SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.45Percepções de professores da Educação Básica sobre as teorias do currículoAnálisis de textos argumentativos elaborados por estudiantes chilenos de pedagogía índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Educação e Pesquisa

versión impresa ISSN 1517-9702versión On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.45  São Paulo  2019  Epub 10-Sep-2019

https://doi.org/10.1590/s1678-4634201945200235 

Artigos

Os movimentos das professoras da educação básica na constituição das políticas de gênero na escola

Erineusa Maria da Silva1 
http://orcid.org/0000-0002-8736-6739

Eliza Bartolozzi Ferreira1 
http://orcid.org/0000-0002-4100-9875

1-Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil. Contatos: erineusams@yahoo.com.br; eliza.bartolozzi@gmail.com.


Resumo

Este artigo tem por objetivo compreender os movimentos das professoras de educação básica do estado do Espírito Santo na constituição das políticas de gênero para a educação e também o seu exercício de implantação no interior das escolas. O objeto de estudo é a natureza das ações que podem ser observadas no exercício da ação pedagógica das professoras e no modo de organizar o trabalho docente. Apresenta-se a hipótese central de que, mesmo diante das diversas possibilidades de contenções (precarização das condições de trabalho, cultura patriarcal, organização fragmentada do trabalho docente etc.), as professoras têm realizado ações pedagógicas que buscam desnaturalizar as dissimetrias e as hierarquizações no campo das relações de gênero. A tese é que as ações pedagógicas das professoras indicam a existência de um movimento pedagógico de gênero em curso nas escolas. A pesquisa qualiquantitativa, com professoras que participaram do curso Gênero e Diversidade na Escola (GDE) nos anos de 2011-2012 e 2013-2014, valeu-se de dados recolhidos por meio de um survey e de grupos focais realizados em 15 municípios onde o curso foi ofertado. Apoia-se teórico-metodologicamente nos estudos da sociologia da ação, em especial, nos conceitos de habitus e habitus de gênero . Conclui-se que o avanço das políticas públicas no período de 2003 a 2016 e o agir das professoras, seja de forma otimista-articulada, seja silenciosa-individual, indicam estar ocorrendo um movimento pedagógico de gênero nas escolas que, apesar de emergir de uma empatia dessas professoras em relação ao tema, foi potencializado pela política pública GDE.

Palavras-Chave: Política educacional; Estudos de gênero e educação; Política de gênero; Movimento pedagógico de gênero

Abstract

This article aims to understand the movements of basic education teachers in the state of Espírito Santo, Brazil, in the constitution of gender policies for education and its deployment exercise at schools. The object of the study is to analyze the nature of actions that can be observed in the teacher’s course of pedagogical action and in the way of organizing the teaching work. It presents the central hypothesis that, even in the face of various contentions possibilities (e.g. precariousness of working conditions, patriarchal culture, fragmented organization of the teaching work etc.), teachers have conducted educational actions that seek to denaturalize the asymmetries and hierarchies in the field of gender relations. The thesis is that the teachers’ pedagogical actions indicate the existence of a gender pedagogical movement in progress at schools. This is a qualitative and quantitative research carried out with teachers who attended the course Gênero e Diversidade na Escola ( GDE, Gender and Diversity at School ) between 2011-2012 and 2013-2014, using data collected through a survey and focus groups conducted in 15 cities where the course was offered. The studies on the sociology of action were the theoretical-methodological basis for this investigation, in particular regarding the concepts of habitus and gender habitus . We concluded that the advancement of public policies from 2003 to 2016 and the action of teachers, either in a optimistically-articulated or silent-individual way, indicate the occurrence of a gender pedagogical movement at schools that, despite emerging from an empathy of those teachers concerning the theme, was potentiated by the GDE public policy.

Key words: Educational policy; Gender studies and education; Gender policy; Gender pedagogical movement

Introdução

Este texto tem como objeto de estudo as ações das professoras 3 de educação básica em face da produção e da implementação das políticas públicas de gênero para a educação no estado do Espírito Santo. Trata-se de uma investigação realizada em nível de doutoramento sobre a natureza da ação pedagógica das professoras e sua organização do trabalho no exercício das políticas de gênero. O objetivo geral da pesquisa foi analisar os movimentos das professoras na constituição das políticas de gênero em seu exercício de implantação no interior das escolas de educação básica.

Neste texto, será trabalhada parte dos dados coletados no âmbito da pesquisa, especificamente aqueles coletados entre professoras das redes públicas de ensino do Espírito Santo que fizeram o curso Gênero e Diversidade na Escola (GDE). O GDE foi criado no âmbito do Governo Federal, com o objetivo de promover, por meio de cursos semipresenciais, a cultura do respeito e a garantia de direitos humanos, da equidade etnicorracial e de gênero, da valorização da diversidade. Foi uma política pública de grande impacto e duração em todo o Brasil ( VIANNA; UNBEHAUM, 2016 ), que se configurou em uma importante política de gênero para a educação do Espírito Santo, por sua capilaridade, atingindo professoras de todas as regiões do estado.

A constituição desta pesquisa se deu, entre outras questões, pela compreensão de que estava ocorrendo no Brasil um impulsionamento de ordem político-educacional relativo às questões de gênero para a educação. Esse impulso, a nosso ver, era potencializado principalmente pelas políticas efetivadas nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011) e de Dilma Roussef (2011-2016) a partir da criação de mecanismos institucionais como, por exemplo, a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) e a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi), que ampliaram significativamente as políticas públicas de gênero para a educação no país.

A pesquisa, realizada com o apoio do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas Educacionais (NEPE), justificou-se pela necessidade de desenvolvimento de estudos científicos que revelem os caminhos/descaminhos perpassados pelas políticas de gênero a partir de uma importante instituição social, que é a educação escolar, e de suas trabalhadoras. Ademais, o caso do Espírito Santo é muito especial e merece estudos, visto que apresenta estatísticas muito alarmantes sobre a realidade das mulheres, sobretudo aquelas das classes populares e negras. Esse estado transita nas estatísticas nacionais entre os primeiros que mais praticam violência doméstica em relação aos outros entes federativos do país, segundo dados da Unesco e da Flacso. 4

Além disso, a necessidade de estudos nesse campo é adensada pela retomada das forças sociais conservadoras no Brasil que, de forma mais intensa a partir de 2014, têm se organizado contra o que passou a ser chamado de ideologia de gênero . Essas forças, expressas por alas conservadoras católicas e neopentecostais, por meio de seus líderes religiosos e líderes parlamentares representantes na Câmara e no Senado, afirmam estar ocorrendo “uma conspiração internacional que quer ‘perverter’ as crianças, ensiná-las a ser gays e destruir a família dita tradicional” ( CNBB, 2015 , p. 1). Sob essa alegação, passamos a conviver, em nível nacional, com o ataque a uma suposta ideologia de gênero que afirmam estar presente no Plano Nacional de Educação e nos Planos Estaduais e Municipais de Educação. Apesar das resistências em todos os âmbitos da federação, observamos a retirada dos termos gênero e sexualidade dos planos de forma a minar esse importante instrumento orientador da política educacional do país.

