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Educação e Pesquisa

versión impresa ISSN 1517-9702versión On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.45  São Paulo  2019  Epub 29-Oct-2019

https://doi.org/10.1590/s1678-4634201945207546 

Artigos

Materiais didático-científicos e a história do ensino de ciências naturais em São Paulo (1880-1901)

Reginaldo Alberto Meloni1 
http://orcid.org/0000-0002-4664-1079

Wiara Rosa Rios Alcântara1 
http://orcid.org/0000-0003-0752-8257

1- Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Diadema / SP, Brasil. Contatos: meloni@unifesp.br; wiaraped@yahoo.com.br.


Resumo

O objetivo do artigo é discutir, sob uma perspectiva histórica, o ensino de ciências naturais em São Paulo, entre os anos 1880 e 1901. O estudo é desenvolvido a partir da análise dos registros de objetos científicos e materiais didáticos existentes na Escola Normal de São Paulo, no período selecionado. Nesse sentido, são apresentados os processos de circulação internacional de materiais escolares destinados ao ensino das ciências naturais, bem como as possibilidades pedagógicas e os indícios de apropriação desses objetos ocorridos naquela instituição de formação de professores. Como fontes foram investigados os ofícios e as correspondências de solicitação de compra de objetos escolares, os orçamentos, as notas de compras, os inventários de bens da escola e os manuais de ensino. O procedimento metodológico consiste em confrontar os diferentes tipos de fontes destacando quais objetos foram adquiridos, os processos comerciais e administrativos pelos quais chegaram até a escola. Interessam, também, os indícios de usos desses materiais (particularmente dos objetos destinados ao ensino de química) considerando os discursos acerca das metodologias de ensino e as propostas dos manuais de ensino. Como resultado, o trabalho propicia uma maior compreensão dos processos de circulação dos objetos para o ensino das ciências naturais e das possibilidades de uso, associadas aos discursos e às práticas pedagógicas propagadas no período.

Palavras-Chave: Cultura material escolar; Ensino de ciências; Objetos científicos

Abstract

This article aims at discussing, through a historical perspective, the Natural Science teaching in São Paulo, between 1880 and 1901. The study is developed through the analysis of that period of time cataloguing of the scientific objects and didactic materials of the Escola Normal de São Paulo. So, the processes of international circulation of the school materials designated to the Natural Science teaching, such as the pedagogical possibilities and the indications of appropriation of the objects of that graduation teachers’ institution, are shown. There were investigated, as sources, the trades and the solicitations’ correspondences of buying of those school objects, the budgets, the receipts, the school inventory of goods and the teaching manuals. The methodological procedure consists on confronting the different kinds of sources, highlighting which objects were acquired, the trade and administrative processes which led them to school. It is also interesting to see the indications of usage of these materials (especially of those designated to the Chemistry teaching), considering the discussions about the teaching methodologies and the teaching manuals’ proposals. As a result, the work propitiates a better understanding of the circulation of objects to the Natural Science teaching processes and of the possibilities of their usage, associated to the speeches and pedagogical practices spread at that period of time.

Key words: School material culture; Science teaching; Scientific objects

Introdução

A formação de professores de ciências para a educação básica ainda é um desafio no Brasil. No âmbito dessa formação, mais sensível ainda é a temática relacionada ao currículo dos cursos de licenciatura em ciências. Nesse sentido, uma problemática a ser enfrentada é a compreensão de uma formação de professores de ciências que não esteja alheia à historicidade do próprio ensino de ciências no país. Não por acaso, muitas propostas de ensino de ciências são elaboradas, ainda hoje, sem considerar a construção histórica dessa área do conhecimento.

Ensinar ciências na educação básica exige muito mais do que o conhecimento específico das disciplinas física, química e biologia. Exige mais que o domínio de alguns experimentos, métodos e recursos didáticos. Para uma compreensão política e social do seu papel, o professor de ciências precisa refletir acerca de quando e como as ciências passaram a fazer parte do currículo da educação básica, que disputas estavam colocadas em torno da área em cada período, quais as condições materiais de exequibilidade do ensino de ciências, em diferentes contextos históricos. Enfim, que escolhas foram feitas nos processos de construção curricular, tanto em relação às opções de conteúdos e métodos quanto à estruturação das instituições escolares e à apropriação pelos professores.

O processo de aquisição de objetos de educação em ciências pelas escolas paulistas iniciou-se no século XIX e se desenvolveu até a década de 1960 (MELONI; GRANATO, 2014) e a quantidade e a qualidade dos materiais à disposição dos professores e alunos, muitos deles importados, mostra o investimento feito em algumas escolas em determinados períodos.

A delimitação temporal inicial justifica-se pela reabertura da Escola Normal de São Paulo, quando a instituição começou a adquirir um conjunto de objetos para o desenvolvimento do método intuitivo. Já 1901, é o ano de aprovação do regulamento do Ginásio Nacional que serviria de modelo para os demais ginásios do país e trazia uma série de novidades para o ensino das ciências naturais.

O texto é desenvolvido a partir de duas vertentes: a) relações intraescolares, isto é, as práticas e os modelos pedagógicos, os usos e indícios de apropriação dos objetos para o ensino de ciências naturais; e b) relações extraescolares, ou seja, questões econômicas e administrativas que circunscreveram o investimento do governo paulista na aquisição de materiais para o ensino de ciências naturais, entre os anos 1880 e 1901. Problematizar questões intra e extraescolares em torno do uso, produção, aquisição, distribuição e circulação desses objetos é de suma relevância para compreender a construção de uma cultura escolar no que tange ao ensino de ciências no Estado.

