 2017 através do Decreto nº 9.204, o Programa de Inovação Educação Conectada (BRASIL, 2017a) surge como uma das atualizações das políticas públicas voltadas para as tecnologias digitais no âmbito educacional, buscando viabilizar a estratégia 7.15 do PNE 2014-2024 (BRASIL, 2014a), visando conjugar esforços para que sejam garantidas as condições de inserção dessas tecnologias no cotidiano escolar. Tal estratégia consiste em

[...] universalizar , até o quinto ano de vigência deste PNE, o acesso à rede mundial de computadores em banda larga de alta velocidade e triplicar , até o final da década, a relação computador/aluno(a) nas escolas da rede pública de educação básica, promovendo a utilização pedagógica das tecnologias da informação e da comunicação. (BRASIL, 2014a, p. 8, grifo nosso).

O decreto se institui como a mais recente política pública no que tange à temática, sendo complementar às demais políticas até então instituídas.

Ao voltar o olhar para de que maneira a tecnologia é percebida no texto do Programa de Inovação Educação Conectada (BRASIL, 2017a), é possível identificar duas frentes de preocupação maior: a) a garantia de infraestrutura considerada adequada para a expansão do acesso à internet; b) a inserção das tecnologias digitais como ferramentas pedagógicas no contexto escolar.

Retomando a análise do PNE 2014-2024, embora haja preocupação com a prática considerada pelo documento como pedagógica no tocante às tecnologias digitais, a política é instituída em função do acesso e da relação computador/aluno, que aparecem em primeiro lugar no texto. O foco no acesso físico dos dispositivos, no lugar da problematização da relação entre tecnologia e sociedade, representa uma continuidade histórica das políticas públicas na crença de que o acesso, por si só, é capaz de garantir a inclusão, além de reforçar a perspectiva de determinismo tecnológico, viés sob o qual há a ideologia da supremacia científico-tecnológica, sendo as tecnologias vistas como únicas responsáveis pelo desenvolvimento socioeconômico. Assim, são endossadas soluções homogêneas para questões heterogêneas, de distintas naturezas pedagógicas, epistêmicas e metodológicas ( BARRETO, 2012 ; MACHADO, 2004 ; PISCHETOLA, 2011 , 2015 , 2016 ).

A preocupação com a utilização pedagógica das tecnologias, por sua vez, não aparece conjugada a uma descrição daquilo que seria considerado como uso pedagógico. Essa ausência faculta ao leitor intepretações, podendo tanto valorizar as potencialidades de seus diversos usos, incluindo suas relações socioculturais, quanto limitar esse entendimento a práticas já tradicionalmente consolidadas, sem que haja problematização. A constante marcação de expressões como uso pedagógico da tecnologia e tecnologia como ferramenta pedagógica opera de forma a delimitar não somente quais são as tecnologias adequadas para sala de aula, mas quais os usos considerados apropriados. Essa delimitação indica a existência de uma predefinição, ainda que não descrita no documento, de quais usos são compreendidos como passíveis de possibilitar o aprendizado e a produção de novos saberes, independentemente dos contextos de sua aplicação.

Analisando o Decreto nº 9.204/2017, percebe-se que a redação do objetivo elencado no programa se assemelha a da já citada estratégia do PNE 2014-2024 (BRASIL, 2014a):

Art. 1º - Fica instituído o Programa de Inovação Educação Conectada, em consonância com a estratégia 7.15 do Plano Nacional de Educação, aprovado pela Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014, com o objetivo de apoiar a universalização do acesso à internet em alta velocidade e fomentar o uso pedagógico de tecnologias digitais na educação básica. (BRASIL, 2017a).

Além do objetivo estabelecido no decreto, o documento das Diretrizes do Programa (BRASIL, 2017b) acrescenta uma meta, cujo foco se mantém no acesso às tecnologias digitais.

Universalizar o acesso das escolas a ferramentas e plataformas digitais até 2024 e propiciar, já em 2018, acesso à banda larga de qualidade para 22.400 escolas públicas. (BRASIL, 2017b, p. 7, grifo nosso).

Novamente, vale destacar a utilização do termo acesso, uma escolha lexical que designa exterioridade. A opção por essa palavra em um contexto que relaciona tecnologia e educação sugere um deslocamento do processo, minimizando a importância do sujeito nesse cenário, estabelecendo a condição de produto dado, o qual basta ser acessado para que seus frutos possam ser colhidos ( BARRETO, 2017 ; PISCHETOLA, 2016 ).