Nossa pesquisa parte do princípio de que as políticas de gênero pensadas na escola e para a escola devem, pedagogicamente, reflexionar sobre princípios de liberdade, igualdade e solidariedade, com respeito às diferenças. Nesse caminho, as iniciativas do Governo Federal e Estadual, nos últimos 13 anos (de 2003 a 2016), como instâncias formuladoras das políticas nacionais e estaduais de educação, em especial as de gênero, foram tomadas como movimento relacional das demandas e ações das professoras nas escolas do Espírito Santo. Dito de outra maneira, entendemos que as atrizes (as professoras) influenciaram a elaboração e foram influenciadas em suas ações pedagógicas quando da implantação das políticas públicas de gênero.

Essa influência recíproca se dá por meio de ações que se organizam, sobretudo, por afinidades políticas e ideológicas. Esta pesquisa procura conhecer essas ações, especificamente aquelas que podem ser observadas no exercício pedagógico das professoras e, também, no modo de organizar o trabalho docente.

As ações pedagógicas são compreendidas como aquelas que são levadas a efeito por docentes nas escolas e que não se vinculam apenas à formação e a experiências no trabalho, mas também são constituídas pela história de vida. De maneira que, entre o conhecimento das professoras e a intervenção propriamente dita, há um planejamento mediado por uma série de tensões. A ação é gerada na/pela relação dialética entre a compreensão e a intervenção ( GIMENO SACRISTÁN; PÉREZ GÓMEZ, 1998 ). Mediação feita principalmente pelas questões objetivas da vida, mas também pela cultura ou pelo capital cultural ( BOURDIEU, 2005 ) das professoras.

Nesse sentido, a ação pedagógica é um processo formativo e de autoformação historicamente constituído, inclusive pelo próprio trabalho feminizado e pela profissão docente. Assim, as ações pedagógicas têm potencial de produzir movimentos, pois se vinculam às práticas sociais – aí incluídos os movimentos sociais –, que são fontes geradoras de saberes e de inovação ( GOHN, 2011 ). Nesse contexto, nosso olhar se direciona a perceber as tensões que se estabelecem nas ações das professoras, especificamente no que dizem ser suas práticas pedagógicas de gênero nas escolas.

A hipótese central que orienta nossos estudos é que, mesmo diante das diversas possibilidades de contenções (precarização das condições de trabalho, cultura patriarcal, 5 organização fragmentada do trabalho docente etc.), as professoras têm realizado ações pedagógicas que buscam desnaturalizar as dissimetrias e as hierarquizações no campo das relações de gênero. Tais ações indicam a existência de deslocamentos na forma de agir das professoras em relação às desigualdades de gênero nas escolas e na sociedade. As ações das professoras, comumente percebidas como permanências, tendo em vista a existência de correlações de forças sociais conservadoras no campo das políticas de gênero para a educação, parecem sofrer alterações. Nossa tese é que as ações pedagógicas das professoras indicam a existência de um movimento pedagógico de gênero em curso nas escolas. E, ainda, a hipótese de que esse movimento pedagógico de gênero foi potencializado pelas políticas de gênero para a educação implementadas nos últimos 13 anos pelo Governo Federal nas gestões de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011) e de Dilma Vana Roussef (2011-2016).

Este texto está organizado em duas seções, além desta introdução e das considerações finais. A primeira seção aborda sobre a adoção da sociologia da ação como base teórico-metodológica e das noções de habitus e habitus de gênero. Na segunda seção, analisamos os dados coletados no survey e nos grupos focais, especificamente sobre o que as professoras afirmam realizar em suas ações pedagógicas de gênero e os sentidos coletivos incorporados que provocam vazamentos no habitus de gênero constituído no campo da educação.

Caminhos teórico-metodológicos: importantes tensões entre os conceitos de habitus e de habitus de gênero

Na condução teórico-metodológica da pesquisa e nas análises dos dados, adotamos como base alguns estudos da Sociologia da Educação. Especificamente, o trabalho de Pierre Bourdieu (1996 , 1997 , 2002 , 2005 ) contribuiu para a reflexão sobre as permanências e contenções, tendo em vista a tendência de o agente produzir práticas objetivamente ajustadas às estruturas, o habitus . A obra de Bourdieu contribuiu também para refletir sobre o campo educacional como um espaço de jogo de estratégias no qual os agentes lutam, criam e recriam a partir de uma margem de manobra existente no campo. O conceito de margem de manobra de Bourdieu e a perspectiva de que o habitus é uma tendência, e não uma determinação, colocam acento na tensão como um importante mecanismo para dar visibilidade aos fenômenos como complementares e não como polares e binares.

A partir dessa ideia, na análise dos dados da pesquisa, observamos a existência de uma complementariedade entre o que chamamos de cunhagens e vazamentos. A cunhagem vem do termo cunhar6 e significa marcar , evidenciar , estampar (em moedas, por exemplo), mas, ao mesmo tempo, carrega dentro de si a possibilidade da criação e da invenção. É nessa fissura que vemos a possibilidade de criação e de recriação, o que chamamos de vazamentos , que significa aquilo que não se consegue controlar, as incertezas produzidas pelo simples fato do agir. Compreendemos que há sempre uma fissura por meio da qual os/as agentes podem se movimentar.

Nessa lógica, quando falamos em cunhagem, estamos indicando as permanências constituídas pelo habitus ( BOURDIEU, 1996 , 2002 , 2005 ), entendendo-as como uma tendência. Assim, as ações das professoras estão vinculadas às disposições por elas incorporadas e que funcionam como um sistema que gera estratégias quanto ao sentir, ao pensar e ao agir. Em contrapartida, há as margens de manobra, pois há possibilidades de as professoras produzirem vazamentos, resistirem, abrirem novos caminhos e também estabelecerem novas cunhagens pela força de sua ação.

