Introdução
Para Dewey (1939) , a democracia é um modo de vida conduzido pela fé na capacidade de julgamento e ação inteligentes dos seres humanos, caso condições apropriadas sejam dadas. Por princípio, nas democracias, os indivíduos comuns devem ter oportunidade para desenvolver seus talentos, por meios voluntários, livres de coerção ( DEWEY, 1937 ) e assim poder dirigir os assuntos da sociedade, participando de instituições políticas, sociais, culturais e econômicas que lhes afetem ( KOVACS, 2009 ). A participação livre e crítica requer conhecimento e prática, para lidar com a multiplicidade de opiniões, visões de mundo e propostas conflitantes, em especial quando a escolha de uma nega a outra. Nesse embate constante, um conceito mostra-se essencial: a tolerância.
O pensamento crítico exigido pelo processo democrático precisa lidar com a ruptura do senso comum, os diversos pontos de vista, o subversivo, que dão a grupos subalternos a chance de renovação democrática ( KOVACS, 2009 ). Ainda que a democracia liberal se sustente na defesa da igualdade entre indivíduos, o fato é que eles não são iguais, fazendo da tolerância uma virtude ( CARTER, 2013 ).
Nas sociedades democráticas modernas, inclusive no Brasil, a tolerância ganha urgência ( COSTANDIUS; ROSOCHACKI, 2012 ), à medida que os cidadãos precisam conviver, cada vez mais, com reivindicações diversas e conflitantes de outros indivíduos e grupos sociais, culturais, étnicos e religiosos ( WERLE, 2012 ). O contato com a diferença, sem a qual não haveria necessidade de tolerância, advém de processos de individualização, multiculturalismo, globalização, entre outros ( MCKINNON; CASTIGLIONE, 2003 ). Nesse bojo, também emergem a intolerância, o discurso do ódio, o extremismo e outras ameaças à democracia (DECLARAÇÃO, 1995).
Não há como deixar que cada cidadão decida por si e isoladamente o que vai tolerar, sob o risco de aumentar ainda mais a intolerância ( VAN WAARDEN, 2014 ). A própria democracia deve definir os limites do que é ou não tolerável ( WERLE, 2012 ). Mas, como fazer isso sem minar as fundações dessa mesma democracia? ( ROSENBLITH; BINDEWALD, 2014 ).
No âmbito legal, a instalação de regimes autoritários por líderes que haviam sido democraticamente eleitos desencadeou uma série de ações protetivas por parte de países europeus no início do Século XX, caracterizando o que Loewenstein (1937) denominou democracia militante , ou seja, a que ativamente luta para inibir o crescimento do despotismo.
Simultaneamente, a educação tem sido apontada como fundamental para o letramento político e o engajamento cívico dos cidadãos ( CRICK, 1998 ) e a consequente aceitação dos princípios democráticos. Atitudes e comportamentos políticos emergem na infância ou adolescência, em uma construção pessoal e social. Às crianças devem-se oferecer oportunidades de engajamento onde vivem, para que tenham voz e sejam ouvidas. Não se trata apenas de cognição individual e habilidades sociais em contexto. A participação deve ser efetiva, a fim de desenvolver o senso de agência e de responsabilidade imprescindíveis na cidadania adulta ( DIAS; MENEZES, 2014 ).
De um lado, evoca-se na criança o acolhimento dos valores democráticos. Do outro, encoraja-se nela a expressão de sua opinião. Entram em oposição o grupo versus o indivíduo; a segurança no ambiente de aprendizado versus a liberdade de expressão; a inclusão versus a exclusão ( ORLENIUS, 2008 ). A educação, portanto, não é um processo estanque de transmissão e recepção passiva de princípios; contém ambiguidades e deve estar preparada para ser objeto, ela mesma, tanto de questionamentos e disputas salutares como de manifestações de intolerância e ódio.
O desafio que se impõe aqui é compreender os limites da tolerância na educação para a democracia. O trabalho divide-se em duas partes: a revisão bibliográfica acerca da tolerância e a análise de uma iniciativa de participação política infantojuvenil de cunho educativo – a ação Câmara Mirim, promovida pelo Plenarinho, da Câmara dos Deputados.
O que é tolerância?
Esta seção apresenta diferentes concepções de tolerância na literatura, as tensões permanentes nos regimes democráticos e os limites do intolerável.
A maioria das análises da tolerância identifica três componentes: (1) a objeção, ou a avaliação negativa do objeto da tolerância ( CARTER, 2013 ): enxerga-se algo como “errado” para tolerá-lo ( HANSEN, 2013 ; ORLENIUS, 2008 ); (2) a aceitação, em que o tolerante decide não interferir; e (3) a condição de poder, quando tolerante e tolerado estão em assimetria e o primeiro refreia a rejeição do ato do outro, com o qual discorda ( CARTER, 2013 ; VAN WAARDEN, 2014 ).
Já Forst (2003 , 2007, 2014 ; WERLE, 2012 ) identifica quatro concepções da tolerância: a de permissividade e condescendência; a coexistência; o respeito mútuo; e a valorização e autoestima. Para ele, a tolerância deve ser pensada em conjunto com a ideia de justiça política (e justificação pública) e o conceito de democracia.
Alguns autores acreditam que a tolerância é dever do Estado, detentor do monopólio da força, porque os cidadãos não teriam o poder de rejeitar práticas de outros com os quais interagem de modo horizontal. O Estado, então, deveria prover espaços para que os cidadãos participassem da elaboração das leis nesse sentido. No entanto, as leis podem gerar prejuízos imprevisíveis para certos modos de vida ( VAN WAARDEN, 2014 ) ou não ser suficientes, já que muitos golpes de Estado ocorreram dentro da ordem institucional ( MONTEIRO, 2015 ).
Outros autores discordam da prevalência da tolerância na relação vertical entre Estado e cidadãos, afirmando que a tolerância pessoal, nas relações cotidianas, é muito mais frequente (ver VAN WAARDEN, 2014 ). Heyd (2008) não vê a tolerância como uma virtude política nem um julgamento impessoal, e sim uma escolha deliberada e racional do indivíduo em relação aos outros.
