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Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.45  São Paulo  2019  Epub 31-Out-2019

https://doi.org/10.1590/s1678-4634201945213815 

Artigos

Quando limpam com fogo, como ficam as crianças? Vidas abreviadas, vidas breves

Marcia Aparecida Gobbi1 
http://orcid.org/0000-0001-9850-0190

1- Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo – São Paulo – SP – Brasil. Contato: mgobbi@usp.br.


Resumo

Este artigo decorre de recorte de pesquisa em andamento, cujo propósito é conhecer ocupações e a luta por moradia a partir de um grupo específico de seus moradores, a saber: as crianças. Após o incêndio no edifício Wilton Paes de Almeida, em 1 de maio de 2018, 200 pessoas, entre elas muitas crianças, passaram a ocupar o Largo do Paissandu, em São Paulo. Esse acontecimento impôs-se ao percurso já trilhado da pesquisa compondo-a e oferecendo-se como rica oportunidade de conhecer aspectos relacionados à ocupação e à produção do espaço a partir das crianças que o compunham diariamente, revelando formas de luta que se constituíam de doações e negociações com o poder público municipal. Para tanto, foram realizadas observações em campo desde maio até 10 de agosto de 2018, quando os últimos moradores foram retirados do Largo. Com caráter qualitativo, foram realizadas entrevistas e conversas envolvendo adultos e crianças. As relações de meninas e meninos com o espaço físico, em especial a chamada Praia Urbana, evidenciou capacidade de transformação do espaço em lugar de coexistência envolvendo processos de criação, brincadeiras, conflitos, disputas e diálogos constantes, dando a perceber diferentes formas de abreviação de suas vidas – não compreendendo apenas a morte física – em um projeto político que escolhe as vidas que, em sua precariedade, importam.

Palavras-Chave: Luta por moradia; Infância; Gênero; Cidade; Ocupações

Abstract

This article arises from a study in progress which aims to learn about squats and the struggle for housing by focusing on a specific group of its residents, namely children. Following the fire in the Wilton Paes de Almeida building on May 1, 2018, 200 people, including many children, came to occupy Paissandu Square, in the city of São Paulo. This event imposed itself on the path already taken by the study, becoming part of it and offering itself as a rich opportunity to learn about aspects related to the occupation and production of space, starting with the children who composed it daily, and revealing forms of struggle that consisted of donations and negotiations with the municipal government. To that end, field observations were carried out from May until August 10, 2018, when the last occupants were removed from the square. Being a qualitative study, interviews and talks were conducted involving adults and children. The relationship of girls and boys with the physical space, especially the so-called Praia Urbana (Urban Beach), showed their ability to turn the space into a place of coexistence involving processes of creation, play, conflicts, disputes and constant dialogues, which provides insight into different forms of abbreviation of their lives – comprising not only physical death – in a political project that chooses the lives that, in their precariousness, matter.

Key words: Struggle for housing; Childhood; Gender; City; Squats

Las cicatrices nos recuerdan que nuestro pasado es real.

Kader Attia

Tornou-se difícil transitar incólume pelo Largo do Paissandu, em São Paulo, após o dia do trabalhador em 2018. Esse local passou a abrigar, dessa data até 10 de agosto do mesmo ano, famílias de trabalhadores sem teto que ocupavam o outrora moderno Edifício Wilton Paes de Almeida, incendiado no dia 1º de Maio. Pessoas comuns, profissionais de diferentes áreas e representantes de políticos buscavam definições para o acontecimento e apresentavam toda sorte de respostas que, majoritariamente, responsabilizavam moradores e/ou movimentos sociais de luta por moradia e seus possíveis descuidos quanto à organização das pessoas e dos locais onde viviam.

Logo após tomar contato com as imagens publicadas acerca do assunto, fui tomada por uma questão: em que medida a vida dos outros realmente nos importa? Entre as falas e as imagens que passaram a circular, pareciam faltar importantes atores sociais a testemunhar os fatos: os próprios moradores e, entre eles, as crianças, também residentes da ocupação incendiada e que, certamente, podiam informar ou representar algo sobre o ocorrido. Interessada na infância e seus modos de ver, morar e viver em ocupações e atônita pelas informações e imagens vistas e noticiadas pela imprensa escrita e falada, para lá rumei portando questões amplas a respeito do que havia acontecido, e outras, voltadas para interesses específicos quanto à infância e suas vidas em edifícios e terrenos ocupados na cidade.

As imagens que sobrecarregavam de informações sobre os acontecimentos – em grande parte privilegiando a arquitetura em ruinas em detrimento das pessoas, em semelhante situação – convocam pensamentos e posturas políticas que se situam e a nós, para além da atonia, evocam sentimentos e práticas e, ainda que não queiramos, provocam a reflexão acerca de vínculos, ora mais, ora menos afastados dessa população que passava a ocupar, como refugiados urbanos, o próprio Largo do Paissandu, nos arredores da Igreja Nossa Senhora dos Homens Pretos, a poucos metros do prédio incendiado.

Procuro abarcar esse recente acontecimento na cidade que foi se entretecendo e impondo mudanças ao percurso de pesquisa em andamento 2 que tem como proposta conhecer a infância em luta em uma ocupação específica da região central e outras periféricas abrangendo as imagens elaboradas por crianças que evidenciem de algum modo o cotidiano na moradia. Fenômeno social relativamente recente, as ocupações, nos moldes em que têm se dado, exigem investigações a partir de diferentes campos teóricos. São encontradas lacunas, sobretudo, quando buscamos compreendê-las segundo as crianças que delas fazem parte. O objetivo é contribuir para o tema infância – sem excluir os bebês – em contextos urbanos, em especial a luta por moradia, a partir de pesquisa de campo, encarando a ocupação no Paissandu como um recorte e complemento de pesquisa de maior fôlego. Para compreensão, dentro dos limites de um artigo, exploro conceituações sociológicas e filosóficas, bem como a etnografia como inspiração para as observações durante a permanência em campo.

O incêndio na ocupação situada no Edifício Wilton Paes de Almeida – localizado entre a Rua Antônio de Godoi, 33, e a Avenida Rio Branco, 10 –, que lá estava desde a década de 1960 e ocupado por moradores sem teto, levou-me a caminhos não elencados inicialmente. Como sabido, as questões iniciais em uma pesquisa oferecem-se como guias e a própria incursão em campo, seja por meio de documentos escritos, imagéticos ou diferentes locais na cidade, informam-nos para onde ir e apontam percursos nem sempre planejados. Desse modo, lá fui com destino ao Largo do Paissandu, a pé em boa parte do percurso, com a pretensão de compreender e me familiarizar com o entorno.