No sentido de buscar os possíveis vazamentos, tensionamos o habitus em Bourdieu (1996 , 2002 , 2005 ) pela adoção do conceito de gênero. Concebemos gênero como significado social e político historicamente atribuído ao sexo de um ser humano e capaz de evidenciar as dissimetrias que se apresentam nos mais diferentes espaços ( SCOTT, 1995 ). Como tal, está presente em todas as práticas sociais dos humanos (docência, militância sindical, relação familiar etc.), compondo, com as relações de classe e as relações étnico-raciais, uma alquimia estruturante da sociedade ( YANNOULAS, 2013 ). Ademais, o conceito de gênero é visto como uma categoria de análise relacional que questiona os binarismos que facultam lugares fixos e naturalizados para os gêneros. Nesse sentido, as análises sociológicas, em especial no campo educacional feminizado, não podem prescindir de um recorte de gênero, pois esta se coloca como uma categoria importante de análise das relações e práticas sociais exercitadas no campo educacional e, portanto, nas ações pedagógicas que caracterizam o trabalho docente.

Esse tensionamento da categoria habitus pelo conceito de gênero direcionou-nos ao conceito de habitus de gênero ( McNAY, 1999 ; McLEOD, 2005 ; ALMEIDA, 1997 ; RAMIRES NETO, 2006 ; SETTON; VIANNA, 2014 ), que possibilita compreender melhor as ações das professoras como práticas atravessadas também pelas disposições de gênero interiorizadas. A incorporação de um habitus de gênero incide sobre a formação das professoras, individual e coletivamente, (in)formando suas ações pedagógicas.

Além das referências teóricas citadas, os estudos de Alan Touraine (1994 , 1998 , 2011 ) trouxeram significativas contribuições à pesquisa no que diz respeito, entre outras questões, a perceber a possibilidade de as professoras se tornarem atrizes. Nesse processo de tornarem-se atrizes, as professoras incorporam ações com potencial pedagógico para produzir o que denominamos movimento pedagógico de gênero.

O autor acrescenta que os pensamentos e as ações das mulheres devem ser considerados no seu alcance histórico, e não mais como um processo de formação da personalidade individual. Touraine (1994 , 2011 ) fala de um ator/atriz combatente, engajado/a e crítico/a, sem buscar traçar para eles/elas um estatuto de pleno construtor/a da realidade, pois ora suas potencialidades estão afloradas, ora são maleáveis e flexíveis, mas um/a ator/atriz está sempre inserido/a nas articulações sociais e com capacidade de transformar o espírito do tempo de nossas sociedades.

Procedimentos da pesquisa

Para responder aos objetivos da pesquisa, optamos por recolher dados por meio de um survey enviado aos 581 participantes do curso GDE ofertado pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), nos anos de 2011-2012 e 2013-2014. Desse total de participantes, 126 professoras responderam ao survey . Realizamos também 14 grupos focais nos municípios-polo que ofertaram o curso GDE e um no município de Itarana. 7 As análises dos dados do survey foram realizadas pelo software Statistical Package for Social Science for Windows (SPSS). Por sua vez, as análises dos grupos focais foram feitas com base em elementos da análise de conteúdos ( BARDIN, 2008 ), principalmente quanto às ações e posturas das professoras que se mostraram recorrentes e que evidenciaram algumas diferenças entre si.

Para resguardar a identidade 8 das pessoas que participaram dos grupos focais e garantir o anonimato das suas falas, optamos por dar nomes de flores às participantes, porque, nesse processo, sentimo-nos como o jardineiro de Carlos Drummond de Andrade (1985) na poesia Maneira de amar , que “conversava com as flores, e elas se habituaram ao diálogo [...] contando coisas a uma cravina ou escutando o que lhe confiava um gerânio”.

A análise de conteúdos foi adotada como possibilidade de interpretação dos dados a partir da discussão, da interligação e da correlação dos dados, seja por apresentação simples dos dados do survey , seja por sua correlação com a categorização dos dados do grupo focal.

Os movimentos das professoras e o habitus de gênero nas escolas: o que as ações das professoras anunciam?

Conforme anteriormente destacado, nossa primeira escuta para compreender as ações das professoras foi por meio do survey . Em uma questão na qual as respondentes poderiam apontar até três variáveis como resposta, perguntamos sobre as ações relacionadas com gênero e diversidade sexual que as professoras realizaram na escola após a conclusão do curso GDE. Do total de respondentes, 78% afirmaram realizar alguma ação e 22% não desenvolveram atividades com a temática gênero.

Esses dados foram confirmados nos grupos focais. No entanto, nesse procedimento, um percentual maior de professoras afirmou realizar ações (e as descreveu) no cotidiano de suas aulas. Isso talvez tenha ocorrido pelo diálogo com o grupo possibilitado pela técnica do grupo focal. Das 56 participantes do grupo focal, 47 professoras (83,93%) disseram realizar ações de gênero 9 nas escolas. Dessas pessoas, apenas duas não apresentaram exemplos de como realizaram essas ações. Do total de participantes dos grupos focais, somente três disseram não ter realizado ação depois do curso GDE e quatro não abordaram a questão. Percebemos em nossa pesquisa que algo está acontecendo de diferente nas escolas e precisamos apreender esse processo.

Nesse sentido, buscamos identificar as práticas que as professoras afirmam realizar, reconhecidas na pesquisa como ações pedagógicas de gênero que trazem o sentido coletivo de transformação e explicitam como exercem influência nas condutas escolares e, consequentemente, contribuem para transformar o espírito do tempo de nossas sociedades ( TOURAINE, 2011 ) e provocar vazamentos no habitus de gênero ( McNAY, 1999 ; McLEOD, 2005 ; ALMEIDA, 1997 ; RAMIRES NETO, 2006 ; SETTON; VIANNA, 2014 ).

Consideramos que o campo educacional e, mais precisamente, as ações realizadas nas escolas são fundamentais nesse processo. Assim, buscamos compreender também o quanto essas ações são percebidas e relacionadas com a existência de políticas públicas de gênero e com movimentos sociais de mulheres e feministas.

Ao cruzar os diálogos que as professoras realizaram por meio dos grupos focais e as respostas obtidas pelo survey , identificamos pelo menos três características mais presentes nas suas ações. Organizamos essas características como unidades de agrupamento de dados denominadas de otimista-articulada, silenciosa-individual e pessimista-impotente. Entendemos essas características de forma relacional, portanto não essencializada. Assim, é possível constatarmos, às vezes, a presença das características otimista-articulada e silenciosa-individual em uma mesma ação realizada, ou das características silenciosa-individual e pessimista-impotente. As características organizadas em unidades de agrupamento de dados são um recurso teórico-analítico utilizado para melhor compreensão da realidade empírica estudada, portanto não permitem fazer generalizações para todas as professoras do estado do Espírito Santo. O uso desse recurso não teve a intenção de esgotar todas as possibilidades de interpretações da realidade empírica estudada sobre cada unidade de agrupamento.

