SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.45Quando limpam com fogo, como ficam as crianças? Vidas abreviadas, vidas brevesCarreira, remuneração e piso salarial docente na rede municipal de educação de Belo Horizonte índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Educação e Pesquisa

versión impresa ISSN 1517-9702versión On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.45  São Paulo  2019  Epub 31-Oct-2019

https://doi.org/10.1590/s1678-4634201945214167 

Artigos

Três teses histórico-críticas sobre o currículo escolar

Juliana Campregher Pasqualini1 
http://orcid.org/0000-0002-6497-8783

1- Universidade Estadual Paulista (UNESP), Bauru, SP, Brasil. juliana.pasqualini@unesp.br


Resumo

O presente ensaio teórico toma como objeto o currículo escolar desde o enfoque histórico-crítico. Apresentamos aqui os resultados da primeira etapa de nossa pesquisa de pós-doutoramento, que se voltou, em seu conjunto, ao problema da natureza e especificidade do currículo na educação infantil. Os achados aqui expostos resultam do esforço de delimitação teórico-conceitual da concepção geral de currículo na pedagogia histórico-crítica. Tais resultados são expostos na forma de teses, as quais foram identificadas, sistematizadas e formuladas a partir de investigação conceitual-bibliográfica de obras selecionadas do campo teórico histórico-crítico que se dedicam ao problema em tela. São apresentadas e sustentadas três teses referentes à concepção geral de currículo, as quais colocam em destaque: 1) sua dimensão política e natureza mediadora, a partir da dialética entre objetivos e meios da educação; 2) a defesa dos clássicos, pontuando a necessária clarificação desse princípio histórico-crítico visando a evitar que se lhe dispense um tratamento simplificador e abstrato; 3) a relação entre os conteúdos do currículo e os problemas postos pela prática social global, a partir do conceito metodológico de problematização.

Palavras-Chave: Currículo; Pedagogia histórico-crítica; Ensino escolar

Abstract

The aim of this theoretical essay is to analyse school curricula from a historical-critical approach. We present the results of the first stage of our postdoctoral research, which, as a whole, addressed the problem of the nature and specificity of early childhood education curricula. The findings presented in this paper result from the effort of a theoretical and conceptual delimitation of the general conception of curricula in historical-critical pedagogy. These results are presented in the form of theses, which were identified, systematised and formulated based on conceptual and bibliographical investigations of selected works from the historical-critical theoretical field concerning the problem at hand. Three theses concerning the general conception of curricula are presented and supported, which highlight: 1) their political dimension and mediating nature, from the dialectic between objectives and means of education; 2) the defense of the classics, showing the clarification needed of this historical-critical principle in order to avoid a simplifying and abstract treatment; 3) the relationship between curriculum content and the problems posed by global social practice, based on the methodological concept of problematisation.

Key words: Curriculum; Historical-critical pedagogy; School education

Elementos introdutórios para a discussão

O presente ensaio teórico toma como objeto o currículo escolar sob enfoque histórico-crítico, apresentando os achados da primeira etapa da pesquisa de pós-doutorado intitulada O problema do currículo na educação infantil: investigação à luz do aporte da pedagogia histórico-crítica e da psicologia histórico-cultural 2 . Dedicamo-nos, neste artigo, à exposição dos resultados derivados do esforço de delimitação teórico-conceitual da concepção geral de currículo na pedagogia histórico-crítica. A exposição está organizada na forma de teses, as quais foram identificadas, sistematizadas e formuladas a partir de investigação conceitual-bibliográfica de obras selecionadas do campo teórico histórico-crítico que se dedicam ao problema em tela ( DUARTE, 2016 ; GAMA, 2015 ; MALANCHEN, 2016 ; MARTINS, 2013 ; SAVIANI, 2011 , 2012 , 2013 , 2016 ).

Nascida na transição da década de 1970 para 1980 e em pleno processo de construção coletiva a partir da colaboração de autores diversos espalhados pelo território nacional, a pedagogia histórico-crítica esposa e difunde a luta contra a seletividade, a discriminação e o rebaixamento do ensino dirigido às camadas populares ( SAVIANI, 2012 ). É uma teoria pedagógica que se pretende articulada aos interesses da classe explorada da sociedade, engajada no esforço de garantir a seus filhos um ensino da melhor qualidade possível nas condições históricas vigentes e em contribuir para a superação da sociedade sustentada pela exploração, dominação e opressão das pessoas, isto é, da sociedade de classes capitalista. Essa pedagogia toma como ponto de partida o reconhecimento da escola como instituição inserida no sistema produtivo regido pelo imperativo de reprodução ampliada do capital e atravessada por suas contradições e, nesse contexto, compreende que a tarefa fundamental da educação escolar que se articula aos interesses dos explorados é a transmissão-assimilação do conhecimento metódico e teórico a respeito da realidade historicamente acumulado.

Abrantes (2015 , p. 134) esclarece que justamente porque a classe exploradora busca “[...] convencer a todos a se conformarem à sociedade atual e ao acesso desigual ao que é produzido objetiva e subjetivamente pelo ser humano”, interessa à classe trabalhadora o acesso ao conhecimento científico, filosófico e artístico. Ao conhecimento científico porque revela “o movimento e as tendências de vir-a-ser dos objetos e fenômenos do real”; ao conhecimento filosófico porque permite “conhecer e questionar a realidade formulando perguntas abrangentes que lidem com problemas objetivos do ser humano”, havendo-se com seu sentido; às produções artísticas, pois o acúmulo de fruições possibilita “desenvolver a autoconsciência do humano de modo a esclarecer-lhe dores e sentimentos, além de vislumbrar novas realidades sociais ainda impossíveis”. Conclui o autor que “conhecer para transformar e/ou conhecer transformando radicalmente a sociabilidade humana encontra-se no horizonte intelectual da classe trabalhadora”. ( ABRANTES, 2015 , p. 134).