Um problema surge: pessoas, incluindo bebês, passam a ter maior visibilidade ao aparecer de forma numerosa no espaço público do Largo. Esse fato impõe debates acerca de seus usos e, mais, a respeito das crianças que passam a o usar frequentemente, reconfigurando-o. Novas relações são estabelecidas em situações inesperadas com as crianças de todas as idades. Preocupa-me correr o risco de não encarar certa formação de olhar complacente à penúria que está envolta às ações infantis. Mediada por representações que espetacularizam a infância, o desafio é estranhá-las, sem deixar de observar as ações que implicam processos de criação infantil nesses espaços e em condições adversas.

Considero que a escrita pode ser apresentada também como forma de estar ao lado daqueles e daquelas cujas falas são negadas ou desconhecidas. Parto desse princípio para a elaboração deste artigo. As escritas ficam entre nós e nos marcam, produzem coisas a quem lê, assim como as imagens a quem as vê, sendo potencialmente provocadoras. A escrita no cartaz ( figura 2 ), em parte, posiciona-me ao lado das crianças no desejo/direito registrado graficamente por uma menina durante preparativos para uma manifestação no Largo. Interessa aqui questionar a prática em que crianças e mesmo adultos, a depender dos lugares que ocupam, são meros alvos das falas de alguém, adultos em sua maioria.

Fonte: material da pesquisa*, coletado por Matheus Rodrigues Pesso Salgado. *Agradeço a Matheus Rodrigues Pesso Salgado com quem partilhei importantes momentos desta pesquisa e que gentilmente cedeu-me a imagem do cartaz construída junto às crianças em um dia de estada em campo. Destaca-se que ora estivemos juntos, ora separadamente no Largo Paissandu motivados por diferentes interesses de pesquisa. Matheus desenvolvia investigação relacionada ao PUB, Programa Unificado de Bolsas, por mim coordenada cujos resultados podem ser acessados em seu relatório final, bem como em artigo que publicaremos brevemente.

Figura 2 – Cartaz elaborado na ocupação do Largo do Paissandu, num domingo do mês de maio, por uma menina de oito anos de idade. Caneta hidrocor preta sobre papel reusado. 

A partir da experiência em campo, buscou-se observar a produção do espaço pelas crianças, agentes em processo de luta – que se dá, ainda que de modo furtivo ou efêmero – em distintas maneiras, entre elas nas brincadeiras vivenciadas. Pergunto se é possível reconhecer certa lógica infantil elaborada entre meninas e meninos de diferentes idades e gêneros ao longo de um processo de permanência e luta por moradia. As crianças estarão no processo de luta construindo outras formas de reivindicar direitos e práticas sociais que lhes são extirpados? Escrevo sobre elas, a partir de observações, diálogos e brincadeiras em campo, e com elas , já que suas vozes e práticas sociais ficaram intrincadas à minha marcando-me durante e após a estada em campo, ao mesmo tempo em que fui testemunha-participante do longo processo de luta e sobrevivência nesse espaço, e, com isso, estão aqui representadas.

Esta investigação valeu-se de prática metodológica participativa (OLIVEIRA; AMARAL; SILVA, 2018) junto às crianças e vários adultos ocupantes do Paissandu, envolvendo um trabalho de campo qualitativo que lhe deu sustentação. O tempo de pesquisa teve sua duração ao longo da permanência dos ocupantes no Largo do Paissandu, em visitas semanais, em quase sua totalidade vespertina, desde 03 de maio a 10 de agosto de 2018.

O incêndio3 do edifício Wilton Paes de Almeida, ocupado por moradores sem teto, soma-se ao de tantas outras ocupações e favelas em diferentes regiões da cidade. Aqui formulou-se a pergunta, título deste artigo: Quando limpam com fogo4 , como ficam as crianças? Como ficam suas vidas? Interessam a alguém? No mesmo título deixo uma pista: vidas abreviadas. Parto da convicção de que vidas não são descartáveis. Ou têm sido? Alio as crianças à preocupação com as vidas, não quaisquer crianças, mas as que estão em luta junto a seus familiares em locais como praças, terrenos, ruas, edifícios e ocupações buscando conquistar o direito à moradia, e não só. Assim como os adultos que as acompanham no embate, infere-se aqui que as meninas e os meninos, desde bem pequenos, também podem tornar-se descartáveis, em um processo de retirada de direitos que ocorre mundialmente de forma rápida e ainda mais aligeirada no Brasil. Seus corpos presentes nesses espaços já se apresentam como provocadores de reflexões e indignações as mais diversas. Trata-se de modos particulares de conceber e experimentar a infância, de se relacionar e estabelecer vínculos de filiação e de práticas políticas e institucionais.

No caso abordado, observaram-se todos os ocupantes do Paissandu, em destaque as crianças que lá permaneceram por 101 dias mostrando a si mesmas e suas organizações materiais e imateriais – essas últimas percebidas nas brincadeiras propostas e seus costumes. Evidenciavam maneiras de organização e luta em que ocupar os espaços públicos e fazer vigílias surgem como forma e conteúdo que colocam em questão noções políticas, governos eivados e, por isso, contestados ao modo de cada grupo. O curioso e o que nos interessa particularmente: com meninas e meninos em variadas idades. Os corpos ajeitando-se pelo chão se amontoavam e se misturavam entre barracas que iam pipocando em meio a doações. Suas presenças interpelam-nos. Incômodo, em uma exposição que mais parece ferida aberta que cicatriz. Como afirma Butler (2018 , p. 17):

Do meu ponto de vista mais limitado, quero sugerir somente que quando corpos se juntam na rua, na praça ou em outras formas de espaço público (incluído os virtuais) eles estão exercitando um direito plural e performativo de aparecer, um direito que afirma e instaura o corpo no meio do campo político e que, em sua função expressiva e significativa, transmite uma exigência corpórea por um conjunto mais suportável de condições econômicas, sociais, políticas, não mais afetadas pelas formas induzidas de condição precária.