Ação otimista-articulista: produzindo vazamentos e resistindo às cunhagens de gênero

As professoras que assumem uma ação otimista-articulista são aquelas que acreditam que sua ação provoca mudanças sobre a realidade; acreditam que assumir uma autorresponsabilidade e uma responsabilidade compartilhada e coletiva sobre os fatos pode gerar transformações sociais de gênero. As professoras entendem a importância da articulação com outras professoras, com movimentos sociais, com instituições, com a comunidade escolar, entre outros atores sociais, como uma possibilidade de construção mais democrática e ampliada dessas ações. Nesse sentido, buscam realizar ações articuladas, apesar das dificuldades que isso representa diante da atual organização do trabalho docente, que, na maioria das vezes, não possibilita o tempo necessário para o planejamento coletivo ou a realização de formação pedagógica continuada em gênero.

Entre as participantes dos grupos focais, identificamos 26 (46,43%) professoras que apresentam de forma mais emblemática essas características. No survey , essa identificação ficou mais difusa pelo fato de o instrumento ser fechado, mas consideramos as seguintes respostas 10 como constituintes dessa unidade de agrupamento de dados: 26,8% afirmaram ter realizado planejamento e implementação de projetos, de forma coletiva, sobre a temática gênero; 18,1% disseram ter realizado planejamento e implementação de projetos extraclasse; e 9,4% afirmaram ter realizado projetos individuais ou coletivos 11 que foram parcialmente implementados. Finalmente, 3,9% informaram ter criado grupos de estudo. Entendemos que o fato de terem realizado ação coletiva e de forma articulada com diversos atores/atrizes demarca a aproximação com essa unidade de agrupamento de dados.

Nesse tipo de ação, entendemos que a indicação de realização das atividades de gênero nas escolas é, em si, um vazamento ao habitus de gênero, visto que esse era um tema muito pouco debatido nas escolas há poucos anos, antes da virada do século XXI.

Os dados da pesquisa indicam que a empatia das professoras ( RIZZATO, 2013 ) com as questões de gênero, vividas pessoalmente ou no âmbito profissional com seus/suas estudantes, é um fator significativo no estímulo à realização de ações que provocam vazamentos no habitus de gênero. Entretanto, não há evidência de uma relação significativa entre o fato de a professora já se preocupar com a questão de gênero antes de ter realizado o GDE e a implementação de ações de gênero na escola.

As professoras, inclusive aquelas que já se preocupavam com as questões de gênero antes de realizar o GDE, afirmaram que os cursos de formação, como GDE, GPP-GR, EDC, entre outros, oriundos das políticas públicas federais, estaduais e municipais, foram fundamentais para que suas ações fossem mais bem qualificadas.

É interessante destacar que, em suas respostas ao grupo focal, quando questionadas sobre as alterações provocadas pelo GDE, das 56 participantes do grupo focal, 52 (92,85%) afirmaram que se sentem mais fortalecidas, pessoal e profissionalmente, depois da realização do curso e duas não abordaram a questão. Quando perguntadas que mudanças que puderam notar depois de realizarem o curso GDE, as professoras (71,43%) 12 indicaram mudança na forma de olhar e tratar as diferenças na escola, na reflexão mais profunda sobre as questões de gênero, no tratamento do currículo etc. A professora Mimosa, por exemplo, disse que, “depois do curso, a gente começa a ver as coisas de outra forma” (depoimento de participante da pesquisa, 2016).

As professoras indicaram também mudanças percebidas sobre as atitudes e ações de seus estudantes: na maneira de falar de meninos e meninas; no tratamento mais respeitoso entre estudantes de sexos diferentes; no empoderamento e na organização política dos/as estudantes por meio da formação de movimentos de meninas/mulheres e meninas/mulheres negras, de LGBTI dentro da escola, entre outras.

Nessa produção de vazamentos no habitus de gênero, além dos cursos citados que acreditamos ter colaborado para a formação docente em gênero, é importante destacar a influência do crescimento das discussões de gênero nas universidades, fomentadas em grande medida pelos grupos de estudos e pesquisas em gênero e sexualidade. Em sua tese de doutorado, Unbehaum (2014) aponta um crescimento no número de grupos de pesquisas, na área da educação, que foram registrados no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq a partir de 1992, quando esse Diretório foi criado. Em 1993, o CNPq contava com 201 grupos de pesquisa e, em 2010, já eram 2.236 grupos. Esse movimento acadêmico-científico, além de demonstrar um aumento de grupos na área da educação, expressa também o crescimento dos grupos que pesquisam gênero.

Esse crescimento na institucionalização dos grupos influencia e é influenciado pelas políticas, o que demonstra a consolidação do campo de estudos de gênero. Os debates nas universidades acabam perpassando a formação docente para além da inicial, como as formações ofertadas pelos municípios e estados por ocorrência de discussão dos currículos, congressos, seminários, palestras etc. A práxis pedagógica, nesse sentido, também é afetada, ainda que movida por um processo reflexivo lento e complexo ( BOURDIEU, 2005 ; McNAY, 1999 ).

No entanto, essa parece não ser uma tarefa fácil, pois a maioria das respondentes do grupo focal (66,07%) entende que realizar alguma ação com a temática gênero provoca um tipo de tensão, seja com as famílias, seja com as demais colegas professoras, seja com estudantes, tensão geralmente ocorrida por questões de intolerância, religiosidade ou ideologia.

Apesar de a maioria apontar tensões na discussão da temática, fica evidente que as professoras realizam alguma ação que trata pedagogicamente da questão de gênero, em suas salas de aula ou, coletivamente, na escola. É importante destacar que o trabalho articulado coletiva e democraticamente por meio de planejamento é apresentado como uma forma de diminuir as tensões entre professoras no que tange à discussão de gênero na escola e à possibilidade de se estabelecer alguma articulação no que diz respeito ao trabalho docente. Das falas que emergiram no grupo focal, observamos que a realização de ações pedagógicas de gênero tende a ser mais evidente e frequente nas escolas onde há tempo reservado para planejamento coletivo.