Ao recusar a função de inculcação ideológica à qual a escola é convocada na sociedade de classes, a pedagogia histórico-crítica preconiza que o trabalho educativo deve efetivar-se como ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade produzida historicamente pelo conjunto dos seres humanos. Para que tal fim seja concretizado, colocam-se, de partida, duas tarefas, já indicadas por Saviani (2011) : a identificação de quais conteúdos do patrimônio histórico-cultural humano devem ser apropriados pelas pessoas para que se dê sua humanização; e a descoberta das formas mais adequadas para que se efetive a transmissão-assimilação desses conteúdos. Na ciência pedagógica, tais tarefas correspondem respectivamente aos campos do currículo, que se dedica ao problema dos conteúdos de ensino (o que ensinar), e da didática, que trata do problema das metodologias de ensino (como ensinar).

O currículo relaciona-se, assim, ao conteúdo do ato educativo e, como tal, tem sido objeto de teorização pela pedagogia histórico-crítica desde as primeiras aproximações conceituais ao fenômeno educativo. Na proposição do Coletivo de Autores (1992) , resgatada por Gama (2015) , o currículo refere-se ao percurso do ser humano em seu processo de apreensão do conhecimento selecionado e transmitido pela escola, percurso que se realiza mediante determinada organização e distribuição do conteúdo no tempo e espaço escolares. À luz dessa compreensão, e buscando contribuir com os esforços coletivos de elaboração e concretização de propostas curriculares comprometidas com a formação dos estudantes como sujeitos da práxis , formulamos e discutimos a seguir três teses que colocam em destaque a natureza mediadora e a dimensão política do currículo, bem como sua relação com os problemas postos pela prática social.

Tese 1: O currículo constitui um meio do trabalho pedagógico e, como tal, reveste-se de uma dimensão política

De acordo com Saviani (2013) , considerando-se a relação dialética entre objetivos e meios da educação, o currículo situa-se na esfera dos meios. Dado que a ação humana busca produzir determinados resultados ou efeitos na prática social, “para agir e ao fazê-lo, nós precisamos saber para que agimos ”. ( SAVIANI, 2013 , p. 76). Ainda nas palavras de Saviani (2013 , p. 48): “os objetivos indicam os alvos da ação”. O delineamento de objetivos faz-se mediante a tomada de consciência acerca do que nos falta (carências detectadas na realidade); isso significa que os objetivos que orientam o trabalho educativo referem-se àquilo que ainda não foi alcançado, mas que deve ser alcançado. Vale observar que a identificação daquilo que é considerado falta ou carência na realidade existente – e que se considera que nela deve ser transformado – envolve uma dimensão axiológica e, consequentemente política, pois pressupõe valores que indicam determinadas expectativas e aspirações humanas.

A consecução de objetivos depende da utilização de determinados recursos, instrumentos e estratégias, ou seja, torna-se possível mediante o emprego de determinados meios: “[...] os objetivos traduzem o ‘para que’ da ação, os meios traduzem o ‘com que’” ( SAVIANI, 2013 , p. 76). Saviani (2013 , p. 77) alerta, nesse sentido, que “de nada adianta definir corretamente os objetivos se usarmos meios que não levem a eles.” É importante perceber que não se trata de uma determinação unilateral dos objetivos sobre os meios, mas de uma relação de determinação recíproca, pois:

[...] se é verdade que a escolha dos meios depende da definição dos objetivos, também é verdade que a consecução dos objetivos depende da escolha e, mais do que isso, do uso dos meios. ( SAVIANI, 2013 , p. 64).

O autor orienta que “quanto mais adequado for o nosso conhecimento da realidade, tanto mais adequados serão os meios de que dispomos para agir sobre ela” ( SAVIANI, 2013 , p. 52). A análise da situação concreta no interior da qual se realiza a ação mostra-se, assim, decisiva para assegurar a adequação dos meios bem como a viabilidade dos objetivos, pois de nada adianta definir objetivos que pressupõem meios dos quais não dispomos.

Saviani (2013) compreende que o currículo, na condição de meio da ação educativa, refere-se ao âmbito d’o que fazer, ao passo que os métodos se referem ao âmbito do como fazer. Na obra Educação: do senso comum à consciência filosófica , o autor postula que o currículo diz respeito “[...] ao conteúdo da educação e sua distribuição no tempo e espaço que lhe são destinados” ( SAVIANI, 2013 , p. 79). Podemos considerar, assim, que a elaboração de uma proposta curricular pressupõe estabelecer parâmetros para a tomada de decisão acerca d’o que ensinar, quando ensinar e onde ensinar.

Ao recuperar a formulação histórico-crítica do conceito de trabalho educativo, que propõe sua realização como ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que foi produzida historicamente pelo conjunto dos seres humanos, podemos considerar que o currículo representa um esforço de identificação de quais conteúdos do patrimônio histórico-cultural humano devem ser apropriados pelas pessoas para que se efetive sua humanização ao longo do processo de escolarização. A elaboração do currículo aparece, em sentido específico, como necessidade interna da prática pedagógica e, em sentido amplo, como necessidade colocada pela prática social global.

Na sociedade de interesses antagônicos e irreconciliáveis em que vivemos, trava-se uma disputa de projetos de formação humana, vinculados, de um lado, ao sujeitamento mediante a conformação das pessoas às relações de exploração e dominação vigentes, e de outro, à emancipação humana mediante a luta coletiva pela transformação e superação dessas relações. O currículo será sempre expressão de determinada intencionalidade educativa que se institui na relação escola-sociedade, colocando-se como instrumento a serviço de uma direção esperada para a formação dos estudantes. Isso implica considerar a função social (contraditória) da escola no processo de reprodução social e demarcar que o currículo reveste-se de uma dimensão político-pedagógica, tendo em conta, como alerta Saviani (2011 , p. 65), que “o conteúdo, o saber sistematizado, não interessa à pedagogia como tal”, mas à medida que se faz meio a serviço de determinada intencionalidade referida à direção que se busca imprimir à formação do estudante. A definição histórico-crítica de trabalho educativo, que demarca como intencionalidade a plena humanização de todo estudante, constitui, assim, um posicionamento político-pedagógico no âmbito da relação escola-sociedade3 . A partir desse enquadre, Saviani (2011 , p. 65) destaca que:

[...] para ensinar é fundamental que se coloque inicialmente a seguinte pergunta: para que serve ensinar uma disciplina como geografia, história ou português aos alunos concretos com os quais se vai trabalhar? Em que essas disciplinas são relevantes para o progresso, para o avanço e para o desenvolvimento desses alunos?