A tolerância, assim, não é uma definição consensual. Para Saulius (2013) , é uma noção dependente do contexto, que não assegura nenhum critério para avaliar as ações (próprias ou dos outros). Assim, qualquer argumento sobre uma acepção geral de tolerância traria ambiguidade e desinformação.
Além disso, a tolerância encerra vários paradoxos: como pode estar certa uma pessoa que tolera o que acredita ser errado? ( ALMOND, 2010 ; HANSEN, 2013 ; MCKINNON; CASTIGLIONE, 2003 ). Como a tolerância pode ser compatível com o respeito, se implica avaliar algo como negativo ou inferior? Se uma pessoa intolerante se abstém de atacar o outro, sua tolerância é ainda mais virtuosa? ( CARTER, 2013 ; HANSEN, 2013 ).
De acordo com Williams (1996) , a tolerância parece ser, ao mesmo tempo, necessária e impossível. Necessária para resolver os desentendimentos sem armas. Impossível, porque se a violência e a ruptura da cooperação social estão ameaçadas nessas circunstâncias, as partes simplesmente não estão dispostas a se aceitar.
No caso da democracia, há outros paradoxos: se a democracia não tolerar os intolerantes, contradiz-se, tornando-se intolerante; se tolerar, arrisca-se a ser destruída, o que significa a vitória da intolerância (MANFREDI apud CABRAL, 1994 ; POPPER, 1966 ).
Se o preconceito nasce da ignorância e do medo em relação ao diferente, o livre debate de ideias é um modo de colocar as cartas na mesa . No entanto, várias são as críticas aos processos deliberativos que, sob fachada neutra, mantêm ou tornam invisíveis desigualdades políticas e intolerâncias ( COSTANDIUS; ROSOCHACKI, 2012 ; ROSENBLITH; BINDEWALD, 2014 ), ou, ao se aterem aos aspectos públicos e políticos da convivência social, deixam intocadas as questões privadas das doutrinas religiosas, filosóficas e morais ( WERLE, 2012 ), justamente as que demandam tolerância.
Na prática, a assimetria de forças pode facilitar que o discurso errado prevaleça ( COSTANDIUS; ROSOCHACKI, 2012 ; ROSENBLITH; BINDEWALD, 2014 ). De fato, é possível encontrar justificativas racionais para qualquer comportamento (ver CARTER, 2013 ; MONTEIRO, 2015 ; VAN WAARDEN, 2014 ). Mesmo em arenas de participação, minorias continuam sendo discriminadas e marginalizadas ( COSTANDIUS; ROSOCHACKI, 2012 ), como se reivindicassem privilégios ( SAULIUS, 2013 ). Se têm visões impopulares, nem são levadas em conta. E, se a decisão da maioria contradiz essas visões, fica difícil encontrar a fronteira entre a legitimidade e o caráter antidemocrático da contestação ( CEVA, 2012 ).
No entanto, se a esfera pública participativa apresenta problemas, qual seria outra solução? Qual a vantagem em se abster do debate? Outras questões emergem: Como o Estado pode intervir, sem esbarrar na censura autoritária ( MONTEIRO, 2015 )? Quem, afinal, vai definir os limites da tolerância ( FORST, 2014 )?
As respostas podem estar em uma compreensão de tolerância que abarque vetores tanto horizontais como verticais. Na concepção de mutualidade, a abertura aos outros é fundamental para entendê-los, admitindo o valor das experiências diferentes, em que a tolerância dê lugar ao respeito ( ROSENBLITH; BINDEWALD, 2014 ). Ao mesmo tempo, segundo Creppell (2008) , a tolerância é um relacionamento político-social, e não uma tarefa individual; precisa ser sustentada (verticalmente) por instituições e normas políticas. A autora define mutualidade como “a vontade de se relacionar”, que dá início à tolerância e dela deve ser o fim, permitindo contínuos ajustes e negociações, sem a expectativa de consensos livres de conflito.
Segundo a Declaração de Princípios sobre a Tolerância (1995, p. 11):
A tolerância não é concessão, condescendência, indulgência. [...] é [...] uma atitude ativa fundada no reconhecimento dos direitos universais da pessoa humana e das liberdades fundamentais do outro. [...] deve ser praticada pelos indivíduos, pelos grupos e pelo Estado. [...] é o sustentáculo dos direitos humanos, [...] da democracia e do Estado de Direito.
Como se daria a ação do Estado? No bojo da democracia militante, Pedahzur (2004) identifica quatro controles para lidar com a intolerância: (1) administrativos e policiais; (2) legais e judiciais; (3) sociais e (4) educacionais. Sua combinação pode seguir uma rota militante (ataque individualizado às ameaças) ou imunizante (mais duradoura, voltada para a raiz dos comportamentos antidemocráticos, com medidas menos restritivas e de maior tolerância).
O que suscitaria uma rota ou outra seria o nível das ameaças. Segundo a literatura, há práticas que simplesmente não podem ser toleradas: abuso, ódio ( DEWEY, 1939 ), desrespeito ( CARTER, 2013 ), discriminação ( CEVA, 2012 ), incitação ou apoio à violência, racismo ( MONTEIRO, 2015 ), sexismo, homofobia ( ROSENBLITH; BINDEWALD, 2014 ), sequestro, escravidão ( POPPER, 1966 ), assassinato, tortura, estupro, fraude ( WALDRON, 2003 ), terrorismo ( ORLENIUS, 2008 ). São comportamentos que se opõem aos direitos humanos e ao Estado de Direito, essenciais para a democracia ( MONTEIRO, 2015 ).
Não se tolera quem é intolerante. O Estado pode e deve intervir na liberdade individual e impedir ações que potencialmente causem dano ( MILL, 2001 ; WERLE, 2012 ; ROSENBLITH; BINDEWALD, 2014 ). A liberdade de consciência pode ser limitada pelo interesse geral na ordem e na segurança pública ( WERLE, 2012 ), para continuidade da democracia e pelo bem das futuras gerações ( NIESEN, 2002 ). Não se tolera quem rejeita a tolerância ( MCKINNON; CASTIGLIONE, 2003 ), nem o que ameaça a democracia e a liberdade, porque os métodos democráticos não podem ser usados para suprimir a própria democracia (PARDO, 1985 apud MONTEIRO, 2015 ).