No desenvolvimento desta investigação, alguns desafios apresentaram-se. O primeiro diz respeito à abordagem transdisciplinar. Estudar a história do ensino de ciências naturais a partir da materialidade da escola é um empreendimento pouco fértil se limitado a um único campo disciplinar. Esta pesquisa tem uma abordagem, necessariamente, transdisciplinar porque há um único problema cuja compreensão articula elementos e situações de várias disciplinas.

É preciso atentar para as referências e os procedimentos de trabalho, que ajudam a examinar os objetos sociais e escolares, no âmbito da cultura material. É imprescindível o conhecimento da pedagogia e história da educação em São Paulo, bem como da organização e expansão do sistema público de ensino no período considerado. Não menos importante é o conhecimento dos aportes da história econômica para examinar a relação entre indústria, Estado e investimento em materiais para o ensino de ciências naturais. A problematização de como esses materiais chegavam à escola exige uma atenção à organização da administração pública. Não são apenas questões pedagógicas que justificam a inserção das ciências naturais no currículo das escolas. No século XIX, ganham destaque, também, o conhecimento científico, a ideia de compreensão do mundo pela observação das coisas e pela experiência concreta. Articular os conceitos de diferentes disciplinas para compreensão do objeto é um procedimento fértil, mas também complexo.

O segundo desafio refere-se ao objeto, a história do ensino de ciências em São Paulo. Trata-se de uma temática incipiente e pouco abordada. No Brasil, há um conjunto importante de publicações e grupos de pesquisa acerca da história das ciências e, ainda, a respeito do ensino de ciências. Porém, ainda há poucas pesquisas e publicações que se debruçam sobre a história do ensino de ciências naturais.

O terceiro desafio refere-se à periodização. Entre as últimas décadas do século XIX e meados do século XX, observa-se a convivência de diferentes propostas e modelos pedagógicos para o ensino de ciências, bem como diferentes modos de provimento material das escolas pela administração pública paulista. Por isso, a análise tanto das práticas pedagógicas quanto das formas de produção e aquisição dos objetos científicos deve ser atravessada pelas especificidades contextuais.

O quarto, relaciona-se com as fontes. Esta é uma pesquisa que lança mão da materialidade da escola por entender que os objetos são reveladores de informações e indícios sobre as práticas que se desenvolvem no interior das instituições de ensino que de outras formas não poderiam ser obtidas. Todavia, os objetos dos quais tratam os inventários, os manuais e outras fontes escritas raramente podem ser encontrados. Uma das grandes dificuldades do trabalho é seguir os rastros dos utensílios e objetos escolares, pois eles apagam-se. A esse respeito, Vidal e Gaspar (2011, p. 31) entendem que “a dificuldade em localizar os elementos dessa cultura material escolar tem levado pesquisadores a buscar indícios da materialidade da escola e da escolarização em um leque alargado de fontes”. É o que se intenta fazer aqui nesta pesquisa.

Para tanto, o texto está dividido em duas partes. Na primeira, desenvolvemos uma abordagem que perpassa diferentes áreas de conhecimento, isto é, a cultura material, a história administrativa e econômica da escola pública paulista. Nesse sentido, fazemos uma análise das formas de proveniência dos materiais didático-científicos para a Escola Normal de São Paulo. Interessa pensar quem eram os sujeitos envolvidos na aquisição de tais objetos e quais os procedimentos econômicos e administrativos de que lançavam mão. Já na segunda parte, sob uma perspectiva mais pedagógica, analisamos as possibilidades de uso desses objetos científicos, mais especificamente, dos objetos para o ensino de química, discriminando os tipos, bem como os indícios de práticas pedagógicas, a partir do exame dos inventários de bens e das prescrições dos manuais de ensino.

Os caminhos da modernidade educativa: a aquisição de objetos para o ensino de ciências naturais em São Paulo (1880-1901)

Nos anos finais do século XIX, a escola assiste a uma profusão material cuja proveniência sinaliza os diversos caminhos percorridos em busca da modernidade educativa. A invenção da modernidade educativa fez-se sentir na circulação internacional de modelos pedagógicos, sujeitos e objetos (VIDAL, 2009). Essa modernidade educativa carregava a ideia de progresso que associava, segundo a autora, desenvolvimento científico e educativo à ampliação material escolar. Com isso, o Estado emerge como comprador de materiais escolares e a escola como mercado consumidor de móveis e objetos produzidos por uma indústria escolar (VIDAL, 2009). Isso leva a indagar não apenas sobre o comprador (Estado) e o consumidor (a escola), mas também sobre os vendedores, fabricantes e distribuidores dos materiais didático-científicos.

A análise da documentação da Escola Normal de São Paulo indica que, no período em estudo, a importação era o meio possível para equipar as escolas paulistas com modernos materiais de ensino. Todavia, as dificuldades relacionadas à importação impunham diferentes modos de aquisição de materiais didáticos e objetos científicos.

Se o governo não dispunha de fábricas próprias para produção do material e do mobiliário escolar, se o pequeno comércio local não oferecia os novos objetos que se tornaram tão necessários aos Grupos Escolares e Escolas Modelo, era preciso acionar um conjunto de atores – viajantes, mediadores e tradutores culturais – e relações comercias internas e externas para criar as condições físicas dessa nova escola.

Um viajante que traz a modernidade educativa

São chamados aqui de viajantes os brasileiros, inseridos no contexto escolar, que aceitam encomendas dos administradores da Instrução Pública para compra de museus de história natural e objetos para o ensino de física e química. Para citar um exemplo, Paulo Bourroul, professor de francês, física e química e diretor da Escola Normal de São Paulo entre 1882 e 1884, foi incumbido de, durante sua viagem de férias a Paris, orçar e comprar materiais de ensino para a instituição.