Consideramos que a resposta às perguntas colocadas pelo autor deve orientar-se pela perspectiva de formação do estudante como sujeito da práxis , ou seja, vislumbrando a formação da atividade consciente de orientação transformadora pautada no conhecimento objetivo que proporciona a inteligibilidade do real ( MARTINS, 2013 ), orientada pela consciência filosófica ( SAVIANI, 2013 ), instrumentalizada pelo pensamento teórico ( DAVIDOV, 1988 ) e afetivamente marcada por uma atitude não-conformada aos processos alienantes.

Ao retomar as proposições de Dermeval Saviani em obras diversas, Malanchen (2016 , p. 176) sintetiza como cerne da problemática do currículo o movimento de “[...] seleção intencional e o sequenciamento dos conhecimentos que devem ser socializados para toda a população [...]”. Destacamos, assim, que elaborar um currículo e concretizá-lo envolve processos de escolha: da vasta atividade humana historicamente acumulada e depositada nos sistemas conceituais das diversas áreas de conhecimento e esferas da prática social, o que queremos oferecer a nossos estudantes? Enfatizamos que escolha é tomada de posição. Nesse sentido é que Duarte (2016 , p.95) pontua que:

[...] uma das questões mais polêmicas e, ao mesmo tempo, mais importantes para a educação escolar é a seleção e organização dos conteúdos que os alunos devem aprender.

Quem guia a seleção dos conteúdos da cultura é, em primeira instância, a intencionalidade pedagógica. Mas é decisivo perceber que, nesse movimento, a compreensão da própria intencionalidade se amplia, aprofunda-se e requalifica-se na medida de sua concretização como seleção, sistematização e organização desses conteúdos visando a sua socialização. A elaboração e concretização de propostas curriculares pressupõem, assim, um duplo movimento: i) é preciso escolher os meios adequados ao objetivo, o que significa selecionar conhecimentos que atendam à intencionalidade pedagógica histórico-crítica de formação do sujeito da práxis ; e ii) ao mesmo tempo a própria definição dos objetivos pressupõe a disponibilidade de meios para sua consecução, o que significa que os conhecimentos que constituem o patrimônio humano-genérico condicionam a própria delimitação das finalidades pedagógicas específicas.

Queremos com isso destacar que apenas o mergulho no acervo de conteúdos do patrimônio histórico-cultural humano em busca de suas formas mais desenvolvidas e potencialmente promotoras da práxis no contexto do ensino escolar é que vai dando significado concreto ao propósito de humanização do estudante4 . Como desdobramento dessa proposição, indicamos que o tratamento teórico-prático acerca da intencionalidade histórico-crítica de humanização de todo estudante não pode se deter na formulação em abstrato: faz-se mister explicitar os conteúdos particulares concretos que realizarão o almejado processo de humanização. Essa seleção é uma das problemáticas nucleares do currículo.

Malanchen (2016) destaca que o movimento de seleção (e sequenciamento) dos conhecimentos expressa uma determinada concepção acerca da realidade natural e social, do conhecimento acerca dessa realidade, do processo de transmissão e assimilação desse conhecimento e das relações entre escola e sociedade. Acrescenta Duarte (2016 , p. 1) que “a decisão sobre o que ensinar às novas gerações por meio da educação escolar envolve relações entre o presente, o passado e o futuro da sociedade e da vida humana”, estando orientada, portanto, por determinada concepção da história, por uma análise concreta da prática social e por um projeto de sociedade. Tais parâmetros são fornecidos pela teoria pedagógica desde a qual se formula o currículo.

Tese 2: O currículo escolar deve contemplar os conhecimentos clássicos da Filosofia, da Ciência e das Artes

A defesa do conhecimento clássico na escola é, hoje, largamente associada à pedagogia histórico-crítica. Com efeito, na obra Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações , Dermeval Saviani (2011 , p. 13) afirma que o clássico pode “[…] constituir-se num critério útil para a seleção dos conteúdos do trabalho pedagógico” (grifo nosso). Observamos, entretanto, em certos espaços de debate e estudo da pedagogia histórico-crítica, certa banalização da “defesa dos clássicos”, como se fosse um indicativo simples e/ou resolvesse, por si só, a problemática do currículo escolar. Ao considerar essa preocupação, buscaremos explorar o significado, o fundamento e possíveis direcionamentos derivados da adoção desse critério, à vista de contribuir para o debate coletivo em torno de sua específica e efetiva contribuição para o trabalho pedagógico.

Para o que se tem chamado senso comum pedagógico, falar em conhecimentos clássicos na escola parece remeter à imagem de conhecimentos velhos, empoeirados, ultrapassados e sem vida, logo, conhecimentos sem sentido e sem serventia para o estudante contemporâneo. A pedagogia histórico-crítica, na contramão do discurso dominante, alça o conhecimento clássico ao patamar de importância prioritária. O clássico é um saber vivo, pujante, ainda que sua formulação original esteja radicada em um momento histórico distante no tempo.

Na abertura do livro Por que ler os clássicos , o romancista italiano Ítalo Calvino (1923-1985) enfrenta “[…] o problema decisivo de como relacionar a leitura dos clássicos com todas as outras leituras que não sejam clássicas” ( CALVINO, 1993 , p. 14). Uma formulação representativa dessa problemática seria o questionamento: “Por que ler os clássicos em vez de concentrar-nos em leituras que nos façam entender mais a fundo o nosso tempo?” ( CALVINO, 1993 , p. 14). Em resposta, Calvino pondera, primeiramente, que “para poder ler os clássicos, temos de definir de onde eles estão sendo lidos, caso contrário tanto o livro quanto o leitor se perdem numa nuvem atemporal”.