A seção seguinte apresenta algumas aplicações de controles educacionais na rota imunizante, considerando que os demais também estão envolvidos no processo educativo que visa a tornar os jovens aptos a entender e tolerar a diversidade.
Tolerância e educação
Segundo a Declaração de Princípios sobre a Tolerância (1995, p. 15), “A educação é o meio mais eficaz de prevenir a intolerância”, sendo um imperativo prioritário. Uma vez que os valores são aprendidos na infância e solidificados na adolescência, o ensino da tolerância busca preparar os estudantes para a vida em uma sociedade cada vez mais diversa em função das mudanças demográficas ( TITUS, 1998 ). O intento, no entanto, envolve desafios e riscos, tais como a tensão entre os deveres e limites do Estado na educação e o paradoxo entre a proteção e a participação dos jovens.
A conceituação básica da educação para a tolerância consiste nos direitos e nas liberdades dos estudantes, para assegurar seu respeito e estimular a vontade de proteger direitos e liberdades dos outros. A raiz está na própria definição de cidadania, como exercício de direitos e deveres: por extensão, a tolerância abarca o direito de ser tolerado e o dever de tolerar. O objetivo educacional, nesse caso, é o desenvolvimento de juízo autônomo, reflexão crítica e pensamento ético. Os métodos precisam estar conscientes das fontes culturais, sociais, econômicas, políticas e religiosas da intolerância, que levam ao medo, à exclusão e à violência (DECLARAÇÃO, 1995).
A tolerância refere-se ao sistema de valores éticos, mas o fato de conhecê-los ou tê-los não significa ser tolerante. É possível que uma pessoa facilmente tolere ideias, mas é diferente – e difícil – tolerar as ações dos outros, especialmente as que dizem respeito a ela ( SAULIUS, 2013 ).
Só se aprende a ser tolerante ao lidar com situações que demandem isso, ou seja, pela experiência ( DEWEY, 1939 ), ainda que no ambiente protegido da escola ( DIAS; MENEZES, 2014 ; ROSENBLITH; BINDEWALD, 2014 ). Deve ser uma prática regular, e não ocasional, em atividades que ampliem o contato e a interação entre grupos, como o aprendizado cooperativo, para criar entendimento dos outros e empatia ( KLEIN, 1992 ; RICE, 2009 ).
Os conselhos escolares são uma opção para prover a crianças e jovens uma primeira experiência nos processos democráticos e de tomada de decisão. Os estudantes debatem questões concernentes a eles e à escola ( CRICK, 1998 ). É fundamental o clima de confiança, o respeito, a interação entre indivíduos livres, bem como o equilíbrio entre professores e estudantes, quando adultos e jovens se reconhecem como moralmente iguais ( KLEIN, 1992 ; SAULIUS, 2013 ).
Admite-se que o ensino da cidadania (e da tolerância) envolve a discussão de questões controversas. Mas como lidar com elas? O que fazer com o estudante que mostra intolerância nessas situações? Até onde o jovem, com identidade em formação, pode ser responsabilizado por suas opiniões? E se a desobediência for indispensável para a reflexão de leis que precisam mesmo ser mudadas ( CRICK, 1998 ) ou para enfrentar a manipulação, a opressão e a invasão cultural? ( FREIRE, 1987 ; KOVACS, 2009 ).
Mill (2001) ressalta que crianças e jovens requerem assistência e proteção contra as ações dos outros e de suas próprias. E não é apenas a maturidade dos estudantes que está em jogo no ensino da tolerância.
Diante da noção de educação como dever do Estado, aparecem as discordâncias acerca de até onde ele pode ir. De modo geral, o sistema educacional, pela grande responsabilidade que tem, é intolerante e autoritário, lançando mão de policiamento, disciplina e punição ( KOVACS, 2009 ). Surgem, também, os choques com as concepções das famílias acerca de certos temas ( ALMOND, 2010 ; ROSENBLITH; BINDEWALD, 2014 ; VAN WAARDEN, 2014 ) e as questões pessoais de cada educador em sala de aula. Some-se, ainda, a dificuldade de incluir a tolerância nos objetivos escolares ( HANSEN, 2013 ).
Alguns autores defendem que o convívio com pessoas e ideias deve ser opcional, para evitar o conflito no ambiente educacional ou com as famílias (ver ROSENBLITH; BINDEWALD, 2014 ). Outras providências incluem ignorar, silenciar, punir exemplarmente ou excluir o estudante intolerante (ver ORLENIUS, 2008 ).
Um dos problemas de se omitir os assuntos controversos é perder a essência da educação, transformando-a em treinamento, mera inculcação de conhecimento e habilidades ( CRICK, 1998 ). Outro problema grave de não discutir controvérsias como o preconceito é dar a entender aos estudantes que se trata de algo aceitável ou trivial ( KLEIN, 1992 ).
As punições de teor exemplar, como as “políticas de tolerância zero” 3 , em geral aparecem como mais baratas, fáceis e imediatas. As suspensões e expulsões, no entanto, têm efeitos nefastos. Em relação ao estudante punido, estão a estigmatização, a quebra do ritmo escolar, a evasão, a negação de direitos, a probabilidade de contato com o crime. Para os demais estudantes, cria-se um ambiente de medo, em que contraditoriamente se perde o respeito pelo sistema legal, tido por eles como arbitrário, exagerado, irracional, injusto ( MITCHELL, 2014 ).
Adultos e jovens são postos como adversários, com os primeiros modelando a intolerância dos últimos, sem lhes permitir nem que perguntem o porquê ( RICE, 2009 ). Além disso, há um impacto desproporcional em relação a estudantes não-brancos e com deficiências. Esse tipo de política, portanto, que foca no sintoma e não na causa, mostra-se ineficiente ( MITCHELL, 2014 ) e destrói as condições que favoreceriam a tolerância nas escolas ( RICE, 2009 ). Para usar os termos de Pedahzur (2004) , o uso da força (rota militante) dentro do que tem natureza educativa (rota imunizante) provoca efeitos desastrosos.