Fonte: APESP - Série Manuscrito – Escola Normal de São Paulo; 1849-1855; 1886-1899. Ordem – 5131/ Grupo – Gestão Financeira; Série – Propostas orçamentárias.

Quadro 1 – Correspondência entre o diretor da escola e o presidente da Província 

O próprio presidente da Província solicita ao diretor da Escola Normal que faça a compra de material escolar durante sua estada em Paris. De Paris, Paulo Bourroul envia uma correspondência ao presidente da Província, o conselheiro Francisco do Carvalho Soares Brandão, dando ciência do conteúdo de treze caixas com materiais para o ensino de física e química.

De posse dessa informação, o Tesouro da Fazenda deveria enviar ordens à Alfândega de Santos para despachar e enviar as encomendas à Capital. Com isso, percebe-se que os caminhos da modernidade educativa, tanto dos materiais e utensílios, quanto do mobiliário passavam pela Alfândega de Santos e chegavam a vapor. Em 21 de fevereiro de 1883, a informação de “três caixões com mercadorias destinadas à Escola Normal, embarcadas no vapor francez Sully2 com direção ao porto de Santos”, dá uma dimensão desse movimento. Isso é, em viagem para Paris, o diretor Paulo Bourroul faz a aquisição do material que ele mesmo solicitou ao presidente da Província de São Paulo. Autorizada a aquisição, ele compra e envia por meio de vapores até a Alfândega de Santos, de onde as encomendas seriam remetidas a São Paulo, depois de expedidas as ordens pelo Tesouro da Fazenda.

Como resultado das viagens de Paulo Bourroul, a Escola Normal adquiriu mobiliário, livros para a biblioteca e treze (13) caixas de materiais para o ensino de ciências naturais (física e química). Pestana (2011) enumera seis livros que foram trazidos para uso nas disciplinas da 5a Cadeira, gramática e língua francesa, noções de física e química:

  1. Physique, de Edmond-Jean Langlebert

  2. Chimie, de Edmond-Jean Langlebert,

  3. Leçons élémentaires de chimie moderne, de Charles Adolphe Wurtz,

  4. Physique, de Adolphe Ganot

  5. Histoire de la littérature française, de Jacques Demongeot,

  6. Grammaire de la langue française, de Pierre Auguste Lemaire.

Como ver-se-á na segunda parte do texto, alguns desses manuais traziam instruções de como o professor poderia usar os aparelhos e substâncias para trabalhar com os alunos nas disciplinas de física e química.

As novidades trazidas pelos viajantes poderiam vir em forma de objetos ou relatórios. Segundo Carvalho (apud SOUSA; CATANI, 1998, p. 40), não pode ser subestimada a participação desses “assíduos viajantes” na renovação educacional. Os “intelectuais ilustrados: homens públicos, reformadores, juristas, proprietários de escolas, diretores e professores” (SCHELBAUER, 2005, p. 136) são “personagens-chave na elucidação dos processos materiais de produção, circulação e apropriação dos saberes pedagógicos no Brasil” (CARVALHO apud SOUZA; CATANI, 1998, p. 40).

A facilitação das viagens transcontinentais, por meio das embarcações a vapor, possibilitou a circulação internacional de pessoas, ideias e objetos, o que corroborou significativamente para a modernização da escola paulista. Essa circulação pode ser percebida na Figura 1. Trata-se de um manifesto do vapor Ville de Ceará, no qual foram embarcadas três caixas de instrumentos de física, adquiridas na viagem de Paulo Bourroul. O manifesto informa o tipo de material adquirido, a origem (Havre/França), o valor da mercadoria, o valor do frete, dentre outros.

Fonte: APESP - Série Manuscrito – Escola Normal de São Paulo; 1849-1855; 1886-1899/ Ordem – 5131. Grupo – Gestão Financeira; Série – Propostas orçamentárias.

Figura 1 – Caixas de instrumentos de Física 

Embora não seja o foco deste trabalho, vale fazer menção à trajetória e formação desses professores que assumiam as disciplinas científicas (física, química e história natural). Esses sujeitos, via de regra, eram formados em medicina ou farmácia e faziam parte de famílias que também se dedicavam a essas áreas do conhecimento, sendo proprietários de consultórios ou farmácias. Isso pode ser dito não apenas dos professores da Escola Normal de São Paulo. A tese de Meloni (2010) corrobora com essa afirmação quando constata uma grande presença de farmacêuticos entre os primeiros mestres das ciências no Gymnasio de Campinas.

A explicação de Meloni (2010, p. 72) é “a ausência de bacharéis em química ou em Física ao mesmo tempo em que havia a disponibilidade de farmacêuticos”. Tal disponibilidade pode ser entendida “em função da reforma proposta na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro nos anos setenta do século XIX pelo então ministro Carlos Leôncio de Carvalho” (MELONI, 2010, p. 72) que fomentou a implantação de três cursos anexos ao de Ciências Médicas e Cirúrgicas, sendo que um desses cursos era o de farmácia.

Em 1891, as escolas de medicina do Rio de Janeiro e da Bahia passaram a chamar-se Faculdade de Medicina e Farmácia. O autor ainda esclarece que as escolas de Farmácia contavam com as seguintes cadeiras: Physica, Chimica mineral, Mineralogia, Chimica orgânica, Botanica, Zoologia, Materia medica e therapeutica, Toxicologia, Pharmacologia e Pharmacia prática. Isso, possivelmente, fazia com que os diretores das instituições escolares entendessem que tais sujeitos estavam aptos e preparados para ministrar as disciplinas científicas. Tais elementos podem ajudar a entender por que Macedo Soares tinha um acervo próprio de materiais de física e química que foi doado parcialmente à Escola Normal de São, em 1894.