A posição do autor aparece sintetizada em duas teses que tratam da relação entre clássicos e atualidade: i) “É clássico aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de barulho de fundo, mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse barulho de fundo”. (p. 15); ii) “É clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível” ( CALVINO, 1993 , p. 15). Na conclusão do breve capítulo que abre a obra citada, o autor afirma que “os clássicos servem para entender quem somos e aonde chegamos [...]”. ( CALVINO, 1993 , p. 16).

Ainda citando Calvino (1993) , temos que “um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer” (p. 11). Em sintonia com essa formulação referida especificamente ao campo da literatura, Saviani e Duarte (2012 , p. 31) afirmam, em sentido amplo, que “[…] clássico é aquilo que resistiu ao tempo, tendo uma validade que extrapola o momento em que foi formulado. Define-se, pois, pelas noções de permanência e referência”.

O clássico capta questões nucleares que dizem respeito à própria condição humana e por isso permanece como referência para as gerações seguintes em seu processo de vida, explicam os autores. Referindo-se aos clássicos da filosofia, pontuam que os pensadores que se consolidam como clássicos e passam a integrar nessa condição o patrimônio cultural humano, oferecem “formulações [que] embora radicadas numa época determinada, extrapolam os limites dessa época, mantendo o seu interesse mesmo para épocas ulteriores”. ( SAVIANI; DUARTE, 2012 , p. 31). Os autores alertam, assim, que “clássico não coincide com o tradicional e também não se opõe ao moderno”, mas remete aos aspectos essenciais e às disposições duradouras; nas palavras de Saviani (2011 , p. 13), refere-se a “aquilo que se firmou como fundamental, como essencial”. Nessa mesma direção, Calvino (1993) considera que o status de clássico pode ser atribuído a obra antiga ou moderna que já ocupa um lugar próprio em uma continuidade cultural.

Como síntese provisória, temos como critério definidor do saber clássico a validade que extrapola o momento histórico particular em que foi formulado por captar questões nucleares ou essenciais da realidade humana, tornando-se, por essa razão, referência permanente em determinado campo de conhecimento ou da prática social. Recorrendo a Kosik (1976) , podemos compreender que a captação de questões nucleares ou essenciais da realidade humana refere-se à capacidade do conhecimento clássico de destruir a aparência superficial da realidade e aproximar-nos de seu núcleo interno essencial em suas dimensões filosófica, artística e científica. Tal propriedade pode ser compreendida como universalidade do conhecimento, mas é preciso se ter a clareza de que o universal, para o materialismo histórico-dialético, não existe fora do processo histórico. Assim, a validade e permanência sustentam-se enquanto persistirem e se reproduzirem no tempo histórico as contradições que se refletem em determinada formulação epistemológica e/ou a partir dela se decodificam.

Além disso, o universal não pode ser considerado fora da relação com a particularidade. Isso significa que, na sociedade de classes, é preciso situar os clássicos em relação ao lugar social particular de classe dos sujeitos concretos que com ele têm a possibilidade de se relacionar, sob pena de se incorrer em um trato abstrato ou mesmo idealista com o conhecimento.

Tendo como aporte teórico-filosófico o materialismo histórico-dialético, não é cabível se considerar o clássico como objetivação cultural neutra, nem objeto de consenso; é preciso reconhecê-lo sujeito à disputa de interesses políticos e epistemológicos. A consolidação de dado conhecimento, elaboração filosófica ou produção artística como clássico da cultura não é isenta de determinações político-ideológicas. É decisivo considerar essa dimensão pois, se tomamos como elemento definidor do clássico a captação de questões nucleares da condição humana, nem tudo aquilo que permanece no tempo será necessariamente um clássico, podendo tratar-se de mera tradição, que se perpetua pela correlação de forças sociais. Por outro lado, e pela mesma razão, é preciso ter em conta que nem toda objetivação da cultura que revela aspectos essenciais da existência humana chegará necessariamente a consolidar-se como clássico, firmando-se como referência, em vista dos obstáculos a sua veiculação social interpostos pelos interesses dominantes e precariedade de recursos de grupos sociais minoritários para promover tal difusão – considere-se, por exemplo, o franco desconhecimento de grandes pensadores do continente africano e sua ausência no rol de referências culturais clássicas.

Ademais, é necessário enfatizar que as produções da cultura que se consolidam como clássicos não são isentas de contradições, uma vez que toda objetivação humana produzida em sociedades estruturadas sobre relações de exploração, dominação e opressão é necessariamente atravessada pela tensão humanização-alienação. Assim, ao defender a presença dos conhecimentos clássicos nos currículos escolares, não se propõe que a escola promova uma assimilação direta e acrítica dos mesmos, mas que o estudante possa ter acesso e apropriar-se do clássico como produção historicamente situada, como expressão e síntese histórica do pensamento e da prática social humana, como produto do enfrentamento humano com as problemáticas, necessidades e dramas da vida social que ilumina aspectos do presente e orienta nossa projeção ao futuro. Não é o clássico em si que forma o estudante, mas o clássico situado na história humana5 : quem forma é a história condensada nos clássicos!

“Clássico é um autor que vive além do próprio tempo e também fala aos pósteros [...]”, afirma Giuseppe Vacca (2012 , p. 38). Justificando escolhas feitas na organização da obra Vida e pensamento de Antonio Gramsci , de sua autoria, o autor argumenta que a contemporaneidade das interrogações e das motivações pelas quais nos voltamos para o pensamento de um autor clássico permite leituras tão mais fecundas quanto mais sua vida e seus escritos sejam situados em seu tempo:

Reviver sua temporalidade é a premissa necessária para verificar sua capacidade de falar também a nós. Historicizar não é relativizar nem muito menos neutralizar. Quanto mais se historiciza, tanto mais se multiplicam e se enriquecem as perspectivas de leitura dos textos. ( VACCA, 2012 , p. 38).