O Programa de Inovação Educação Conectada visa à conjugação de esforços para “assegurar as condições necessárias para a inserção da tecnologia como ferramenta pedagógica de uso cotidiano nas escolas públicas de educação básica” (BRASIL, 2017a, Art. 2, grifo nosso). O uso da palavra ferramenta, mais uma vez, remonta à percepção da tecnologia como artefato técnico, de maneira acrítica e descontextualizada do cenário sociocultural em que se encontra inserida. Entende-se que as condições necessárias à inserção da tecnologia em âmbito pedagógico dizem respeito, primordialmente, ao acesso aos equipamentos, conforme preconizam os princípios que regem o programa, discriminados no Art. 3º do Decreto (BRASIL, 2017a). Dos nove princípios elencados, um diz respeito à economia e questões de celeridade e eficiência (I), um à colaboração entre entes federados (IV), quatro ao acesso à equipamentos e recursos (II, III, VII e VIII), um à autonomia do aluno (VII) e dois ao professor (V e IX), mostrando esse mesmo enfoque quantitativamente.

Ao longo de todo o texto, figuram majoritariamente aspectos voltados ao acesso, aos equipamentos e àquilo que se compreende como condição para o uso pedagógico da tecnologia, traduzidas em alta velocidade de conexão da internet e na infraestrutura de rede de computadores. Dentre as doze competências do Ministério da Educação dispostas no documento (BRASIL, 2017a), sete possuem relação com infraestrutura, velocidade de conexão, parâmetros e diagnósticos acerca da adequação de equipamentos (I, II, V, VI, VII, XI e XII), enquanto cinco dizem respeito a questões pedagógicas (III, IV, VIII, IX e X).

Contudo, o mesmo cenário não é percebido no que tange às sete ações elencadas como competentes ao programa, discriminadas no Art. 4º do decreto. Das sete ações, três dizem respeito ao apoio técnico e de infraestrutura (I, II e V), enquanto quatro se relacionam com a formação de professores e com o desenvolvimento de recursos pedagógicos digitais (III, IV, VI e VII).

A inversão das prioridades das ações, favorecendo, ao menos quantitativamente, as questões pedagógicas, aponta para um movimento de ressignificação das percepções acerca das tecnologias digitais e suas potencialidades, englobando os aspectos socioculturais inerentes a suas possíveis aplicações. Não obstante, destaca-se, mais uma vez, o uso da palavra ferramenta, caracterizando a aplicação das tecnologias no contexto pedagógico. O uso desse termo, como já detalhado, identifica a percepção da tecnologia como artefato técnico, traduzida em um uso definido a partir da estrutura técnico-econômica disponível, de maneira acrítica, visando à solução direta de um problema de ordem pragmática ( MILLER, 2012 ).

Indo além na investigação, torna-se ao documento das Diretrizes do Programa (BRASIL, 2017b), que busca esclarecer algumas questões relacionadas ao decreto. Dentre elas, consta a listagem das quatro dimensões sob as quais o programa deve ser implementado, a saber: a) visão; b) formação; c) recursos educacionais digitais; d) infraestrutura.

Com relação à visão do programa, consta no texto das diretrizes:

A dimensão de Visão é orientadora do Programa e deve estimular nos estados e municípios o planejamento da inovação e tecnologia como elementos transformadores da educação , promovendo valores como: qualidade, contemporaneidade, melhoria de gestão e equidade, na Dimensão de Visão. (BRASIL, 2017b, p. 9, grifo nosso).

No trecho, há a descrição da visão da tecnologia como transformadora da educação. Além de relação estreita com uma visão determinística, há o deslocamento da tecnologia para o sujeito da ação na formulação: a tecnologia que é capaz de transformar a educação, no lugar da relação entre os usos feitos pelos atores do processo de ensino e aprendizagem e sua relação com sua sociedade e cultura. Incide-se, assim, não somente no esvaziamento da atuação desses atores, quanto na simplificação e no reducionismo dos processos formativos ( BARRETO, 2017 ).

A incorporação dessa visão como uma das dimensões basilares da política indica que as formações pretendidas aos professores e demais articuladores do programa estarão sob essa perspectiva, conforme ilustra outro trecho do texto das diretrizes sobre a formação continuada dos articuladores do programa, que indica que o curso de formação docente terá como base as dimensões “visão, formação, recursos educacionais e infraestrutura” e temas sobre o uso da tecnologia para fins pedagógicos nas escolas (BRASIL, 2017b, p. 12).