A hipótese inicialmente elaborada é a de que apesar da fugacidade com que as relações são tecidas, há uma forma de se apropriar do entorno e do urbano – no sentido dado por Lefebvre (2001). Apropriação que pode ser alimentada pelo gênero e idade de quem o habita, redefinindo-o, ou mesmo, atribuindo valor e uso a objetos e condições sociais que cairiam no esquecimento. Brincadeiras, corpos, gestos, cheiros, perguntas, tempos, falas e desenhos são práticas que se reorientam nesses espaços compostos também pelas crianças e lhes configuram ao modo de ser de meninas e meninos que passam a os compor, sendo moradores ou frequentadores de longo tempo ou não. Afirmo a existência de um confronto entre lógicas de dominação, quando penso nas crianças em espaços públicos urbanos. Seus corpos, tidos historicamente como frágeis e em desproteção constante, agora nas ruas, ganham e implicam outras possibilidades de compreensão e trazem em sua presença uma marca reivindicatória. A presença das crianças quando andam pelos parques dialogando, a seu modo e tempo, com aqueles que lá estão, ou meramente caminhando pelas ruas em si, indica possíveis reflexões acerca da coletividade, sobre a – quem sabe? – apropriação não capitalista do espaço, sendo também, a seu modo e tempo, agentes e testemunhas da luta urbana, embora ainda pouco escutadas e consideradas em suas especificidades.

Embora circunscritos a essa parte da cidade de São Paulo, a região central, os acontecimentos recentes, pelos quais passaram seus moradores, guardam grande relevância para se pensar de modo mais amplo a respeito das demais ocupações existentes no país e as vidas forjadas nessa batalha, em especial as das crianças que busco destacar por compreender que sua presença e as práticas sociais por elas engendradas nesse contexto, e em tão precárias condições, apresentam-se como afrontas a uma espacialidade citadina cuja gramática, ao ser desconhecida, insiste em deixá-las de lado. Outras interpretações surgirão como desdobramentos dessas ponderações e virão certamente com outros enlaces e diferentes vertentes teóricas. Sabe-se que a história inscrita no espaço deixará suas marcas e suscitará investigações futuras, certamente bem-vindas.

“Assim que a gente tá, parece bicho, olha as grades” 5 - Chegada ao Largo do Paissandu: na cabeça, muitas perguntas, nas ruas, tanto descaso

A forma urbana dá-nos boa percepção do que compreendemos por cidade. Ao entrarmos em contato com o que há de material e simbólico na cidade, constatamos não apenas sua história, como também as relações que a marcam e são marcadas por ela. Estando atentos é possível perceber que a cidade nos informa acerca de disputas entre grupos sociais, desejos e fantasias expressos em diferentes aspectos simbólicos presentes nas paredes, nos cantos, em corpos e gestos das pessoas que passam ou ficam. Elementos que podem ser registrados pela percepção visual e olfativa e fazem saber se estamos em determinadas épocas ou lugares dessa mesma cidade ( COURBAIN, 1988 ). Esses elementos, que estão envoltos em nós, e pouco os percebemos, são fundamentais para chamarmos a atenção para as relações estabelecidas, para as transformações históricas, para a população frequentadora e os grupos que a constitui. Conhecê-los e as suas transformações nos serve para examinarmos as estratégias usadas para dominação e imposições de certos interesses em detrimento de outros, implicando, evidentemente, a permanência ou exclusão de grupos e pessoas, entre eles as crianças.

O edifício Wilton Paes de Almeida foi tombado em 1992 pelo Conselho do Patrimônio Histórico, Cultural e Social do Estado de São Paulo (CONPRESP) e declarado pela Resolução nº 37/92 como nível de proteção 3, que “corresponde a bens de interesse histórico, arquitetônico, paisagístico e ambiental, determinando a preservação de suas características externas” ( MURARO, 2018 ), e, em 2015, passou a ser ocupado por moradores sem teto. A chegada à ocupação no Paissandu não resultava de mera curiosidade suscitada pelos periódicos locais, ou por sua contribuição à história das edificações, mas, sim, de um caminho delineado com o objetivo de refletir a respeito de ocupações e crianças nessa região, notadamente em disputa entre grupos que têm forçado sua aparição, reivindicando seus direitos, e outros que, insistentemente, os rechaçam e segregam afirmando-os como invasores, tal como noticiava o jornal de grande circulação ( figura 1 ).

Fonte: Folha de São Paulo, 01/05/2018.

Figura 1 – Notícia da Folha de S. Paulo 

Os ex-moradores da ocupação do Edifício Wilton Paes de Almeida ficaram abrigados em suas barracas nos arredores e em frente à Igreja Nossa Senhora dos Homens Pretos, cuja construção no Largo do Paissandu data de 1906. Essa igreja fora construída em outras áreas da cidade e demolida em seus processos de expansão que afastava os negros proibidos de frequentar as igrejas dos brancos. No início do século XX, o local em que se instalara, e onde permanece até hoje, garantia certa invisibilidade àqueles que a frequentavam, ao mesmo tempo em que servia de palco a manifestações culturais e políticas. O Largo permanecia com certa centralidade que se desloca para outro eixo de interesses econômicos, qual seja, a Avenida Paulista e proximidades, criando comportamentos e modos de vida e demonstrando relações econômicas promotoras dessas mudanças e não apenas espaciais. Não há propriamente o abandono de um território para construir outro, mas sim um jogo de interesses econômicos, sociais e políticos que, ao se materializarem, criam centros, outros bairros e formas de viver e se relacionar. A chegada ao Largo torna perceptíveis diferentes temporalidades. Coexistem a Mãe Preta, escultura de Júlio Guerra, de 1955, a Igreja Nossa Senhora dos Homens Pretos, de 1906, a Praia Urbana6 , bares, hotéis e restaurantes e as pessoas que passaram a residir ocupando com barracas o próprio Largo. É possível observar em detalhes os tempos e suas impressões nesse espaço. Em camadas justapostas histórica e socialmente expressam-se as relações entre diferentes grupos estabelecidas ao longo de mais de um século.

Os edifícios, outrora imponentes, que encontramos ao redor e em regiões próximas como Luz, Sé, Barra Funda, Santa Ifigênia e Santa Cecília guardam indícios para se pensar a respeito da exclusão social e espacial em São Paulo e os processos de urbanização, como constata Somekh (2013) , referindo-se à produção difusa e segregadora da cidade, do que também derivou o déficit de 380 mil moradias em São Paulo ( SANTIAGO; MURARO, 2018 ) e, entrecruzados por outras questões, as 7,7 milhões no Brasil, colocando-o em primeiro lugar no mundo quanto à desigualdade no direito à moradia. Há um descaso planejado que projeta habilmente a pauperização do local e de seus moradores criando no imaginário social a crença de que o esvaziamento e a retomada por outros grupos são as únicas soluções. Isso evidencia-se, entre outras coisas, pelo processo de gentrificação em ações tomadas por gestores da Prefeitura de São Paulo, sobretudo, na chamada cracolândia 7 , ou seja, gentrificação e especulação imobiliária caminham indissociáveis nos processos de mudança da região central da cidade, exibindo formas complexas de lidar com elas. Pessoas ficam, outras retornam e reivindicam acesso aos transportes e ao comércio ainda ausentes em regiões periféricas. Aluguéis caros, aproximação a postos de trabalho e transportes levam à luta por moradias em ocupações, e as crianças, junto a esses grupos, carregam com elas indiretamente outras necessidades.