Encontramos uma organização mais bem estruturada em algumas escolas em relação ao que chamamos de movimento pedagógico de gênero. Os campi Linhares e São Mateus, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo (IFES), são exemplos disso. É inovadora a experiência do IFES Linhares, cujas professoras constituíram uma Comissão de Gênero e Sexualidade. Há também outras organizações dos estudantes. Segundo a professora Gerbera, há grupos organizados “de meninas mulheres de cabelo cacheado que se chama ICacheou. Nós temos o Colorifes que é um movimento social LGBT 13 , fora outros grupos que vão se formando e fortalecendo esse discurso” (depoimento de participante da pesquisa, 2016). As narrativas apresentadas indicam a existência de uma articulação muito forte das professoras dessas escolas e de seus pares quanto à questão de gênero e isso se estende à comunidade e a outras escolas dos municípios vizinhos.

Para Touraine (1998) , o ator (atriz social) é alguém engajado que, nas relações concretas como as questões de gênero, age no sentido de aumentar sua autonomia, controlar suas condições de trabalho e de existência. Tomando a historicidade e a mudança como constituintes das relações sociais, o sociólogo entende que é possível os sujeitos se tornarem atores (atrizes) e agirem para provocar mudanças de atitudes e de pensamentos. Esse processo, para o autor, gera uma mudança histórica.

As condições de trabalho das docentes do IFES se diferenciam demasiadamente das condições das docentes das redes estadual e municipais no estado do Espírito Santo e, portanto, há uma organização do trabalho diferenciada para a realização de atividades coletivas. No IFES, as condições para o planejamento coletivo são melhores porque as professoras são servidoras públicas com 40 horas e dedicação exclusiva.

Por outro lado, a existência de uma maioria de professoras que trabalham na condição de DT (Designação Temporária) no magistério da rede estadual de ensino dificulta a organização do trabalho para realizar atividades pedagógicas coletivas e integradas. Nesse contexto, torna-se mais complexo estabelecer relações pedagógicas e afetivas mais profundas com o grupo e também realizar projetos futuros devido à provisoriedade e à instabilidade no emprego. Esse é um fator que afeta profundamente a segurança financeira e psicológica da profissional, que não sabe onde estará ou se estará na rede no ano seguinte. Além disso, mesmo entre as professoras concursadas, o tempo de dedicação ao trabalho docente em uma mesma escola, normalmente, é de 25 horas, o que as obriga a correr de uma escola a outra durante um mesmo dia.

Apesar das dificuldades apontadas, inclusive familiares e de violências, as professoras que exercem uma ação otimista-articulista têm provocado enfrentamentos e superações. Com isso, acabam provocando vazamentos em relação às diversas situações objetivas e subjetivas que contribuem para legitimar um habitus que mantém as desigualdades de gênero. Nesse sentido, exercitam uma política de tensionamento desse habitus no cotidiano de suas atuações na escola, o que indica um movimento pedagógico que busca construir um habitus de gênero que se direciona a superar as desigualdades entre os sexos.

A ação silenciosa-individual: o que o aparente silêncio produz

A segunda ação foi nomeada de silenciosa-individual. Essa ação pode ser observada entre aquelas professoras que, por diversos motivos, não conseguem se articular com outras professoras para realizar atividades, mas se sentem na responsabilidade de desenvolver ações sobre a questão de gênero, mesmo individualmente.

Os motivos para a adoção dessa característica se dão porque ora a professora viveu alguma situação de conflito na tentativa de realizar alguma ação específica sobre as questões de gênero e, na atualidade, receia passar por outra experiência que possa gerar tensão (normalmente de cunho religioso ou ideológico); ora por apenas imaginar/prever que esse conflito poderia surgir se realizasse alguma ação que envolvesse as questões de gênero; ora também por ter sugerido alguma ação de gênero na escola e seus colegas a terem ignorado, em um silêncio constrangedor. Diante de tais questões, essas professoras preferem agir de forma individual, silenciosamente, realizando atividades muitas vezes restritas à sua sala de aula.

A ação do tipo silenciosa-individual, no entanto, não significa uma ação desprovida de otimismo. Pelo contrário, há ações que demonstram otimismo por parte de quem as realiza, porém, essas professoras acreditam que é “devagarinho” que se alcançam as mudanças, “sem bater de frente”. Essa característica se apresenta pela ideia de ir “comendo pelas beiradas” e de “pegar o gancho” para entrar no assunto e debater sobre gênero e sexualidade, de acordo com as falas das professoras. No grupo focal realizado no interior do estado, a manifestação da professora Cravina (2016) confirma essa característica.

[...] trabalhando na minha disciplina, eu considero até um ponto de maior facilidade, porque eu pego eles pela História, desde a valorização da mulher, aquele tempo que a mulher era vista como a máquina reprodutora, onde eram embutidos os papéis que ela era boa se fosse do lar, não tinha o direito de sair, votar e aí você vem trabalhando a evolução desde a constituição e nos avanços e eu pego nesses ganchos aí, porque está na disciplina. (Depoimento de participante da pesquisa, 2016).

Apesar das várias experiências interessantes narradas pelas professoras, a falta de tempo foi uma reclamação presente em quase todos os grupos focais realizados e se apresenta como um fator que dificulta que as professoras realizem atividades de gênero na escola. No survey , a indisponibilidade de tempo para se reunir com colegas foi indicada por 30,7% das respondentes, seguida por problemas de inexistência de financiamento a projetos (20,5%) e por questões referentes à falta de vontade das colegas (18,9%).

Na rede estadual, há um tempo reservado para o planejamento por áreas de ensino, ainda que exíguo. No entanto, nas redes municipais essa não é uma realidade, apesar da promulgação da Lei do Piso Salarial Profissional Nacional (PSPN) (Lei nº 11.73/2008) e da LDB (Lei nº 9.394/1996), que regulamentaram a jornada de trabalho das profissionais do magistério.

A opção pelo trabalho mais silencioso e individual parece não ter relação com a falta de autonomia das professoras, já que, como dito, a maioria diz ter autonomia para trabalhar a temática, apesar de haver tensões principalmente nas comunidades onde a religiosidade é mais forte e conservadora. A postura dessas professoras parece ter relação com o fato de não querer gerar tensão com seus pares ou com a comunidade, não assumindo abertamente uma posição político-pedagógica que poderia não ser aceita pela unanimidade do grupo. Pinto (1992 , p. 131) nos lembra que a “adesão não explícita” a um movimento permite que a pessoa “mantenha com bastante facilidade sua rede de relações intactas no interior da comunidade a que pertence”. Assim agindo, de forma silenciosa e individual, a professora evita o que a autora chama de “rito de passagem do mundo privado para o mundo público” ( PINTO, 1992 , p. 131). O rito de passagem requer que sejam feitas rupturas e, ao mesmo tempo, a constituição de uma identidade pública. Consequentemente, a professora busca evitar uma tensão no interior da escola, nas relações com os familiares dos/as estudantes e na própria família.