Assim, se Ítalo Calvino (1993) alerta-nos a respeito da necessidade de se definir onde estão sendo lidos os clássicos para que o leitor (ou estudante) não se perca em uma nuvem atemporal, Vacca (2012) destaca a necessidade de se clarificar onde foram produzidos os clássicos, sob que circunstâncias particulares se formulou determinado saber sobre a realidade que ainda é capaz de se colocar como mediação relevante na relação das pessoas com a realidade nas circunstâncias contemporâneas. A possibilidade desse confronto é decisiva no processo de formação da pessoa, como destaca Calvino (1993 , p. 16) ao referir-se aos clássicos italianos em relação com os clássicos estrangeiros: “[...] os italianos são indispensáveis justamente para serem confrontados com os estrangeiros, e os estrangeiros são indispensáveis exatamente para serem confrontados com os italianos”. ( CALVINO, 1993 , p. 16).

O confronto com elaborações, valores e modos de sentir, pensar e agir de outros tempos e contextos objetivados nos clássicos historiciza, desnaturaliza, requalifica e põe em perspectiva a experiência singular de vida do estudante – o que novamente coloca em destaque a relação entre universalidade, particularidade e singularidade no trato escolar com os clássicos.

Duarte (2016 , p. 109) corrobora com a necessidade de “situar o clássico na história de desenvolvimento do gênero humano”, e chama atenção, adicionalmente, à dimensão da forma do ensino dos clássicos e sua adequação ao momento de desenvolvimento do sujeito-destinatário do ensino. O autor postula que é também preciso:

[...] situar o papel educativo do clássico num determinado momento da formação do indivíduo. Seja um clássico no campo das artes, ou das ciências, ou da filosofia, o grau de sua eficácia educativa será determinado tanto pela riqueza (pelo valor) de seu conteúdo, em termos de desenvolvimento histórico do gênero humano, quanto pelo significado que esse clássico terá, num determinado momento, para a efetivação das possibilidades de desenvolvimento da individualidade do aluno. Aqui se torna imprescindível a mediação de uma adequada articulação, por parte do professor, entre o conteúdo a ser ensinado e a forma pela qual ele será ensinado. ( DUARTE, 2016 , p. 109).

Podemos estabelecer relação entre a indicação de Duarte (2016) nesse excerto e a referência à necessária adequação do conteúdo escolar às possibilidades sóciocognoscitivas do aluno, reiterado por Gama (2015) como princípio fundamental orientador da seleção dos conteúdos curriculares, originalmente formulado pelo Coletivo de Autores (1992) . Podemos, também, ponderar que a relação pessoal do professor (como sujeito individual e coletivo) com o conhecimento clássico e, em última instância, com a história humana, coloca-se como determinação fundamental ao ato pedagógico, orientando suas decisões e ações no âmbito da unidade forma-conteúdo.

Concluindo esses breves apontamentos em torno da tese da necessidade de que o currículo escolar contemple os conhecimentos clássicos da Filosofia, da Ciência e da Arte, retomamos a formulação de Saviani (2011) com a qual abrimos esta discussão, na qual afirma que o clássico pode se constituir em um critério útil para a elaboração de propostas curriculares. Queremos reafirmar que tal indicação não situa o clássico como critério único e/ou definitivo para o problema do currículo na perspectiva histórico-crítica.

É válido lembrar que a defesa do conhecimento clássico é destacada por Saviani (2011) em suas primeiras aproximações de formulação da teoria pedagógica histórico-crítica, no contexto de debate com o escolanovismo, no qual o autor se encontrava engajado em combater o abandono da perspectiva de transmissão-assimilação do conhecimento sistematizado como função social precípua da escola e consequente descaracterização do ensino. Isso pressupõe localizar a defesa do conhecimento clássico na escola na conjuntura de combate político à tendência histórica de invasão do espaço-tempo escolar por toda sorte de atividades extracurriculares e conteúdos de senso comum e correspondente retirada do conhecimento metódico e teórico. Tal tendência não apenas se mantém presente, mas fortaleceu-se no desenrolar do processo histórico desde então, o que reafirma a importância da defesa político-pedagógica da presença dos clássicos no currículo escolar como diretriz da pedagogia histórico-crítica. O que desejamos demarcar é que essa diretriz não pode se tornar um slogan que nos autoriza a considerar resolvido o complexo problema da elaboração e concretização de propostas curriculares em uma perspectiva histórico-crítica da pedagogia.

Tese 3: A seleção dos conhecimentos que deverão compor o currículo escolar deve ser orientada pelo movimento de problematização da prática social e implica disputa político-pedagógica

Na obra Escola e democracia , Dermeval Saviani (2012) trava debate com os métodos tradicionais e novos da pedagogia, vislumbrando um método pedagógico que supere a ambos – compreendendo superação no sentido dialético, ou seja, envolvendo simultaneamente o ato de negação e o ato de incorporação de aspectos válidos (elementos de verdade). Como descreve o autor, a prática pedagógica tradicional, conforme proposições da pedagogia geral de J. F. Herbart (1776-1841), orienta-se pelo percurso linear que parte da preparação dos alunos, seguida da apresentação do conhecimento, que levaria à assimilação dos conteúdos transmitidos (por comparação a conhecimentos anteriores) e sua generalização, culminando, finalmente, na aplicação do conhecimento. A pedagogia nova, por sua vez, conforme formulação de J. Dewey (1859-1952), parte da atividade do aluno, a ser interrompida pela confrontação com um problema que se coloca como obstáculo, o qual motiva a coleta de dados visando à formulação de uma hipótese que será confirmada ou refutada pela experimentação.

Os dois métodos mostram-se equivocados respectivamente ao identificar o ensino com a mera apresentação de conhecimentos ou preconizar sua substituição pela (pseudo) produção de conhecimentos. Em ambos os casos, esclarece Saviani (2012) , está pressuposta uma autonomização da pedagogia em relação à sociedade, sendo professor e alunos considerados em termos individuais e habitantes de uma realidade harmônica, em detrimento de seu reconhecimento como agentes sociais de uma realidade fundamentalmente contraditória.