Observa-se que entre as disputas presentes nesses espaços da cidade, o interesse imobiliário chamusca e confere a luta a formas de vida de diferentes grupos sociais, entre eles as meninas e os meninos, desde bebês. Eles encontram-se em companhia de familiares, majoritariamente suas mães, e amigos participando de um cotidiano extenuante em moradias e ruas pouco convidativas ou acolhedoras às infâncias. Se interessa apenas a manutenção de algumas vidas, o que dizer da exposição de crianças e suas existências, sobretudo, na construção de vivências bastante instáveis no que tange à frequência nas escolas, às relações familiares e amigos, à formação cultural em suas diferentes etapas e processos de socialização nos locais de moradia e instituições?

Em um amplo projeto de extermínio dos diferentes, acentuando entre esses os mais pobres, a infância também se encontra em linha de tiro. Alguns homens, muitas mulheres e crianças são concebidos como ameaças a uma suposta ordem local e trazem em seus corpos as marcas – cicatrizes, diria o artista e ativista político franco-argelino Kader Attia – que mostram suas vidas e origens sociais a todos àqueles que conseguem e querem, ou não, ver, e disso a infância não escapa, ao contrário a compõe. Crianças, e não somente os adultos, podem passar a ser vistos como os sem-lugar 8 aqueles que, sem moradia fixa, são colocados ou se colocam em qualquer ponto da cidade, ora ocupando espaços e edifícios vazios, ora morando em viadutos, pontes, avenidas. Trata-se de uma derivação da desigualdade social em que estamos e contra a qual, por vezes, alguns cometem delitos de ódio das mais diferentes formas. No âmbito das pesquisas acadêmicas, estudos mostram-nos meninas e meninos em situação de pobreza no urbano, sobretudo a partir dos anos 1980, como os de Alvim; Valladares (1988) ; Del Priore (1999) ; Freitas (2003) e Freitas (2014) . Mas o que dizer acerca das crianças moradoras de ocupações urbanas? Fenômeno ainda pouco estudado quando os assuntos buscam conjugar infância, cidade, luta por moradia e direito à cidade. Assim, este estudo almeja compor com as pesquisas mencionadas.

Estar em campo implica uma operação analítica que aspira pelo estranhamento, pela contextualização e identificação de relações existentes, e, quem sabe, compreender nas entrelinhas, nos ditos e não ditos, e é também testemunhar transformações e relações nele engendradas ao longo do tempo. Logo no início, ainda não familiarizada ao Paissandu, decidi por permanecer sentada em bancos situados nas laterais da igreja e, por vezes, andar pelo Largo. No segundo dia em que permanecia no banco, um dos moradores me dirige a palavra com uma questão importante: “A senhora não é daqui não, é?”. A pergunta esboçava mais que curiosidade. Eu ganhava ali uma marca, a de fora, de outro lugar e fui me distanciando do morador, que sinalizava respeito, curiosidade e estranhamento. Guardava em meu corpo e gestos os sinais de estrangeira ao local. Seu modo de tratamento me situava no lugar de pertencente a outro grupo. Minha incursão principiava nesse terreno e com pessoas multifacetadas que o ocupavam e davam o tom das diferenças ali coexistentes.

Caminhada, fotografia e observação compunham a estada em campo, assim como puxar alguma conversa com quem passava: pessoas que pareciam familiarizadas com o local, muitas trabalhadoras do sexo e vários homens em uma feira do rolo9 , vizinha da Praia Urbana, e do parque onde as crianças brincavam. No Largo do Paissandu, instalaram-se pequenas barracas de camping doadas por anônimos que abrigaram em torno de 200 pessoas. Famílias, pessoas sozinhas, mulheres com seus filhos e vários bebês – não consegui dados a respeito do número exato de crianças. Era possível ver pessoas na luta pelo prato de comida, pelos agasalhos, que ao chegarem eram gritados pela senhora que recebia doações, cujos tecidos, já bastante puídos, metaforicamente, mais revelavam acerca da condição social do momento do que a própria oferta de roupa a aquecer alguém.

Observar as brincadeiras e conversar com as crianças revelaram-se como ricas oportunidades de contato e vínculo. Com adultos e adultas optei por entrevistas e conversas informais respeitando a disponibilidade de tempo e desejo de falar acerca da vida no novo contexto e antes do incêndio propriamente dito. Sentar-se nos bancos próximos aos tablados e brinquedos existentes no Largo do Paissandu e apenas observar as relações entre todos os passantes e demais agentes nesse pedaço da cidade somou-se ao andar pelas ruas e se configurou como importante forma de compreender e estar no espaço considerando as relações nele criadas ou recriadas. O caderno de campo apresentou-se como recurso fundamental para anotações e reflexões diárias.

Enquanto andava pelo Largo, observei que nesses dias ele passou a se comportar como espaço do aparecimento, fruto de reivindicações que, mesmo silentes, reclamam pelos direitos das crianças e adultos que lá estavam. Segundo Butler (2018 , p. 57):

[...] esse direito é apoiado por esquemas regulatórios que qualificam apenas certos sujeitos como elegíveis para o exercício desse direito. Então não importa quão universal o direito de aparecer reivindique ser, o seu universalismo é minado por formas diferenciais de podem que qualificam quem pode e quem não pode aparecer.