Embora haja a indicação da publicação de referenciais para o que se compreende como uso pedagógico, conforme Art. 4º do documento, essa proposta pode assumir caminhos divergentes: um de orientação e formação crítica sobre o processo de ensino e aprendizagem mediado pelas tecnologias digitais; outro, de restrição daquilo que se considera como uso aceitável e válido dessas tecnologias no contexto escolar. Salienta-se que, para que haja ressignificação e compreensão das tecnologias digitais como artefatos socioculturais, é necessário não só que essa perspectiva conste nos textos das políticas, mas que também professores e estudantes as compreendam assim.

O Art. 14º do Decreto (BRASIL, 2017a) especifica que a incorporação do uso das tecnologias digitais à prática docente é de responsabilidade de cada escola e deve dialogar com cada projeto político pedagógico, valorizando e garantindo a autonomia das instituições e de seus docentes.

Ainda que tal medida garanta a autonomia para cada escola adequar a demanda à sua realidade, possibilita também que cada instituição traga as mais diversas interpretações sobre o papel da tecnologia. Trata-se de uma faca de dois gumes. A ausência de definições e orientações a priori acerca do que se entende nessa política como uso pedagógico das tecnologias responsabiliza cada escola por essas ações. Por outro lado, a intenção de publicação futura de referenciais indica a existência de uma delimitação pré-definida de quais seriam esses usos, tidos como plausíveis e passíveis de aproveitamento no âmbito escolar, podendo cercear demais usos feitos cotidianamente pelos sujeitos.

Ademais, o texto do decreto clarifica como essa política deve ser encarada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, com ênfase em tratar-se de uma política de ampliação da infraestrutura de telecomunicações e inclusão digital, delimitação que encerra, por si só, a iniciativa da política no âmbito ferramental, como disposto no Art. 11º (BRASIL, 2017a).

Há, assim, o predomínio da percepção das tecnologias digitais como artefatos técnicos. Não são percebidas no texto do decreto menções diretas ou indiretas aos aspectos socioculturais que envolvem o desenvolvimento e os usos das tecnologias digitais, seja no âmbito do mundo do trabalho ou dos estudos.

Considerações finais

No panorama sociocultural global, fortemente implicado por mudanças político-econômicas decorrentes das transformações propiciadas por uma nova ecologia midiática, torna imprescindível que a escola não tanto acrescente competências operacionais ou busque preparar os jovens para as demandas técnicas do mundo do trabalho, mas redefina sua perspectiva pedagógica a partir dos valores da participação cidadã nessa sociedade.

Nesta pesquisa, buscou-se analisar e compreender as percepções de tecnologia que permeiam os discursos das políticas públicas em educação. Pode-se resumir que as perspectivas críticas, interpretando as tecnologias como artefatos socioculturais, aparecem ofuscadas pela preocupação com métricas quantitativas de acesso, em conjunto com o que se entende por uso pedagógico dessas tecnologias, restringindo aquilo que se considera como apropriado no âmbito educacional.

No documento do PNE 2014-2024 (BRASIL, 2014a), é possível notar que elas são retratadas, majoritariamente, como ferramentas estratégicas para alcançar as metas traçadas para o programa, não havendo preocupação geral com um aprofundamento crítico e reflexivo sobre seu papel. Isso ocorre dada a tendência de se interpretar informatização e acesso a equipamentos digitais como condição suficiente para garantir melhorias no sistema educacional.

Com relação ao Programa de Inovação Educação Conectada (BRASIL, 2017a), destaca-se a tentativa de mensurar as nuances acerca do que significa inovar pedagogicamente e o uso pedagógico das tecnologias digitais. Tais tentativas reduzem o processo de ensino e aprendizagem ao seu aspecto quantitativo, tendo como objeto a ser mensurado as dimensões externas e observáveis das complexas relações sociais no contexto escolar. Ressalta-se a indicação de publicação de referenciais para definir o que se considera como uso pedagógico das tecnologias. Como já enfatizado, é possível olhar para essa proposta de publicação sob duas óticas antagônicas: como uma proposta de orientação e incentivo à análise crítica feita pelos profissionais envolvidos no processo de ensino e aprendizagem ou como uma possibilidade de restrição daquilo que se interpreta como uso aceitável e desejável dessas tecnologias no contexto escolar.