O conceito de habitus ( BOURDIEU, 2005 ) talvez possa nos ajudar a compreender a dificuldade, tendo em vista que, considerado como um sistema de disposições inconscientes que se constitui como produto da interiorização das estruturas objetivas, tende a produzir práticas e, por essa via, carreiras objetivamente ajustadas às estruturas objetivas. No entanto, como o campo educacional é basicamente um espaço de jogo de estratégias no qual se estabelecem relações entre os participantes, é também campo das esperanças subjetivas. Essas relações estabelecidas são da ordem da luta, da ordem dos conflitos de interesse. Cada agente que participa desse jogo de estratégias o faz a partir de uma posição dentro desse campo e ali pode lutar, criar, recriar, não sendo um sujeito estático, já que, nesse campo, há uma margem de manobra.

Então, as professoras, como agentes (de classes, de gênero, de raça/etnia diferentes e submetidos a diversos tipos de desigualdades) posicionados nesse campo, lutam por um capital simbólico, para o que realizam alianças e estratégias. Nesse sentido, parece-nos que a postura silenciosa-individual tem sido a forma que algumas professoras criaram para buscar romper por dentro com as dissimetrias e hierarquias de gênero, ao mesmo tempo em que as suas aspirações subjetivas tendem a se ajustar às oportunidades objetivas (ausência de formação para todas, ausência de tempo suficientemente coletivo para aprofundamento de debates etc.).

A teoria de Bourdieu (2005) talvez nos levasse a analisar que esse seria o caminho para a reprodução da naturalização das desigualdades de gênero por parte das professoras, na medida em que afirma que o habitus pressupõe que o campo é a sua própria condição de possibilidades, ou seja, o habitus expressa uma fé prática, uma crença na veracidade das regras desse campo que inclinaria o agente a agir de acordo com elas.

No entanto, valendo-nos da possibilidade de vazamento das ações das agentes/atrizes, quando Bourdieu (2005) diz que essa seria uma inclinação e, também, do que nossas escutas nos grupos focais indicaram, tomamos essas ações silenciosas-individuais como estratégias de luta em um campo educacional bombardeado cotidianamente por indicações de como agir e como fazer, seja de especialistas, seja da comunidade, seja das igrejas 14 ou dos governos. Ainda que silenciosamente, as professoras parecem não agir em conformidade plena com a tendência do campo e conforme o habitus de gênero social tradicionalmente atribuído às mulheres.

Nossa análise é que, na atualidade, em que pese a existência de ações, inclusive entre as professoras otimistas-articulistas, que são marcadas por um habitus de legitimação da naturalização das desigualdades de gênero, há em contrapartida ações que, de maneira sutil e estrategicamente silenciosa, têm buscado romper com a cultura de preconceito e discriminação de gênero.

Não se pode negar que a posição ocupada por uma professora no campo educacional e a maneira de ocupá-la dependem de toda sua trajetória conducente à sua posição inicial no campo ( BOURDIEU, 2005 ). No entanto, percebemos que, no caso das professoras pesquisadas, mesmo que elas tenham vivenciado situações de violência doméstica, não se consideram vítimas. Ao contrário, as suas trajetórias mostraram o desejo de superar essa questão social. Algumas veem na sua atuação na escola uma possibilidade para tal. Assim, como nos diz Touraine (2011 , p. 23), “as mulheres carregam dentro delas projetos positivos bem como o desejo de viver uma existência transformada por elas mesmas”.

Talvez não por outra razão, algumas professoras sugerem que o curso GDE seja realizado por todas as professoras da escola, pois, segundo declararam, torna-se mais fácil conversar, dialogar e articular ações com pessoas que tenham um debate maior sobre a temática de gênero. Às vezes, ocorre que a professora que fez o curso GDE se encontra sozinha na escola, não havendo outra pessoa que realizou algum curso de maior duração sobre o tema. Esse fato leva-as a optarem ou a serem forçadas a realizarem sozinhas as atividades que envolvem as temáticas gênero e sexualidade.

Parece ainda que, amarradas também por um habitus próprio das escolas, forjado pela questão objetiva de não terem o tempo necessário para o planejamento coletivo, as professoras se isolam e acabam isolando outras pessoas do seu entorno. Romper com esse habitus , que tem um recorte de gênero arraigado, depende de um esforço pessoal muito grande e de muita formação, já que envolve não apenas o desejo da agente/atriz, mas o enfrentamento concreto de uma questão estrutural forte. Aliás, a importância de uma política de formação mais perene foi uma das indicações de muitas professoras como fundamental para o fortalecimento do trabalho sobre gênero nas escolas.

Muitas professoras que fizeram parte dos grupos focais ressaltaram também a intensificação do trabalho da docência, pois muitas atividades curriculares criadas nos últimos anos dificultam a organização coletiva. Nesse sentido, quando a questão de gênero não está prevista no currículo, a abordagem de gênero por parte das professoras torna-se mais difícil. Segundo as professoras, as administrações públicas passaram a designar muitas atribuições à escola que antes não eram de sua responsabilidade.

Afinal, as reformas educativas implantadas desde a década de 1990 provocaram uma forte descentralização das atividades para as unidades escolares. Novas experiências políticas passaram a fazer parte do cenário global e nacional com o acirramento da ideologia neoliberal como condutora de uma visão de mundo mais individualista e concorrencial. Nessa esteira, a governança substituiu a política.

O Estado, sob a lógica da boa governance , já não mais controla diretamente a sociedade. Dentre as novas formas de regulação que passam a vigorar, a descentralização é enfatizada como mecanismo de transferência da execução das políticas públicas para os setores privados, organizações não-governamentais e entes subnacionais. Soma-se a isso o fato de que o poder de investimento social passa a ser menor, tendo em vista que tem que obedecer a um padrão de organização do capital globalizado que exige que os governos priorizem ações baseadas no bom comportamento financeiro, ao mesmo tempo em que deve ser eficiente ao administrar as questões sociais para minimizar os conflitos.

Isso se apresenta no campo educacional por meio de diversas reformas que, provocando o aumento da responsabilização dos trabalhadores em relação ao processo pedagógico, colocam cada vez mais demandas às professoras, tais como: integrar conhecimentos, trabalhar em grupo com colegas, atender às questões de gênero e sexualidade, participar das discussões étnico-raciais, realizar e avaliar projetos institucionais, gerar e gerenciar recursos financeiros, administrar recursos humanos, promover o controle dos resultados por meio de avaliações em larga escala, entre outras.