No caso de Paulo Bourroul, de origem francesa, sua família chegou em 1839 a São Paulo onde abriu uma botica. Em 1869, a Pharmacia Paulistana situava-se a Rua da Imperatriz, n°. 20 (PESTANA, 2011). Filho de Camilo Bourroul, Paulo Bourroul nasceu em 1855, fez seus estudos elementares no Brasil e diplomou-se em medicina na Bélgica.

Pestana (2011) ainda menciona que, de volta a São Paulo em 1879, Paulo Bourroul assumiu a 5a cadeira (francês, física e química) na recém-reaberta Escola Normal de São Paulo. Em 1882, ocupa o cargo de diretor na mesma instituição. Sua origem europeia (francesa) e sua formação profissional e familiar ajudam a entender a tarefa recebida de aquisição de um conjunto de materiais didáticos para o ensino das ciências naturais.

De todo modo, o caso desse sujeito evidencia um dos procedimentos administrativos usados pelo governo paulista para equipar algumas escolas em seu território. Todavia, a análise de elementos formais dos ofícios e das correspondências também faz ver que a frequência das viagens, bem como o lapso temporal entre a partida dos viajantes e a chegada dos objetos a São Paulo tornavam esse meio pouco eficiente e prático para atender às necessidades constantes das escolas por novos materiais. Não por acaso outros sujeitos eram acionados como os mediadores culturais.

Mediadores culturais da modernidade educativa

Os mediadores culturais, ou passeurs culturels, são no entendimento de Gruzinski (2005) sujeitos “entre dois mundos”. Essa é uma categoria fértil para pensar o encontro e os contatos de culturas. No caso aqui estudado, a atuação desses sujeitos promove mais do que a circulação de ideias pedagógicas e objetos escolares. Eles são mais do que agentes que carregam “ideias e projetos de um mundo a outro” (GRUZINSKI, 2005, p. 16). Perscrutar as relações que estabeleceram, os lugares que frequentaram, as escolhas que fizeram, os procedimentos que usaram ajuda a compreender as mudanças e as permanências que efetuaram no campo da educação e da cultura; as trocas e os cruzamentos sem os quais não seria possível compreender os contornos que a educação foi tomando em dado tempo e espaço. Esse estudo de caso mostra como os mediadores fazem a síntese do local e do global, as dinâmicas sociais e culturais que empreenderam, provocando mudanças não apenas em seus locais de origem e destino, mas transformações locais (CANCLINI, 2003).

São chamados aqui de mediadores culturais os estrangeiros residentes em São Paulo que, tendo envolvimento com a instrução em seu país de origem e no Brasil, serviram de intermediários entre fornecedores e o governo ou, em viagem ao país de origem, fizeram a aquisição de material para a escola pública paulista. O exemplo selecionado é o da americana Miss. Marcia Browne, diretora da Escola Modelo anexa à Escola Normal de São Paulo.

Após três anos de “constante trabalho” na Escola Modelo, Miss. Browne solicita ao secretário dos Negócios do Interior, Cesário Motta, autorização para viagem a seu país de origem. A pretensão de Miss Browne era:

[...] estudar a exhibição das mobilias, apparelhos, livros e trabalhos das escolas da França, Bélgica, Suissa, Alemanha e Estados Unidos. Si tiver tempo, em meu regresso, desejo visitar as escolas de Portugal e da Alemanha. Preciso passar dous meses no mar, portanto não posso voltar antes de janeiro de 1894. Sendo feriado os meses de dezembro e janeiro, estarei ausente da eschola apenas cinco meses. Esta visita a meu pais natal é motivada por saúde e interesse da eschola, e para ela peço-vos licença de ausência até 1º de fevereiro de 1894. (APESP. Série Manuscritos. Secretaria do Interior. Escola Normal. Ano 1892. Ordem 7135).

A viagem da diretora resultou em um investimento material na escola pública paulista, pois algumas remessas foram feitas por Miss. Browne durante a sua estadia no exterior. Em 9 de maio de 1894, foram embarcadas no vapor Corrientes com destino a Santos, três caixas com peças anatômicas, além da mobília e do material escolar. O material contido nas três caixas era proveniente da casa Emile Deyrolle de Paris. Além de peças de anatomia humana, as caixas continham modelos de frutas e flores para o estudo da história natural, como se lê no ofício reproduzido a seguir.

Fonte: APESP. Série Manuscritos. Secretaria do Interior. Escola Normal. Ano 1892. Ordem = 7135.

Quadro 2 – Aquisição da Emile Deyrolle 

Para justificar a ausência de cinco meses, a diretora da Escola Modelo associa a sua necessidade pessoal ao interesse da escola. Seria útil a ela e à escola o estudo das mobílias e objetos escolares de diversos países, sociedades de referências cujos sistemas educacionais modernos ganharam aceitação global (SCHRIEWER, 2000). Essas compras não constituem “meras relações de troca internacional de mercadorias e de interdependência econômica” (SCHRIEWER, 2000, p. 107). Elas sinalizam o esforço dos Estados para se constituírem pela centralidade de uma modernidade educativa (VIDAL, 2009).

Pela correspondência de Miss. Browne a Cesário Motta depreende-se que o percurso total de ida e volta do Brasil à Europa ou aos Estados Unidos seria de dois meses no mar. Logo, um mês para ir e outro para retornar. Além do esforço financeiro, havia um esforço físico que impedia a constância de tais viagens. Sendo assim, as casas importadoras, os agentes e representantes comerciais funcionaram como uma outra opção para equipar a escola.

Tradutores culturais da modernidade educativa

A tradução cultural é um conceito importante para pensar processos de descontextualização e recontextualização promovidos por sujeitos no esforço de tornar uma cultura inteligível para e por outra (BURKE, 2009). Para Burke (2008, p. 56):

[...] o que faz as pessoas de uma cultura sentirem-se atraídas por outra é, muitas vezes, a ideia de uma prática análoga à sua própria e, assim, familiar e estranha ao mesmo tempo. Seguindo essa atração, as ideias ou práticas das duas culturas passam a se parecer mais umas com as outras.