A aparente supressão do conflito, nessas medidas, nunca levará à supressão do desconhecimento e, por conseguinte, do medo do outro. Somente o contato sem intermediários pode trazer experiências compartilhadas. A tolerância cria um senso de unidade e pertencimento a um mundo comum, fortalecendo conexões entre indivíduos para além de seu comportamento e suas opiniões. O respeito é pela pessoa e seus direitos, e não pelas suas ações ( HEYD, 2008 ). Isso vai além da visão clássica de uma sociedade liberal em que os membros apenas se preocupam com o que os diferencia, os separa e os mantém seguros uns dos outros; eles devem se importar, sim, com o que os une ( KLEIN, 1992 ; CREPPELL, 2008 ). Estar junto passa a ser um valor.
Ao considerar a perspectiva dos outros e a busca do engajamento mesmo diante do conflito, observa-se que a concepção de tolerância mais profícua para a educação para a democracia é a da mutualidade ( ROSENBLITH; BINDEWALD, 2014 ). Por essa razão, é a adotada neste artigo.
Contudo, não adianta somente proporcionar os ambientes de contato, em um otimismo ingênuo, sem entender as dinâmicas da dominância social e das relações intergrupais ( HARDIN; BANAJI, 2012 ). Se a consciência política começa na infância, isso também é verdade para o preconceito, que se manifesta cedo com quem é diferente ( KLEIN, 1992 ; TITUS, 1998 ).
A escola representa uma oportunidade para superar a barbárie, mas ela mesma também é fomentadora do preconceito, ao carregar os momentos repressivos da cultura, a divisão entre o trabalho físico e o intelectual e a competição contrária a uma educação realmente humana ( ANTUNES; ZUIN, 2008 ). No espaço escolar, a interação com a diferença, “quando não é problematizada, se dá por meio de relações interpessoais pautadas por conflitos, confrontos e violência” ( SALLES; SILVA, 2008 , p. 150).
Segundo Hardin e Banaji (2012) , as discussões acerca da discriminação são pautadas por uma noção obsoleta do preconceito, como se esse fosse enraizado na ignorância e perpetuado por indivíduos motivados pelo ódio. Nesse raciocínio, o remédio seria mudar corações e mentes, de modo individual e isolado. Essa visão, incompleta e perigosa, leva a políticas ineficientes (ou pior). Hardin e Banaji (2012) mostram que a estereotipação e o preconceito não requerem animosidade, hostilidade, nem mesmo consciência dos indivíduos. Não raro, o preconceito é implícito – involuntário e não controlável – inclusive entre os mais bem-intencionados. Assim, ele permanece teimosamente imune aos esforços do indivíduo e só pode ser reduzido ou revertido com mudanças no ambiente social.
A noção do preconceito implícito aponta que qualquer pessoa é capaz de tê-lo, saiba ou não, queira ou não. As soluções devem focar na identificação das condições que originam e perpetuam o preconceito e a estereotipação. Para Hardin e Banaji (2012) , não é uma questão de “retirar a maçã podre”, porque o problema do preconceito não é de um ou de poucos, mas de todos. Retomando Creppel (2008), a tolerância como mutualidade é uma tarefa político-social, e não individual.
Preconceitos e estereótipos têm raízes no consenso social; não são aleatórios. Dentro de uma sociedade, os apreços, os desapreços, as crenças que constrangem alguns e privilegiam outros acontecem em padrões que sistematicamente oprimem os dominados e enaltecem a superioridade dos dominantes ( HARDIN; BANAJI, 2012 ).
De acordo com Salles e Silva (2008 , p. 164):
[...] é necessário cuidar para não naturalizar, cristalizar e essencializar a diversidade e diferença. [...] diferenças também são produzidas socialmente e sua perpetuação pode se constituir em uma relação de poder que não permite a inclusão, gerando a violência, não só física mas, também simbólica.
“Antes de tolerar, respeitar e admitir a diferença, é preciso explicar como ela é ativamente produzida” ( WOODWARD, 2012 , p. 69). Ao se identificarem as condições que criam o preconceito, também é possível estabelecer as condições para criar atitudes igualitárias, a individuação saudável e a mutualidade. Uma das estratégias para isso é reforçar os comportamentos admiráveis ( HARDIN; BANAJI, 2012 ).
Esse é um rumo para a política pedagógica. Pedagogia, aliás, que significa a própria diferença na abertura para outro mundo, em vez de meramente reproduzir o mundo atual ( WOODWARD, 2012 ). Assim, a educação pode se cumprir como método do progresso e da reforma social, condição primordial para a democracia ( DEWEY, 1897 [2007]).
Educação, participação política infantojuvenil e tolerância: o caso do Câmara Mirim
Metodologia
A parte empírica deste trabalho foca o programa educativo Plenarinho 4 , da Câmara dos Deputados, na ação anual Câmara Mirim, que incentiva a participação política de crianças. Procede-se à análise de conteúdo de mais de 6 mil propostas infantis enviadas entre 2006 e 2016 5 , alicerçada pela compreensão do contexto em que foram elaboradas. Nelas, buscam-se ideias intolerantes ou discordantes do ordenamento jurídico e se houve aumento numérico nos anos mais recentes, em que se nota maior polarização política no Brasil e recrudescimento da intolerância ( NONATO, 2015 ).
O Plenarinho é um programa de educação para a democracia e integra o esforço de aproximação entre a Câmara dos Deputados e os cidadãos. Com a ação Câmara Mirim, enfatiza a importância das leis, por meio da simulação do processo legislativo. O valor instrucional está na prática e na participação. Para isso, conta com a parceria de escolas e parlamentos mirins municipais. Trata-se de um concurso de projetos de lei aberto a estudantes do 5º ao 9º ano. Os três vencedores discutem suas ideias nos plenários da Câmara, com 400 outras crianças de todo o Brasil. Entre 2006 e 2016, sete projetos mirins foram adotados por deputados e tramitam hoje na Casa 6 .
A primeira vantagem em se estudar o Câmara Mirim é a extensão do banco de dados, numérica (6 mil projetos), temporal (quatro mandatos presidenciais) e espacial (contribuições do Brasil inteiro). A segunda é o conteúdo proveniente da participação política voluntária de crianças e adolescentes.