Trata-se de direito reclamado pela presença física, pelos gestos e falas e que se apresenta por e com as crianças em diferentes manifestações, em especial, no uso do parque da Praia Urbana ocupada por elas, que se inundou de suas brincadeiras desenvolvidas de modo diversificado, até então ausentes. Com isso, afirmo que, embora seu ocultamento, ou a exclusão do viver em moradias dignas, resulte de definição prévia de pequenos grupos que decidem quem deve ou não estar no espaço público, suas presenças levam à percepção da existência de certa força que rompe com essa determinação ao entrar pela abertura de uma pequena fenda. É visível, sobretudo entre as crianças, uma manifestação agente de alteração desse cotidiano de agruras. Parece-nos que não é somente a sobrevivência física que está em jogo, mas o direito a outras formas de viver em sociedade em que a exclusão social seja questionada e deixe de existir, assim como encontre ressonância a recuperação coletiva de espaços urbanos que estão em disputa pelo mercado imobiliário. Isso oferece-se como ponto fundamental para se refletir acerca de movimentos sociais, e as crianças em luta compondo-se e às suas práticas de modo singular.

Nos arredores da ocupação era possível reparar a criação e uso de espaços impensados para se estar e brincar: mesas de bares que viram pistas de corrida de copos de plásticos e carrinhos, jardins nada ajardinados onde se corre e senta, barracas e caixas de papelão onde alguém dormira tornam-se esconderijos. O fato é que as crianças estão por lá e vão se virando de diferentes maneiras, em busca da experiência vital de brincar em uma expressão de experiência de cidade. Quando buscamos pesquisar crianças com até seis anos de idade, a viração ( GREGORI, 2000 ) parece ganhar outros contornos. Ela é fortemente incrementada com jogos e brincadeiras, em abstrações que interrompem as agruras diárias com brinquedos achados no lixo ou doados por algum passante, isso indistintamente entre meninos e meninas. Mostram-nos, sem querer, que o direito à cidade é mais amplo que direito à moradia, é direito ao brincar. É “direito à liberdade, individualização na socialização, ao habitat e ao habitar. Direito à obra (atividade participante) e direito à apropriação (bem distinto do direito à propriedade)” (LEFEBVRE, 2001, p. 134-135).

As crianças, e não somente elas, são expropriadas desse direito desde cedo, ao mesmo tempo em que o constroem, reivindicam-no e o representam junto a seus familiares e demais componentes dos grupos e classes sociais aos quais pertencem. Interrogam-se a cidade e os problemas de habitação, mas, também, as experiências das crianças como seus agentes. O habitar a cidade, que abarca apropriar-se e processos de criação (LEFEBVRE, 2001), passa pela determinação do como se quer habitar, o que pode ser percebido e elaborado pelas crianças, quando são compreendidas como sujeitos e agentes. Ressaltamos que percebemos suas presenças, vozes e reivindicações em assembleias, nas falas das mulheres entrevistadas por mim, para as quais não se pode desconsiderar as crianças e suas manifestações. As crianças da ocupação do Largo do Paissandu não são exatamente sem lugar , e sequer aqueles em situação de rua. Exigem outra compreensão.

O desenho azul do menino sobre o chão sujo: suspensão em meio ao caos

Em um dos dias em que estava me dirigindo ao Largo, ao chegar em frente ao ponto de ônibus que liga a região central aos bairros periféricos, avisto um menino flagrantemente à parte a tudo o que acontecia. Deixando a contenda pela comida e vestuário, o menino desenhava. O olho fixado e a atenção destinada à criação, o corpo curvado sobre o chão cuspido – tão sujo – em que os passantes pisavam sem ver e abandonavam os restos de comida que não cabiam nos cestos abarrotados de lixo. Em amplos gestos, o menino deixava lá seu registro com giz azul e o marcava em mim. A situação naquele momento cutucava a ver poiesis onde havia o caos e as precárias condições de vida misturando-se aos escombros e fumaça que ainda subia por entre madeiras e tijolos queimados. Tinha-se um gesto de leveza no meio da turbulência-trágica que assolou algumas vidas e a vida da cidade, a cena vista levou-me à suspensão.

Traços que denotavam outro tempo em disputa com a ligeireza de tomar conhecimento do acontecido. De lá partiam linhas em uma cor azul de giz comumente usado em lousa escolar. De onde veio aquele toquinho de giz? De onde saía a força externada pelo garoto que desenhava ensimesmado naquelas condições aparentemente castradoras de qualquer ato criador? Há mais em um pedaço de giz escolar do que podemos supor, sobretudo, quando se aprende desconfiar das respostas mais fáceis e a questionar o improvável, o mais resistente. As linhas em destaque no chão evidenciavam práticas sociais que alimentariam a pesquisa e a escrita deste artigo, e fui seguindo a linha. Buscava as crianças e elas apareciam também na fatura de traços-indícios de sua existência. Se, em um primeiro momento, fui levada a considerar incontestável vulnerabilidade do menino, em um tempo depois, reflito acerca da força contida nessa ação, a qual, de certo modo, o insere, e a sua condição, politicamente nesse espaço. Quer dizer, se sua presença corre o risco de apagamento, seu ato o inscreve no espaço público, marcando de algum modo aqueles que passam, e os traços ficam.

Entendo que o pedaço de giz guardava e esboçava diferentes condições vividas em curto espaço de tempo. Talvez, encontre-se no limite entre o passado, tão próximo quando se frequentava uma escola e a relação com amigos e colegas, e o presente na rua e em uma praça entre transeuntes estranhos, compondo novos elementos no cotidiano que se faz, em grande parte, em repetição de agruras, que revelam a olhos vistos um constante aprimoramento de práticas e técnicas contemporâneas de submissão das vidas ao poder de morte, como afirmaria Mbembe (2011) . Isso reflete-se em práticas segregadoras que afastam de certas regiões alguns grupos sociais indesejados em uma forma de extermínio de seus corpos, de seus jeitos, seus modos de ser e de agir e da memória que poderiam construir ou deixar. Nesse caso, e de tantos incêndios, em um processo de limpeza com o fogo na constante higienização urbana vista ao longo da história dessa cidade. Formas indecorosas de acabar com o outro, com o indesejado, com o diferente. E o traço azul resiste, apesar de apagável com facilidade.

Cicatrizes na cidade: fogo e luta das crianças nos arredores

Se certas vidas não são qualificadas como vidas ou se, desde o começo, não são concebíveis como vidas de acordo com certos enquadramentos epistemológicos, então essas vidas nunca serão vividas nem perdidas no sentido pleno dessas palavras.

Judith Butler

Indagar acerca da vida de meninas e meninos presentes nesse espaço ocupado, sem esquecer, evidentemente, daqueles em que vidas precárias estão a disputar com outras empobrecidas motivou a pesquisa e as idas a campo semanalmente. Que vidas importam? ( BUTLER, 2015 ). Quais são enquadradas em luto e em vida plena, ou ainda, quais são as que merecem viver e continuar? Quais olhamos e nos deparamos como se fossem mais importantes que outras? Soma-se a isso a aporofobia ( CORTINA, 2016 ). Perigosa fobia que justifica práticas segregadoras com base em higienização de cidades e gentes. Se a xenofobia se caracteriza pela aversão ao outro, ao estrangeiro, a aporofobia traz-nos um elemento a mais para pensar e compor esse outro: a repugnância ao pobre.