Nas últimas décadas do século XIX, há uma atração, um fascínio mundial por modelos, teorias e práticas educacionais norte-americanas e europeias. A circulação desses modelos, juntamente com os objetos os tornaram exequível, deu-se por meio de sujeitos e instituições, como os tradutores culturais.

São aqui chamados de tradutores as casas importadoras, agentes e representantes comerciais cujas relações com a escola nos diferentes países limitam-se ao campo econômico. Eles atuam em diversas áreas do comércio, sendo a escola apenas mais um mercado consumidor lucrativo.

Pela análise das correspondências da Escola Normal de São Paulo observa-se que há uma quantidade expressiva de material fornecido por agentes e representantes comerciais. Dentre eles, destacam-se dois sujeitos: Etienne Collet e Charles Vautelet, ambos sediados no Rio de Janeiro e representantes de empresas francesas, a Maison Emile Deyrolle e a Maison Paul Rousseau & Cie. Neste texto, a análise recai apenas sobre Charles Vautelet, pois sobressaiu-se na representação das empresas que forneceram materiais didático-científicos para o ensino de física e química.

A representação comercial e a agência integram “a categoria dos chamados contratos de colaboração empresarial” (FRANCO, 2013, p. 253). São contratos entre empresários, um representante e o outro, representado. Um, fabricante, e o outro distribuidor. Assim, Charles Vautelet fazia a intermediação entre os fabricantes europeus e os administradores escolares paulistas. No anúncio a seguir, do ano de 1896, observa-se que a Casa Paul Rousseau & Cie se apresenta como “fornecedor privilegiado do governo brasileiro” para diversos estabelecimentos, dentre eles, a Escola Normal de São Paulo.

Observa-se, também, uma lista das principais mercadorias fornecidas: instrumentos de física, produtos químicos, científicos e industriais, utensílios de química, placas e aparelhos fotográficos e material escolar. Além do destaque à especialidade da empresa, chama a atenção a menção à participação nas exposições universais. Isso pode ser visualizado não apenas nos anúncios e propagandas, mas também nas duplicatas que confirmam a aquisição de produtos da Paul Rousseau pela Escola Normal de São Paulo.

Fonte: RIO DE JANEIRO. Almanak administrativo, mercantil e industrial do Rio de Janeiro, 1896, p. 1724 – Notabilidades Commerciais e Industriais da França.

Figura 2 – Casa Paul Rousseau & Cie. 

Essa é apenas uma, dentre outras faturas localizadas, que dá notícia da aquisição de utensílios de química e aparelhos de física. São as caixas ٧ e ٨, adquiridas em 1895. Nesse ano, o diretor da Escola Normal, Gabriel Prestes, informa ao Secretário de Estado dos Negócios do Interior a existência de uma “conta de E. Charles Vautelet e Cie de importância de material de ensino fornecido pela casa Paul Rousseau e Cie, de Paris na importância de frs 1.392,60” (APESP. Série Manuscritos. Secretaria do Interior. Escola Normal. Ano 1892 - Ordem 7135).

Desse total, 5% correspondia à comissão do agente Charles Vautelet, como se vê ao final da figura. Considerando as somas das importações no fim do século XIX, ser agente ou representante de casas comerciais estrangeiras era um bom negócio. A escola torna-se um mercado lucrativo de modo que empresas e um conjunto de profissionais se estruturam para atender e criar demandas da e para a escola. Ao centro da duplicata (Figura 3), visualizam-se cenas das exposições universais e da participação da Paul Rousseau nesses eventos. A empresa foi hors concours e membro do júri na Exposição Universal de ١٨٨٩ em Paris.

Fonte: APESP. Série Manuscritos. Secretaria do Interior. Escola Normal. Ano 1892. – Ordem 7135.

Figura 3 – Duplicata Maison Paul Rousseau & Cie 

As exposições universais são disseminadoras de objetos de desejo e necessidade, criadoras de certificados de qualidade de produtos no âmbito da educação escolar. Segundo Bandeira Junior (1901, p. xiv) “[...] o industrial faz questão de collocar em logar de honra os diplomas das Exposições e Comicios Industriais”.

A modernidade estava representada tanto nos objetos adquiridos pela escola e ofertados pelas empresas quanto nos modos como os materiais eram comercializados e chegavam à escola. Nos três casos analisados – dos viajantes, mediadores e tradutores – temos os principais modos de aquisição de materiais didático-científicos, via importação, na passagem do século XIX ao XX.

A possibilidade de uso desses objetos científicos, nesse contexto de florescimento das ciências naturais na escola, é o assunto da segunda parte do texto.

Possibilidade de uso dos objetos científicos: uma abordagem pedagógica

Entre os inúmeros materiais adquiridos pela Escola Normal de São Paulo, neste trabalho serão analisados os objetos para o ensino de química. Essa opção justifica-se, primeiro, porque nesse período houve um grande investimento na aquisição de objetos para o ensino das ciências da natureza indicando uma valorização dessa área do conhecimento nos currículos; segundo, porque, ao limitar a análise aos objetos para o ensino de química, entre todos os materiais que foram adquiridos para o ensino das ciências, será possível fazer um exame mais detalhado desse material e de suas possibilidades de uso.

A organização das disciplinas de ciências na Escola Caetano de Campos seguiu o movimento geral, estimulado pela modernidade educativa que promovia o ensino das ciências de forma prática. No âmbito da educação secundária, o Regulamento do Ginásio Nacional de 1901 previa, além das disciplinas de letras e humanidades, as disciplinas de ciências: “Mathematica elementar, Elementos de mecanica e astronomia, Physica e chimica, Historia natural, Geographia, especialmente a do Brazil, Historia, especialmente a do Brazil, Logica” (BRASIL, 1901a).