Toda essa demanda faz as professoras se sentirem incapazes em seu trabalho docente e, em certa medida, leva-as a rechaçar projetos e propostas que se apresentam à escola, especialmente pela escassez de tempo, de recursos técnicos e financeiros. Tal situação, para Fanfani (2005) , gera um paradoxo: o conhecimento é posto como central para instituições e para a produção de bens e serviços por essa perspectiva de modernização, mas, em contrapartida, a educação, que deveria dar conta desse ideal, vive uma crise que se manifesta também em seus agentes. No caso de nossa pesquisa, percebemos, por meio das falas das professoras, modos de resistência a essa crise, por exemplo, o incremento na própria formação.

A ação pessimista-impotente: o inferno são os outros

A ação pessimista-impotente pode ser evidenciada nas quase-ações 15 ou na ausência de ações de professoras. Trata-se de uma postura assumida pelas professoras que têm conhecimento sobre a questão de gênero, sabem da necessidade e da importância da discussão da temática na escola, até planejam alguma atividade, mas não conseguem agir porque assumem uma postura vitimista de que o problema de as atividades não acontecerem é por culpa da outra professora, da pedagoga, da direção. Enfim, como diria Sartre (1970) , o inferno são os outros.

Vale afirmar que poucas professoras (somente três) que participaram dos grupos focais apresentaram essa característica, sendo interpeladas por outras colegas do grupo que as estimularam ou até mesmo criticaram essa postura pessimista. Pelo relatado, essa inércia notada nas falas é gerada por diversos fatores: sentimento de isolamento em relação ao grupo de trabalho, vitimismo, dificuldade de superação das dificuldades impostas pela organização do trabalho docente etc.

Considerações finais

A realização desta pesquisa comprova a importância de existirem políticas educacionais que estimulem as professoras ao desenvolvimento de novas reflexões e práticas pedagógicas no interior das unidades de ensino. O desenvolvimento do curso GDE em um contexto favorável de ampliação do debate sobre as questões de gênero e as profundas desigualdades que afetam as mulheres brasileiras provocou e/ou fez revelar os movimentos pedagógicos existentes entre as/os docentes. Ou seja, há movimentos pedagógicos de gênero que se tornaram mais aparentes e/ou fluíram quando professoras tiveram acesso a uma política de formação continuada com ênfase na questão de gênero. As professoras da nossa pesquisa adotaram ações de características diversas; entre elas, a maioria assumiu uma postura otimista-articulista e silenciosa-individual, o que mostra que essas professoras estão realizando ações na escola de forma a desnaturalizar as relações de gênero.

No período e no contexto aqui estudados (2003-2016), identificamos ações que buscam romper com a cultura de preconceito e discriminação de gênero nas escolas, em que pese a existência de ações marcadas por um habitus de legitimação da naturalização das desigualdades de gênero.

Essas ações, ao mesmo tempo que são formativas para todas as pessoas que delas participam, também são, dialeticamente, autoformativas para as professoras. Além disso, os estudos realizados indicam que tais ações não são aleatórias. Direta ou indiretamente, constroem-se em relação dialética com os conhecimentos históricos emergidos dos movimentos sociais, dos estudos feministas e de gênero, das novas mídias sociais, das formações advindas das políticas públicas, dos movimentos sindicais e de associações científicas da educação.

Dessa forma, nossa hipótese foi confirmada de que, mesmo diante das diversas possibilidades de contenções (precarização das condições de trabalho, cultura patriarcal, organização fragmentada do trabalho docente etc.), as professoras têm realizado ações pedagógicas que buscam desnaturalizar as dissimetrias e as hierarquizações no campo das relações de gênero. Tais ações indicam a existência de deslocamentos na forma de agir das professoras em relação às desigualdades de gênero nas escolas e na sociedade, gerando um movimento por dentro da educação escolar.

São esses movimentos, aliados à existência de uma empatia das professoras com as pessoas que sofrem com situações de discriminação e preconceito no cotidiano escolar, que impulsionam a discussão de gênero nas escolas e que propiciam uma maior reflexão das professoras sobre suas vivências de gênero. Assim, a política de formação do GDE influenciou o modo de ação pedagógica das professoras, possibilitando um agir que cria vazamentos no habitus de gênero legitimado socialmente. São os vazamentos que têm sido provocados na cultura das escolas que demonstram estar ocorrendo movimentos pedagógicos de gênero que agem dialeticamente na formação de um habitus alternativo de gênero, de modo a influenciar uma mudança cultural. Esses movimentos em rede influenciam as condutas das professoras e contribuem para a transformação do espírito do tempo em nossas escolas.

Referências

ALMEIDA, Marlise Miriam M. Pierre Bourdieu e o gênero: possibilidades e críticas. Rio de Janeiro: Iuperj, 1997. [ Links ]

ANDRADE, Carlos Drummond de. Contos plausíveis. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1985. [ Links ]

BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2008. [ Links ]

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas . 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005. [ Links ]

BOURDIEU, Pierre (Org.). A miséria do mundo . 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1997. [ Links ]

BOURDIEU, Pierre. Pierre Bourdieu . Rio de Janeiro: Eduerj, 2002. Entrevista concedida a Maria Andréa de Loyola. [ Links ]

BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996. [ Links ]

CNBB. Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Nota da CNBB sobre a inclusão da ideologia de gênero nos planos de educação . 16 jun. 2015. Disponível em: <http://www.cnbb.org.br/cnbb-divulga-nota-sobre-a-inclusao-da-ideologia-de-genero-nos-planos-de-educacao/>. Acesso em: 10 jul. 2015. [ Links ]

FANFANI, Emilio Tenti. La condición docente: análisis comparado de la Argentina, Brasil, Perú y Uruguay. Buenos Aires: Siglo XXI, 2005. [ Links ]

GIMENO SACRISTÁN, José; PÉREZ GÓMEZ, Angel. Compreender e transformar o ensino . 4. ed. Porto Alegre: Artmed, 1998. [ Links ]

GOHN, Maria da Glória M. Movimentos sociais na contemporaneidade. Revista Brasileira de Educação , Rio de Janeiro, v. 16, n. 47, p. 333-512, maio/ago. 2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v16n47/v16n47a05.pdf>. Acesso em: 22 fev. 2016. [ Links ]

McLEOD, Julie. Feminists re-reading Bourdieu: old debates and new questions on gender habitus and gender change. Theory and Research in Education , v. 3, n. 1, p. 11-30, 2005. [ Links ]