A marcação explícita do programa como uma iniciativa no âmbito das políticas de ampliação de infraestrutura de telecomunicações se mostra de grande relevância para a compreensão dessa percepção. Embora haja, em dado momento do texto, um favorecimento das questões pedagógicas, o que aponta para um movimento de ressignificação das tecnologias digitais e suas potencialidades, há o predomínio da percepção das tecnologias digitais como artefatos técnicos, ferramentas. Não são percebidas no texto da política menções aos aspectos socioculturais que envolvem o desenvolvimento e a aplicação das tecnologias digitais no contexto educacional ou mesmo no âmbito do mundo do trabalho. Assim, a incorporação das tecnologias digitais nessas políticas “[...] não têm significado a abertura de possibilidades, no plural, mas a padronização dos elementos constitutivos do processo pedagógico” ( BARRETO, 2017 , p. 136).

Importa salientar que há em ambos os textos alguma preocupação com a participação da escola, dos alunos e dos professores nesse novo cenário social. Contudo, tecnicista e utilitária: focada em equipar as escolas com o aparato tecnológico, habilitar tecnicamente os jovens para o mundo do trabalho, e promover o uso e o consumo de conteúdos digitais educacionais. As políticas são descontextualizas do cotidiano de alunos e professores e de sua relação rotineira com tais tecnologias.

Retoma-se a capacidade reguladora e classificatória dos discursos institucionalizados. Como já destacado, sob essa perspectiva, os discursos cotidianos podem definir representações sociais, atuando para que pareçam naturalizadas, senso comum ( LUKE, 1995 ; WODAK, 2004 ). A presença exígua de apontamentos potenciais para a direção sociocultural indica a naturalização da tecnologia como responsável pelo alcance dos resultados esperados, como uma entidade dissociada de suas relações com os atores envolvidos no processo educacional ( LÉVY, 2014 , 2016 ; MACHADO, 2004 ; PISCHETOLA, 2011 , 2015 , 2016 ).

Traz-se a questão da mercantilização e do empresariamento das políticas educacionais como possível explicação para a disputa de espaço entre as percepções de tecnologia encontradas nos textos. A presença de vários órgãos no momento de formulação dessas políticas aponta para uma disputa ideológica, que ultrapassa aquilo que está expresso em suas materialidades textuais. Desse jogo ideológico deriva o modelo educacional descrito nos documentos, que naturaliza determinados aspectos sociais que extrapolam sua natureza discursiva e dialogam com questões de cunho econômico e mercadológico, como a supervalorização de carreiras científico-tecnológicas, de avaliações padronizadas, da formação profissional e do próprio papel da tecnologia, muitas vezes apresentada como o sujeito da ação educativa.

Urge a compreensão da tecnologia como um artefato sociocultural. A ideia de que há soluções homogêneas, adequadas a todo tipo de contexto é tão falaciosa quanto a noção de que a mera existência das tecnologias digitais no cotidiano escolar é capaz de, automática e autonomamente, potencializar experiências educacionais. O resultado das ondas de inovações tecnológicas prestes a salvar a educação nos últimos cinquenta anos parecem apontar para o mesmo desenlace: do rádio ao cinema, do VHS ao DVD, dos laboratórios de informática aos smartphones , a educação se mostrou amplamente não transformada e não disruptiva. Isso porque as tecnologias, sozinhas, não são capazes de dar conta de questões tão complexas quanto as que afligem a educação. Por trás de cada não transformação e não disrupção estão implicadas distintas concepções pedagógicas, epistêmicas e ideológicas, relacionadas a cada contexto histórico-social, sobre as quais cabem investigações críticas.

Certamente, equipar as escolas com recursos tecnológicos auxilia no trabalho sistemático de incorporação das tecnologias digitais nas práticas docentes. No entanto, a discrepância entre a relevância dada para a garantia do acesso a esses equipamentos e as demais nuances discriminadas, como a formação docente, aponta para uma desvalorização das práticas. Cabe lembrar que a pedra angular ideológica do pensamento determinista, nesse cenário, é a ideia de que a tecnologia é autônoma, capaz de estabelecer-se por si só, e que a mera exposição às tecnologias seria capaz de desencadear os efeitos esperados. Mais do que isso, como se pôde observar nos documentos, os efeitos que se esperam comumente enfatizam o caráter instrumental da tecnologia, sendo esse o ponto nevrálgico entrevisto neste trabalho.

Referências

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Recebido: 25 de Junho de 2018; Aceito: 10 de Setembro de 2018

Bruna Damiana Heinsfeld é mestre em educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC Rio), especialista em planejamento, implementação e gestão da EaD pela Universidade Federal Fluminense (UFF). É integrante do grupo de pesquisa Formação Docente e Tecnologias (ForTec/PUC-Rio).

Magda Pischetola é professora adjunta no Departamento de Educação, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC Rio). É coordenadora do grupo de pesquisa Formação Docente e Tecnologias (ForTec/PUC-Rio).

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