Para o ensino de Chimica, Physica e História Natural as instituições escolares organizaram laboratórios, gabinetes e museus escolares e adquiriram materiais de ensino próprios para cada área, como os instrumentos, os modelos, os reagentes, as vidrarias, entre outros, quase sempre importados da Europa. Dois exemplos importantes desse movimento, além da Escola Caetano de Campos, são o Ginásio de Campinas (MELONI, 2017) e o Colégio Marista Arquidiocesano de São Paulo (BRAGHINI, 2017). Nessas instituições escolares foram organizados espaços para o ensino das ciências com objetos próprios para esse fim.

Essa organização dava-se pela valorização do ensino prático e também porque havia uma imposição determinada pelo Código dos Institutos Officiaes do Ensino Superior e Secundário de que todas as escolas equiparadas deveriam “Observar o regimen e os programmas de ensino adoptados no estabelecimento federal” (BRASIL, 1901b, Artigo 361, III).

No Regulamento do Ginásio Nacional (BRASIL, 1901a) não havia instrução a respeito da organização dos laboratórios, mas quando tratava das atribuições do preparador, oferecia uma indicação da estrutura e funcionamento desse espaço:

Os preparadores deverão ter, por algum instituto official ou a elle equiparado, o exame da cadeira a que pertencer o respectivo laboratorio. § 1º Incumbe-lhes: 1º Ter todos os objectos do gabinete catalogados e dispostos na melhor ordem e estado de asseio; 2º Preparar as collecções conforme as instruções do lente; 3º Cumprir o que pelo lente lhes for ordenado relativamente ás demonstrações praticas nas aulas. (BRASIL, 1901a, artigo 66).

Em 1883, no caso da Escola Normal de São Paulo, como já foi relatado, o professor Paulo Bourroul, que lecionava química nessa instituição, fez a compra de uma série de objetos para essa escola, sendo que para o ensino de química foram adquiridos cerca de 120 itens, entre os quais, vidrarias, fornos instrumentos, acessórios para montagens e produtos químicos (Escola Normal de São Paulo. Livro Geral de Inventário. 1895-1896).

Os tipos de objetos e as indicações de uso

A variedade de tipos de objetos chama a atenção, visto que o material era destinado a um laboratório escolar de uma escola normal, ou seja, que não tinha como finalidade principal a formação no campo das ciências, mas a formação de professores primários. Analisando a lista preparada pelo professor Bourroul, foram definidas duas categorias de objetos: utilitários, aqueles que são usados em diversos procedimentos laboratoriais cotidianos, e específicos, aqueles que são usados para montar aparatos com finalidades mais definidas. As quantidades de objetos por categorias estão na Tabela 1.

Tabela 1 – Tipologias, quantidades e exemplos de objetos de química 

Tipologias Quantidades de itens Exemplos
Utilitários 116 Alongas retas e curvas; balões de fundo redondo, bitubulado e balões tubulados; funis; retortas, fornos etc.
Específicos 4 Appareil à deplacement de Robiquet; ozonômetro; hypsomètre de Régnault; epprouvettes à gaz.

Fonte: Elaborada pelos autores.

Percebe-se pelo levantamento que prevalecem os objetos de manuseio para diversos procedimentos laboratoriais (os chamados utilitários). Nesse conjunto de materiais há alguns itens com mais de dez unidades. Entre outros estão registrados: 15 alongas retas e curvas, 51 balões de fundo redondo bi-tubulados e tubulados, 25 jarros, 25 coleiras direitas, 24 frascos de Wolf de 1 e 2 tubuladuras, 10 espátulas, 30 vasos para precipitados, 22 vidros para experiências, 55 frascos de boca larga, 60 retortas ordinárias e tubuladas, 23 retortas de vidro ordinárias e tubuladas.

Alguns desses materiais, como, por exemplo, os vasos, os jarros, as provetas, os vidros para experiências e os cadinhos, estão em grandes quantidades e são de fácil manipulação. Normalmente, esses materiais são usados para fazer a mistura de substâncias, as reações ou os armazenamentos, ou seja, são usados em procedimentos simples e poderiam ser manipulados sem qualquer dificuldades pelos estudantes. No entanto, há também objetos com registros em grandes quantidades, mas que são usados para fins muito específicos em aparatos que exigiam alguma habilidade para o seu manejo como, por exemplo, os fornos, as retortas e os frascos de Wolf. Um exemplo de uso desses materiais pode ser visto na Figura 4.

Fonte: Langlebert, 1900, p. 226.

Figura 4 – Preparação do óxido de carbono 

A Figura 4 representa uma montagem de um aparato usado para a produção de uma substância e é bastante comum nos manuais de ensino. Na figura, estão representados, no canto esquerdo, um forno e uma retorta com um líquido. A partir do tema da aula e da descrição da lição, entende-se que na retorta está sendo produzido um gás que passa pelo Tubo do Wolf, ilustrado no centro da figura, e chega ao tubo coletor. A presença do gás é ilustrada pelas pequenas bolhas que são vistas no interior do frasco coletor. A produção do gás empurra o líquido que está dentro do frasco coletor para a cuba, criando um espaço que também está representado na figura. Percebe-se que os objetos estão conectados por tubos e rolhas formando um aparato que necessita de alguma habilidade para ser montado.

Comparando as quantidades e as tipologias de objetos indicados na Tabela 1, verifica-se que a Escola Caetano de Campos possuía material tanto para que os estudantes pudessem realizar as práticas laboratoriais, tais como soluções, misturas, reações simples etc, como também possuía objetos para a montagem de aparatos mais sofisticados que servissem para observações, tal como no exemplo da figura 4.