Em contrapartida, o método pedagógico histórico-crítico tem como pedra angular a tese de que a escola é determinada socialmente:

[...] retenhamos da concepção crítico-reprodutivista a importante lição que nos trouxe: a escola é determinada socialmente; a sociedade em que vivemos, fundada no modo de produção capitalista, é dividida em classes com interesses opostos; portanto, a escola sofre a determinação do conflito de interesses que caracteriza a sociedade.” ( SAVIANI, 2012 , p. 30).

Há acordo com a leitura crítico-reprodutivista no que se refere ao entendimento de que, na relação escola-sociedade, o elemento determinante é a sociedade, e o elemento determinado é a escola. A divergência assenta-se na consideração histórico-crítica de que a escola:

[...] ainda que elemento determinado, não deixa de influenciar o elemento determinante. Ainda que secundário, nem por isso deixa de ser instrumento importante e por vezes decisivo no processo de transformação social. ( SAVIANI, 2012 , p. 66).

Da leitura crítico-reprodutivista da escola não se deriva uma pedagogia. O problema que a pedagogia histórico-crítica se coloca é o da possibilidade de elaborar uma teoria pedagógica que capte a escola como instrumento capaz de contribuir para o combate à dominação, tensionando sua função no processo de reprodução social na direção dos interesses da classe trabalhadora.

Por essa razão, a prática social é situada, para essa pedagogia, como ponto de partida e de chegada da práxis escolar: “[...] é ela própria que constitui ao mesmo tempo o suporte e o contexto, o pressuposto e o alvo, o fundamento e a finalidade da prática pedagógica” ( SAVIANI, 2012 , p. 72-73). O método histórico-crítico compreende a prática pedagógica como “atividade mediadora no seio da prática social global” que requalifica a inserção social de professores e alunos por meio dos processos de problematização, instrumentalização e catarse.

A problematização refere-se ao esforço de “detectar que questões precisam ser resolvidas no âmbito da prática social e, em consequência, que conhecimentos é necessário dominar” ( SAVIANI, 2012 , p. 71). A instrumentalização refere-se à “[...] apropriação pelas camadas populares das ferramentas culturais necessárias à luta social que travam diuturnamente para se libertar das condições de exploração em que vivem” ( SAVIANI, 2012 , p. 71). A catarse constitui o “ponto culminante do processo educativo”; se expressa como “[...] nova forma de entendimento da prática social a que se ascendeu” ( SAVIANI, 2012 , p. 72), ou seja, refere-se à “efetiva incorporação dos instrumentos culturais, transformados agora em elementos ativos de transformação social” ( SAVIANI, 2012 , p. 72, grifo nosso).

A requalificação da inserção social do estudante anteriormente referida deve-se a que “a compreensão da prática social passa por uma alteração qualitativa” ( SAVIANI, 2012 , p. 72), processo vivido também pelo professor, cuja atividade vai possibilitando alcançar sínteses mais ricas e orgânicas acerca da realidade. Importante notar que não se trata da aplicação do conhecimento que foi apresentado, como queria a pedagogia tradicional, mas da possibilidade de apropriação de instrumentos culturais que, uma vez incorporados como segunda natureza, interpõem-se como elementos mediadores da conduta das pessoas, por permitirem perceber (afetiva e cognitivamente) a realidade de forma qualitativa diferente, desenvolver novas capacidades de ação e vislumbrar novas possibilidades de objetivação no mundo social.

A problematização, como momento da práxis educativa escolar, tem, em nossa análise, conexão direta com o problema do currículo. Como vimos, a problematização tem a ver com a identificação de questões que precisam ser resolvidas no âmbito da prática social e, em consequência, “que conhecimentos é necessário dominar” ( SAVIANI, 2012 , p. 71). A seleção dos conhecimentos que deverão ser socializados pela escola, como já sinalizamos, é por excelência o problema do currículo. Assim, passaremos ao exame do significado do conceito de problematização e sua relação com o currículo.

Na obra Educação: do senso comum à consciência filosófica , Saviani (2013 , p. 17) dedica-se ao conceito filosófico de problema. Estabelecendo o devido distanciamento da acepção corriqueira do termo, que o toma como mero sinônimo de questão, tema ou assunto, o autor postula que “a essência do problema é a necessidade”. Uma questão complexa ou desconhecida não reflete necessariamente um problema: “uma questão cuja resposta se desconhece e se necessita conhecer, eis aí um problema” ( SAVIANI, 2012 , p. 17), afirma. Disso decorre que:

[...] um obstáculo que é necessário transpor, uma dificuldade que precisa ser superada, uma dúvida que não pode deixar de ser dissipada são situações que se nos configuram como verdadeiramente problemáticas.6 ( SAVIANI, 2012 , p. 18).

Tal conceituação de problema leva Saviani (2013 , p. 18) a uma ponderação crítica de ordem curricular: “Muitas das questões que integram os currículos escolares são destituídas de conteúdo problemático”. O autor assevera que o caráter artificioso das questões propostas – que configuram, em última instância, pseudoproblemas – acaba por desencadear uma série de mecanismos artificiais na atividade de alunos e professores. À medida que os estudantes são convocados a engajar-se com pseudoproblemas, abre-se, no limite, “o caminho para a fraude, para a impostura”. Nota-se, assim, quão necessário é resgatar a problematicidade dos conteúdos curriculares, o que equivale a recuperar a dramaticidade e vitalidade no processo educativo:

[...] problema, apesar do desgaste determinado pelo uso excessivo do termo, possui um sentido profundamente vital e altamente dramático para a existência humana, pois indica uma situação de impasse. ( SAVIANI, 2012 , p. 22).