Cortina (2016) apresenta elementos para pensarmos a respeito da construção do ódio a todos aqueles que não têm meios para consumir produtos que lhes são ofertados diariamente. Segundo a compreensão da autora, a partir de contextos europeus de xenofobia, negros, indígenas, pessoas de outras nacionalidades têm lugares de melhor acento quando endinheirados, diferentemente do pobre ou miserável cuja falta de possibilidades de consumir o torna pessoa malquista. Desprovido da condição de consumidores, não deixará valores nos países para onde vai, como migrante e não como turista, ou mesmo, como desempregado, sem posses. Isso interessa-nos quando refletimos acerca dos moradores de ocupações e entre eles as crianças pobres que, na ocupação do Largo do Paissandu, apresentam características que lhes colocam em situação de rua, de ex-moradores e de ocupantes na luta por moradia. A própria denominação “invasores” – presente na capa de um dos jornais do dia ( figura 1 ) – ou de áreas invadidas indicam a compreensão acerca de que lugar ocupam ou lhes é destinado, impondo a toda a população pobre, e suas crianças, o rebotalho nas franjas de uma cidade, se possível tornando-se invisíveis. Contudo, ao se movimentarem implicam urgência à necessidade de mudança estrutural na cidade. Trata-se de mudança que urge ser pensada também com as crianças, em suas sutis formas de luta.

Tomo essa reflexão como fundamental para se pensar a respeito das condições e relações impostas às crianças nesse contexto, ao acompanharem familiares na luta, podem carregar representações a eles destinadas. Encontram-se hoje em situação de rua, já que se trata de grupos desabrigados de uma moradia ocupada e incendiada, ou seja, foram impelidos a ocupar o espaço público de um Largo pelo não cumprimento do direito à moradia digna que poderia ser concedido aos adultos. Além de estarem em constante e angustiante processo de negociação com o poder público para obtenção do auxílio-aluguel no valor de R$400,0010 , que evidentemente pouco ou nada cobre de suas despesas mínimas.

A presença de grupos infantis – constituídos por moradores de ocupações – em largos e praças, atravessando, com seus diferentes ritmos, as avenidas e ruas provoca deslocamentos e tensões. Alheias, as pessoas passavam diante desse estado de coisas e gentes. Suas existências se dão diante de nós tão somente pela provocação à ordem, por atrapalharem a rotina e o tempo diário, conflitar com uma suposta beleza ordenada de cidade, ou ainda, por trazer em seus corpos as marcas de tudo o que se busca desconhecer ou negar. Suas presenças junto aos demais no Largo do Paissandu, ao brincar na Praia Urbana, oferecem-se como feridas andantes que fazem lembrar de um passado-presente profundamente desigual e de negligências à infância, ou melhor, aquela vivida por crianças em condição de pobreza ou miséria.

As crianças estão incluídas de modo particular entre aqueles e aquelas rechaçados, ou mesmo, cujas vidas não são enquadradas exatamente como perdas ou passíveis de luto ( BUTLER, 2015 ). Contudo, a brincadeira na rua, a fralda trocada diante de todos, o ato de parar para uma mamada, o de balançar nos balanços da Praia Urbana, o de construir castelos de areia no parque em plena região central conferem outro ar às contendas diárias e contribuem para questionarmos a respeito da importância de suas presenças, como aquelas capazes de alterar tempo e espaço da luta e dos modos de morar, ainda que em condições tão precárias e ainda colocar outras reivindicações em pauta.

Interessa pensar e observar as crianças. Vivendo em uma fronteira, delimitada inclusive espacialmente pelos gradis que as separam da rua e de todos que passam, colocados pelos funcionários da Prefeitura Municipal de São Paulo, elas estão em uma espécie de confinamento que delineia, em certa medida, o estado em que se encontram, e, mais ainda, como nos encontramos, do ponto de vista das relações estabelecidas com o outro na cidade. Dentro dos gradis em que se encontrava a ocupação, uma das moradoras faz coro a sua colega e afirma em entrevista concedida a mim em 03 de julho: “estamos aqui feito bicho, as pessoas passam e ficam nos olhando de longe, como em jaula. Assim que a gente tá. Parece bicho”. Como diria Butler (2018) , esses gradis funcionam como encarceramento daqueles que reivindicam, nesse caso, no espaço público, o direito à moradia. E dentro das grades estão as meninas e os meninos que saem de lá para brincar – conferindo outro tempo ao espaço – para andar pelas imediações, para ir ao vizinho SESC 24 de Maio, para tomar banho em locais pré-estabelecidos pelo poder público, ou outros negociados, se houver dinheiro para pagar. E só pelo fato de existir, essas crianças que, ao ocuparem um Largo, passam a ocupar outros espaços e a se colocarem em confronto com lógicas excludentes, colocando o dedo em feridas que não cicatrizam.

Afirmo que suas presenças são capazes de provocar, em uma resistência, ainda que não intencional, questionamentos acerca de políticas higienistas em vigor e com roupagens sempre semelhantes que ainda hoje insistem na construção da cidade, expondo um projeto de sociedade com fortes traços excludentes, mas que retomam propostas semelhantes que trocam suas vestes há mais de um século, as quais como em uma varredura jogam para debaixo do tapete tudo o que consideram sujeira, excluindo, segregando, mas não discutindo os problemas, e, muito menos, escutando envolvidos. Preponderam tratos agressivos que geram ainda mais descaso e agressividade, como a vista e sentida entre os ocupantes do Largo do Paissandu.

A escuta meticulosa trazia-me o estado de abandono em que se encontravam e o descrédito em relação aos programas sociais que lhes eram propostos. Isso mostrava-se pelas palavras usadas ao longo de conversas informais em referência à luta pelo banheiro químico, retirado das ruas e não cedido pela gestão municipal, pela certeza de que a solução não viria dos políticos e sim de um animador de auditório bastante conhecido entre brasileiros. Há que estar atentos para saber como são representadas as pessoas nessa condição de moradia, essas que são bastante específicas. Parece-me que as representações se ancoram em outras sobre aqueles que vivem no ócio, são desempregados, e, ao não estarem inseridos no mundo do consumo e trabalho produtivo, devem ser erradicados. Isso aproxima-se da tese defendida por Cortina (2016) , em que justifica programas de extermínio ao pobre.