Nos inventários da Escola Normal constam apenas 2 fornos do tipo que está ilustrado na figura 4, mas há 83 retortas e 51 balões (que também podem ser usados nesse tipo de experimento no lugar das retortas) no acervo da escola. Aparentemente, não há justificativa para a ocorrência de um número tão grande de retortas e balões, visto que só seria possível montar dois aparatos semelhantes ao que está representado na figura 4.

Ou seja, se, por um lado, a quantidade de alguns materiais indica um forte investimento na estruturação dos laboratórios, por outro lado, há uma aparente inadequação entre os objetos adquiridos e as formas de uso indicadas nesse manual. De qualquer forma, os inventários indicam que a escola estava equipada com muitos objetos e que seria possível tanto a realização de práticas pelos estudantes quanto a montagem de alguns apartatos pelo preparador ou pelo lente.

Os manuais de ensino e as indicações de usos

Nos manuais de ensino há indicações de como deveriam ser usados os objetos. Nos inventários estão listadas as obras Wurtz – Chimie moderne e Langlebert – Chimie, já citadas acima a partir da dissertação de Pestana (2011) e, embora as referências não estejam completas, pela semelhança de alguns termos dos títulos e pelas produções dos dois autores no período, tudo indica se tratar das seguintes obras:

  • WURTZ, C. A. Leçons élémentaire de chimie moderne, 4. ed. Paris: G. Masson.

  • LANGLEBERT, J. Chimie. Paris: Delalain Frères.

Em linhas gerais, do ponto de vista pedagógico, as duas obras assemelham-se. As lições são descritivas e as ilustrações têm como objetivos a demonstração de procedimentos de preparação ou a explicação das propriedades das substâncias. Analisando a edição de 1900 da obra de Langlebert, verifica-se que há desenhos de práticas que utilizam objetos, semelhantes aos que estão descritos nos inventários da Escola Normal de São Paulo.

Há inúmeros desenhos demostrativos de experimentos que tem como finalidade a produção de uma substância por uma reação química promovida por aquecimento em fornos, tal como visto na figura 4. Além dessas ilustrações, há também no final do livro uma tabela com as cores dos precipitados dos principais sais minerais e a indicação das reações para a formação desses produtos (LANGLEBERT, 1900). Nesse caso também se trata de uma operação bem simples. A preparação de precipitados pela mistura de soluções salinas está a altura dos estudantes de ensino secundário e poderia ser realizada na escola com alguma orientação.

Na apresentação desse tópico, Langlebert (1900, p. 615) defende que “nada vale mais para a memória que o ensino pela visão” (rien ne vaut, pour la mémoire, l’enseignement par la vue). Ainda que o foco do tópico estivesse de acordo com a prática da observação característica das metodologias pedagógicas do momento (BRAGHINI, 2017), as descrições contidas nesse item sugerem a realização das práticas laboratoriais pelos estudantes.

Embora o Regulamento do Ginásio Nacional atribua aos preparadores de laboratório “cumprir o que pelo lente lhes for ordenado relativamente ás demonstrações praticas nas aulas” (BRASIL, 1901a, Artigo 66), pelos tipos e quantidades de objetos que foram adquiridos pela escola e pelas indicações do manual de Langlebert (1900), havia condições muito favoráveis para a realização de procedimentos práticos pelos estudantes.

Tanto o manual de Langlebert (1900) como o acervo de objetos descritos nos inventários, estão de acordo com as duas perspectivas possíveis de ensino das ciências naquele momento, ou seja: a propostas que tinham como objetivo a realização da “demonstração como atividade pedagógica” (BRAGHINI, 2017, p. 229) e a possibilidade de que os estudantes manipulassem os objetos, indo além da simples observação.

Se em outras áreas da ciência como a história natural ou a física era mais favorável a valorização do olhar devido às características dos objetos de estudo como os animais, as plantas, as rochas ou devido à dificuldade de manipular instrumentos para o estudo do som, da luz etc, na química havia a possibilidade de que além da observação, também fosse permitido que o estudante realizasse as misturas, as triturações, as separações etc.

Os inventários e as práticas pedagógicas

O movimento do acervo ao longo do tempo oferece alguns indícios desse processo. Nos inventários de 1893, foram listados cem tipos de objetos diferentes no item “Apparelhos e utensílios”. Ao comparar com os inventários de 1883, percebe-se que houve uma diminuição de cerca de vinte itens durante esse período. Ao analisar mais especificamente os itens, verifica-se o seguinte:

Tabela 2 – Movimento dos inventários de 1883 e 1893 

  Inventários (1883) Inventários (1893)
Retortas 83 45
Alongas 15 14
Vasos de Wolf 24 14
Balões 51 4
Vasos para precipitados 30 13
Cadinhos 20 13
Recipientes 22 (vidros para experiências) 17 (copos pequenos com pés)

Fonte: Elaborada pelos autores.

A comparação indica que tanto os objetos que são usados em montagens de aparatos para a realização de reações (retortas, balões e vasos de Wolf) quanto os que são usados para procedimentos (cadinhos, balões, vasos para precipitados etc.) diminuíram as suas quantidades no acervo. A grande diferença que existe nas quantidades de retortas e de balões pode indicar que o uso desses materiais tenha sido feito por pessoas inexperientes e, portanto, que muitos desses objetos tenham se quebrado nesse período.