O método escolhido, a Análise de Conteúdo, consiste na seleção da unidade de análise, na codificação dos conteúdos, na conceituação e criação das categorias de codificação e na avaliação dos conteúdos ( BABBIE, 2000 ). Este trabalho tem, por unidades, os projetos infantis. Utilizam-se tanto a abordagem quantitativa como a qualitativa. A categoria inicial intolerância, com elementos do discurso de ódio, guiou-se pela conceituação de Gagliardone et al. (2015):
Expressões que incitem ao dano (discriminação, hostilidade ou violência) sobre um alvo identificado (grupo social ou demográfico);
Ofensas a quem exerce o poder e/ou tem visibilidade pública;
Antagonismos dirigidos a pessoas, e não a ideias abstratas (como ideologia política, fé ou crença).
A essa categoria também foram acrescentadas as ideias em dissonância com a lei. Empreendeu-se, em seguida, um esforço para identificar as fontes de tal intolerância (DECLARAÇÃO, 1995), que originam e perpetuam o preconceito, a estereotipação e as relações de dominação ( HARDIN; BANAJI, 2012 ).
No decorrer da análise dos 6 mil projetos, verificou-se a existência de outros em rumo inverso, em prol da tolerância. Assim, a categoria respeito, inicialmente inesperada, foi acrescentada.
Análise
É importante contextualizar os projetos mirins, em especial os que têm ideias antidemocráticas. O mote do Câmara Mirim é: Ideias para melhorar o Brasil . Nesse intento, as propostas infantis seguem duas linhas: (1) as que partem do geral para o particular, referentes a práticas, pessoas e circunstâncias com as quais a criança não necessariamente convive, e nesse caso a influência da mídia é preponderante; e (2) as que consideram o contexto mais imediato da criança, incluindo vivências na família, escola ou comunidade.
Entre os projetos mirins, há exemplos isolados de gordofobia, xenofobia e homofobia (expressões que incitam ao dano sobre certos alvos). A generalização acerca dos políticos (“vagabundos”, “safados”) e os ataques diretos a alguns deles (ofensas a quem exerce o poder) estão em poucas propostas. O preconceito a pessoas e grupos (antagonismos dirigidos) inclui a impossibilidade de recuperação do presidiário; o higienismo quanto ao uso de drogas; e a associação entre crime e fatores como idade, pobreza, desemprego e situação de rua.
Os projetos com discurso de ódio são exceção. Em escala maior, mas ainda pouco significativa, estão as penas desproporcionais e inconstitucionais. São curiosos os elementos do imaginário punitivo de alguns projetos infantis, muitos oriundos da ficção:
suspensão de banhos de sol e alimentação, ficar a “pão e água”;
separação de presos, proibição de visitas e do contato com mundo exterior;
trabalho compulsório “braçal” 7: serviços públicos de limpeza e manutenção (produção de asfalto), trabalho nas “minas de carvão”, “sob o sol na área agrícola”;
uso de “correntes muito grossas” e “pesos nos pés” para evitar fugas; inclusão em “lista negra”; banimento;
liberação da tortura; impossibilidade de perdão; proibição do direito de defesa nos crimes hediondos; penas que passam da pessoa do condenado, política “olho por olho, dente por dente” (por exemplo, execução de parente);
pena perpétua (como no “mundo avançado”), proibição de segundo julgamento;
uso de cadeira elétrica e guilhotina; morte e decapitação.
Outras propostas repressoras abrangeram irredutibilidade da pena; negação de ajuda a familiares de presos; ampliação da pena: 40, 50, 80, 120 anos; fim dos indultos. Alguns projetos apresentam justificativas para as medidas inconstitucionais, o que revela preocupação com o problema aventado, certa racionalidade e até boas intenções:
Trabalho compulsório nas prisões: sustento próprio; uso do dinheiro do auxílio-reclusão no Bolsa Família; produção do próprio alimento (e excedente para a merenda escolar); mão de obra no campo; fim do tempo para comandar o crime de dentro da prisão.
rabalho infantil: responsabilidade já aos 14 anos; preparação para a vida; empregabilidade; “dignificação do homem”; contribuição para a pátria; ocupação; distância das drogas.
Redução da maioridade penal: plenas capacidades; direito de votar e dirigir aos 16 anos; “a maioria de crimes são executados por menores”; aliciamento por adultos; recuperação para que trabalhem e sejam produtivos; retirada da sociedade de alguém com “tendência para a criminalidade”; preservação da vida do jovem; impedimento da reincidência do crime; fim da impunidade; respeito à lei divina do livre arbítrio; prisão para o pai de 16 anos que não paga pensão. Dependendo do argumento, a maioridade penal é reduzida para 7, 10, 12 a 16 anos.
De onde viria a inspiração para projetos mirins antidemocráticos? Em sua maioria, os projetos partem do geral para o particular e refletem uma onda crescente de violência e intolerância propagada pela mídia.
A criminologia midiática atrai, porque faz a distinção entre “nós”, pessoas boas e vulneráveis, e “eles”, a massa má de diferentes, os “inimigos” ( ZAFFARONI, 2012 ). A diferença é vista como um obstáculo, suportável apenas quando é hierarquizada - uns comandam e outros são submetidos (ADORNO apud NONATO, 2015 ).
A criminalização, assim, é seletiva em relação à classe social ( BATISTA, 2003 ). Obcecada pela lógica mercadológica, a mídia de massa impõe à sociedade uma forma descontextualizada de enxergar os problemas sociais. A realidade criminal é distorcida, com os autores pré-julgados sumariamente, gerando a vontade de punir a qualquer custo ( CALLEGARI; WERMUTH, 2009 ; SILVEIRA, 2010 ; DIAS; DIAS; MENDONÇA, 2013 ). A prisão aparece como única alternativa para a segurança pública, com “eles” afastados do convívio social, de “nós” ( DIAS; DIAS; MENDONÇA, 2013 ). A pena é o rito sagrado de solução de conflitos ( BATISTA, 2003 ).