Por essa característica, o verdadeiro problema desencadeia reflexão, entendida com exame detido e atento, busca de significado, análise cuidadosa. É essa busca que, em última instância, dá sentido aos instrumentos culturais socializados pela escola, os quais não devem ser pensados como um fim em si mesmo, mas em sua vinculação com os problemas da existência humana. Se o problema é uma “necessidade que se impõe objetivamente e é assumida subjetivamente” ( SAVIANI, 2012 , p. 22), é justamente a necessidade objetiva reconhecida e assumida subjetivamente que mobilizará o estudante a engajar-se no movimento de instrumentalização, no qual poderá se encontrar com objetos cognoscíveis capazes de satisfazer ou canalizar a necessidade, ao mesmo tempo requalificando-a.

Quais são os principais problemas postos pela prática social, e quais conhecimentos/instrumentos é necessário dominar para enfrentá-los? Em nossa análise, essa é uma pergunta fundamental a nos guiar na elaboração e concretização dos currículos escolares, de modo a garantir a vinculação orgânica entre a práxis escolar e a prática social global, evitando incorrer na “[...] tendência a desvincular os conteúdos específicos das disciplinas das finalidades sociais mais amplas” ( SAVIANI, 2012 , p. 80). A pedagogia histórico-crítica posiciona-se claramente ao postular que o conhecimento não interessa por si mesmo nem sua transmissão justifica-se como fim em si mesma, situando nas necessidades que emergem na prática social a baliza para a elaboração dos currículos escolares: “[...] são as necessidades sociais que determinam o conteúdo, isto é, o currículo da educação escolar em todos os seus níveis e modalidades” ( SAVIANI, 2016 , p. 62). Na proposição de Saviani (2016) , a seleção dos conteúdos escolares subordina-se à intencionalidade pedagógica, que por sua vez conecta-se à prática social:

Se os conhecimentos produzidos socialmente, no que se refere à educação, não interessam por si mesmos e se o conjunto dos saberes mobilizados pelo educador se articulam em função do objetivo propriamente pedagógico que se liga ao desenvolvimento do educando, então não são os saberes, enquanto tais, que determinam a construção dos currículos escolares . Ao contrário disso, são os objetivos educativos que determinam a seleção dos saberes que deverão compor a organização dos currículos. ( SAVIANI, 2016 , p.71, grifo nosso).

Tal proposição remete à primeira tese defendida neste artigo, que situa o currículo como meio a serviço da intencionalidade pedagógica. Na discussão que se coloca nesse momento, é fundamental se ter claro que o conceito de prática social não se confunde com a experiência imediata, presente, cotidiana. A prática social a ser objeto de problematização, análise cuidadosa e busca de significado não corresponde e não se confina às experiências pessoais da vida cotidiana dos estudantes. Tomar como ponto de partida para o ensino problemas do dia-a-dia dos alunos é um entendimento equivocado do que seja a problematização da prática social para a pedagogia histórico-crítica. Esse alerta já foi feito por Martins (2013 , p. 290) ao tratar do método histórico-crítico: “não entendemos que o ponto de partida seja representado por algum ‘problema’ que se desprenda da realidade circundante e imediata e se coloque como conteúdo escolar […]”.

Os problemas do dia-a-dia não, necessariamente, se constituem verdadeiros problemas, e a vida diária das pessoas é apenas a faceta aparente da prática social. Os verdadeiros problemas da prática social não são imediatamente captáveis na experiência cotidiana, na qual as verdadeiras determinações da existência social acabam por permanecer ocultas em um jogo de claro-escuro de verdade-engano, como ensinou Kosik (1976) ao postular que a destruição da pseudoconcreticidade da experiência imediata requer medições do pensamento. Logo, a referência que se toma para o ensino e, especificamente, para a construção do currículo, é a prática social global entendida como processo histórico e considerada no movimento singular-particular-universal.

Assim estabelecido o conceito de prática social e sua problematização, vemos que o currículo comporta especificidades de comunidades locais ou grupos sociais particulares articuladas a questões gerais e amplas de ordem estrutural, econômica, nacional e internacional. Não nos parece possível, à luz da pedagogia histórico-crítica, a formulação de um currículo universal, homogêneo e padronizado que desconsidere as peculiaridades locais que atravessam a vida concreta dos sujeitos-destinatários, ao mesmo tempo que não se preconiza a elaboração de currículos que tenham o local como referência principal e desarticulada da totalidade: na dialética local-global, é neste polo – e não naquele – que se assenta a prevalência, o que significa que os problemas de corte local não se explicam senão na interconexão com determinações fundamentais de ordem global/universal.

A delimitação de quais sejam os aspectos da prática social a serem problematizados no contexto do ensino escolar – e consequentemente que conhecimento é necessário garantir que os estudantes possam dominar – é feita necessariamente a partir de um posicionamento político perante a realidade. Podemos, a título de ilustração, perguntarmo-nos: a concentração da propriedade fundiária (no campo) e imobiliária (na cidade) no Brasil coloca-se como problema, ou seja, como situação a ser esclarecida e que necessita ser superada, e que deve, portanto, ser contemplada no currículo escolar? A depender da posição política desde a qual se analisa a questão, fica estabelecido que se trata, ou não, de um aspecto problemático da prática social, a requerer esclarecimento conceitual e enfrentamento na ação.

Ao destacar a problematização da prática social como processo organicamente vinculado à elaboração e concretização dos currículos escolares, observamos que a delimitação dos objetos de ensino e respectivos sistemas conceituais que deverão compor os currículos escolares é um processo no qual estão imbricadas dimensões epistemológicas (ligadas à estrutura e especificidade da área de conhecimento), pedagógicas (ligadas ao problema do ensino propriamente dito), psicológicas (ligadas às possibilidades afetivo-cognitivas do sujeito-destinatário do ato educativo) e políticas (ligadas às consequências concretas da transmissão de determinado conhecimento sobre a prática social).

Ressaltamos também o entendimento da problematização como momento pertinente não só à dimensão didática (ou seja, às decisões referentes a como ensinar os conteúdos), como é mais comumente interpretado, mas também à dimensão curricular (quais conteúdos ensinar), evidenciando o alcance global dos momentos do método histórico-crítico propostos por Saviani (2012) e a impossibilidade de fragmentação das diversas dimensões que constituem o ato pedagógico.