As crianças estão entre espaços divididos por linhas tênues de compreensão do que são e para quem importam suas presenças e vidas. Durante o tempo que permaneci na ocupação, era visível a presença das maiorzinhas andando pelas adjacências e aquelas pequenas brincando na Praia Urbana, em ambas as situações, raramente diante da presença de adultos ou adultas. Não foi observada clara divisão de gênero, viam-se mais meninos andando e correndo pelo Largo que meninas; meninas e meninos brincam juntos na areia ou sozinhos em motocas. Sentada na mureta do parque, sou chamada por uma das meninas que me pede para desenrolar o balanço, preso a seu suporte. Imediatamente, olha-me e responde à própria pergunta: “Pode não, né tia?” À minha pergunta, sobre por que não liberar o balanço, ela afirma que gostaria de balançar, mas logo some entrando nos gradis que a separavam do espaço de brincar. Por ser final de tarde, suponho que a brincadeira não poderia se estender pela noite que trazia outras relações indesejadas às vistas das crianças. Curioso, pois a mesma praça que acolhe com seus brinquedos, parece ser esquivada pelo medo.

Percebi a presença de certa prática cooperativa entre as mulheres. A mulher que chama insistentemente as crianças para o banho – não se sabe ao certo onde – e outra, ainda mais enfática, a convocar para o lanche da tarde enviado diariamente pelo serviço social da Prefeitura Municipal dão o tom da presença de alguém que se apresenta como garantia à manutenção de certos cuidados colaborando para que coexistam de modo mais acolhedor. Não se trata da mãe, mas de mulheres que tratam do acolhimento de todas as crianças que passam de lugar a lugar, de pessoa a pessoa circulando entre elas, por dentro e fora do gradil. Há laços de maternidade consanguínea, contudo, eles são afrouxados dando lugar à presença de outras pessoas que zelam pelo lugar, pelas crianças. A ideia corrente de que “mãe é uma só” se desloca, como afirmou Claudia Fonseca (1990) .

Apurei que há uma circulação de crianças que incrementa os moldes definidos por Fonseca (1990): não se encontra apenas uma prática familiar “em que crianças transitam entre as casas das avós, madrinhas, vizinhas e ‘pais verdadeiros’”, ( FONSECA, 1990 , p. 9), mas há alguns adendos observáveis quando consideramos o dia-a-dia no Largo, com elas. Identifiquei na fala de uma das mulheres, Tatiana, certa desconfiança e o justo e profundo incômodo com pessoas curiosas à volta que não se identificavam e impediam, com certos olhares inquisidores, a privacidade das relações. O pedido para entrar – em uma maneira de estabelecer o dentro e o fora como a restabelecer um modelo convencional de casa/moradia, público/privado – devia-se também à não aceitação de olhares, perguntas e fotos, muitas fotos, tiradas por quem passava pelo local. Passantes bisbilhotavam, proferiam duas ou três palavras e voltavam ao caminho de origem, segundo o que me disseram um homem e uma mulher, cujos nomes não foram revelados, do lado de dentro do gradil, em conversa informal.

O gradil, expressão de controle social sobre as gentes grandes e pequenas que ocupavam o Largo, não controla tudo. Um choro que vinha lá de dentro da área entre grades evidenciava relações existentes no espaço e lhe inscrevia outra conformação. Conversei com a mãe da menina de dois meses, nascida dias após o incêndio, que parecia compor o cenário não ganhando especial cuidado de quem estava no entorno. Sua presença não trazia implicações ao grupo no entorno, ao mesmo tempo, ao observar a barraca em que estava, via-se claramente, naquele espaço tão restrito, um lugar destinado a bebê, com suas cobertas, roupas e o leite em pó, de marca específica aos tratos do bebê, cuja presença foi usada para justificar a ausência da amamentação. Sua mãe, com quem conversei informalmente, bastante jovem, em diálogo com a irmã, mais nova ainda, e grávida, falava sobre a importância de não oferecer leite materno à bebê. Ele seria responsável por causar o apego e havia que desapegar para não sofrer depois. Sem saber ao certo a que se referia, pareceu-me que a criança correria o risco de contágio por sentimentos e carências impertinentes àquele modo de vida. A vida, para continuar, talvez não pudesse submeter-se à regulação de horários e imposição de certa – e questionável – exclusividade materna, algumas vezes perversa à vida da mulher. Isso convivia com as formas coletivas de cuidados, destinadas a um maior número de crianças, e entre elas, as maiorzinhas. O futuro era regulador dessa prática presente. Conviviam de modo concomitante esperança em um melhor futuro e o destino como sina, embalado em um fardo inalterável a carregar, o que levava a práticas promotoras de desapego, do não se afeiçoar a ponto de querer ficar junto por um prazo mais longo. Depreende-se que o desapego deve ser encarado como a intenção de diminuir sofrimentos futuros da criança e da mãe, caso encontre trabalho, bastante mencionado por ela que corroborava com a projeção de futuro, e esse melhor que a atual condição de vida.

Uma recriação do espaço doméstico e de certa domesticidade surge diante das vistas e grudam nos olhos, no corpo todo. O choro da bebê concorre em atenção com o odor que exalava do chão, bastante sujo, e dos banheiros químicos encontrados e ali colocados pelos próprios moradores. Trago essa observação de campo como mote para pensarmos acerca da presença de códigos de privacidade e intimidade à ordem pública ( FRANGELLA, 2000 ) que recriava e apresentava a seu modo e dentro de barracas improvisadas algumas das maneiras de organização, talvez nossas conhecidas, em que cômodos impõem e criam relações compondo o ambiente da casa, sejam eles menores ou maiores. As divisões internas davam-se pelo ajeitamento das cobertas, e, assim, em 1,5m 2 , improvisavam a cama e utensílios domésticos, cosméticos e roupas, todos visivelmente organizados, como em uma casa em que a arrumação deriva de aprendizado desconhecido, na invenção de uma tradição ( RIBCZYNSKI, 1996 ) ou da imaginação alimentada por meios que desconheço, mas suponho. Talvez revistas olhadas ao longe em bancas de jornal que ensinam como arrumar as moradias, ou mesmo em um passado em que a vida na casa ainda existia. Cadeiras ao lado de fora de várias barracas lhes conferiam um ar praiano, como em uma varanda ou quintal, refrescando do calor interno da barraca. Acredito que isso se justifique pela permanência longa nesse local, levando à criação de um ambiente próximo ao familiar. Observei a existência de corpos-fixos, cujos olhos, aparentemente, miravam o vazio. Esses pouco aventuravam-se a cuidar ou brincar com as crianças, ou a práticas mais expansivas, fixados às cadeiras, mostravam-se flagrados em um silencioso e grave olhar (de luta?). Lutam e experimentam a cidade a seus modos.