A mídia dissemina que “o sistema penal está do lado de quem não deveria estar” ( SILVEIRA, 2010 , p. 31). Dessa forma, influencia os legisladores ( ZAFFARONI, 2012 ), para que aprovem leis sem o devido tempo de debate, com violações ao ordenamento jurídico e aos princípios do Estado Democrático de Direito ( CALLEGARI; WERMUTH, 2009 ; MASCARENHAS, 2010 ; DIAS; DIAS; MENDONÇA, 2013 ).
Assim, projetos de lei com penas maiores que os delitos e em desacordo com a Constituição não são exclusividade do Câmara Mirim; estão em trâmite no Congresso Nacional, o que deixa o Plenarinho, na Câmara, em uma situação educativa de tensão ímpar.
No campo político, segundo Brugnago e Chaia (2015), a dicotomia na participação brasileira, latente desde a centralização ideológica dos partidos com a eleição do Partido dos Trabalhadores (PT) em 2002, explodiu nas manifestações de junho de 2013. A partir da campanha eleitoral de 2014, evidenciou-se a divisão entre “nós” e “eles” e acentuou-se a polarização assimétrica entre esquerda e direita, com radicalização das forças conservadoras, tendo as redes sociais como dispositivo viabilizador. Em meio ao discurso anticorrupção, amplamente midiatizado, aflorou a defesa de soluções antidemocráticas, como a intervenção militar. Caraterística desse movimento é a visão da violência somente nos outros “que não pertencem à nação” – comunistas, minorias, dependentes do Bolsa Família (BRUGNAGO; CHAIA, 2015). Em meio à incerteza do futuro, pela crise política, institucional e econômica, as pessoas apegam-se a valores religiosos, morais e culturais, rechaçando o diferente (ADORNO, in NONATO, 2015 ). Em 2016, ocorreu o impeachment da presidente Dilma Rousseff, sem que se aplainassem os ânimos; pelo contrário.
Ao final, verifica-se que não são necessariamente as condições reais e objetivas que impactam na intolerância, no preconceito e no ódio. Muito mais incisivas são as percepções subjetivas da ameaça ( HALPERIN; PEDAHZUR; CANETTI, 2007 ). Mas, exatamente por serem subjetivas, elas também podem gerar impactos positivos. É o caso de avanços legislativos como a lei de combate à tortura e o Código de Trânsito, frutos da adesão popular ampliada pela mídia ( MASCARENHAS, 2010 ). Somam-se ainda produções que estimulam o esclarecimento e a cooperação (ADORNO apud NONATO, 2015 ).
O estudo do Câmara Mirim revelou esta faceta: o mesmo fato midiático que suscitou projetos intolerantes também ensejou outros que buscavam combater a violência, em prol do respeito e da garantia de direitos.
Em relação a práticas gerais pró-tolerância, os projetos mirins incluíram a garantia do direito à saúde, educação, transporte, moradia, cultura; o combate ao racismo, ao sexismo, à xenofobia, à homofobia e ao preconceito religioso, étnico e cultural. Houve preocupação com a equidade (como o fim de privilégios para políticos e igualdade de direitos nas áreas urbanas e rurais).
Os projetos para pessoas focaram em membros de grupos vulneráveis, para dar-lhes autonomia e garantir seus direitos. As crianças não necessariamente se identificam com essas pessoas. Abordaram nominalmente indivíduos com deficiências, obesidade, albinismo, HIV; empregados domésticos; gestantes; detentos e familiares; adolescentes infratores; desempregados; pessoas com pouca renda; moradores de rua; usuários de drogas; boias-frias; indígenas; nordestinos; quilombolas; refugiados; homossexuais; idosos; aposentados; evangélicos. Além disso, incluíram os políticos (“para combater o preconceito de que todos são corruptos”).
Na outra linha, do particular para o geral, estão projetos referentes ao ambiente escolar e à proteção da infância, com dilemas que cada criança enfrenta em seu cotidiano. Na escola, entre as sugestões estão o combate ao desrespeito (professor, aluno, funcionário); apoio a canhotos, gagos, crianças com transtornos; merenda saudável e adequada a diabéticos e alérgicos; música clássica para concentração; liberdade religiosa; material pedagógico e inclusão curricular sobre deficiências e sexualidade (prevenir doenças, gravidez precoce, feminicídio e preconceito a Lésbicas, Gays , Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros – LGBT´s; visitas a asilos e presídios; fim de escolas multisseriadas; igualdade para estudantes da zona rural e educação para “crianças itinerantes” (circo, militares etc).
O bullying representa a prática de intolerância mais presente na realidade escolar. Por isso, diversos projetos infantis visam a extingui-lo. Sugerem o acolhimento da vítima - e do agressor, e a ampla participação e a deliberação dos estudantes, para que eles mesmos consigam solucionar o problema, em reuniões escolares, na criação do grupo de mediação de conflitos, na comunicação não-violenta e na educação para a paz nos currículos.
Os projetos a respeito da infância pediram celeridade em processos judiciais que envolvem crianças; combate ao abuso sexual; brinquedos que representem a diversidade. Postaram-se pelos direitos dos órfãos (“não serem adotados para trabalharem”); pela inserção social do agricultor (“que as crianças não deixem de estudar para ajudar na colheita”).
Há experiências pessoais que contradizem a sensação generalizada de medo. Nesses casos, as crianças vivenciaram a ameaça real e se mantiveram no espírito democrático. Um dos exemplos é o seguinte relato:
544/2010 [...] Desde os 6 anos morei numa instituição de reeducação para menores [...] e só saí de lá com 12 anos. Sempre tive que me virar sozinho, obedecer ordens e regras, ser acompanhado até para ir a escola, igreja e outros lugares. Sempre ouvi falar que política não é coisa boa e cresci com esta ideia na cabeça. [...] criança também precisa entender, conhecer e vivenciar questões políticas; e porquê não na escola? [...] hoje sou o representante da minha classe [sic].
Os achados da pesquisa foram consolidados na tabela 1 e nos gráficos 1 e 2 , a seguir.
Tabela 1 Quantitativo das categorias nos projetos do Câmara Mirim 8 .