Considerações finais

As teses aqui desenvolvidas somam-se ao esforço de aproximações sucessivas ao fenômeno educativo no enquadre histórico-crítico, destacando algumas das questões centrais envolvidas na problemática do currículo. Esperamos, com sua sistematização, contribuir com os professores, pesquisadores e demais profissionais que se defrontam com a problemática do currículo em sua atividade de trabalho, estudos teórico-práticos e iniciativas político-pedagógicas concretas.

Do percurso argumentativo aqui desenvolvido, no qual se reitera a dimensão política do currículo e dos múltiplos processos envolvidos em sua elaboração e concretização, acreditamos que se desdobra a necessidade (tarefa) de construir mediações que possam orientar e estabelecer a conexão, na práxis pedagógica, entre o conhecimento clássico e a prática social global, à luz dos princípios do método histórico-crítico, tanto no que se refere à elaboração de propostas curriculares quanto de sua concretização no chão da escola.

Referências

ABRANTES, Angelo Antônio. Educação escolar e acesso ao conhecimento: o ensino como socialização da liberdade de pensar. Germinal , Salvador, v. 7, n. 1, p. 132-140, jan. 2015. [ Links ]

CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos . Trad. Nilson Moulin. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. [ Links ]

COLETIVO DE AUTORES. Metodologia do ensino de educação física . São Paulo: Cortez, 1992. [ Links ]

DAVIDOV, Vasili. La enseñanza escolar y el desarrollo psíquico . Moscú: Progresso, 1988. [ Links ]

DUARTE, Newton. Os conteúdos escolares e a ressurreição dos mortos . Campinas, Autores Associados, 2016. [ Links ]

DUARTE, Newton. Vigotski e o “aprender a aprender” : crítica às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana. 2. ed. Campinas: Autores Associados, 2001. [ Links ]

GAMA, Carolina Nozella. Princípios curriculares à luz da pedagogia histórico-crítica: as contribuições da obra de Dermeval Saviani. 2015. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015. [ Links ]

KOSIK, Karel. Dialética do concreto . Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. [ Links ]

MALANCHEN, Julia. Cultura, conhecimento e currículo: contribuições da pedagogia histórico-crítica. Campinas: Autores Associados, 2016. [ Links ]

MARTINS, Lígia Márcia. O desenvolvimento do psiquismo e educação escolar: contribuições à luz da psicologia histórico-cultural e pedagogia histórico-crítica. Campinas: Autores Associados, 2013. [ Links ]

SAVIANI, Dermeval. Educação: do senso comum à consciência filosófica. 19. ed. Campinas: Autores Associados, 2013. [ Links ]

SAVIANI, Dermeval. Educação escolar, currículo e sociedade: o problema da Base Nacional Comum Curricular. Movimento , Niterói, v. 3, n. 4, p. 54-84, 2016. [ Links ]

SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia . 42. ed. Campinas: Autores Associados, 2012. (Polêmicas do nosso tempo). [ Links ]

SAVIANI, Dermeval. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 11. ed. Campinas: Autores Associados, 2011. [ Links ]

SAVIANI, Dermeval; DUARTE, Newton (Org.). Pedagogia histórico-crítica e luta de classes na educação escolar . Campinas: Autores Associados, 2012. [ Links ]

SILVA, Célia Regina. Análise da dinâmica de formação do caráter e a produção da queixa escolar na educação infantil: contribuições à luz da psicologia histórico-cultural e da pedagogia histórico-crítica. 2017. Tese (Doutorado em Educação Escolar) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Araraquara, 2017. [ Links ]

VACCA, Giuseppe. Vida e pensamento de Antonio Gramsci: 1926-1937. Trad. Luiz Sérgio Henriques. Brasília, DF: Fundação Astrojildo Pereira; Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. [ Links ]

2- Realizada no período de julho de 2017 a junho de 2018 na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), sob a supervisão do Prof. Dermeval Saviani, a referida pesquisa teve por objetivo, em seu conjunto, analisar a validade para o segmento da educação infantil da concepção histórico-crítica geral de currículo, buscando contribuir para a elucidação da natureza e especificidade desse dispositivo pedagógico nessa etapa da escolarização, tendo em vista o debate contemporâneo instalado em torno dessa problemática.

3- Apoiada na análise de Saviani acerca do processo histórico de consolidação do caráter sistematizado da educação, Silva (2017) discute a intencionalidade educativa como dimensão teleológica da ação educativa. A autora situa a educação escolar como mediação particular da relação entre a singularidade da formação do indivíduo e a universalidade das relações sociais típicas da sociedade de classes vigente, identificando que tal mediação requer o estabelecimento de uma intencionalidade educativa pela qual escola e sociedade se interligam.

4- Ao mesmo tempo, como discutiremos na terceira tese, o mergulho na prática social global.

5- Dermeval Saviani, comunicação pessoal, 2017.

6- É necessário notar que o critério de problematicidade não é subjetivo, ou seja, não se pode considerar que um problema existe simplesmente porque o indivíduo o sinta como tal. A necessidade existe quando ascende ao plano consciente, sendo sentida como tal, mas objetivada no interior de circunstâncias concretas que permitam avaliar seu caráter real ou suposto: “o conceito de problema implica tanto a conscientização de uma situação de necessidade (aspecto subjetivo) como uma situação conscientizadora da necessidade (aspecto objetivo)” ( SAVIANI, 2012 , p. 22).

Recebido: 25 de Setembro de 2018; Revisado: 05 de Novembro de 2018; Aceito: 18 de Dezembro de 2018

Juliana Campregher Pasqualini é docente lotada no Departamento de Psicologia da Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus Bauru/SP, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da UNESP/Araraquara. Psicóloga, mestre e doutora em educação escolar pela UNESP/Araraquara, pós-doutora pela Faculdade de Educação da Unicamp.

Creative Commons License  This is an Open Access article distributed under the terms of the Creative Commons Attribution Non-Commercial License, which permits unrestricted non-commercial use, distribution, and reproduction in any medium, provided the original work is properly cited.