Considerações finais: quando limpam com jatos de água

No dia 10 de agosto de 2018, após negociações com o poder público do município de São Paulo, foram removidos os 50 ocupantes que ainda estavam no Largo do Paissandu. Foram destinados aos centros de acolhimento da Prefeitura, para os quais outros já haviam sido levados. Funcionários limparam o local com jatos de água, em um intuito, aparentemente velado, de não deixar vestígios do tempo passado.

Ao longo dos 101 dias de ocupação no Largo, durante e após minhas idas e vindas, fui observando sua constituição como ferimento à cidade, e, após a saída, como cicatriz, invisível e profunda, da estada de um grupo de 200 moradores, entre eles muitas crianças, cujas presenças serviram como provocação à ordem local, ao mesmo tempo em que mostravam o caos social e político em que estamos. Com isso, revelava-se ali o caráter político existente no ato de ocupar. A projeção conquistada pelas crianças ao estarem no Largo, ocupando-o à sua moda e junto a adultos e adultas, somou elementos às observações, levando a refletir acerca da existência de diferentes modos de circulação, apropriação e produção do espaço pelas e com meninas e meninos, que se dava: pela negociação entre elas e adultos; pelos usos da Praia Urbana como espaço de socialização e divertimento, mas também de pequenos pedidos e disputas entre as tantas crianças, nos períodos em que se alimentavam; nos disfarces para não ir ao banho; no aparente receio em usar o balanço, quase sempre preso em seu suporte impossibilitando a brincadeira e impulsionando a colaboração de alguém; o medo de estar com estranhos e a constante busca e recondução para dentro do gradil, como se o mesmo se comportasse como mundo à parte, uma forma de isolamento e proteção.

Questão a ser destacada é que a presença das crianças no Largo e arredores faz circular ideias e aprendizados a respeito da infância envolvendo jeitos de ser e modos de ver o mundo, ao se relacionar com as pessoas, ou mostrar diferentes formas de organizar tempo e espaço. Vistas ao longe na ocupação, seus corpos marcados por suas histórias surgem rompendo e compondo rotinas. Sua presença nos brinquedos e na definição de jogos e brincadeiras, nas regras que deveriam ou não cumprir, nas negociações para permanecer ao redor das trabalhadoras sexuais e dos homens da feira do rolo, denotava modos particulares de elaborar e criar onde estavam vivendo, ocupando o espaço e o produzindo nas relações com as outras crianças. Assim, as ricas possibilidades de criação em situação adversa misturam-se à miséria que se impõe por diferentes vias, na exigência do uso de tempo na vigilância do irmão mais velho, na busca por alimentos, na limpeza das barracas, na convivência em local tão insalubre.

Dos escombros restam memórias que circulam no espaço higienizado que quer voltar à rotina de um Largo no centro da cidade de São Paulo onde, em breve, talvez seja construído outro edifício. No entanto, retomando as palavras proferidas por Kader Attia, colocadas como epígrafe deste artigo, “as cicatrizes nos lembram de que nosso passado é real” e marcam de forma indelével inclusive as crianças que, não obstante a penúria, desenham a giz outra cidade.

Referências

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3- Enquanto redigia este artigo, outros incêndios aconteceram: em 31/07/2018, casas na favela de Paraisópolis, em São Paulo; 01 de julho de 2018, favela na Avenida Zaki Narchi também incendiada, na Zona Norte paulistana; madrugada do dia 13/08/2018, favela situada na Rua Ibitirama, área em expansão imobiliária da Vila Prudente, é incendiada, um homem é encontrado carbonizado. Fonte: Jornal Folha de São Paulo. Destaco que a limpeza com fogo pode ter outros formatos, tal como em 18/08/2018, quando moradores da cidade de Pacaraima (Roraima) incendiaram barbaramente barracas e roupas de refugiados venezuelanos em resposta ao assalto a comércio local.

4- Alusão ao filme Limpam com Fogo, São Paulo, ٢٠١٦, direção de Conrado Ferrato, Rafael Crespo e César Vieira.

5- Frase proferida por uma das moradoras entrevistadas por mim.

6- A Praia Urbana foi criada na gestão do Prefeito Fernando Haddad em alguns locais da região central de São Paulo tendo como objetivo aproximar pessoas que busquem lazer, cultura e tranquilidade no ambiente urbano.

7- Termo amplamente utilizado e que merece questionamentos. Cracolândia, a “Terra do crack”, implica pensamento homogeneizante sobre a região e, pior, sobre aqueles que a habitam, fazendo desconhecer a complexidade das relações ali existentes.

8- Uso a definição dada pelo HATENTO, laboratório espanhol ligado à Universidade de Madri e outras. Seu objetivo é investigar pessoas vítimas de delitos de ódio. Os sem-lugar não são vistos como sujeitos políticos, sequer têm lugar fixo, uma espécie de apátridas.

9- A feira do rolo, existente há tempos, envolve comércios de produtos de segunda mão e outros de procedência desconhecida.

10- Curioso é que tais auxílios abarcarão, até 2020, a totalidade das verbas destinadas à construção de moradias populares no município de São Paulo (PMSP, 15/05/2018), ou seja, aposta-se em remediar problemas e não os sanar estruturalmente.

2- Pesquisa com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, intitulada Imagens de São Paulo: moradia e luta em regiões centrais e periféricas da cidade a partir de representações imagéticas criadas por crianças, coordenada por mim, sob número 2017/11440-2.

Recebido: 10 de Setembro de 2018; Aceito: 18 de Dezembro de 2018

Marcia Gobbi é docente da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo - FE-USP. É cientista social, mestre e doutora em educação, investiga atualmente questões relacionadas à infância em luta por moradia segundo crianças e mulheres participantes de ocupações e movimentos sociais. Os estudos sociais da infância e as manifestações expressivas, como desenho e fotografias elaborados por crianças, são focos de pesquisa e estão compreendidos nos processos investigativos. Dedica-se também a orientações e pesquisas voltadas ao ensino de ciências sociais.

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