Ano | projetos enviados pelo site | intolerância e/ou desacordo com leis | respeito, garantia de direitos e contra a discriminação | ||
---|---|---|---|---|---|
número absoluto | porcentagem | número absoluto | porcentagem | ||
2006 | 45 | 6 | 13,33 | 7 | 15,56% |
2007 | 204 | 6 | 2,94 | 24 | 11,76% |
2008 | 495 | 16 | 3,23 | 58 | 11,72% |
2009 | 534 | 13 | 2,43 | 68 | 12,73% |
2010 | 662 | 23 | 3,45 | 96 | 14,44% |
2011 | 1137 | 34 | 2,99 | 208 | 18,29% |
2012 | 590 | 19 | 3,22 | 120 | 20,34% |
2013 | 358 | 16 | 4,46 | 24 | 6,70% |
2014 | 718 | 25 | 3,48 | 109 | 15,18% |
2015 | 701 | 39 | 5,56 | 109 | 15,55% |
2016 | 643 | 13 | 2,02 | 97 | 15,09% |
Média | 553,64 | 19,09 | 3,44 | 83,64 | 15,11% |

Fonte: elaboração da autora.
Fonte: elaboração da autora.
Gráfico 1 Porcentagem de projetos do Câmara Mirim
Os resultados da análise apontam para a ocorrência pouco significativa de ideias não democráticas, as quais se mantiveram no mesmo patamar ao longo de 10 anos. Em média, menos de 1% tem manifestações de intolerância e 3% referem-se a punições inconstitucionais, somando 3,44%. O clima de ódio que costuma envolver as eleições políticas ( GAGLIARDONE et al. 2015 ) não afetou os números 9 , 10 dessa categoria.
O achado mais interessante, contudo, está no número considerável de propostas que visam justamente a combater a intolerância (15% em média). Abaixo, os quadros 1 a 311 comparam exemplos das duas categorias.
Quadro 1 Argumento da religião – combate ao crime
Intolerância | Respeito |
---|---|
68/2008 [...]. Não investiria em novas CADEIAS, pois o lugar de um homem condenado por um delito cometido é no CEMITÉRIO. Jesus veio a terra e cuspiram nele. [...] esses marginais [...] cometeram infrações que Jesus não cometeu e sofreu muito mais por esse tipo de gente. PRESO? NÃO, bandido de alta periculosidade deve ser MORTO e DECAPTADO. [...]. Levo jeito para ser político, por isso estou aqui [...]. como DEPUTADO DA CÂMARA eu faria tudo isso e muito mais por essa sociedade brasileira que tanto merece coisas boas [sic] | 121/2010 - Na sua visita ao Brasil, o Papa Francisco disse [...] que [...] vivemos num mundo de “ globalização da indiferença ” [...]. A escola precisa agir para formar pessoas mais solidárias. Isso não tira a responsabilidade do Governo de garantir os direitos de cidadania às pessoas . Mas certamente ajuda a formar p essoas melhores [que] ajudarão a reduzir o índice de criminalidade [...] a acabar com a corrupção [...] |
Fonte: elaboração da autora, a partir dos dados da pesquisa.
Quadro 2 Política
Intolerância - culpabilização | Respeito – responsabilidade compartilhada |
---|---|
95/2015 [...] Dilma e seus companheiros do PT vem roubando o dinheiro que o povo luta e trabalha para conseguir [...]. não acho que a presidenta [...] se importa [...]. Estupros e violências sexuais; roubos; esfaqueamentos [...] os culpados fazem isso e sabem que no outro dia estão livres [sic]. | 7/2013 [...] Política vai ser o nome de uma rede social online em que vai estar disponível os nomes e os e-mails dos políticos do Brasil. [...] Toda pessoa vai [...] se tornar “política” nessa rede social [...] vai poder criar leis, projetos, votar em políticos [...] e conversar com os políticos [sic]. |
Fonte: elaboração da autora, a partir dos dados da pesquisa.
Quadro 3 Argumentos de pesquisa – maioridade penal
Intolerância | Respeito |
---|---|
208/2010 [...]. Fica aqui a minha indignação [...] ao descaso com o menor nesse País, temos [...] uma lei ultrapassada. [...] que a maior idade penal passe de 18 para 16 anos, [...] com 16 anos pode-se dirigir [...] votar e escolher o Presidente do País [...] Com 16 anos, jovens matam, roubam, estupram e vendem drogas. [...] não é justo que o jovem que estuda, que trabalha, que é responsável, que está dentro da lei, pague [...] sendo roubado, violentado ou assassinado por menores que em muitas vezes nem cometem o crime , mas assumem para inocentar maiores de idade, [...] nem ficam detidos e no dia seguinte ao crime já são encontrados pelas ruas. [...] A criança deve ser tratada como criança, mas o criminoso deve ser tratado como tal , seja ele de 10 ou 100 anos. [...] JEAN PIAGET [...] psicólogo que conheceu, com maior profundidade, o mundo da criança, [...] já dizia que a criança, dos 7 aos 11 anos, é capaz de se organizar socialmente, normalmente em bandos , [...] pode compreender regras, sendo fiéis a elas, daí poder estabelecer compromissos. | 378/2010 [...] estatísticas demonstram que apenas 0,2% dos adolescentes [...] estão cumprindo alguma medida socioeducativa no Brasil por terem cometido crimes. [...] prova que a criminalidade não é maior nesta faixa etária. [...] A discussão sobre maioridade penal desvia o foco das verdadeiras causas [...] da violência, colocando a culpa no adolescente. [... no Brasil a violência está profundamente ligada a [...] desigualdade social (diferente de pobreza!), exclusão social, impunidade (as leis [...] não são cumpridas, independentemente de serem “leves” ou “pesadas”), falhas na educação familiar e/ou escolar [...] em valores ou comportamento ético, e [...] processos culturais exacerbados [...] como individualismo, consumismo e cultura do prazer. [...] Reações emocionais motivadas pelas “más notícias” veiculadas pela mídia. [...] temos naturalmente um sentimento de indignação [...]. apenas 2 em cada 1000 adolescentes se envolvem em crimes , podemos relativizar esta indignação e não generalizá-la [...] crimes bárbaros, apesar de serem chocantes, são casos isolados. [...] regimes extremamente rígidos em diversos países [...] não conseguiram reduzir ou resolver [...] a violência . [...] no Brasil é muito comum haver injustiça e preconceito na aplicação das leis. Pobres e negros lotam os presídios [...]. Se as leis forem mais rígidas, [...] afetará [...] o setor excluído da sociedade. [...] dificilmente um filho da elite sofrerá a mesma punição . [sic] |
Fonte: elaboração da autora, a partir dos dados da pesquisa.