Os vasos para precipitados, cadinhos e os recipientes para reações diminuíram suas quantidades e como esses materiais são de fácil manuseio é possível que tenham sido manipulados diretamente pelos estudantes. É curioso que as alongas tenham mantido suas quantidades, visto que são materiais de vidro e estão sempre sujeitos a danos. Outro objeto que diminuiu em quantidade foi o forno: enquanto na listagem de 1883 há 2 fornos (semelhantes ao que está ilustrado na figura 4, chamados fourneau à bassine), nos inventários de 1893 estão listados “1 Forno pequeno” e “5 Bicos de Bunsen”. Percebe-se que houve a perda de um forno, mas foram aquiridos outros instrumentos para aquecimento.

Se houve diminuição nas quantidades em alguns itens, houve a aquisição de novos objetos nesse período. Nos inventários de 1893 foram registrados 18 bastões de vidro (objetos usados para misturar substâncias) que não havia na listagem de 1883, o que sugere um incremento em procedimentos simples de mistura.

Em resumo, os inventários indicam que houve mudanças no acervo. Por um lado, percebe-se uma diminuição na quantidade de alguns itens, o que pode indicar tanto a perda pelo uso, visto que em sua grande maioria são materiais de vidro e sujeitos a avarias, quanto pode indicar uma má conservação ou extravio. No entanto, também foi constatado que houve um aumento na quantidade de outros objetos, o que indica um constante investimento na estruturação dos laboratórios.

Considerações finais

Neste trabalho, objetivou-se abordar a proveniência e as possibilidades de uso dos materiais didático-científicos, em São Paulo, na passagem do século XIX ao XX, um período em que as ciências naturais ganham destaque no currículo da Escola Normal e do Ensino Secundário.

Foi possível demonstrar que a aquisição desses materiais se deu via importação, por meio de diferentes sujeitos aqui chamados de viajantes, mediadores e tradutores culturais. Suas ações constituíram os principais meios de provimento material da Escola Normal de São Paulo e, consequentemente, foram os principais responsáveis por equipar a Escola Normal de São Paulo com materiais científicos, em consonância com o movimento pela valorização do ensino das ciências naturais que ocorria nas instituições escolares europeias, especialmente, na França e na Alemanha.

Quanto às questões extraescolares, do ponto de vista administrativo constata-se um conjunto de práticas permeadas pela informalidade e formas assistemáticas de aquisição de materiais escolares para equipar as escolas paulistas. Do ponto de vista econômico, nota-se que essa escola obrigatória e de massa movimenta o mercado e a economia, em uma via de mão dupla. De um lado, a escola movimenta o mercado e suas necessidades fazem com que ele se adapte para atender a demanda. De outro lado, o mercado cria objetos de desejos para a escola.

Nos diversos modos de aquisição, não é difícil verificar uma imbricação entre o público e o privado, tanto na esfera da legalidade quanto nos procedimentos extraoficiais. Na esfera da legalidade, pode-se afirmar que a expansão da escola pública, obrigatória e de massas em São Paulo não se deu sem o suporte do setor privado, isto é, da indústria escolar que passou a fornecer o mobiliário e todos os modernos equipamentos e objetos necessários ao desenvolvimento de uma pedagogia moderna. No caso dos procedimentos extraoficiais, tanto Paulo Bourroul quanto Miss. Brown fazem viagens particulares para a França e os Estados Unidos, respectivamente, e são autorizados e/ou incumbidos pelo governo de aquisição de materiais de ensino para a Escola Normal. Essas relações promíscuas entre o público e o privado, como meio de facilitar a prestação do serviço público conviveria durante muito tempo na área da educação, mas também de outros serviços públicos.

Quanto às questões intraescolares, a análise do acervo dos processos de aquisição e dos inventários indica que no período analisado houve um grande investimento na estruturação material da Escola Normal de São Paulo, especialmente no que se refere ao ensino das ciências naturais/química. Isso deve-se a um movimento de valorização do conhecimento da natureza e à promoção de pedagogias ativas, influenciada pela proposição do método intuitivo. Também contribuíram para esse movimento os processos de produção e comercialização de materiais pedagógicos.

Quanto às práticas pedagógicas, os tipos e as quantidades de materiais, as práticas existentes no manual de Langlebert (1900) e os inventários indicam uma valorização da educação prática, em oposição ao ensino livresco. A partir dessa investigação, não se pode afirmar com segurança se essas práticas se limitavam à valorização da observação ou se se aproximavam dos preceitos do método intuitivo e da intenção de uma formação com sentido prático. O fato é que no final do século XIX os laboratórios escolares se tornaram espaços organizados, estruturados e ativos dentro da escola e isso não poderia deixar de influenciar a formação de professores nesse período.

Por fim, se no âmbito da formação de professores de ciências carecemos de mais estudos e pesquisas que problematizem a constituição histórica dessa área do conhecimento, este trabalho traz uma contribuição no sentido de explicitar, a partir da análise de um caso concreto, a Escola Normal de São Paulo, quando e como as ciências naturais vão adquirindo o status de conhecimento relevante na formação de professores primários e secundários, sendo, portanto, digna de investimento público.

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2- O vapor Sully também fazia parte da frota da Companhia Francesa de Navegação a Vapor. A única informação obtida acerca dele é que ele partia do porto do Havre.

Recebido: 11 de Julho de 2018; Revisado: 29 de Outubro de 2018; Aceito: 18 de Dezembro de 2018

Reginaldo Alberto Meloni é graduado em química e pedagogia, mestre em história social e doutor em história da educação. Atualmente é professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) campus de Diadema. É coordenador do Grupo de Pesquisa em História da Educação em Ciências.

Wiara Rosa Rios Alcântara é graduada em pedagogia, mestre e doutora em educação pela Universidade de São Paulo. É professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) campus de Diadema. É membro do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em História Educação (NIEPHE-USP) e do Grupo de Pesquisa em História da Educação em Ciências na Unifesp/Diadema.

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