McNAY, Lois. Gender, habitus and the field: Pierre Bourdieu and the limits of reflexivity. Theory, Culture & Society, London, v. 16, n. 1, p. 95-117, 1999. [ Links ]

PINTO, Céli Regina Jardim. Movimentos sociais: espaços privilegiados da mulher enquanto sujeito político. In: COSTA, Albertina de O.; BRUSCHINI, Cristina (Org.). Uma questão de gênero . Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1992. p. 127-150. [ Links ]

RAMIRES NETO, Luiz. Habitus de gênero e experiência escolar: jovens gays no ensino médio em São Paulo. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-03022012-163059/pt-br.php>. Acesso em: 18 jun. 2017. [ Links ]

RIZZATO, Liane Kelen. Percepções de professores/as sobre gênero, sexualidade e homofobia: pensando a formação continuada a partir de relatos da prática docente. 2013. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. [ Links ]

SARTRE, Jean Paul. Huis Clos. Paris: Gallimard, 1970. [ Links ]

SCOTT, Joan W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade , Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 71-99, jul./dez. 1995. [ Links ]

SETTON, Maria da Glória J.; VIANNA, Claudia P. Socialização de gênero e violência simbólica: um diálogo com Joan Scott, Pierre Bourdieu e Bernard Lahire. In: GOMES, Lisandra; REIS, Magali dos (Org.). Infância: sociologia e sociedade. São Paulo: Attar, 2014. p. 34-65. [ Links ]

TOURAINE, Alain. Crítica da modernidade . Petrópolis: Vozes, 1994. [ Links ]

TOURAINE, Alain. Igualdade e diversidade: o sujeito democrático. São Paulo: Edusc, 1998. [ Links ]

TOURAINE, Alain. O mundo das mulheres . 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2011. [ Links ]

UNBEHAUM, Sandra. As questões de gênero na formação inicial de docentes: tensões no campo da educação. 2014. Tese (Doutorado em Educação) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2014. [ Links ]

VIANNA, Claudia P.; UNBEHAUM, Sandra. Contribuições da produção acadêmica sobre gênero: elementos para repensar a agenda. In: CARREIRA, Denise et al. Gênero e educação: fortalecendo uma agenda para as políticas educacionais. São Paulo: Ação Educativa / Cladem / Ecos / Geledés / Fundação Carlos Chagas, 2016. p. 56-110. [ Links ]

WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da violência 2015: homicídios de mulheres no Brasil. Brasília, DF: Cebela/Flacso, 2015. Disponível em: <http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf>. Acesso em: 10 fev. 2015. [ Links ]

YANNOULAS, Silvia Cristina. Apresentação. In: YANNOULAS, Silvia Cristina (Org.). Trabalhadoras: análise da feminização das profissões e ocupações. Brasília, DF: Abaré, 2013. p. 21-29. [ Links ]

2- Versão traduzida para inglês pela Tikinet (Cristina Saez). Contact: http://www.tikinet.com.br .

3- Neste artigo, optamos por utilizar o termo “professoras” como forma genérica de tratamento das pessoas participantes da pesquisa sempre que este expressar o magistério pesquisado como conjunto. Essa opção se baseia no número majoritário de mulheres participantes da pesquisa e, ainda, no fato de o magistério ser uma categoria feminizada.

4- Para exemplificar a gravidade da situação, o estudo do mapa da violência de 2013 ( WAISELFISZ, 2015 ) aponta o estado do Espírito Santo com uma taxa de 9,3 homicídios em cada 100 mil mulheres e que esse dado mais que duplicou em relação à média nacional.

5- Ainda que a sociedade brasileira tenha reposicionado o conceito de patriarcado e as mulheres tenham se constituído como sujeitos de direito, pesa sobre as relações de gênero uma cultura que se fundamenta nos primados do patriarcado, como a autoridade moral, os privilégios sociais no trabalho, o controle social das propriedades, entre outros. Nesse sentido, é ainda possível falar na existência de uma cultura patriarcal no Brasil e no mundo.

6- Segundo o dicionário brasileiro da língua portuguesa Michaelis . Disponível em: < http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=cunhar> . Acesso em: 6 jul. 2017.

7- O município de Itarana foi acrescentado porque a maioria das professoras que cursaram o GDE no município-polo de Colatina residia em Itarana.

8- Conforme acordado por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e tendo em vista todas as recomendações éticas para pesquisas com seres humanos, de acordo com a Resolução nº 510/2016.

9- Chamamos de ação de gênero na escola qualquer ação que considerasse um recorte de gênero ao ser realizada, tais como: debates em sala de aula a partir de alguma situação que emergiu como demanda de gênero, por exemplo, o uso de brinquedos por meninos e meninas; aulas com conteúdo articulado às questões de gênero; palestras com a comunidade escolar; projetos; planejamentos etc.

10- Nessa questão, as respondentes poderiam indicar até três opções de respostas.

11- Nesse grupo, consideramos as ações coletivas como constitutivas da ação otimista-articulista.

12- Das 56 professoras, 16 professoras não abordaram a questão durante o grupo focal. Nesse sentido, não é possível afirmar quais dentre essas professoras perceberam mudanças e quais não perceberam.

13- A sigla LGBT significa Lésbicas, Gays, Bissexuais e Travestis. Atualmente outras siglas surgiram para incluir outras manifestações de gênero. Podemos encontrar também a sigla LGBTTT, que significa Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis, Transgêneros. Internacionalmente, a sigla mais utilizada é LGBTI, que engloba as pessoas intersex.

14- Incluem-se aí o projeto Escola sem Partido e a noção de Ideologia de Gênero.

15- Chamamos de quase-ações as atividades que chegaram a ser planejadas ou pensadas pelas professoras, mas que, por algum motivo, não foram realizadas.

Recebido: 21 de Maio de 2018; Aceito: 13 de Junho de 2018

Erineusa Maria da Silva é doutora em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes); pesquisadora no Centro de Pesquisas em Formação Inicial e Continuada em Educação Física (Práxis/Cefd/Ufes) e no Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas Educacionais (Nepe/Ce/Ufes). Coordena o Núcleo Interinstitucional de Estudos e Pesquisas em Gênero e Sexualidade/Ufes (NUPEGES).

Eliza Bartolozzi Ferreira é doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); pós-doutora pela École Normale Supérieure de Lyon (França); coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas Educacionais (Nepe/Ce/Ufes) e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).

Creative Commons License  This is an Open Access article distributed under the terms of the Creative Commons Attribution Non-Commercial License, which permits unrestricted non-commercial use, distribution, and reproduction in any medium, provided the original work is properly cited.