Nesses exemplos, estão presentes elementos-chave da conjuntura atual brasileira: o crescimento da religião na política, o antipetismo (BRUGNAGO; CHAIA, 2015), o debate sobre a maioridade penal ( NONATO, 2015 ). Os quadros distinguem o discurso segregante da intolerância (“nós x eles”, típico da criminologia midiática e radicalização política que são pano de fundo para essa atitude) e o discurso empático e coletivo, condizente ao respeito e à concepção de tolerância como mutualidade. O aprofundamento de sua análise é atraente e pode ser objeto de trabalhos futuros.
Conclusões
Da literatura, depreende-se que o que deve ou não ser tolerado se dá no processo democrático; não é predeterminado. Contudo, alguns aspectos são consenso: não se pode causar danos aos outros; não se tolera a intolerância à multiplicidade e às regras do jogo democrático em si.
No bojo da educação para a democracia, o ensino da tolerância é tido como importante instrumento para o desenvolvimento da sociedade e uma convivência com mais informação e criatividade. A concepção da tolerância mais promissora para a educação, e por isso adotada no presente artigo, é a da mutualidade. Busca-se criar, reciclar e manter a disposição para ouvir e respeitar, a “vontade de se relacionar” ( CREPPELL, 2008 ), guardando-se o direito de não concordar.
O ambiente educativo não deve ser um espelho da sociedade ou do mundo dos adultos. A ideia é criar um lugar modelo, um laboratório ideal em que se trabalhem as atitudes de intolerância já na origem, de modo seguro, contextualizado e com o claro objetivo de encontrar soluções em conjunto, mesmo (ou principalmente) no conflito.
As instituições políticas também podem ser espaços educativos, a exemplo do Parlamento, com iniciativas de participação política infantojuvenil. Uma delas é o programa Plenarinho, da Câmara dos Deputados. Em sua ação anual, Câmara Mirim, desde 2006, traz crianças e adolescentes para participar do processo legislativo, com a criação, discussão e votação de projetos de lei de sua própria autoria. Ao se deparar com as manifestações infantis de intolerância ou em desacordo com as leis, o Plenarinho se limitava, até então, a inscrevê-las e ignorá-las.
Esta pesquisa propiciou a sistematização dos projetos mirins e agora fornece estratégias para trabalhar com eles, não censurando, mas convidando seus autores para a reflexão das origens das ideias. São três abordagens complementares, que podem ser úteis para escolas e outras instituições e iniciativas com projetos participativos infantojuvenis: (1) como lidar com a discordância de leis/normas; (2) como identificar as causas da intolerância; e (3) como incentivar a mutualidade.
(1) É importante que as crianças compreendam a necessidade do respeito ao estado de direito em qualquer ordem social. Ao mesmo tempo, também é preciso diferenciar lei e justiça. Leis podem, sim, ser questionadas e mudadas - desde que os cidadãos o façam de modo pacífico e responsável, e a educação para a democracia pode ajudar na aquisição de tais habilidades políticas ( CRICK, 1998 ).
(2) A intolerância vem da percepção do medo, que contém um aspecto protetivo. De fato, mesmo com algumas propostas de alto teor repressivo, paradoxalmente, os candidatos a deputado mirim mostraram-se bem-intencionados. Ofereceram justificativas para soluções radicais, no combate a ameaças à infância (por exemplo, pena de morte para pedófilos).
Contudo, a mídia (incluindo a propaganda política) tem contribuído para criar percepções exageradas de medo e violência e fomentar expressões de ódio. A estratégia não está em impedir que as crianças acessem a mídia, mas sim incrementar nelas as habilidades de identificar, questionar e enfrentar conteúdos de ódio, por meio do letramento midiático na educação para a democracia ( GAGLIARDONE et al., 2015 ). É preciso, também, canalizar as boas intenções em uma direção mais reflexiva, tolerante e democrática.
No Câmara Mirim, isso é exemplarmente mostrado: o mesmo fato gerou discursos diametralmente distintos – um seguiu o credo criminológico midiático; outro buscou soluções empáticas na raiz do problema, com efeito imunizante (conforme PEDAHZUR, 2004 ).
Em dez anos, a média de projetos mirins com intolerância ou em desacordo com as leis brasileiras é de menos de 4%, enquanto a média dos projetos em defesa dos direitos e contra a discriminação foi superior a 15%. O destaque é para os 96% dos projetos que não manifestaram o discurso do ódio, a despeito da crescente onda de mensagens antidemocráticas na mídia e nas redes sociais – e na própria Câmara dos Deputados.
(3) Em vez de uma perspectiva de cima para baixo, de adultos para crianças, para se lidar com o discurso de ódio e intolerância advindo da participação política infantojuvenil, devem-se buscar respostas nos próprios resultados dessa participação. O direito à voz permite conhecer os sentimentos das crianças, de modo que elas se tornam a origem e a base das ações educativas. Isso é mutualidade – entre elas mesmas e entre elas e os educadores, pesquisadores, parlamentares e demais adultos.
Os próprios projetos do Câmara Mirim pedem mais participação (grêmios, conselhos, parlamentos mirins, votações, arenas de debate, desenvolvimento da liderança) e ensino de política, direito e cidadania. Em vez de negar o conflito, admitem-no; em vez de segregá-lo, expõem-se a ele; em vez de extirpá-lo (até porque seria impossível), buscam compreendê-lo. Assim, os paradoxos deixam de ser dicotomias excludentes para serem complementares.
Ainda que (poucos) projetos infantis tenham manifestado caráter discriminatório, são oportunidades para se abrir ao pensamento crítico e ao debate. Nesses casos, para seus autores, mais que as recomendações da literatura, valem as soluções (admiráveis) de seus próprios pares na Câmara Mirim. Soluções, aliás, que também se aplicam para dirimir a intolerância entre os adultos.